Acessibilidade / Reportar erro

Referência para o ambulatório de nefrologia: inadequação da demanda para o especialista

Resumos

INTRODUÇÃO: São escassos estudos sobre o encaminhamento dos pacientes em estágios mais precoces de nefropatia ao nefrologista. OBJETIVO: Investigar a adequação da referência dos pacientes para o ambulatório da nefrologia (Amb-N), no que diz respeito à pertinência da demanda para a avaliação com o especialista. MATERIAL E MÉTODOS: Estudo de corte transversal, com pacientes do ambulatório de primeira consulta de nefrologia. Após o atendimento habitual, as condutas poderiam ser: matricular no Amb-N para acompanhamento ou não fazê-lo por ausência de necessidade da avaliação/acompanhamento do especialista. Os dados foram relatados como média e desvio-padrão e frequências relativas. RESULTADOS: Dos 150 casos, a média de idade foi de 49 ± 16 anos, com predomínio (56%) do sexo feminino. Apenas 71 pacientes (47,3%) foi admitidos no Amb-N para ao menos uma avaliação anual. Foram matriculados 100% dos pacientes com DRC estágios de 3 a 5, 60% dos diabéticos e/ou hipertensos e 50% daqueles com litíase renal. Cerca de 50% dos pacientes procedentes de unidades do SUS e 70% de médicos privados foram matriculados. Ao todo, em 52,7% (n = 79) dos casos, na interpretação dos pesquisadores, não havia necessidade do nefrologista para o diagnóstico ou para a conduta clínica, bem como para o seguimento naquele momento. CONCLUSÃO: Houve inadequada utilização da qualificação do nefrologista como especialista no atendimento precoce do nefropata. Outros estudos são necessários para avaliar a eficiência dos modelos de referência e contrarreferência operantes em diferentes regiões do país, com o intuito de racionalizar oferta e demanda de atendimento de média complexidade em nefrologia.

referência e consulta; nefrologia


INTRODUCTION: There are scarce data in Brazil concerning the referral of the patients with renal diseases to the nephrologist care. OBJECTIVE: The aim of the present study was to describe the adequacy of early referral of these patients to a nephrology out-patient clinic. MATERIAL AND METHODS: It was a crosssectional study. Data of the first visit of the patient to the nephrologists were collected. The decision of the nephrologist, regarding the admittance of the patient to the followup with the nephrology team was also described. RESULTS: We evaluated 150 patients, with mean age of 49 ± 16 years, and 56% of females. The need of a consultation and follow-up with the renal specialist was found in only 71 patients (47.3%) and all these patients were enrolled in the nephrology unit out-patient clinic for, at least, one visit a year. All the patients with chronic kidney disease stages 3 to 5 were recommended to maintaining visits to the nephrologist, whereas 60% of those with diabetes and/or hypertension and 50% of those with renal lythiasis were also enrolled in the same program. Approximately 50% of patients originated from public health system units and 70% of private doctors were adequately referred. CONCLUSION: There was inadequate use of the abilities of the nefrologist as a specialist in the care of the patient with early stages of renal diseases. Other studies are needed to evaluate the efficiency of referral systems to the nephrologists in other areas of Brazil, with the purpose to rationalize supply and demand in the nephrology care.

referral and consultation; nephrology


COMUNICAÇÕES BREVES

Referência para o ambulatório de nefrologia: inadequação da demanda para o especialista

Marilia Bahiense- OliveiraI; Daniella DuarteII; Gabriela Góes Castro MeiraII; João Jorge de CodesII; Maria Zenaide RibeiroII

IServiço de Nefrologia Hospital Ana Neri - UFBA; Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

IINefrologista - Hospital Ana Néri

Correspondência para Correspondência para: Marilia Bahiense Oliveira Avenida Professor Magalhães Neto, 1541/sl. 3023 Salvador, BA CEP: 41810-012 Tel/Fax: 55 (71) 2109-2323 E-mail: bahiensem@ig.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: São escassos estudos sobre o encaminhamento dos pacientes em estágios mais precoces de nefropatia ao nefrologista.

OBJETIVO: Investigar a adequação da referência dos pacientes para o ambulatório da nefrologia (Amb-N), no que diz respeito à pertinência da demanda para a avaliação com o especialista.

MATERIAL E MÉTODOS: Estudo de corte transversal, com pacientes do ambulatório de primeira consulta de nefrologia. Após o atendimento habitual, as condutas poderiam ser: matricular no Amb-N para acompanhamento ou não fazê-lo por ausência de necessidade da avaliação/acompanhamento do especialista. Os dados foram relatados como média e desvio-padrão e frequências relativas.

RESULTADOS: Dos 150 casos, a média de idade foi de 49 ± 16 anos, com predomínio (56%) do sexo feminino. Apenas 71 pacientes (47,3%) foi admitidos no Amb-N para ao menos uma avaliação anual. Foram matriculados 100% dos pacientes com DRC estágios de 3 a 5, 60% dos diabéticos e/ou hipertensos e 50% daqueles com litíase renal. Cerca de 50% dos pacientes procedentes de unidades do SUS e 70% de médicos privados foram matriculados. Ao todo, em 52,7% (n = 79) dos casos, na interpretação dos pesquisadores, não havia necessidade do nefrologista para o diagnóstico ou para a conduta clínica, bem como para o seguimento naquele momento.

CONCLUSÃO: Houve inadequada utilização da qualificação do nefrologista como especialista no atendimento precoce do nefropata. Outros estudos são necessários para avaliar a eficiência dos modelos de referência e contrarreferência operantes em diferentes regiões do país, com o intuito de racionalizar oferta e demanda de atendimento de média complexidade em nefrologia.

Palavras-chave: referência e consulta; nefrologia.

INTRODUÇÃO

Há diversos relatos, tanto em outros países quanto no Brasil, de encaminhamento tardio de pacientes nefropatas ao atendimento com nefrologista, o que implica mais morbidade e maior mortalidade nessa população.1,2,3,4 Muitos dos pacientes recebidos para programa de terapias dialíticas tiveram pouco ou nenhum contato com um especialista antes de iniciarem diálise.4,5 Na Bahia, Godinho et al. registraram que 71% dos pacientes que eram admitidos em estágio final de doença renal (EFDR) no hospital de referência para nefrologia não tinham mantido contato com o nefrologista e metade deles usava o pronto-socorro como local primário de atenção médica. Muitos desses pacientes chegaram com urgência dialítica. São escassos estudos sobre a referência do paciente para o nefrologista em estágios mais precoces da nefropatia, especialmente em nosso país. O objetivo deste estudo foi investigar a adequação da referência dos pacientes para o ambulatório da nefrologia, no que diz respeito à pertinência da demanda para a avaliação com o especialista.

MÉTODOS E CASUÍSTICA

Este foi um estudo de corte transversal, realizado no Hospital Ana Néri - UFBA (HAN), unidade prestadora de serviços de alta complexidade do SUS. Nos meses de fevereiro e março de 2008, todos os pacientes que chegaram ao ambulatório do HAN para atendimento inicial com o nefrologista foram encaminhados para um ambulatório de primeira consulta. Esse atendimento foi realizado em salas contíguas por um médico-assistente nefrologista certificado e quatro médicos-residentes, R2, de nefrologia. Após a consulta habitual, era solicitado o consentimento verbal do paciente para o preenchimento de um questionário e para que os dados dele pudessem ser utilizados nesta pesquisa. Ao final de cada atendimento, o médico pesquisador anotava os dados demográficos, unidade de origem da solicitação da consulta, e depois emitia o parecer resumido do nefrologista e a conduta quanto à admissão no ambulatório da nefrologia (Amb-N).

Foram definidos previamente quatro grupos de condutas possíveis, a saber: A) Matrícula no Amb-N para retorno precoce (< 1 ano) e acompanhamento. Tratava-se de pacientes com doença renal crônica (DRC)6 estágios 3, 4 e 5 e/ou indícios de glomerulopatia, tubulopatia e insuficiência renal aguda; B) Matrícula no Amb-N para visita anual. Eram pacientes com nefropatias crônicas em estágios mais precoces e estáveis; C) Encaminhamento para a unidade básica de saúde (UBS), para o serviço de origem da solicitação da consulta ou para outro especialista, ainda que o paciente tivesse afecções uronefrológicas ou metabólicas, por não haver necessidade da opinião e da conduta do nefrologista. Por exemplo, pacientes com infecção do trato urinário, cisto renal simples, hipertensão arterial sistêmica não complicada, diabetes mellitus (DM) sem nefropatia, episódio único de suposta cólica nefrética, hidronefrose sem perda de função renal etc.; D) Diante de pacientes nos quais não foram identificadas quaisquer afecções dos rins e do trato urinário, a conduta foi orientar buscar uma UBS para avaliação.

Os grupos A e B foram descritos conjuntamente como pacientes com necessidade de avaliação anual mínima com o especialista. Os grupos C e D foram mostrados separadamente, como pacientes sem essa necessidade. As condutas propostas seguiram a interpretação clínica do grupo de pesquisadores, decididas por ao menos dois destes, incluindo o nefrologista certificado.

Os dados foram descritos como média e desviopadrão e frequências relativas.

RESULTADOS

Nos 150 primeiros atendimentos que aqui descrevemos, a média de idade dos pacientes foi de 49 ± 16 anos, com predomínio (56%) do sexo feminino, 38% de indivíduos negros, 45% pardos e 16% brancos. Em 11% dos casos, os pacientes se declararam analfabetos, 34% não completaram o ensino fundamental, 33% concluíram o ensino fundamental e 17% o ensino médio. Os pacientes procediam predominantemente da capital do estado (63%). Na Tabela 1, descreve-se a conduta do nefrologista quanto à primeira consulta do paciente.

Ao todo, em 52,7% (n = 79) dos casos, na interpretação dos pesquisadores, não havia necessidade do nefrologista para o diagnóstico ou para a conduta clínica, bem como para o seguimento dos pacientes naquele momento. Em 31 pacientes não foram encontradas afecções do aparelho urinário e em 48 pacientes, encaminhados por médicos do serviço público ou privado, não havia necessidade do especialista. Dentre todos os atendidos, 71 pacientes (47,3%) foram admitidos no Amb-N para ao menos uma avaliação anual.

Litíase urinária, como diagnóstico isolado, foi o motivo mais comum de encaminhamento para o ambulatório da nefrologia, seguido de casos de DRC estágios 3 a 5 e de diabéticos e/ou hipertensos. Os pacientes com DRC estágios de 3 a 5 foram todos matriculados no Amb-N. Cerca de 60% daqueles diabéticos e/ou hipertensos e 50% daqueles com litíase foram também matriculados.

As solicitações de consulta com o nefrologista foram originadas das UBS (n = 40) em 27% dos casos e em outros 36% de diferentes unidades do SUS (n = 56). Vieram por conta própria 18% dos casos (n = 28) e outros 10% a pedido de médicos privados (n = 17). Em nove casos não foi registrada a procedência do pedido de consulta. Cerca de 50% dos pacientes com solicitações de consulta oriundas das UBS (18/40) ou de outros especialistas da rede do SUS (31/56) foram matriculados no Amb-N. Dentre os encaminhados por médicos privados, 70% (12/17) foram matriculados no Amb-N enquanto apenas um paciente que chegou por demanda espontânea teve o mesmo fim.

DISCUSSÃO

Estima-se que para cada nefrologista nos Estados Unidos haja mais de 2.000 pacientes com DRC estágios 2 a 5 na população.7 Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), há 2.733 nefrologistas inscritos em seus quadros (referente ao ano de 2008) e apenas 133 destes (5%) registrados na Bahia, estado onde foi realizado o estudo. Essa informação pode não refletir o número real de nefrologistas em atuação no país ou nessa região em particular. Em países desenvolvidos, onde há estatísticas mais precisas, a percepção é de que há poucos especialistas para atender às necessidades da prevalência crescente de pacientes renais crônicos em seus distintos estágios.

Na unidade de hemodiálise de pacientes crônicos do HAN, em julho de 2008, um semestre após sua reabertura por causa de reforma, apenas 40% dos pacientes eram dialisados por acesso permanente, sendo que 100% dos pacientes incidentes (casos novos) chegaram com cateter venoso temporário, indício de encaminhamento tardio para o nefrologista. Em outro hospital de Salvador,4 de 122 pacientes admitidos para diálise crônica, apenas um recebeu o tratamento inicial por fístula arteriovenosa.

O presente estudo, neste contexto, traz à luz um paradoxo: o uso inadequado da qualificação do nefrologista como especialista no atendimento precoce do nefropata, em contraponto ao encaminhamento tardio desse paciente para o especialista já no EFDR. Não há consenso entre os especialistas sobre quando o paciente corretamente identificado como nefropata deve ser encaminhado para avaliação do nefrologista.5,8 Em nosso estudo, a interpretação da adequação da referência não foi embasada em critérios cientificamente testados, mas na opinião dos autores. Presença de nefropatia e a possibilidade do nefrologista influenciar positivamente o prognóstico da doença renal foram o que norteou a indicação de matrícula no Amb-N. A subjetividade desses critérios dificulta a avaliação precisa dos resultados encontrados.

Não foi objetivo deste estudo identificar as causas do paradoxo aqui exposto. Especulamos se a falta de informação dos médicos de outras especialidades a respeito das nefropatias e da prática clínica do nefrologista poderia justificar os resultados encontrados. Entre médicos clínicos gerais estadunidenses,8 com diferentes formações, 63,8% identificaram corretamente pacientes com DRC estágio 2 quando havia proteinúria nos cenários clínicos que lhes eram apresentados. Na ausência de proteinúria, contudo, nos cenários onde havia DRC, mas a creatinina sérica estava dentro dos valores de referência laboratoriais normais (até 1,3 mg/dL), menos de 50% dos médicos reconheceram a DRC estágio 3. Se havia nefropatia diabética, 82,3% desses médicos prescreveriam inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) e 13,4% os antagonistas do receptor AT1 (ARA). No entanto, se o cenário fosse de proteinúria atribuída à outra causa que não o DM, apenas 60,5% dos médicos prescreveriam IECA e 14,9% ARA.

O elevado número de busca espontânea por atendimento certamente prejudica o melhor ajuste entre oferta e demanda e, após os primeiros resultados deste estudo, foram suspensos os agendamentos de primeira consulta de pacientes sem relatório médico. Ainda assim, consideramos elevada a percentagem (± 50%) de pacientes encaminhados inadequadamente pelos médicos do SUS. Interpretamos que vagas de atendimento com o nefrologista foram utilizadas por pacientes que não as necessitavam, enquanto, sabidamente, há nefropatas na rede do SUS, identificados ou não, com dificuldades de acesso a esse profissional.

Entendemos que é preciso avaliar se esses resultados espelham apenas um fenômeno local ou se refletem também a realidade de outros serviços. Há um enorme esforço em andamento na SBN para promover a prevenção da DRC e suas complicações. Essas ações da SBN podem resultar em aumento de demanda de pacientes corretamente encaminhados para atendimento com nefrologista nos próximos anos. Outros estudos são necessários para avaliar a eficiência dos modelos de referência e contrarreferência operantes no país, com o intuito de racionalizar oferta e demanda de atendimento de média complexidade em nefrologia.

Data de submissão: 11/10/2009

Data de aprovação: 21/12/2009

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

O referido estudo foi realizado no Serviço de Nefrologia, Hospital Ana Néri, UFBA. R. Saldanha Marinho, SN. Caixa d'Água, Salvador, Bahia. CEP: 40323-010. Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. R. Frei Henrique, 8. CEP: 40050-420. Nazaré. Salvador, Bahia.

  • 1. Kinchen KS, Sadler J, Fink N et al The timing of specialist evaluation in chronic kidney disease and mortalitiy. Ann Intern Med 2002;137:479-86.
  • 2. Lhotta K, Zoebl M, Mayer G, Kronenberg F. Late referral defined by renal function: associations with morbidity and mortality. J Nephrol 2003;16:855-61.
  • 3. Abdulkader RC, Zanetta DM, Oliveira GM, Burdmann EA. Risk factors for hospital death of patients with endstage renal disease without previous diagnosis of severe chronic renal failure arriving in an emergency situation at the hospital. Ren Fail 2003;25:631-8.
  • 4. Godinho TM, Lyra TG, De Queiroz RA et al Perfil do paciente que inicia hemodiálise de manutenção em hospital público em Salvador, Bahia. J Bras Nefrol 2006; 28:96-103.
  • 5. Bhandari S, Cheung CK. Perspectives on eGFR reporting from the interface between primary and second care. Clin J Am Soc Nephrol 2009;4:458-60.
  • 6. Romão Jr JE. Doença renal crônica: definição, epidemiologia e classificação. J Bras Nefrol 2004;26 (suppl 1):1-3.
  • 7. Blantz RC. Handing out grades for care in chronic kidney disease: nephrologists versus non-nephrologists. Clin J Am Soc Nephrol 2007;2:193-5.
  • 8. Mccellan WM, Ramirez SPB, Jurkovitz C. Screening for chronic kidney disease: unresolved issues. J Am Soc Nephrol 2003;14:S81-7.
  • 9. Israni RK, Shea JA, Joffe MM, Feldman HI. Physician characteristics and knowledge of CKD management. Am J Kidney Dis 2009;54:238-47.
  • Correspondência para:

    Marilia Bahiense Oliveira
    Avenida Professor Magalhães Neto, 1541/sl. 3023
    Salvador, BA CEP: 41810-012
    Tel/Fax: 55 (71) 2109-2323
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      11 Out 2009
    • Aceito
      21 Dez 2009
    Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: bjnephrology@gmail.com