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Os fundamentos econômicos do programa de integração Argentina-Brasil* * Agradeço a João Bosco Mesquita Machado e Renato Fonseca pela compilação dos dados aqui apresentados.

Economic fundaments of the Argentine-Brazil integration program

RESUMO

O artigo trata de três aspectos do acordo Argentina-Brasil. Em primeiro lugar, mostra que este acordo não representa um movimento de bilateralidade, mas sim um esforço de fortalecimento global da economia latino-americana. Em segundo lugar, tenta demonstrar que existe um potencial comercial considerável a ser explorado entre as duas economias. Por fim, aponta que a remoção das barreiras comerciais levará a uma melhoria do padrão de organização industrial em ambas as economias.

PALAVRAS-CHAVE:
Integração econômica; Mercosul

ABSTRACT

The paper deals with three aspects of the Argentine-Brazil agreement. First, it shows that this agreement does not represent a movement towards bilateralism, but it is an effort towards the global strengthening of Latin American economy. Secondly, it tries to demonstrate that there is a considerable amount of potential trade to be exploited between the two economies. Finally, it points out that the removal of trade barries will lead to an improvement of the pattern of industrial organization within both economies.

KEYWORDS:
Economic integration; Mercosur

Os dezessete protocolos assinados pelos presidentes Alfonsín e Sarney em julho e dezembro de 1986 definem um programa de trabalho que visa estabelecer a médio prazo um mercado comum entre as economias argentina e brasileira. O programa compreende um conjunto variado de providências que abrange desde o aprofundamento das preferências comerciais entre os dois países, a remoção de barreiras não tarifárias, a criação de instrumentos financeiros para sustentar os níveis de intercâmbio, o estímulo à formação de empresas binacionais, projetos de cooperação em áreas de tecnologia de fronteira, projetos setoriais integrados, como os bens de capital, trigo e abastecimento alimentar, etc.

O nível de especificação das medidas previstas em cada protocolo também varia bastante. Assim, por exemplo, um dos protocolos assinados em julho determinava que, no âmbito da ALADI, durante o segundo semestre de 1986, deveria ser concluída a renegociação do acordo de alcance parcial n.º 1, bem como detalhava os critérios segundo os quais a renegociação deveria ser conduzida. Esses ditames foram cumpridos, e, a partir de 1º. de janeiro de 1987, uma parcela relevante do comércio bilateral passou a ser regulada por este instrumento que assegura, além de reduções tarifárias significativas, a não aplicação de outras barreiras comerciais aos bens incluídos no acordo.

Certos protocolos, como os de trigo e bens de capital, fixam volumes mínimos ou valores de referência a serem alcançados dentro de um horizonte temporal de cinco anos, e indicam os procedimentos a serem utilizados na busca dos objetivos escolhidos. Outros, como o de empresas binacionais, apenas formulam orientações genéricas, que serão posteriormente detalhadas por especialistas na matéria e incluídas oportunamente na agenda de negociações.

A heterogeneidade dos protocolos reflete o pragmatismo que marca o programa de integração, e que resulta do consenso existente entre os dois governos quanto à magnitude das dificuldades a serem enfrentadas. Como observou o embaixador Francisco Thompson Flores, chefe da delegação brasileira que participou, durante o ano de 1986, do processo de negociação e formulação dos protocolos, “se as perspectivas são literalmente brilhantes, os obstáculos são formidáveis” (1986Thompson Flores, F. (1986) “Adeus à retórica: rumo à integração”. Revista Brasileira de Comércio Exterior, n.º 8, nov-dez, pp. 11-14., p. 12).

Além de tarefas de natureza meramente executiva, cuja realização não implica conciliar interesses divergentes, mas que demanda tempo e recursos, como no caso dos investimentos em infraestrutura de transportes e armazenagem, pelo menos dois problemas importantes terão que ser encaminhados no futuro próximo: o de ajustar os patamares de produtividade das duas estruturas industriais e o de harmonizar as políticas econômicas nacionais.

O fôlego disponível pelo programa para oferecer respostas adequadas a estas e outras questões está diretamente relacionado à dimensão dos benefícios a serem gerados pela integração. As próximas seções deste artigo procuram avaliar tais benefícios a partir de três planos interdependentes: o das consequências da integração sobre os demais países da América Latina, o da ampliação do intercâmbio bilateral através dos mecanismos de criação e desvio de comércio, e o do aproveitamento das vantagens comparativas detidas pelas duas economias.

O SUPORTE AO COMÉRCIO NA AMÉRICA LATINA

As Tabelas 1 e 2 fornecem alguns dados gerais sobre o comércio da Argentina e do Brasil com os demais países da ALADI no período 1970-1985. Dois traços básicos das transações ali descritas merecem destaque. O primeiro diz respeito ao papel que os dois países exercem na região: como vendedores ou compradores, Argentina e Brasil estão sempre presentes em mais de 70% das transações realizadas no interior da ALADI. Este fato dispensa a apresentação de outras evidências para demonstrar que as políticas comerciais implementadas nos dois países produzem consequências decisivas para o destino econômico da região.

O segundo aspecto a ser ressaltado é o do envolvimento relativo dos dois países com a região. No caso do Brasil, as trocas com a ALADI oscilaram, durante o período considerado, entre 8,4% e 15,4% de seu comércio exterior; enquanto, para a Argentina, essas transações corresponderam sempre a parcelas bem maiores, situadas no intervalo entre 18,94% e 25,73% do comércio global do país. Assim, embora os montantes do comércio exterior brasileiro tenham sido, nos últimos quinze anos, da ordem de duas a três vezes superiores aos da Argentina, a importância efetiva das duas economias para os demais países da ALADI não diferiu em tais proporções. Na verdade, entre 1970 e 1985, é possível distinguir três subperíodos: no primeiro, de 1970 a 1974, as transações da Argentina com a ALADI foram, em valores absolutos, superiores às do Brasil; no segundo subperíodo, entre 1975 e 1979, as transações argentinas corresponderam a cerca de 80% das realizadas pelo Brasil; e no terceiro sub­período, a partir de 1980, situaram-se entre 50% e 70% das transações brasileiras.

Uma das características centrais do programa de integração decorre dos dados apresentados nos dois parágrafos anteriores: a de que o programa não constitui um movimento em direção ao bilateralismo, mas um esforço de fortalecer globalmente a economia latino-americana.

Tabela 1
Comércio da Argentina e do Brasil com países da ALADI (1970-1985) (Unidade: USS milhões)
Tabela 2
Participação do intercâmbio com a ALADI no comércio exterior da Argentina e do Brasil (1970-1985) (Unidade: USS milhões)

Isoladamente, tanto Argentina como Brasil teriam condições de formular políticas externas voltadas ao exercício de uma liderança dos rumos da economia regional, conforme demonstram as estatísticas da Tabela 2. Na prática, tais políticas não iriam além de explicitar e racionalizar um papel que ambas as economias já desempenham de forma não planejada, o de atuarem como fontes de sustentação dos níveis de comércio intrarregional e dos ritmos de crescimento dos demais países da área. Há, contudo, um constrangimento sério à implementação de políticas dessa natureza, o de alimentar expectativas quanto a sua transformação em projetos de hegemonia regional. Este dilema o programa de integração permite resolver, posto que, de um lado, os impactos econômicos sobre a região não resultariam de um projeto nacional, e, de outro, o princípio de equidade nas relações bilaterais Argentina-Brasil, que o programa visa preservar, marcará o estilo dos vínculos a serem mantidos com o resto da região.

Entretanto, para que o programa se torne um instrumento multilateral relevante na promoção do desenvolvimento latino-americano, é preciso que, preliminarmente, seus objetivos bilaterais sejam factíveis. Este é o tema das duas próximas seções.

DESVIO DE COMÉRCIO E COMPLEMENTARIDADE INTERSETORIAL

Com o objetivo de identificar possibilidades de negociação entre os países membros da ALADI, a Secretaria Geral da Associação realizou um minucioso levantamento das pautas de comércio da região no período 1980-1984. No caso da Argentina e do Brasil foram considerados, com base nas estatísticas a 10 dígitos da NADI e a 8 dígitos da NBM, todas as importações provenientes de fora da região cujos itens fossem superiores a um milhão de dólares, em termos de média anual durante o período.

Tais importações foram cruzadas com as respectivas exportações do outro país destinadas a países de fora da região, cujos itens fossem superiores a cinquenta mil dólares, também computados em termos de média anual durante o período. Esse cruzamento permite estimar as oportunidades de promover o crescimento do comércio bilateral através do desvio de compras realizadas junto a terceiros fornecedores. A Tabela 3 indica os valores de intercâmbio que seriam alcançados no período 1980-1984 caso todas as oportunidades de desvio de comércio tivessem sido aproveitadas (hipótese A).

É evidente que a hipótese A, que corresponde a valores de 4 a 8 vezes superiores ao intercâmbio efetivo, dificilmente seria realizável de forma plena. Em primeiro lugar porque, não obstante o grau de detalhe com que foi feito o cruzamento das informações, trata-se ainda de um nível de agregação que pode abranger produtos que não são substitutos entre si. Além disso, a troca de fornecedores pode se tornar inviável devido a diferenças de preço, condições de financiamento, prazos de entrega, qualidade, natureza dos vínculos entre comprador e vendedor, etc. Por fim, dada a disparidade dos valores mínimos utilizados na seleção dos itens importados e exportados, em muitos casos a demanda potencial de um país é várias vezes superior à oferta potencial do outro.

Apesar dessas limitações, os resultados obtidos com base na hipótese A permitem contestar uma crença muito difundida entre técnicos brasileiros: a de que o principal obstáculo ao crescimento do comércio do Brasil com a América Latina reside na falta do que comprar na região.

A hipótese B sugere uma estimativa mais realista do intercâmbio potencial.

Tabela 3
Argentina e Brasil: possibilidades de elevação de intercambio atravts de desvio de comércio (Unidade: USS milhões)
Tabela 4
Brasil e Argentina saldos comerciais efetivos e potenciais* (Unidade: USS milhões)

Neste caso são computados apenas os itens que um dos países exportou ao outro em valores médios superiores a um milhão de dólares por ano entre 1980 e 1984 sendo que, além disso, o país importador também adquiriu o mesmo item em quantidades médias superiores a um milhão de dólares de países de fora da América Latina. Esta hipótese inclui, portanto, somente aqueles produtos para os quais já existam canais de comércio bilateral estabelecidos, e cujas condições de atender à demanda do país importador sejam plausíveis. Outro aspecto que confere realismo à hipótese B é o de gerar um intercâmbio potencial bem mais equilibrado do que no caso da hipótese A, conforme mostra a Tabela 4.

Cabe notar, entretanto, que o intercâmbio potencial resultante da hipótese B contém uma característica que o programa de integração visa impedir que seja transformada no traço dominante do padrão de comércio entre Brasil e Argentina: a troca de manufaturas por produtos agrícolas. Conforme descreve a Tabela 5, caso o intercâmbio potencial tivesse sido realizado exclusivamente através dos mecanismos previstos nesta hipótese, a maioria das exportações adicionais da Argentina seria de produtos agroindustriais, enquanto as exportações adicionais do Brasil estariam concentradas em produtos provenientes do complexo metal-mecânico.1 1 Foram considerados como produtos do complexo agroindustrial aqueles relativos aos capítulos de 1 a 24 da nomenclatura de Bruxelas (Animais vivos, produtos dos reinos animal e vegetal, gorduras e óleos, fumo, produtos das indústrias de alimentos e bebidas). O complexo metal-mecânico abrange os capítulos de 73 a 93 (metais, máquinas, material de transporte, instrumentação científica, armas e munições). Para uma discussão do conceito de complexo industrial e dos métodos de agregação de setores, vide Haguenauer e outros (1984) e Araujo Jr. (1985).

E óbvio que interessa a ambos os países a exploração de suas complementaridades intersetoriais. Todavia, o padrão de comércio que o programa de integração pretende estabelecer não resultará apenas da substituição de terceiros fornecedores, mas, sobretudo, da criação de novas correntes comerciais, sustentadas pela exploração de vantagens comparativas intrasetoriais, conforme veremos adiante. Antes disso, no entanto, convém examinar certas peculiaridades do caso Brasil-Argentina quanto à elevação do intercâmbio com base em desvio de comércio.

Tabela 5
Possibilidades de elevação de intercâmbio através de desvio de comércio: distribuição setorial (hipótese b)

Na literatura sobre uniões aduaneiras o tema “desvio de comércio” costuma ser tratado sob o estigma de “dimensão perversa” dos projetos de integração, posto que representa a troca de um fornecedor mais eficiente por outro menos eficiente e, por conseguinte, corresponde a uma redução do nível de bem-estar do país importador. É sabido, entretanto, que esta proposição só é verdadeira se, após a integração, não se alterarem os termos de troca das economias envolvidas, não houver aproveitamento de economias de escala e de aprendizado, e permanecerem constantes as demais condições de produção.

É preciso lembrar também que, nos termos da teoria, o comércio desviado resulta tão-somente de reduções discriminatórias de tarifas relativas a bens homogêneos produzidos em condições nacionais de concorrência perfeita. Vale dizer, não são consideradas as consequências advindas da remoção de barreiras não tarifárias, parte indispensável de qualquer acordo de integração, bem como outras dimensões relevantes das trocas internacionais, como o comércio intrafirmas e diferenciação de produtos.

O escopo deste artigo não comporta o debate sobre a relevância da teoria sobre uniões aduaneiras.2 2 A curiosidade dos eventuais interessados no tema será provavelmente saciada com a leitura de Lipsey (1960). Os incansáveis poderão prosseguir com a ajuda de Pomfret (1986) e da bibliografia ali referida. Merece destaque, porém, o fato de que, mesmo sob a ótica restrita desta teoria, o desvio de comércio no caso Brasil-Argentina poderia ser avaliado positivamente.

De fato, segundo os critérios de seleção da hipótese B, o desvio de comércio promoveria exportações adicionais de produtos agropecuários da Argentina ao Brasil que estariam concentrados quase exclusivamente em uma única mercadoria: trigo.3 3 A rigor, este seria um caso de desvio de comércio não contemplado pela teoria convencional, posto que no Brasil o trigo é isento do imposto de importação e comprado pelo governo. O comércio desviado resultaria, portanto, da manipulação de uma barreira não tarifária (compras governamentais). Conforme mostram as Tabelas 6 e 7, nos últimos quinze anos os preços do trigo argentino têm sido sistematicamente inferiores à média de preços pagos pelo Brasil a terceiros fornecedores. No entanto, o Brasil costuma destinar a maior parte de suas compras justamente às fontes mais caras. Além disso, cabe notar ainda que, com exceção de anos atípicos como 1971 e 1978, os produtores argentinos teriam tido condições de atender quase plenamente às necessidades brasileiras!

Esse quadro paradoxal decorre de uma ampla gama de fatores que abrange questões como fretes, condições de transporte e armazenagem, prazos de pagamento concedidos por terceiros fornecedores, coincidência de safras etc. No âmbito do programa de integração, essas questões estão consideradas no protocolo n.º 2, que visa estabelecer “um projeto integrado de produção, armazenagem, transporte e abastecimento de trigo”, bem como nos protocolos n.º 14 e 15, que tratam dos problemas relativos a transporte marítimo e terrestre entre os dois países.

Na verdade, a superação desses obstáculos permitirá que, do lado brasileiro, seja enfrentado um problema ainda mais extravagante que os das fontes de suprimento de importação: o subsídio à produção interna. Apesar de o país repartir fronteiras com a economia mais eficiente do mundo na produção de trigo, o governo brasileiro vem mantendo há vários anos um programa de subsídios que consome cerca de dois bilhões de dólares ao ano dos cofres públicos e que procura assegurar ao produtor local níveis de preços que, em 1986, por exemplo, chegaram a alcançar 2,5 vezes a média de preços do produto importado.

Tabela 6
Comércio de trigo: Argentina, Brasil e resto do mundo (1970.1985) (Unidade: USS milhões)
Tabela 7
Preço Médio Fob das importações brasileiras de trigo (1970-1985) (Unidade: US$/ton)

CRIAÇÃO DE COMÉRCIO E COMPLEMENTARIDADE INTRASSETORIAL

A despeito da precariedade dos métodos, é sempre possível quantificar, ainda que aproximadamente, os montantes de intercâmbio potencial que seriam oriundos do desvio de comércio, conforme vimos na seção anterior. Porém, o mesmo não ocorre com o intercâmbio resultante da criação de comércio, que constitui justamente a dimensão mais relevante do programa de integração. O principal motivo desta impossibilidade reside no fato de que as oportunidades de criação de comércio estão diretamente vinculadas aos desdobramentos futuros dos parques industriais de ambos os países. Assim, qualquer tentativa de mensuração desta parcela do intercâmbio potencial teria que ser baseada em um grande número de suposições arbitrárias quanto aos ritmos prováveis de crescimento de ambas as economias em nível setorial, às tendências e formas futuras de incorporação do progresso técnico (expressas em termos de taxas esperadas de crescimento de produtividade para cada ramo industrial), às características dos planos de investimento, etc.

Os obstáculos à quantificação não impedem, entretanto, a discussão informada a respeito do papel a ser exercido pela criação de comércio no âmbito do programa de integração.4 4 Para a teoria convencional, criação de comercio refere-se às transações originadas da substituição de produção local pela correspondente oferta do país associado. Na linguagem cunhada pela experiência de industrialização latino-americana, este movimento seria denominado de “dessubstituição de importações”. Na acepção empregada no presente texto, criação de comércio significa a elevação do grau de abertura externa das economias envolvidas no processo de integração decorrente da redefinição dos princípios ordenadores da estrutura industrial dessas economias, Em outras palavras, o aspecto relevante a ser enfatizado não é a desativação das linhas de produção menos eficientes que as congêneres do país associado, mas sim o processo através do qual a médio prazo são superados os desníveis de produtividade existentes entre as economias envolvidas, e que consiste na introdução de novas variáveis nas estratégias de expansão das firmas estabelecidas nessas economias. O ponto de partida dessa discussão está associado a um desafio comum às perspectivas de crescimento de ambas as economias: o de estarem capacitadas a acompanhar os deslocamentos da fronteira tecnológica mundial, e, concomitantemente, assegurar condições de competitividade internacional a seus respectivos parques industriais.

Para o estudo das articulações possíveis entre duas estruturas industriais marcadas pela presença de firmas com tamanhos e pautas de produção os mais variados, bem como por ritmos heterogêneos de progresso técnico, são particularmente úteis os instrumentos analíticos oferecidos pela teoria de mercados contestáveis. Por isso, os próximos parágrafos apresentam um resumo dessa teoria, cujos fundamentos foram estabelecidos por Baumol, Panzar e Willig (1982Baumol, W. J., Panzar, J. C., e Wíllig, R. D. (1982) Contestable markets and the theory of industry structure. Nova York, Harcourt Brace.).5 5 Este resumo foi apresentado anteriormente em Araujo Jr. (1985) pp. 8-10. Em seguida, as possibilidades de criação de comércio são analisadas com base nos conceitos da teoria.

O conceito de mercado contestável é o núcleo de uma teoria segundo a qual a estrutura industrial é determinada endógena e simultaneamente com os vetores de produção e preços da indústria. Esta teoria elege como tema fundamental o estudo das conexões entre três ordens de fatores: as características das técnicas de produção disponíveis, a dimensão do mercado e a concorrência potencial. A partir da natureza das tecnologias em vigor, é possível identificar a configuração da estrutura industrial que é eficiente para a produção do vetor de bens consistente com a dimensão do mercado em análise. Uma vez definida a configuração eficiente, vale dizer, o número e a distribuição de tamanhos de firmas, bem como suas respectivas pautas de produção e parcelas de mercado, o padrão de competição da indústria não dependerá apenas das firmas ali estabelecidas, posto que as estratégias a serem implementadas resultarão de cuidadosas avaliações quanto ao eventual poderio dos concorrentes potenciais.

Um mercado é perfeitamente contestável quando os concorrentes potenciais estão aptos a impugnar efetivamente as práticas das firmas já estabelecidas no ramo. Para tanto, é necessário que os concorrentes potenciais tenham acesso às tecnologias em vigor na indústria, e que, se posteriormente resolverem encerrar suas atividades, consigam recuperar os gastos com o processo de entrada. Em outras palavras, um mercado é perfeitamente contestável quando existe liberdade absoluta de entrada e saída. A importância do conceito não reside em sua relevância empírica, mas em sua capacidade de prover instrumentos analíticos úteis ao estudo das peculiaridades do capitalismo contemporâneo. Conforme observou Baumol, no mundo real os mercados perfeitamente contestáveis são tão raros quanto os de concorrência perfeita. De fato, “um mercado perfeitamente competitivo é necessariamente perfeitamente contestável, mas não vice-versa” (1982Baumol, W. J. (1982) “Contestable markets: an uprising in the theory of industry structure”. American Economic Review, vol. 72, n.º l, março 1982., p. 4). Entretanto, a noção de contestabilidade não depende das hipóteses usuais quanto à atomicidade do mercado, homogeneidade do produto e independência entre os processos decisórios das firmas; e tampouco conduz à conclusão de que a eficiência na alocação de recursos seja uma função crescente do número de firmas existentes no mercado, ou que indústrias competitivas sejam preferíveis aos oligopólios ou monopólios. Ao contrário, a teoria de mercados contestáveis não apenas sugere que os oligopólios e monopólios sejam as configurações mais frequentes no capitalismo contemporâneo, como também que, na maioria dos casos, estas estruturas sejam desejáveis do ponto de vista dos critérios de bem-estar.

Para que uma estrutura industrial seja eficiente é preciso que sua configuração seja factível e sustentável. A noção de factibilidade é trivial: significa que existem técnicas de produção com as quais é possível atender à demanda aos preços vigentes e de forma que nenhuma firma da indústria tenha prejuízo. A noção de sustentabilidade é mais restritiva; impõe que os. preços vigentes sejam tais que, se forem mantidos, nenhum competidor potencial poderá entrar no mercado e auferir lucros. De maneira mais precisa, estes conceitos podem ser definidos assim: considere-se uma indústria cuja configuração seja descrita pelo vetor (n, yi, ... , yn, p), onde n é o número de firmas, yi o vetor de produção da firma t. p o vetor de preços, Q(p) a demanda pelos produtos da indústria, e e (yi) a função de custos da firma i; Essa configuração é factível se

(1) i = 1 n y i = Q p ; p y i - c y i 0 ; i = l , . . . , n ; y i 0

E será sustentável se, além de atender às condições requeridas em (1), os preços vigentes forem tais que:

p e y e - c y e 0 p a r a q u a l q u e r p e p e y e Q p e

E. evidente que um mercado perfeitamente contestável estará em equilíbrio se a sua configuração for sustentável. Outras propriedades importantes das configurações contestáveis são as de que: 1) quaisquer outras distribuições de tamanhos de firmas, pautas de produção, parcelas de mercado e técnicas produtivas são incapazes de atender à demanda a custos menores; 2) nenhuma firma pode operar com um vetor de preços que contenha subsídios cruzados; 3) caso surja uma inovação redutora dos custos de produção de algum produto da indústria, os fabricantes daquele bem são forçados a adotá-la. Se a fusão entre duas ou mais firmas, ou o desmembramento de uma delas, provocasse a redução do custo total da indústria, um concorrente potencial cujo tamanho fosse consistente com esse rearranjo poderia entrar no mercado e auferir lucros. Da mesma forma, se alguma firma estiver subsidiando uma linha de produção deficitária com os lucros advindos de outros bens mais rentáveis, um concorrente pode entrar no mercado fabricando apenas os produtos rentáveis e oferecendo-os a preços menores. Por fim, os parâmetros de sustentabilidade são redefinidos com o progresso técnico.

A natureza das técnicas produtivas influi na determinação do tamanho das firmas e na composição de suas pautas de produção através da geração de dois tipos de mecanismos redutores de custos: economias de escala e de escopo. Economias de escala ocorrem, como é sabido, quando uma elevação proporcional no uso dos insumos produtivos provoca um aumento mais do que proporcional no produto final. Economias de escopo - um dos conceitos inovadores oriundos da teoria de mercados contestáveis - ocorrem quando é mais barato combinar duas ou mais linhas de produção em uma única firma do que produzi-las separadamente.

Ao nível da indústria, a quantificação das economias de escala e de escopo inerentes às tecnologias disponíveis permite postular que o ramo em análise é um monopólio natural quando sua configuração sustentável comporta apenas uma única firma; ou que se trata de uma indústria naturalmente oligopolista (ou naturalmente competitiva) nos casos em que o número de firmas for pequeno (ou grande). Cabe notar que este exercício nos informa apenas qual é a estrutura mais eficiente para um dado nível de desenvolvimento das forças produtivas e de dimensão do mercado, mas não a estrutura que deverá emergir do padrão de concorrência em vigor. Além disso, a estrutura ótima só pode ser identificada endógena e simultaneamente com os vetores de produção e de preços, dado que uma configuração sustentável resulta de um vetor de produção que depende dos vetores de preços cobrados pelas firmas, cujo comportamento é função da estrutura da indústria.

Os conceitos apresentados nos parágrafos precedentes põem em relevo o principal benefício que o programa de integração pode oferecer às firmas argentinas e brasileiras: a ampliação de seus respectivos mercados locais. Por outro lado, é possível perceber também que os principais objetivos do programa só serão alcançados na medida em que as firmas de ambos os países explorem este benefício.

Para as firmas, isso significa redefinir suas pautas de produção de acordo com as novas dimensões do mercado, e estabelecer novas estratégias de crescimento que compreendam: a revisão das prioridades de investimento; a eventual abertura de filiais no país vizinho, ou a busca de sócios para formar empresas binacionais; a seleção, com base nas economias de escala e/ou de escopo a serem exploradas, das linhas de produção a serem mantidas simultaneamente em ambos os países, bem como daquelas a serem operadas de forma complementar etc.

Esse estilo de atuação das empresas implicará a criação de soluções novas para o trinômio “tecnologia - vetor de produção - dimensão do mercado”. Dessa maneira, crescerá o número de ramos industriais cujas configurações serão factíveis, bem como daqueles ramos cujas configurações só seriam factíveis em bases nacionais com o suporte de subsídios e que, após a integração, tornam-se sustentáveis.

Do ponto de vista das articulações entre as duas estruturas industriais, os mecanismos acima descritos correspondem à criação de comércio intrasetorial. De fato, são três dimensões de um mesmo fenômeno, o processo de investimento, que para a firma significa a busca de maior lucratividade, para a indústria, a transformação de suas condições de competitividade internacional, e para os países, o aproveitamento de suas vantagens comparativas.

CONCLUSÃO

As diferenças de tamanho entre as duas economias podem conferir sensatez aparente ao comentário de que o programa de integração é indispensável à Argentina, mas tem uma importância apenas relativa para o Brasil. O presente artigo mostrou que essa avaliação é errada. Na verdade, a integração é crucial para o bom desempenho futuro de ambas as economias devido a pelo menos três motivos relevantes. Em primeiro lugar, porque lhes permite ampliar e exercer plenamente suas atribuições como fontes dinamizadoras do crescimento latino-americano, sem que isso lhes crie dificuldades de natureza política dentro da região. Em segundo, porque conduz à realização das potencialidades de intercâmbio bilateral, cujos benefícios foram apontados nas seções anteriores. E, por fim, porque lhes assegura melhores condições para lidar com o desafio da modernidade.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Araujo Ir., J. T. (1985) Tecnologia, Concorrência e mudança estrutural: A experiência brasileira recente. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, série PNPE n.º 11, 1985.
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  • Baumol, W. J., Panzar, J. C., e Wíllig, R. D. (1982) Contestable markets and the theory of industry structure. Nova York, Harcourt Brace.
  • Haguenauer, L., e outros. (1984) Os complexos industriais da economia brasileira. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro, IEI/UFRJ.
  • Lipsey, R. G. (196) “The theory of customs unions: A general survey”, Economic Journal, vol. 70, pp. 496-513.
  • Pomfret, R. W. (1986) “The theory of preferential trading arrangements”. Weltwirtschaftliches Archiv, vol. 122, pp. 439-465.
  • Thompson Flores, F. (1986) “Adeus à retórica: rumo à integração”. Revista Brasileira de Comércio Exterior, n.º 8, nov-dez, pp. 11-14.
  • *
    Agradeço a João Bosco Mesquita Machado e Renato Fonseca pela compilação dos dados aqui apresentados.
  • 1
    Foram considerados como produtos do complexo agroindustrial aqueles relativos aos capítulos de 1 a 24 da nomenclatura de Bruxelas (Animais vivos, produtos dos reinos animal e vegetal, gorduras e óleos, fumo, produtos das indústrias de alimentos e bebidas). O complexo metal-mecânico abrange os capítulos de 73 a 93 (metais, máquinas, material de transporte, instrumentação científica, armas e munições). Para uma discussão do conceito de complexo industrial e dos métodos de agregação de setores, vide Haguenauer e outros (1984Haguenauer, L., e outros. (1984) Os complexos industriais da economia brasileira. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro, IEI/UFRJ.) e Araujo Jr. (1985Araujo Ir., J. T. (1985) Tecnologia, Concorrência e mudança estrutural: A experiência brasileira recente. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, série PNPE n.º 11, 1985.).
  • 2
    A curiosidade dos eventuais interessados no tema será provavelmente saciada com a leitura de Lipsey (1960Lipsey, R. G. (196) “The theory of customs unions: A general survey”, Economic Journal, vol. 70, pp. 496-513.). Os incansáveis poderão prosseguir com a ajuda de Pomfret (1986Pomfret, R. W. (1986) “The theory of preferential trading arrangements”. Weltwirtschaftliches Archiv, vol. 122, pp. 439-465.) e da bibliografia ali referida.
  • 3
    A rigor, este seria um caso de desvio de comércio não contemplado pela teoria convencional, posto que no Brasil o trigo é isento do imposto de importação e comprado pelo governo. O comércio desviado resultaria, portanto, da manipulação de uma barreira não tarifária (compras governamentais).
  • 4
    Para a teoria convencional, criação de comercio refere-se às transações originadas da substituição de produção local pela correspondente oferta do país associado. Na linguagem cunhada pela experiência de industrialização latino-americana, este movimento seria denominado de “dessubstituição de importações”. Na acepção empregada no presente texto, criação de comércio significa a elevação do grau de abertura externa das economias envolvidas no processo de integração decorrente da redefinição dos princípios ordenadores da estrutura industrial dessas economias, Em outras palavras, o aspecto relevante a ser enfatizado não é a desativação das linhas de produção menos eficientes que as congêneres do país associado, mas sim o processo através do qual a médio prazo são superados os desníveis de produtividade existentes entre as economias envolvidas, e que consiste na introdução de novas variáveis nas estratégias de expansão das firmas estabelecidas nessas economias.
  • 5
    Este resumo foi apresentado anteriormente em Araujo Jr. (1985Araujo Ir., J. T. (1985) Tecnologia, Concorrência e mudança estrutural: A experiência brasileira recente. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, série PNPE n.º 11, 1985.) pp. 8-10.
  • 7
    JEL Classification: F15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1988
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