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Progresso técnico e distribuição de renda: a interpretação de Luiz Bresser-Pereira

Technical progress and income distribution: the interpretation of Luiz Bresser-Pereira

Resumo

O artigo examina a visão de Bresser-Pereira sobre distribuição de renda, apresentada em seu livro Lucro, Acumulação e Crise, a respeito da ligação entre a taxa de lucro e a taxa de juros. O autor apresenta uma abordagem alternativa a partir das contribuições recentes de Carlo Panico e Massimo Pivetti, ambos da Universidade de Nápoles. O modelo de Panico enfatiza os elementos de risco-retorno e o aspecto de “armazenamento de valor”, outra função importante desempenhada pelo dinheiro, que afeta a distribuição de renda dos capitalistas industriais, trabalhadores e banqueiros. O autor também discute a metodologia de formação de preços quando a mudança técnica é apresentada, alegando que o modelo de Sraffa é mais adequado para entender a evolução da taxa de lucro no longo prazo.

Palavras-chave:
História do pensamento econômico; Bresser-Pereira

Abstract

The article examines Bresser-Pereira’s view on distribution of income, presented in his book Profit, Accumulation and Crisis, regarding the link between the rate of profit and the rate of interest. The author presents an alternative approach based on the recent contributions made by Carlo Panico and Massimo Pivetti, both from the University of Naples. Panico’s model emphasizes both, the risk-return elements and the “storage of value” aspect, another important function performed by money, which affect the distribution of income industrial capitalists, workers and bankers. The author also discusses the price formation methodology when technical change is presented, claiming that Sraffa’s model is more adequate to understand the evolution of the rate of profit in the long run.

Keywords:
History of economic thought; Bresser-Pereira

1

Este trabalho está dividido em duas partes. Na primeira faremos uma breve apresentação do livro Lucro, acumulação e crise1 1 São Paulo, Brasiliense, 1986, 1 edição. , com algumas considerações sobre a metodologia utilizada pelo autor. A segunda parte, um pouco mais extensa, trata da questão distributiva, comparando o enfoque adotado por Bresser-Pereira com as contribuições mais recentes sobre o tema, especificamente sobre a relação entre a taxa de lucro e a taxa de juro.

O principal objetivo do livro de Luiz Bresser-Pereira é mostrar por que a lei da tendência declinante da taxa de lucro de Marx não vem sendo confirmada, sobretudo nas últimas décadas deste século.

Em geral, a análise da tendência declinante da taxa de lucro repousa no tipo de progresso técnico dominante e na distribuição de renda, e a literatura existente sobre o assunto tem mostrado que a maior parte dos economistas analisou a referida lei em um nível extremamente abstrato, mais em função de possibilidades lógicas do que de fatos concretos relativos às mudanças no progresso técnico. Outros tiveram suas conclusões baseadas em séries estatísticas, as quais são também limitadas, uma vez que dependem do período de tempo adotado.

Bresser-Pereira, entretanto, a partir de uma perspectiva histórica, realiza um exame exaustivo dos diversos tipos de progresso técnico ao longo do tempo e suas consequências sobre a distribuição de renda e, sobretudo, sobre o nível da taxa geral de lucros.

Inicialmente o autor distingue três tipos de progresso técnico: dispendioso de capital, ou seja, há um aumento da relação capital/produto; poupador de capital, quando existe uma diminuição da relação capital/produto e, finalmente, o progresso técnico neutro, em que a relação capital/produto é constante.

Segundo o autor, o progresso técnico dispendioso de capital foi historicamente o primeiro a ser introduzido, e consistia na mera substituição de mão-de-obra direta por máquinas, as quais, em um primeiro momento, permitiam um significativo aumento da produtividade na economia, e o resultado era uma taxa de lucro mais alta no período seguinte.2 2 A rigor, a primeira forma de progresso técnico foi a divisão do trabalho. O capitalista reunia artesãos com suas ferramentas e unicamente por meio de disciplina e especialização forçada conseguia aumentar a produtividade do trabalho

Posteriormente, esse processo de mecanização era estendido a outros setores, mesmo considerando que o impacto inicial sobre os lucros não podia ser mantido no mesmo nível de antes por causa da menor produtividade nesses setores. O valor da depreciação adicional das máquinas era menor do que o montante de salários poupados, mas os lucros cresciam a um ritmo inferior ao do estoque de capital, resultando na queda da taxa média de lucros na economia.

Com relação ao progresso técnico poupador de capital, no qual as máquinas são substituídas por máquinas mais eficientes, temos uma situação bastante interessante. O salário real pode crescer acima da produtividade média e a taxa de lucro manter-se constante, como o autor demonstra no terceiro capítulo do livro. Esse fato reveste-se de grande importância para a consolidação do sistema capitalista e explica a relativa estabilidade política dos principais países industrializados. Foi a esse tipo de progresso técnico que Marx deu pouca importância ao formular sua lei tendencial da queda da taxa de lucro.

O progresso técnico neutro nunca chegou a ser representativo na economia, mas tem sido bastante utilizado na construção de modelos de crescimento econômico, em particular nos modelos de Harrod e de von Newmann. De acordo com o autor, esse tipo de progresso técnico ocorreu por um breve período, na transição do progresso técnico dispendioso de capital para o poupador de capital.

Outras questões relevantes relacionadas com o progresso técnico, como por exemplo a escolha de técnicas (choice of techniques), cuja discussão dominou o debate acadêmico nos anos 60 entre as duas Cambridges, são também analisadas por Bresser-Pereira, incluindo o Teorema de Okishio. De acordo com esse teorema, os capitalistas estão primordialmente interessados na redução de custos (ou no aumento dos lucros), e não irão necessariamente utilizar uma técnica que aumente somente a produtividade. Bresser-Pereira chama a atenção para o fato de que se a relação capital/trabalho direto (K/L) está crescendo, isso não significa que a taxa de lucro irá cair. É necessário que a relação produto/capital também caia.

A fim de ilustrar sua análise, Bresser-Pereira apresenta um exemplo à página 57, cujos números dispostos em uma tabela estão expressos em valores-trabalho incorporado, o que é conflitante com o propósito inicial do autor de realizar seu estudo em termos de preço (p.17 do livro).

Isso nos remete para o célebre problema da transformação dos valores-trabalho em preços de produção, o qual comentaremos mais adiante. Por outro lado, isso não significa que não podemos usar exemplos numéricos. Porém, na medida em que introduzimos o capital fixo, cuja duração ou rotação seja superior à do capital circulante, o sistema de equações de preço torna-se bem mais complexo, exigindo a aplicação da álgebra matricial.3 3 A obra introdutória ao assunto é a de Luigi Pasinetti (org.) Aportaciones a la teoría de la producción conjunta. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, 286 p. O livro foi originalmente publicado em italiano em 1977 pela editora II Mulino. Nesse sentido, a referida tabela é perfeitamente dispensável, bastando que o autor mantivesse sua análise em termos puramente conceituais, como de fato o fez na maior parte do livro.

Por outro lado, creio que é também possível analisar a tendência a longo prazo da taxa de lucro utilizando-se o sistema de preços proposto por Sraffa.4 4 Sraffa, P., Production of commodities by means of commodities - Prelude to a critic of economic theory. Cambridge University Press, 1960, 99 p.

O comportamento da relação produto/capital (Y/K) nos diz qual o tipo de progresso técnico dominante na economia, e no modelo de Sraffa essa relação é representada pela taxa máxima de lucro R.5 5 Sraffa, P., op. cit., cap. III, seção 22, p.17.

Com efeito, se é constituído um fundo de salários como fazem Marx e outros economistas clássicos, a taxa de lucro de Sraffa modifica-se para:

r = R 1 - w 1 + w R o u r = 1 - w 1 R + w

Como pode ser observado, a taxa de lucro de Sraffa ajustada pelo fundo de salários é mais operacional do que a de Marx6 6 Marx define a taxa de lucro como sendo igual a e/(k+ 1), em que a variável e representa a taxa de exploração e k a composição orgânica do capital. A demonstração matemática da taxa de lucro de Sraffa é apresentada no Apêndice Matemático. , pois o tipo de progresso técnico está diretamente incorporado na fórmula acima, através da relação capital/produto (1/R), evitando assim que se façam considerações sobre a composição orgânica do capital e sobre a composição técnica do capital.

Em Marx, valor e preço não são idênticos, e até o presente momento não se chegou a uma solução satisfatória para o problema da transformação. As duas condições de invariância propostas por Marx no cap. IX, livro III, de O Capital, a saber, preço total igual a valor total e lucro total igual a mais-valia total, não são satisfeitas simultaneamente, exceto em condições muito restritivas (reprodução simples), conforme demonstrou Seton, de Oxford, em seu clássico artigo publicado em 1957.

No modelo de Sraffa não existe a distinção entre valor e preço, de modo que não há necessidade da transformação. Em segundo lugar, a mercadoria padrão satisfaz rigorosamente a condição de invariabilidade em relação à distribuição de renda, isto é, um aumento (ou diminuição) nos salários é exatamente compensado por uma diminuição (ou aumento) dos lucros.7 7 Em termos matemáticos, significa que a derivada primeira do lucro total (rpAQ) em relação ao salário total (wLQ) deve ser igual a -1. Não estamos aqui negando a validade da teoria do valor-trabalho. É possível demonstrar através do método “redução a quantidades datadas de trabalho”, proposto por Sraffa no sexto capítulo de seu livro, que o preço de uma mercadoria é uma série infinita de quantidades de trabalho, sendo cada uma delas ponderada pelo fator lucro (l+r) elevado à potência “t”, sendo que “t” representa a data ou fase da produção. Para uma resenha sobre o assunto consultar Anderaos (1982).

II

A distribuição de renda é discutida pelo autor no oitavo capítulo, que é um dos mais interessantes do livro. Bresser-Pereira possui o mérito de ter proposto de maneira independente que a taxa de salário é determinada como um resíduo na repartição da renda, rompendo com a tradição clássico-marxista.

O salário como variável dependente surgiu com Marx em O Capital8 8 “Processo de acumulação capitalista”. Resenha de Lucro, acumulação e crise, de autoria de José Mareio Rego, revista Senhor, 25/11/86. , mas podemos afirmar que foram Sraffa e Bresser-Pereira que adotaram uma posição conceitualmente clara a respeito.

Marx, ao analisar a procura por força de trabalho no decorrer do ciclo econômico em O Capital - livro I, seção VII, cap. XXIII -, afirmou: “a magnitude da acumulação é a variável independente, a magnitude do salário a dependente, e não o contrário”. Porém, no livro III, seção II, cap. IX, na transformação dos valores em preços, acabou por adotar o salário como dado, composto por uma cesta de bens no nível de subsistência: “é certo que o salário diário médio é sempre igual ao produto-valor do número de horas que o trabalhador tem de trabalhar para produzir os meios de subsistência”.9 9 O Capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural, 1984. As citações encontram-se às páginas 192 e 121, respectivamente de cada livro.

Contudo, o assunto só voltou a ser discutido na teoria econômica com Kaldor em 1956. Ao fazer uma apresentação do modelo keynesiano em seu conhecido artigo “Alternative theories of distribution”, afirmou: “Este modelo em certo sentido é exatamente oposto ao ricardiano (ou marxiano) - aqui os salários (e não os lucros) são o resíduo, sendo que os lucros são governados pela propensão ao investimento e pela propensão ao consumo dos capitalistas ... “ (Kaldor, 1960KALDOR, N. Essays on value and distribution. Illinois: The Free Press of Glencoe, 1960., p. 230). Essa colocação de Kaldor resulta mais de uma constatação do que propriamente de um posicionamento do autor a favor do salário como variável dependente.

Sraffa faz duas referências no seu conhecido livro, no cap. II, seção 8, afirmando: “A partir desse ponto precisamos levar em conta outro aspecto dos salários, pois, além do elemento subsistência que está sempre presente, eles podem incluir uma parcela do excedente”, e no cap.V, seção 44: “o salário passa a ser considerado como ‘dado’ em termos mais ou menos abstratos e não adquire um significado preciso antes de serem conhecidos os preços das mercadorias”.10 10 Sraffa, P., op. cit., pp. 9 e 33, respectivamente.

O principal objetivo de Sraffa foi demonstrar que existe uma alternativa à teoria neoclássica da distribuição da renda. Para Sraffa e os economistas clássicos, produção e distribuição são fases distintas e ele apresenta razões de natureza histórico-institucional para explicar que a taxa monetária de juro exerce um papel importante na distribuição da renda, uma vez que ex-ante ela é o principal referencial do nível da taxa de lucro.

Segundo Sraffa, “no passado os empreendedores, ao decidirem investir, eram fortemente influenciados pelo ritmo geral da economia e pela forma como ela se comportava nos períodos recentes. Contudo, ao primeiro aceno de queda nos níveis de produção, os investimentos eram suspensos. Atualmente, ao contrário (estamos em 1963/64), eles esperam que as autoridades monetárias estejam em condições de regular o andamento do sistema para restabelecer o ritmo de crescimento normal. Espera-se, portanto, que o rendimento dos investimentos retome ao nível normal. Mesmo os banqueiros raciocinam dessa maneira. Eis por que as taxas de juro representam um indicador da taxa normal de lucro. Eis também por que não existem mais as oscilações do passado e assim o crescimento do sistema é mais estável”.11 11 Relato concedido por Sraffa a Terenzio Cozzi, “Una teoria con un grado di libertá”. In Bellofiore, Ricardo (org.), Tra teoria economica e la grande cultura europea: Piero Srajfa. Milano: Franco Angeli editore, 1986, 208 p.

Entretanto, a não ser por essa breve explicação, Sraffa não logrou elaborar uma teoria que explicasse exatamente como as duas taxas estão relacionadas.

Bresser-Pereira, por sua vez, verificou que historicamente a taxa de lucro vinha se mantendo em um patamar quase constante a partir do último quartil do século XIX. Observou também que, dado o poder de barganha dos trabalhadores nos países capitalistas desenvolvidos, o nível do salário real vinha crescendo, acompanhando o aumento da produtividade do trabalho, como ele demonstra no capítulo X de seu livro. O autor conclui então que o progresso técnico dominante só poderia ser do tipo poupador de capital.

Porém, para Bresser-Pereira ainda não estava claro qual das duas variáveis distributivas possuía um caráter autônomo. A sua conclusão era de que os capitalistas tinham condições de estabelecer no cálculo econômico um certo nível para a taxa de lucro que eles julgavam adequado, isto é, um valor que ficasse acima da taxa média de juro. Os salários, por outro lado, seriam então determinados pela diferença entre o excedente e a massa de lucros.

Bresser-Pereira, contudo, limita sua investigação sobre o nível da taxa de lucro, afirmando que esse nível é estabelecido pelos capitalistas em função daquilo que eles consideram como satisfatório. Afirma também que “a (grande) empresa está disposta a sacrificar no curto prazo um lucro exagerado ... para, no longo prazo, atingir taxas objetivas de lucro, compatíveis com um crescimento estável e sólido” (p.125). Contudo, o próprio autor reconhece que “É muito difícil determinar qual seria esse nível constante da taxa de lucro” (p.125). É muito provável que Bresser-Pereira desejasse estabelecer uma relação do tipo risco-retomo, a qual, a meu ver, seria mais adequada para explicar o seu conceito de taxa objetiva de lucro.12 12 Alves dos Santos, ao realizar uma leitura do cap.VIII do livro de Bresser-Pereira, afirmou que a sugestão do autor da taxa satisfatória ou objetiva de lucro “não é uma solução satisfatória por relegar a fatores subjetivos o papel de determinantes da taxa de lucro objetiva” (Alves dos Santos, 1988, p. 88).

Contudo, mais recentemente, dois pesquisadores da Universidade de Nápoles, Carlo Panico (1988PANICO, C. Interest and profit in the theories of value and distribution. Nova York: St. Martin”s Press, 1988, 229 p.) e Massimo Pivetti (1991PIVETTI, M. An essay on money and distribution. Basingstoke: Macmillan, 1991, 148 p.), retomaram o problema deixado em aberto por Sraffa.13 13 Sraffa, P., op. cit., cap.V, seção 44, p.33. Panico segue uma linha neokeynesiana, utilizando-se basicamente dos trabalhos de Sraffa, Keynes, Kaldor e Tobin. O estudo de Pivetti, por sua vez, procura desenvolver o que os economistas clássicos ingleses haviam realizado sobre o tema. Os avanços obtidos por Pivetti, entretanto, foram mais modestos do que os conseguidos por Panico. Examinemos, ainda que brevemente, cada uma dessas contribuições.

De acordo com Ricardo e Marx, o salário é fixado em nível de subsistência ou próximo deste, de modo que a taxa de lucro é determinada como um resíduo. A taxa monetária de juro, por outro lado, não exerce qualquer papel relevante no processo distributivo. Isso resulta do fato de o lucro formar-se na esfera da produção, e o juro na esfera da circulação.

A procura por empréstimos bancários, por exemplo, depende basicamente do confronto entre a taxa de juro exigida pelos bancos com a taxa de lucro esperada pelo capitalista industrial. Para os economistas clássicos, a taxa de juro é sempre subordinada à taxa de lucro, e existe uma relação de proporcionalidade quase linear entre elas.

Contudo, o raciocínio acima, apesar de sua lógica e simplicidade, faz com que a moeda fique restrita às funções de unidade de conta e de meio de pagamento. Devido ao elemento incerteza, a moeda pode assumir também o papel de reserva de valor, permitindo ao seu titular o poder de adiar o consumo. Essa é uma característica fundamental da moeda que não é percebida por Bresser-Pereira.

Portanto, tendo em mente essa definição mais ampla da moeda, é bastante provável que a taxa de juro deixe de ter um papel secundário na distribuição da renda. Daí a origem das preocupações de Panico e de Pivetti.

Pivetti desenvolve seu approach definindo uma taxa normal de lucro formada por dois componentes: uma taxa “pura” de juro de longo prazo ou custo (mínimo) de oportunidade do capital, mais um prêmio pelo risco empresarial, o qual varia de setor para setor.

O sistema contém (n + 1) incógnitas, quais sejam os n preços das mercadorias e a taxa “pura” de juro, uma vez que o prêmio pelo risco em cada esfera de produção bem como o salário real são assumidos por Pivetti como dados. Por outro lado, como temos n equações de produção, o preço de uma das mercadorias é escolhido como numerário a fim de tornar o sistema determinado.14 14 A formalização dos modelos propostos por Pivetti e por Panico são apresentados no Apêndice Matemático.

Pivetti afirma que a taxa “pura” de juro é um fenômeno essencialmente monetário (Keynes) e que ela é afetada por “mudanças duradouras” (lasting changes, no original), ocasionando, indiretamente, correspondentes mudanças nas taxas de lucro. Porém, considerando a própria concepção do modelo de Pivetti, a taxa “pura” de juro é determinada endogenamente ao sistema de preços, não ficando claro como essas “mudanças duradouras” podem influir no nível da referida taxa de juro.

Panico apresenta um modelo mais abrangente. Na equação de preço de uma mercadoria deve-se acrescentar, além do custo dos insumos (meios de produção e trabalho direto), os juros (líquidos de eventuais receitas financeiras) relativos à remuneração do capital de giro utilizado para financiar as transações interindustriais. Assim, o montante de juro devido pelo setor industrial como um todo vem a ser a receita do setor financeiro.

O sistema de equações no modelo de Panico contém (n+5) incógnitas, isto é, os preços das mercadorias (vetor p), a taxa de lucro, o salário, a taxa de juro sobre empréstimos de curto prazo, a taxa de juro sobre depósitos ou custo mínimo de oportunidade do capital, e, finalmente, a taxa de juro de longo prazo.

Panico, ao contrário de Pivetti, considerou que a taxa de lucro é uniforme em todos os setores, incluindo o bancário. Isso significa que a taxa de risco é também a mesma em todos os setores, pois Panico adotou a taxa geral de lucro como sendo o nível mínimo aceitável pelo capitalista para permanecer na atividade empresarial. Essa diferença é apenas conceitual, e não altera nossas conclusões sobre os dois modelos analisados.

Por outro lado, dadas as n equações de preço do setor industrial e sendo o salário arbitrariamente fixado em um certo valor monetário, são necessárias ainda mais quatro equações independentes para que o sistema tenha solução.

Panico então propõe as seguintes relações: a primeira refere-se ao equilíbrio entre custos e receitas no setor bancário. Em seguida, duas relações de equilíbrio entre as taxas monetárias de juro de curto e de longo prazos, as quais, por sua vez, dependem da incerteza ou grau de iliquidez CP), cuja magnitude é fixada pela autoridade monetária. Por último, a taxa geral de lucro, que resulta da soma do custo (mínimo) de oportunidade do capital com um prêmio pelo risco empresarial (Pk).

A resolução do modelo de Panico depende fundamentalmente do equilíbrio entre as taxas de juro e de lucro, ajustadas pelos parâmetros de risco ou graus de iliquidez. A ação da autoridade monetária se dá através desses parâmetros, de maneira que não existe a aparente contradição observada no modelo de Pivetti no que diz respeito ao nível da taxa “pura” de juro, a qual é similar ao conceito de custo de oportunidade do capital de Panico (i*).

Por exemplo, uma prolongada política monetária restritiva ocasiona um aumento nos graus de iliquidez, os quais fazem com que as taxas de juro e de lucro e os preços das mercadorias também aumentem. Consequentemente, o salário real decresce. Em outras palavras, a distribuição da renda na economia capitalista depende não só do conflito distributivo entre capitalistas e trabalhadores, mas também da política monetária em curso, a qual afeta toda a estrutura de taxas de juro, com reflexo na rentabilidade do capital industrial e financeiro.

Conforme observou Pivetti, “a taxa monetária de juro deve ser interpretada como a magnitude sobre a qual se descarregam os respectivos interesses dos capitalistas e trabalhadores. O nível do salário real, que prevalece a qualquer dada situação, emerge então como o resultado final de todo o processo pelo qual é determinada a distribuição da renda entre capitalistas e trabalhadores” (Pivetti, 1991PIVETTI, M. An essay on money and distribution. Basingstoke: Macmillan, 1991, 148 p., pp.129-130).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALVES DOS SANTOS, A. C. (1989). “A inversão da teoria clássica dos salários”. Revista de Economia Política, 9(1), jan.-mar./1989, pp.83-8.
  • ANDERAOS DE ARAÚJO, F. “Preços e distribuição do valor segundo Sraffa. Revista de Economia Política, 2(6), abr.-jun./1982, pp.107-132.
  • ANDERAOS DE ARAÚJO, F. “Preços e distribuição em Sraffa: uma reconsideração - comentários”. Pesquisa & Planejamento Econômico, 15(2), ago./1985, pp. 457- 461.
  • KALDOR, N. Essays on value and distribution Illinois: The Free Press of Glencoe, 1960.
  • PANICO, C. Interest and profit in the theories of value and distribution Nova York: St. Martin”s Press, 1988, 229 p.
  • PIVETTI, M. An essay on money and distribution Basingstoke: Macmillan, 1991, 148 p.
  • SETON, F. “The ‘transformation problem’”. Review of Economic Studies, vol. 24, 1957, pp.144-60.
  • 1
    São Paulo, Brasiliense, 1986, 1 edição.
  • 2
    A rigor, a primeira forma de progresso técnico foi a divisão do trabalho. O capitalista reunia artesãos com suas ferramentas e unicamente por meio de disciplina e especialização forçada conseguia aumentar a produtividade do trabalho
  • 3
    A obra introdutória ao assunto é a de Luigi Pasinetti (org.) Aportaciones a la teoría de la producción conjunta. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, 286 p. O livro foi originalmente publicado em italiano em 1977 pela editora II Mulino.
  • 4
    Sraffa, P., Production of commodities by means of commodities - Prelude to a critic of economic theory. Cambridge University Press, 1960, 99 p.
  • 5
    Sraffa, P., op. cit., cap. III, seção 22, p.17.
  • 6
    Marx define a taxa de lucro como sendo igual a e/(k+ 1), em que a variável e representa a taxa de exploração e k a composição orgânica do capital. A demonstração matemática da taxa de lucro de Sraffa é apresentada no Apêndice Matemático.
  • 7
    Em termos matemáticos, significa que a derivada primeira do lucro total (rpAQ) em relação ao salário total (wLQ) deve ser igual a -1. Não estamos aqui negando a validade da teoria do valor-trabalho. É possível demonstrar através do método “redução a quantidades datadas de trabalho”, proposto por Sraffa no sexto capítulo de seu livro, que o preço de uma mercadoria é uma série infinita de quantidades de trabalho, sendo cada uma delas ponderada pelo fator lucro (l+r) elevado à potência “t”, sendo que “t” representa a data ou fase da produção. Para uma resenha sobre o assunto consultar Anderaos (1982ANDERAOS DE ARAÚJO, F. “Preços e distribuição do valor segundo Sraffa. Revista de Economia Política, 2(6), abr.-jun./1982, pp.107-132.).
  • 8
    “Processo de acumulação capitalista”. Resenha de Lucro, acumulação e crise, de autoria de José Mareio Rego, revista Senhor, 25/11/86.
  • 9
    O Capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural, 1984. As citações encontram-se às páginas 192 e 121, respectivamente de cada livro.
  • 10
    Sraffa, P., op. cit., pp. 9 e 33, respectivamente.
  • 11
    Relato concedido por Sraffa a Terenzio Cozzi, “Una teoria con un grado di libertá”. In Bellofiore, Ricardo (org.), Tra teoria economica e la grande cultura europea: Piero Srajfa. Milano: Franco Angeli editore, 1986, 208 p.
  • 12
    Alves dos Santos, ao realizar uma leitura do cap.VIII do livro de Bresser-Pereira, afirmou que a sugestão do autor da taxa satisfatória ou objetiva de lucro “não é uma solução satisfatória por relegar a fatores subjetivos o papel de determinantes da taxa de lucro objetiva” (Alves dos Santos, 1988ALVES DOS SANTOS, A. C. (1989). “A inversão da teoria clássica dos salários”. Revista de Economia Política, 9(1), jan.-mar./1989, pp.83-8., p. 88).
  • 13
    Sraffa, P., op. cit., cap.V, seção 44, p.33.
  • 14
    A formalização dos modelos propostos por Pivetti e por Panico são apresentados no Apêndice Matemático.
  • 15
    JEL Classification: B24; B31.

APÊNDICE MATEMÁTICO

A taxa de lucro em Sraffa e em Marx

Sejam:

  • A = (aij) uma matriz quadrada de ordem n, não redutível, representando os coeficoentes técnicos de produção, isto é, aij representa a quantidade da mercadoria i que entra na produção de uma unidade da mercadoria j, sendo i, j = 1, 2, ... , n;

  • L = vetor linha dos coeficientes técnicos de trabalho direto, sendo que Lj > 0 e o somatório de Lj = l;

  • p = vetor linha dos preços das mercadorias;

  • I = matriz identidade, em que aij = 1 para todo i = j e aij = 0 para todo i diferente de j; ij;

  • Q = vetor coluna dos multiplicadores qj , dos quais, aplicados às equações de preço, se obtém a mercadoria padrão;

  • R = taxa máxima de lucro ou relação produto/capital;

  • r = taxa de lucro, suposta uniforme em todos os ramos ou indústrias, sendo que 0 < r < R;

  • w = taxa de salário, expressa como proporção da renda ou excedente, de modo que 0 ≤ w ≤ 1;

  • R, r e w são escalares.

O sistema de preços de Sraffa, expresso em notação matricial, é o seguinte:

p A 1 + r + w L = p I o u p A + p A r + w L = p I (1)

O primeiro termo do lado esquerdo da igualdade acima representa o valor dos meios de produção em termos de preço. O segundo termo corresponde aos lucros totais e o terceiro termo ao total de salários. Finalmente, pI é o produto total.

A mercadoria padrão de Sraffa é o numerário de todos os preços e do salário. Em notação matricial ela é dada por:

p I - A Q = 1 (2)

Como o sistema de equações (1) acima contém (n + 2) incógnitas (vetor p, w e r) e somente n equações independentes, necessitamos de mais duas equações para que o sistema tenha solução, isto é, para que seja possível determinar os preços em termos absolutos.

A primeira delas será a mercadoria-padrão [equação (2)]. A segunda equação pode ser, por exemplo, um valor para a taxa de lucro dado exogenamente.

A renda nacional que será dividida em salários e lucros é então definida como:

r p A + w L = p I - A (3)

Para que possamos utilizar a mercadoria padrão como medida de valor, o que significa dividir todos os termos da equação matricial (3) pelo escalar (2), devemos primeiro multiplicar todos os termos de (3) pelo vetor coluna Q:

r p A Q + w L Q = p I - A Q (4)

Sraffa, ao definir a unidade em que os multiplicadores do vetor Q são expressos, tomou LQ = 1. Isto significa que a quantidade de trabalho direto do Sistema Padrão será a mesma do sistema econômico real.

Por outro lado, quando w = 0, a taxa de lucro será máxima, ou seja:

e x c e d e n t e c a p i t a l = p I - A Q p A Q = R (5)

Portanto, ao dividirmos todos os termos de (4) pelo escalar (2) e dada a expressão (5) acima, obtemos a taxa de lucro de Sraffa:

r R + w = 1 o u r = R 1 - w (6)

Cabe destacar que é indiferente utilizarmos como medida de valor a mercadoria padrão [equação (2)] ou a relação (6) acima, uma vez que as duas são perfeitamente equivalentes.

Por outro lado, para tornar o sistema de preços de Sraffa compatível com o de Marx, temos de constituir um fundo de salários. Nesse caso, os salários passam a fazer parte do capital, junto com os meios de produção.

p A + w L 1 + r = p I (7)

Utilizando a mercadoria padrão como numerário dos preços e do salário, a equação (5) passa a ser expressa como segue:

p A Q R r + w L Q R r + p A Q R + w L Q R + p Q I R r + w R w = p I - A Q R - w R r 1 + w R = R 1 - w r = R 1 - w 1 + w R (8)

Para valores de w entre 0 e 1, a taxa de lucro de Marx será sempre menor do que a de Sraffa, devido ao fator 1/(1 + wR).

O modelo de Pivetti

p A 1 + r + w L = p I (1)

equações de preço das mercadorias;

w = p b (2)

salário real;

em que:

  • r = (rij), matriz diagonal das taxas de lucro, de modo que r = i* + bij para todo i = j e r = 0 quando i diferente de j;

  • i* = custo de oportunidade do capital ou taxa mínima de juro;

  • bj = prêmio pelo risco na atividade industrial j, cujo valor é previamente conhecido pelo empresário;

  • b = vetor coluna correspondente à cesta de bens-salário, com composição física previamente definida;

  • i* e bj são escalares.

O modelo de Panico

p A + w L 1 + r + i q - i * d = p I (1)

equações de preço das mercadorias no setor industrial;

p K h + w L h 1 + r + r B + i * D = i Q (2)

equação de equilíbrio entre receitas e despesas do setor bancário;

w = w * (3)

taxa de salário em termos monetários;

i = i * + β c (4)

taxa de juro nos empréstimos de curto prazo;

i l = i * + β I (5)

taxa de juro nos empréstimos de longo prazo;

r = i * + β k (6)

taxa geral de lucro;

sendo:

  • q = vetor linha dos empréstimos concedidos pelo setor bancário a cada uma das indústrias, em que o somatório de qj = Q;

  • d = vetor linha dos depósitos do setor industrial nos bancos, em que o somatório de dj = D;

  • Kb = vetor coluna correspondente aos meios de produção utilizados pelo setor bancário;

  • Lb = quantidade total de trabalho direto utilizado pelo setor bancário;

  • B = montante de reservas bancárias, em que B ≥ 0;

  • w* = salário monetário e que também serve de numerário para os preços das mercadorias;

  • i = taxa de juro cobrada pelos bancos nos empréstimos de curto prazo;

  • il = taxa de juro sobre empréstimos de longo prazo. Sua existência no modelo deve-se ao fato de que ela serve de parâmetro para a taxa de retomo esperada nos projetos de investimento a serem executados pelo setor industrial;

  • i* = taxa de juro sobre depósitos ou custo de oportunidade do capital;

  • bc = prêmio pelo risco nos empréstimos de curto prazo. Corresponde ao spread cobrado pelos bancos;

  • bl = prêmio pelo risco na taxa de juro de longo prazo, em que bl > bc > 0;

  • bk = magnitude destinada a cobrir o risco empresarial;

  • r, w, D, Q, Lh, B, i*, bc, be, e bk são escalares.

Obs.: O vetor linha q no modelo de Panico nada tem a ver com os multiplicadores do Sistema Padrão de Sraffa (vetor coluna Q).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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