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Rugby e Argentina: dos valores e suas contradições à disputa pela formação da identidade nacional

Rugby and Argentina: from values and their contradictions to the dispute for the formation of national identity

Rugby y Argentina: de los valores y sus contradicciones a la disputa por la formación de la identidad nacional

RESUMO

Este ensaio discute a relação entre o rugby e a questão da identidade nacional argentina. O trabalho apresenta uma breve contextualização sobre o rugby argentino e sua formação social, o papel do capitão no rugby e como é disputada a identidade nacional dentro do esporte. A partir disso, relaciona a homenagem da Seleção Argentina de rugby ao falecimento de Diego Maradona e o caso de racismo envolvendo alguns atletas, incluindo o capitão Pablo Matera. Como conclusão, aponta como essa identidade se manifesta em um lugar duplo, isto é, na sua relação dentro do país ao negar o que é nacional, e ao se apropriar do nacional-popular na relação com o exterior.

Palavras-chave:
Rugby; Argentina; Identidade nacional; Racismo

ABSTRACT

This essay discusses the relationship between rugby and the question of Argentine national identity. The paper presents a brief contextualization about Argentine rugby and its social formation, the role of the captain in rugby, and how national identity is disputed within the sport. From this, it relates the tribute of the Argentinean national rugby team to the passing of Diego Maradona and the case of racism involving some athletes, including captain Pablo Matera. From this, it presents a brief contextualization of Argentine rugby and its social formation, the role of the captain in rugby, and how national identity is disputed within the sport. As a conclusion, the points out how this identity manifests itself in a double place, that is, in its relationship within the country by denying what is national; and by appropriating the national-popular in the relationship with the outside.

Keywords:
Rugby; Argentina; National identity; Racism

RESUMEN

Este ensayo analiza la relación entre el tema de la identidad nacional argentina y el rugby argentino. El trabajo se presenta una breve contextualización sobre el rugby argentino y su formación social, el rol del capitán en el rugby y cómo se disputa la identidad nacional dentro del deporte. A partir de esto, relata el homenaje de la selección argentina de rugby a la muerte de Diego Maradona y el caso de racismo que involucró a algunos deportistas, entre ellos el capitán Pablo Matera. En conclusión, señala cómo esta identidad tiene un doble lugar, en su relación dentro del país, negando lo nacional; y con el exterior, apropiándose de lo nacional-popular.

Palabras-clave:
Rugby; Argentina; Identidad nacional; Racismo

INTRODUÇÃO

A morte de Diego Armando Maradona causou uma grande comoção mundial, visto que o ex-jogador de futebol foi um dos mais destacados expoentes da modalidade, sendo campeão mundial em 1986 com a Seleção Argentina, levando uma multidão à cerimônia de despedida do seu corpo em Buenos Aires. No final de semana seguinte à morte de Maradona, no dia 28 de novembro de 2020, Los Pumas1 1 Apelido dado à Seleção Argentina de Rugby. enfrentaria os temíveis All Blacks, a Seleção Neozelandesa de Rugby, e havia uma grande expectativa para a homenagem que os jogadores argentinos fariam para o ídolo nacional que falecera, este que torcera efusivamente pelo rugby alviceleste na Copa do Mundo de 2015. Contudo, a homenagem por parte dos argentinos se restringiu a uma fita preta nos punhos dos jogadores, enquanto os neozelandeses, antes do tradicional haka2 2 Dança dos povos Māoris, realizada em cerimônias e desafios. É adotada pelas equipes de rugby da Nova Zelândia antes das partidas. , estenderam uma camiseta da Nova Zelândia com o nome do ex-jogador argentino.

Após a partida houve certa decepção por parte dos torcedores argentinos, nem tanto pela derrota esmagadora de 38 a 0, mas pela falta de empatia dos jogadores portenhos com a morte de um ídolo nacional. Essa situação gerou revolta nas redes sociais e levou os jogadores do selecionado argentino a publicarem um pedido de desculpas, mas que teve pouco efeito, pois momentos depois foram encontradas algumas postagens na rede social Twitter, publicadas anos antes, de caráter racista, xenófobo e misógino, de alguns jogadores, inclusive do capitão Pablo Matera.

Apesar de as publicações terem sido feitas em 2012 e somente expostas em 2020, pode ser que nesses oito anos que separam os atletas de suas postagens, eles realmente tenham mudado suas concepções de mundo, porém, algumas questões parecem pertinentes, principalmente relacionadas às sociabilidades presentes na vida dos jogadores, bem como necessidade em utilizar as redes sociais colocando-os como figuras públicas. Assim, este ensaio discute a relação entre o rugby e a questão da identidade nacional argentina. Para tanto, realizou-se uma exposição acerca do caso envolvendo Pablo Matera e o papel do capitão como expoente dos jogadores e do esporte em si, em seguida uma discussão das relações do rugby e das classes sociais que o praticam, e como essas classes se relacionam na formação da identidade nacional argentina.

Para entender esse caso e a discussão proposta, o presente texto inicia-se com o debate sobre o modo como o rugby argentino se estruturou, para, na sequência, entender a relação entre a identidade nacional argentina e o rugby. Por fim, analisamos o caso Matera, para entender como é dada a formação social de seus praticantes e sua relação com o capitão do rugby.

RUGBY NA ARGENTINA

Entre as muitas práticas esportivas difundidas pelos britânicos, houve uma seleção de algumas mais significativas que, no caso argentino, expressavam identidades (não só) masculinas, mas também de classe e nacionais. Um jornal britânico publicado em Buenos Aires, o The Standard, destacava em 1912 o entusiasmo pelo qual o futebol e o rugby haviam sido adotados (Archetti, 2005Archetti EP. El deporte en Argentina (1914-1983). Trab Soc. 2005;7:1-30.).

Os clubes de origem britânica foram predominantes no rugby argentino, refletindo nas lideranças das instituições organizadoras da modalidade, como na River Plate Rugby Football Union (que posteriormente passa a ser a Unión Argentina de Rugby – UAR).

Um ponto importante para entender essa influência britânica na Argentina é o fato de o país ter abrigado mais de 30.000 britânicos na década de 1910, que é um número relativamente baixo comparado com imigrantes de outros países, como a Espanha e a Itália, mas os britânicos se destacavam por causa do poder financeiro, já que eram em sua maioria de camadas médias, enquanto os italianos eram em grande parte de classe operária. Além dos imigrantes, há as questões econômicas atreladas ao país europeu, com a Argentina sendo o país na América do Sul a receber o maior investimento britânico, e apesar de não terem colonizado o país, a sua dominância econômica tornava os sul-americanos submissos aos interesses do Reino Unido (Antonio, 2017Antonio VSR. Passe para trás! Os primeiros anos do rúgbi em São Paulo (1891-1933) [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2017. http://dx.doi.org/10.11606/D.8.2017.tde-15082017-140135.
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). Archetti (2003b)Archetti EP. Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery. Antropolítica. 2003b;14:41-60. ressalta que os britânicos não trouxeram apenas tecnologia e dinheiro, mas também a proposta de escolas que funcionavam como internatos, onde se poderiam praticar os novos esportes e, também, de clubes. Todos esses aspectos juntos contribuíram para a construção de identidades.

Essa influência britânica, no rugby, possibilitou a presença de equipes do mundo britânico, como partidas contra os British and Irish Lions (Seleção Britânica) e dos Junior Springboks (seleção B da África do Sul), além de outras equipes do Reino Unido. Antonio (2017Antonio VSR. Passe para trás! Os primeiros anos do rúgbi em São Paulo (1891-1933) [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2017. http://dx.doi.org/10.11606/D.8.2017.tde-15082017-140135.
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, p. 66) define os resultados das visitas britânicas:

As visitas britânicas demonstram a mudança sensível dentro da composição social do rugby argentino, que acompanhou um processo de abandono do futebol em prol do rugby nas primeiras décadas do século XX da parte de clubes exclusivistas de Buenos Aires, concomitantemente à expansão do futebol entre a classe trabalhadora da cidade. Em 1910, o quadro da seleção argentina era composto inteiramente por britânicos e descendentes – incluindo Arnaldo Watson Hutton, filho do escocês Alexander Watson Hutton, uma das principais figuras no processo de introdução do futebol na Argentina. Em 1927, mais da metade da seleção era composta por indivíduos de sobrenome latino.

Sobre a influência estrangeira no futebol, Archetti (2003b)Archetti EP. Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery. Antropolítica. 2003b;14:41-60. ressalta que não foi apenas pelo fato de o futebol ter sido importado da Grã-Bretanha, mas que vinha dos britânicos o padrão e qualidade de como jogar. Se ampliarmos o escopo da análise de Archetti (2003b)Archetti EP. Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery. Antropolítica. 2003b;14:41-60. olhando também para o rugby, podemos acessar a mesma chave interpretativa para entender esse vínculo com as origens apresentadas por Antonio (2017)Antonio VSR. Passe para trás! Os primeiros anos do rúgbi em São Paulo (1891-1933) [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2017. http://dx.doi.org/10.11606/D.8.2017.tde-15082017-140135.
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. Essa relação simbiótica entre o esporte e a imigração não pode ser naturalizada, afinal, é fruto de uma condição social construída a partir de situações específicas.

Apesar dessa aparente incorporação dos latinos ao rugby, ela tem muito a ver com a condição social de seus participantes e de um sentimento de pertencimento a uma cultura europeia, mesmo estes sendo de outra cultura. Não podemos perder de vista, no entanto, a chave de análise proposta por Archetti (2003b)Archetti EP. Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery. Antropolítica. 2003b;14:41-60., na qual a presença dos imigrantes foi fundamental na construção da relação entre esporte e modernidade em um país periférico (quando comparado com a Europa).

A escolha pelo rugby também está relacionada com a sua distinção ou diferenciação do futebol, já que o jogo com os pés foi amplamente difundido entre as camadas populares no começo do século XX, como na formação de clubes como Nueva Chicago e do Ferro Carril Oeste, ligados à classe trabalhadora, levando em seus nomes a origem proletária3 3 O Nueva Chicago se localiza no bairro de Mataderos, em Buenos Aires, onde no período de fundação tinha uma grande indústria de carne e abatedouros no bairro, o que levava a uma comparação com a cidade estadunidense. Já o Ferro Carril Oeste foi fundado por funcionários da companhia com mesmo nome. , enquanto o rugby era formado por uma classe mais elitizada, como nos casos do Club Atletico San Isidro (CASI) e do Club Universitario de Buenos Aires (CUBA). Já a difusão do rugby na Argentina para fora da grande Buenos Aires esteve ligada aos centros urbanos mais desenvolvidos, com muitos jovens da capital, que ao irem para o interior tentaram replicar a sua experiência social nessas cidades, além da expansão universitária (Fuentes e Guinness, 2018Fuentes SG, Guinness D. Nacionalismos deportivos con “clase”: el rugby argentino en la era profesional/global. Antipoda Rev Antropol Arqueol. 2018;(30):85-105. http://dx.doi.org/10.7440/antipoda30.2018.05.
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). Junto com esses jovens e o esporte, também se espalha a ideia de distinção de seus participantes.

Nesse jogo entre uma prática da elite e do povo, o próprio rugby transformou-se ao longo dos anos. Se no início era uma prática, conforme apontamos até aqui, pertencente à elite inglesa que vivia na Argentina, com o tempo isso se modificou. Conforme apontam Silva e Almeida (2020Silva FIC, Almeida DMF. Masculinidades no esporte: o caso do rugby. Movimento. 2020;26:e26041. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.94214.
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, p. 11), “[...] a prática do rugby alcançou – ou foi alcançado – pelos homens de classes econômicas mais baixas, que, por seu turno, acabam por atribuir outros valores ao esporte”. Enfim, os processos de apropriação tencionam os valores, questionam o estabelecido e produzem efeitos na construção das identidades.

Historicamente, uma das características marcantes do rugby argentino é a sua negação ao profissionalismo de forma total. Em 1995, houve a liberação da International Rugby Board4 4 Que viria mais tarde a mudar seu nome para World Rugby. para a profissionalização da modalidade, 100 anos após sua proibição. Essa mudança alterou muitos aspectos da modalidade, como a entrada de patrocínios nas competições e a dedicação exclusiva dos atletas, mas que refletiu de forma difusa na Argentina, que proíbe o profissionalismo no nível de clubes locais, enquanto as equipes gerenciadas pela UAR são profissionais. Para exemplificar, a UAR possui equipes profissionais no rugby de clubes: os Jaguares, que até 2020 jogava o Super Rugby5 5 Super Rugby é uma competição que envolvia equipes franqueadas da África do Sul, Argentina, Austrália, Japão e Nova Zelândia. ; e após o desligamento dela da competição, passou a jogar a Super Liga Americana de Rugby6 6 A Super Liga Americana de Rugby reúne equipes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Uruguai. em 2021. Além dessa equipe, a seleção masculina de rugby sevens7 7 Rugby Sevens é a modalidade do rugby que está presente nos Jogos Olímpicos desde 2016. , que disputa o circuito mundial da modalidade, também tem pagamentos, assim como os jogadores quando convocados para o rugby union.

Além dessas equipes, muitos jogadores saíram para jogar profissionalmente na Europa, principalmente na França. Isso desenvolveu o rugby argentino, que conseguiu o terceiro lugar na Copa do Mundo de 2007, onde quase todos os jogadores atuavam profissionalmente. Fuentes e Guinness (2019)Fuentes SG, Guinness D. Good players” or “good people”: masculinities, mobilities, and class in Argentinian rugby. J Lat Am Caribb Anthropol. 2019;24(2):443-60. http://dx.doi.org/10.1111/jlca.12403.
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e Bautista Branz (2016)Bautista Branz J. Estar cerca de Europa. Deporte, clase social y prestigio en Argentina. Reflexiones. 2016;95(1):131-42. http://dx.doi.org/10.15517/rr.v95i1.27658.
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mostram, por meio de suas pesquisas etnográficas, como esses jogadores se relacionam com a Europa e o rugby profissional, como essa saída ao exterior é um fator importante para suas carreiras esportivas e como torna um diferencial dentro do próprio círculo do rugby. Damo (2008)Damo AS. Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Rev Bras Cienc Soc. 2008;23(66):139-50. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092008000100009.
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e Rial (2008)Rial C. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horiz Antropol. 2008;14(30):21-65. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832008000200002.
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apresentam como os jogadores de futebol brasileiros, ao saírem do país para jogar, se relacionam com a terra natal, e sempre vão ao exterior com a ideia de retornar, seria o rodar (Rial, 2008Rial C. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horiz Antropol. 2008;14(30):21-65. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832008000200002.
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), o que também acontece no caso dos jogadores de rugby argentinos (Fuentes e Guinness, 2019Fuentes SG, Guinness D. Good players” or “good people”: masculinities, mobilities, and class in Argentinian rugby. J Lat Am Caribb Anthropol. 2019;24(2):443-60. http://dx.doi.org/10.1111/jlca.12403.
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).

Collins (2009)Collins T. A social history of English rugby union. London: Routledge; 2009. http://dx.doi.org/10.4324/9780203885444.
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aponta que no rugby houve a formação de uma espécie de “maçonaria do rugby”, na qual seus praticantes se ajudam de forma recíproca, não no sentido apenas da benesse por causa de uma necessidade de sobrevivência, como ocorre com povos oprimidos, como os negros nos EUA, mas a fazem de forma conservadora, para a valorização do próprio grupo, impedindo que os de fora se introduzam. Assim, os círculos de jogadores de rugby permitem que consigam empregos e contatos. Na Argentina, a formação da UAR também acontece nesses moldes, em que os clubes poderiam ingressar no circuito oficial do rugby através do apadrinhamento (Bautista Branz, 2010Bautista Branz J. Abordajes sobre la práctica del rugby: significados culturales en torno a la construcción de masculinidad. In: Cachorro G, Salazar C, editores. Educación Física Argenmex: temas y posiciones. La Plata: Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de La Plata; 2010.).

IDENTIDADE NACIONAL ARGENTINA E O RUGBY

De 1900 a 1930, houve uma grande transformação na Argentina, fruto da imigração europeia em larga escala, que acabou, por sua vez, remodelando a identidade nacional argentina. Naquele momento, o futebol e o polo eram as práticas globais importadas (no caso do esporte, revela a influência britânica), e a popularização do esporte representava, ao mesmo tempo, como as invenções modernas, um modelo de transformação e, também, de continuidade cultural8 8 Nesse caso, a figura do gaúcho era vista como o principal símbolo da nacionalidade argentina (Archetti, 2003a, p. 13). (Archetti, 2003aArchetti EP. O “gaucho”, o tango, primitivismo e poder na formação da identidade nacional argentina. Mana. 2003a;9(1):9-29. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132003000100002.
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).

A questão nacional é um ponto importante para a compreensão de um país, que pode ser dialogada com o rugby na Argentina. Frequentemente ela está em conflito com as questões relacionadas ao estrangeiro e ao âmbito local, sendo disputada internamente com as classes mais baixas, representadas pelo futebol, e com o exterior, representadas pelo rugby global e o profissionalismo. Kaplan e Kaplan (1998)Kaplan CV, Kaplan DA. Deportes y distinciones de clase. Fútbol para las escuelas de los pobres y rugby para las escuelas de los ricos. In: Alabarces P, Giano RD, Frydenberg J, editores. Deporte y sociedad. Buenos Aires: Eudeba; 1998. ainda completam que essa distinção esportiva também poderia ser vista nas escolas e, portanto, conectando-as com as classes sociais. Desse modo, nas escolas privadas frequentadas pela elite, o hóquei e o rugby eram ofertados como atividades, enquanto nas escolas públicas havia a clássica divisão do futebol para os homens e o voleibol para as mulheres.

Ianni (1988)Ianni O. A questão nacional na América Latina. Estud Av. 1988;2(1):5-40. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141988000100003.
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aponta como a formação dos países latino-americanos foi problemática, onde se formaram Estados nacionais, mas sem uma unidade, já que a independência não foi de fato para se tornar soberano, mas mudar a quem esse Estado serviria, trocando Espanha e Portugal por Inglaterra e Estados Unidos. De acordo com Mariátegui (2012)Mariátegui JC. Ponto de vista antiimperialista. Revista Novos Rumos. 2012;18-19:1-3., a submissão ao imperialismo mantém uma condição confortável para as classes dominantes desses países, além de trazer um elemento fundamental para esse desprezo pelo próprio país: o sentimento de não pertencimento, no qual essa classe se vê como branco antes de ser latino-americano, sentindo-se mais próximo dos europeus do que de seus vizinhos. Lima e Nogueira (2006)Lima CIS, Nogueira GP. A formação do Estado-Nacional Argentino e a construção da identidade nacional. Ameríndia. 2006;1:1-11. afirmam ainda que houve a formação da Argentina, mas não a formação do argentino, já que excluía indígenas e mestiços.

Outra característica importante da independência na América Latina foi como ela serviu como forma de controlar as classes mais baixas, compostas principalmente por negros e indígenas, o que gerou uma sociedade dividida em classe e castas, misturando seus valores:

Entretanto, nas estruturas de classes subsistem as linhas de casta. O índio e o mestiço, assim como o negro e o mulato, sabem e sentem que a discriminação que os atinge não é apenas a de classe, do mercado, da sociedade competitiva, mas de raça, isto é, de casta (Ianni, 1988Ianni O. A questão nacional na América Latina. Estud Av. 1988;2(1):5-40. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141988000100003.
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, p. 14).

Vale ressaltar também a questão dos povos indígenas, que transborda as fronteiras dos Estados, da geografia e da história, muito por causa da formação desses povos, que não foram respeitados pelo colonialismo, tampouco após a independência. Tal como a arte e a literatura, o esporte ajuda a formular a identidade nacional de um país ou de uma região. No caso argentino, assim como em outros países latino-americanos, a situação de ser uma sociedade de castas deixa difusa a identidade nacional, mas que no esporte, assim como na guerra, essa identidade pode ser mais uníssona, pois torna as contradições com o exterior mais visíveis e palpáveis, onde a ideia de nação pode ser vivida. Como exemplo, pode-se citar a Guerra das Malvinas, em que a Argentina é derrotada pela Grã-Bretanha, e a Copa do Mundo de Futebol de 1986, na qual os argentinos derrotam a Inglaterra nas quartas de final, numa partida com os gols mais memoráveis de Diego Maradona9 9 Na periodização do futebol argentino proposta por Alabarces (2002, p. 24) são elencados sete momentos. Em dois deles, Maradona está no centro da cena: “f. el ciclo maradoniano, entre 1982 y 1994; g. la contemporaneidade, desde el retiro de Maradona hasta el Mundial de Francia 98”. ; no caso da guerra, as Ilhas Malvinas são até hoje reivindicadas pelos argentinos, como podemos ver em bandeiras nos estádios de futebol, pelas mais distintas torcidas, enquanto a Copa foi tratada como uma espécie de vingança. Esses aspectos se articulam e não são autônomos entre si, o endógeno relativo às competições esportivas e o exógeno atrelado à política (Alabarces, 2002Alabarces P. Fútbol y patria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros; 2002.).

Já o rugby, ao tentar criar uma identidade nacional, utiliza-se da ideia de enfrentar o estrangeiro, aproveitando figuras populares do futebol, como na Copa do Mundo de Rugby de 2015, com Diego Maradona nas arquibancadas, tentando passar uma imagem de “somos todos argentinos”, de uma unidade em torno do país, ou como nos cantos de arquibancada, semelhantes aos do futebol. Contudo, no âmbito local, essa “argentinidad” ou o “ser argentino” não é tão importante, mas que jogar rugby e se submeter aos seus valores, reproduzindo-os, diferencia esses praticantes ou consumidores dos demais, não sendo mais argentinos que os outros, mas dando a sensação de serem mais próximos dos ingleses ou franceses. Quando de seu interesse, como na Copa do Mundo, a noção de uma identidade argentina, sem classe, de “somos todos argentinos”, passa a ser hegemônica no rugby, mas a sua seletividade não cria uma identidade verdadeira, que pode ser considerada como nacional, como acontece no futebol.

O CASO MATERA

Após a morte de Diego Maradona e da decepcionante homenagem feita pelos jogadores argentinos, os atletas da seleção de rugby da Argentina foram a público falar que a manifestação não fora à altura que se esperava, mas que queriam se desculpar com a família de Diego e todas as pessoas que se sentiram ofendidas, como segue nas falas de Matera em entrevista ao jornal Clarín (Colombo, 2020Colombo S. Após crise com Maradona, rúgbi da Argentina vive escândalo de racismo. Folha de S. Paulo; 30 nov. 2020 [citado em 2021 Jan 13]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2020/11/apos-crise-com-maradona-rugbi-da-argentina-vive-escandalo-de-racismo.shtml
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):

Sem dar muitas voltas, pedimos desculpas. À família do Diego, principalmente. E ao resto das pessoas que se sentiram mal. Nossa homenagem foi jogar a partida mais importante da história desse grupo pela camisa. E nosso legado como equipe é seguir o legado de Diego. Que fique sabendo que queremos continuar seu legado de unir os argentinos.

Poucas horas após a entrevista foram divulgadas algumas publicações antigas realizadas por alguns jogadores na rede social Twitter, com declarações racistas, misóginas e xenófobas, tanto do capitão Pablo Matera como de outros dois companheiros de seleção, Guido Petti e Santiago Socino. Algumas dessas postagens foram realizadas em 2012, quando os jogadores participavam do mundial juvenil na África do Sul.

O hiato de tempo explorado para justificar os momentos das postagens pode, de fato, representar uma possível mudança na forma de pensar, conforme apontamos no início do texto. Porém, não podemos perder de vista que esta justificativa separa os juvenis dos profissionais, ou, em outras palavras, os jovens dos adultos. O que fica implícito sob este argumento é que ser jovem é não ter consciência de seus atos. Afinal, tudo se justifica pelo fato de serem jovens e que um dia iriam aprender sobre o que fizeram. Quando isso se apresenta de modo implícito, oculta-se o lugar que o esporte poderia ocupar, o da formação de uma consciência política por parte de seus atletas desde as categorias de base.

O que emerge daquilo que foi escrito, independentemente da idade, é o preconceito. Dentre as postagens, Matera falou que “era um bom dia para sair de carro e pisar em negros” e que “ainda bem que estamos saindo desse país cheio de negro”. Já Socino defendeu a separação entre “pessoas comuns e negros em ônibus”, enquanto Petti apontou que negros roubavam celulares e carteiras, e que isso garantiria o sustento desses até o fim da vida (BBC News Mundo, 2020BBC News Mundo. Los Pumas: levantan la suspensión contra el capitán y los jugadores de la selección de rugby de Argentina por “mensajes racistas y discriminatorios” [Internet]. Noticias América Latina, 1 dez. 2020 [citado em 2021 Jan 13]. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-55140141
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). Além dessas, houve outras em que se referiam aos bolivianos como ladrões, que deveria ver os bolsos da empregada, algumas postagens antissemitas etc.

Após a divulgação na imprensa das publicações, a Unión Argentina de Rugby (UAR) afastou os jogadores e tirou a capitania de Matera, enquanto se decidiriam as providências necessárias a serem tomadas. Já os jogadores apagaram suas contas no Twitter e pediram desculpas em outras redes sociais que ainda mantinham. No dia 3 de dezembro de 2020, a UAR retirou a punição aos jogadores, muito por causa da pressão feita por ex-jogadores, como Hugo Porta10 10 Hugo Porta, um dos maiores jogadores do rugby argentino, jogou pela seleção nas décadas de 1970 e 1980. , clubes e uniões regionais, alegando que os jogadores não realizaram nenhuma postagem nos últimos anos e que, portanto, o que aconteceu no passado não refletia as atitudes dos atletas no presente. No dia 29 de dezembro foi anunciado que os três jogadores teriam que realizar um curso antidiscriminação para retornarem à seleção (Sky Sports, 2020Sky Sports. Pablo Matera: Argentina captain told to take anti-discrimination course [Internet]. Rugby Union News; 29 dez. 2020 [citado em 2021 Jan 13]. Disponível em: https://www.skysports.com/rugby-union/news/22066/12174827/pablo-matera-argentina-captain-told-to-take-anti-discrimination-course
https://www.skysports.com/rugby-union/ne...
).

Além das publicações racistas realizadas pelos jogadores, em janeiro de 2020 houve o assassinato de Fernando Báez, de origem paraguaia, que foi espancado até a morte por dez jogadores de rugby na saída de uma boate. Os assassinos são de famílias ricas da cidade de Zárate, próximo a Buenos Aires, ao passo que Fernando era filho de dois imigrantes vindos do Paraguai, sendo seu pai porteiro de edifício (Centenera e Molina, 2020Centenera M, Molina FR. Assassinato de jovem espancado por grupo de jogadores de rúgbi abala a Argentina. El País - Internacional; Buenos Aires; 19 fev. 2020 [citado em 2021 Jan 13]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-02-19/assassinato-de-jovem-espancado-por-grupo-de-jogadores-de-rugbi-abala-a-argentina.html
https://brasil.elpais.com/internacional/...
).

É óbvio que esses casos não podem produzir uma generalização que indique uma condição que naturalize fatos sociais, ou seja, não se pode tomá-las para justificar que todos os atletas de rugby são preconceituosos. O que nos interessa, nesses casos, é entender o lugar do capitão como sendo uma pessoa que possui responsabilidades dentro da estrutura do rugby. Em outras palavras, como o próprio rubgy e a figura do seu capitão poderiam exercer a ação de combate aos inúmeros preconceitos apresentados.

O rugby, assim como outros esportes, apresenta uma divisão das funções conforme as necessidades da equipe. Apesar de todos poderem fazer tudo, essa divisão busca especializar cada jogador, extraindo o máximo deste, no sentido de tornar mais eficientes as ações de cada indivíduo para o funcionamento da equipe na busca para a vitória. Além dessa divisão, em muitos esportes existe a figura do capitão, que é o responsável pela equipe, que deve tomar as decisões perante o mediador da partida e o capitão da equipe adversária. Este também representa todos os jogadores, normalmente sendo designado para levantar os troféus, mas também responsável pelas derrotas. Este também deve ser tecnicamente bom para manter sua posição dentro da equipe, pois caso esteja fora de campo, não consegue exercer essa função. O capitão fica em evidência numa equipe, muito por ser aquele que representa todos os jogadores, sendo responsável por ela.

Ao pensar o capitão como aquele que sai do seio do grupo de jogadores e vem à tona como o representante destes, podendo ser criado pelo grupo dominante (técnico ou federação, por exemplo), ou mesmo eleito pelos seus pares, ele se assemelha à ideia de intelectual proposta por Gramsci (2001Gramsci A. Caderno 12 (1932): apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: Coutinho CN, Henriques LS, Nogueira MA, editores. Cadernos do cárcere. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001. (vol. 2)., p. 15):

Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político.

Dentro de campo, o capitão é o responsável para pensar o jogo, dentro das características que são treinadas, dando homogeneidade ao pensamento do grupo, mantendo conscientemente a sua função. Apesar de todos os que estão jogando terem intelectualidade e exercerem funções que precisam pensar o jogo, de tomada de escolhas etc., somente o capitão tem a função específica de fazer as escolhas para a equipe. No rugby fica mais claro quando este deve decidir qual decisão tomará após uma marcação de penal11 11 Após a marcação de penal, a equipe que sofreu a penalidade pode decidir, entre várias opções, como retornará ao jogo a partir da infração realizada pelo adversário, podendo ir desde sair jogando do local da infração, até chute para os postes, para pontuar. ou após uma advertência do árbitro.

Tomemos o caso de Pablo Matera como exemplo, em que ele é escolhido como capitão da equipe que representa o rugby argentino, sendo designado para falar em nome de todos os jogadores quando cobrados pela homenagem a Maradona, exprimindo o que pensam os seus colegas e a UAR. Assim, o capitão tem o papel de intelectual no meio dos jogadores.

O esporte não está fora da disputa ideológica pela conquista da hegemonia, sendo um importante construtor de ideias e naturalizações de relações na sociedade. Podemos tomar como exemplo o paralelo entre a busca de acumulação de capital e aumento de produção com a busca por títulos e o aumento de recordes, ou até mesmo como o esporte contribui na formação de disputas entre os indivíduos na sociedade. Ao pensar o rugby como um lugar de formação de ideias, que vão sair desse lugar específico da modalidade, relacionando-se com seu exterior, ele funciona na sua iniciação como a escola, mas para um grupo específico de praticantes, que vão aprender os princípios e sentidos daquele meio de reprodução de si. Os indivíduos mais velhos passam os valores aos mais novos, que reproduzem dentro dos clubes, e a federação entra nesse processo como responsável por organizar e promover as ideias dos clubes mais dominantes dentro dessa estrutura num âmbito nacional ou regional, reprimindo grupos opositores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos pilares da construção da identidade nacional do rugby argentino é a sua própria questão nacional, na qual se baseia na sua distinção em relação às outras modalidades. Essa construção coletiva de identidade tem uma formação social específica, direcionada para uma classe, que visa manter as estruturas da sociedade, colocando outros esportes ou outras identidades esportivas como inferiores, ou que não merecem o mesmo prestígio ou respeito como os indivíduos do rugby.

Ao retornar ao caso de Matera, esse não reconhecimento das classes mais baixas como indivíduos semelhantes, como aqueles que podem ser exterminados, corrobora essa posição que o rugby se coloca dentro da sociedade argentina, de desprezo ao nacional-popular. Interessante notar também como o “pertencer à comunidade global do rugby”, como colocado nos valores da World Rugby, não segue um sentido internacionalista, de aproximar os povos para a emancipação, mas de negar a sua origem para ser mais britânico, mais colonizado.

A profissionalização do rugby argentino também pode ser vista como um caso de desprezo ao nacional, já que suas equipes profissionais disputam somente competições internacionais, deixando no âmbito local amador. Esse amadorismo local dificulta a dedicação exclusiva dos jogadores, impede seu trânsito entre equipes, impossibilitando que atletas de classes mais baixas joguem em alto nível. Mas como Mariátegui (2012)Mariátegui JC. Ponto de vista antiimperialista. Revista Novos Rumos. 2012;18-19:1-3. aponta, não há problema da classe dominante no continente em ser coadjuvante no sistema global, desde que possam manter seu lugar. Assim, os clubes poderiam lucrar mais com transmissões, patrocinadores, entre outras formas, caso se profissionalizasse localmente, mas isso coloca em risco seus lugares já estabelecidos, sendo que hoje esses clubes são mantidos pelos jogadores/sócios, com alguns patrocinadores, além de já haver a transmissão de partidas nacionais em canais esportivos, mas não há a necessidade de pagar os atletas.

Williams (2011)Williams R. Cultura e materialismo. São Paulo: Ed. Unesp; 2011. aborda a importância da hegemonia para a compreensão da totalidade, pois ela satura a realidade, tornando a ideologia a própria realidade. Assim, ao pensar o rugby argentino, tem que pensar no todo, não como uma sociabilidade descolada das demais, que anda num sentido próprio, tampouco como algo mecanicamente reproduzido, mas que seu lugar na sociedade participa na construção do todo social, numa relação dialética.

É preciso entender o lugar do capitão dentro dessa estrutura, pois sua importância deve ser compreendida por seu destaque, por estar em evidência dentro da equipe e como se relaciona para fora dela. Ao colocar suas opiniões de forma pública, como no caso de Pablo Matera, em razão de seu lugar de destaque, ela pode representar algo maior do que a opinião individual, mas de um grupo, que nesse caso é todo o rugby argentino. Como um paralelo com os pensadores, podemos citar como alguns intelectuais brasileiros incentivaram a barbárie por parte do Estado em Canudos, mas quando esta aconteceu, não a comemoraram, referindo-se aos insurgentes como irmãos brasileiros (Ianni, 1988Ianni O. A questão nacional na América Latina. Estud Av. 1988;2(1):5-40. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141988000100003.
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).

No futebol, temos a figura de Maradona como parte central do discurso nacionalista que se produziu na Argentina. A trajetória pobre reforça a ideia de que se deve ser humilde para alçar grandes voos, no caso, transformando-se em um herói global (Alabarces, 2002Alabarces P. Fútbol y patria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros; 2002.). Interessante pensar que a humildade em torno de sua vida e superação desloca-o da dimensão intelectual, mas seu posicionamento político distancia-o de um lugar hegemônico das grandes potências econômicas do mundo. Matera, por sua vez, toma o lugar do intelectual produzido pelos grupos dominantes, semelhante ao técnico industrial exemplificado por Gramsci (2001)Gramsci A. Caderno 12 (1932): apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: Coutinho CN, Henriques LS, Nogueira MA, editores. Cadernos do cárcere. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001. (vol. 2)., que está ali para manter a ordem e reproduzir de forma técnica a ordem vigente.

Apesar de não termos abordado durante o trabalho, o rugby feminino é desprezado pela UAR, com resultados muito inferiores aos masculinos, sendo a terceira força no continente sul-americano, atrás de Brasil e Colômbia. Contudo, é interessante notar que nos clubes de rugby argentinos, para as mulheres fica a possibilidade da prática do hóquei sobre a grama, deixando clara a divisão de gênero dos esportes.

A falta de identificação com a maior parte população e seu exclusivismo classista não é tido como um problema para o rugby argentino, já que manter essa estrutura é interessante para quem está no seu topo. Algumas atitudes que vêm à tona para a comunidade que não vive o cotidiano do rugby, como no caso de Matera ou no assassinato de Fernando Báez, são tratadas como desvios individuais, nunca questionando o todo e como essas estruturas se relacionam com esses comportamentos. Apesar de existir certo esforço da UAR em diminuir a violência no rugby, principalmente fora de campo (Centenera e Molina, 2020Centenera M, Molina FR. Assassinato de jovem espancado por grupo de jogadores de rúgbi abala a Argentina. El País - Internacional; Buenos Aires; 19 fev. 2020 [citado em 2021 Jan 13]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-02-19/assassinato-de-jovem-espancado-por-grupo-de-jogadores-de-rugbi-abala-a-argentina.html
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), este não pode ser pensado de como uma melhora localizada, dentro desses praticantes, mas como um todo na sociedade argentina, para que de fato o rugby possa se identificar como argentino, e que os demais possam associar o rugby como parte do “ser argentino”. Mas enquanto houver essa relação de castas, como apontado por Ianni (1988)Ianni O. A questão nacional na América Latina. Estud Av. 1988;2(1):5-40. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141988000100003.
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, essas situações permanecerão comuns, talvez apenas mais discretas.

FINANCIAMENTO

  • 1
    Apelido dado à Seleção Argentina de Rugby.
  • 2
    Dança dos povos Māoris, realizada em cerimônias e desafios. É adotada pelas equipes de rugby da Nova Zelândia antes das partidas.
  • 3
    O Nueva Chicago se localiza no bairro de Mataderos, em Buenos Aires, onde no período de fundação tinha uma grande indústria de carne e abatedouros no bairro, o que levava a uma comparação com a cidade estadunidense. Já o Ferro Carril Oeste foi fundado por funcionários da companhia com mesmo nome.
  • 4
    Que viria mais tarde a mudar seu nome para World Rugby.
  • 5
    Super Rugby é uma competição que envolvia equipes franqueadas da África do Sul, Argentina, Austrália, Japão e Nova Zelândia.
  • 6
    A Super Liga Americana de Rugby reúne equipes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Uruguai.
  • 7
    Rugby Sevens é a modalidade do rugby que está presente nos Jogos Olímpicos desde 2016.
  • 8
    Nesse caso, a figura do gaúcho era vista como o principal símbolo da nacionalidade argentina (Archetti, 2003aArchetti EP. O “gaucho”, o tango, primitivismo e poder na formação da identidade nacional argentina. Mana. 2003a;9(1):9-29. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132003000100002.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132003...
    , p. 13).
  • 9
    Na periodização do futebol argentino proposta por Alabarces (2002Alabarces P. Fútbol y patria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros; 2002., p. 24) são elencados sete momentos. Em dois deles, Maradona está no centro da cena: “f. el ciclo maradoniano, entre 1982 y 1994; g. la contemporaneidade, desde el retiro de Maradona hasta el Mundial de Francia 98”.
  • 10
    Hugo Porta, um dos maiores jogadores do rugby argentino, jogou pela seleção nas décadas de 1970 e 1980.
  • 11
    Após a marcação de penal, a equipe que sofreu a penalidade pode decidir, entre várias opções, como retornará ao jogo a partir da infração realizada pelo adversário, podendo ir desde sair jogando do local da infração, até chute para os postes, para pontuar.
  • O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2021
  • Aceito
    09 Jul 2022
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