Acessibilidade / Reportar erro

Psicopatologia no cinema brasileiro: um estudo introdutório

Brazilian movies and psychopathology

Resumos

Os autores procuraram localizar cenas com psicopatologia nos filmes brasileiros de 1994 a 2004 (período da retomada do cinema nacional). O objetivo foi desenvolver mais uma ferramenta para o ensino da psicopatologia. De uma amostra de conveniência com 45 filmes, 27 satisfizeram os critérios de seleção (60%). Predominaram cenas ilustrando transtornos de personalidade, uso e abuso de drogas, alucinações e questões ligadas à sexualidade. Há um excelente material para o ensino de psicopatologia.

Psicopatologia; cinema brasileiro; transtorno de personalidade; sexualidade


Brazilian movies from 1994 to 2004 were investigated in search of psychopathology scenes that might be useful for teaching purposes. Forty five movies from the period were seen, and 27 selected mainly with personality disorders, drug abuse and dependence, hallucination scenes. A recommendation of how to use them to teach psychopatology was made.

Psychopathology; Brazilian movies; personality disorders; sexuality


ARTIGO ORIGINAL

Psicopatologia no cinema brasileiro: um estudo introdutório

Brazilian movies and psychopathology

João Maurício Castaldelli MaiaI; Simone Mancini CastilhoII; Marilena Castaldelli MaiaIII; Francisco Lotufo NetoIV

IAluno da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

IIMestre em Psiquiatria, professora da Universidade São Judas

IIIMédica Psiquiatra do Hospital Infantil Menino Jesus (Preceptora de Saúde Mental da Residência em Pediatria)

IVProfessor Associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Oscar Freire, 1518, ap. 77, Cerqueira César 05409-010 – São Paulo – SP E-mail: jcmmaia@aol.com

RESUMO

Os autores procuraram localizar cenas com psicopatologia nos filmes brasileiros de 1994 a 2004 (período da retomada do cinema nacional). O objetivo foi desenvolver mais uma ferramenta para o ensino da psicopatologia. De uma amostra de conveniência com 45 filmes, 27 satisfizeram os critérios de seleção (60%). Predominaram cenas ilustrando transtornos de personalidade, uso e abuso de drogas, alucinações e questões ligadas à sexualidade. Há um excelente material para o ensino de psicopatologia.

Palavras-chave: Psicopatologia, cinema brasileiro, transtorno de personalidade, sexualidade.

ABSTRACT

Brazilian movies from 1994 to 2004 were investigated in search of psychopathology scenes that might be useful for teaching purposes. Forty five movies from the period were seen, and 27 selected mainly with personality disorders, drug abuse and dependence, hallucination scenes. A recommendation of how to use them to teach psychopatology was made.

Key-words: Psychopathology, Brazilian movies, personality disorders, sexuality.

Introdução

Enrolar o mundo real em um carretel para depois desenrolá-lo em uma vida de sonhos e fantasias é o que conhecemos pelo nome de cinema.

O cinema funde o mecânico e o elétrico de forma que uma sucessão de tomadas estáticas ganha vida e movimento diante de nossos olhos.

A natureza multissensorial do cinema o torna uma experiência rica e envolvente. Nenhuma outra forma de arte parece permitir uma ligação tão eficaz e poderosa sobre aquele que a contempla.

A medicina foi, com freqüência, pioneira na utilização de novos meios ilustrativos para suprir suas necessidades e o filme cinematográfico é um bom exemplo. Logo após sua introdução, os filmes passaram a ser usados na pesquisa médica, porém, em menor grau, no ensino da profissão. Os educadores médicos tardaram a incluir os filmes nos seus programas de ensino, o que só ocorreu com mais freqüência após a Segunda Guerra Mundial (Schneider,1977). Entretanto, a partir da observação dos currículos médicos e mesmo das práticas de ensino atuais, podemos perceber que este permanece um recurso de ensino subutilizado.

Filmes representam uma possibilidade boa de ensino, pois por meio de uma linguagem mais aceitável, torna mais prazeroso o aprendizado de psicopatologia que as aulas teóricas convencionais. Além disso, nem sempre pacientes com sintomas psicopatológicos específicos estão disponíveis em enfermarias e ambulatórios para as aulas práticas e evita-se o conflito ético de expor um paciente psiquiátrico a grandes grupos, durante as aulas práticas. As cenas cinematográficas não substituem a anamnese e o exame do paciente psiquiátrico, mas podem auxiliar, especialmente ao iniciante, na identificação dos principais sinais e sintomas em psiquiatria.

Os filmes didáticos e os documentários têm sido usados com freqüência como auxílio áudio-visual no processo de ensino (Hyler, 1996 e 1998). Já os filmes artísticos ou cinematográficos tiveram uso restrito neste sentido.

Os filmes de cinema apresentam algumas vantagens sobre a literatura como recurso de ensino. Uma delas é o fato de serem melhores do que a linguagem verbal ou escrita na transmissão de conteúdos. Isto ocorre porque há um acesso mais imediato ao psiquismo do receptor, que capta as informações não só pela via intelectual ou cognitiva, porém, de forma integral e plena. As informações são recebidas por mais de um canal sensorial e geram reações emocionais e afetivas no indivíduo que facilitam o processo de aprendizado e memorização. Além disso, o cinema é um recurso de fácil acesso, prático, principalmente com o advento do videocassete e DVD, e motivador, pois associa lazer ao processo de aprendizagem, além de promover contato e estreitamento social.

Durante todo o ensino médico e, também, durante o programa de residência e especialização em psiquiatria há uma grande ênfase na transmissão do conhecimento científico. Entretanto, cada vez mais somos confrontados com o fato de que todo médico deve ser igualmente exposto às ciências humanas e o psiquiatra, em particular, precisa ser cientista, mas também artista e poeta.

Para realizar sua função, o trabalhador em saúde mental deve ser familiarizado tanto com a linguagem do entendimento científico, quanto com a imaginação humanística e deve estar apto a se mover de uma à outra com facilidade, a fim de encontrar o que pretende. O uso do cinema pode preencher esta lacuna no desenvolvimento da capacidade de entendimento empático nos profissionais desta área da medicina.

A maioria das referências sobre o assunto, tanto nacionais como internacionais, disserta sobre o aspecto psicodinâmico dos filmes (Gabbard e Gabbard, 1985; Dal Zot, 2003) e, neste trabalho, procuramos mostrar que existe excelente material disponível para ensino da psicopatologia.

Este estudo procurou localizar cenas que mostram algum tipo de psicopatologia em filmes produzidos no Brasil, criando mais uma ferramenta didática para o ensino de psicopatologia para estudantes e profissionais de saúde mental (medicina, enfermagem, psicologia, serviço social, terapia ocupacional).

Esta abordagem não é nova, visto que esta forma de ensinar já tem sido utilizada nos Estados Unidos (Fritz e Poe, 1979), havendo um curso muito concorrido no Congresso da American Psychiatric Association (Hyler, 1996).

O trabalho também é uma contribuição para valorizar o cinema nacional, visto que este sofre ainda grande preconceito, resultante das produções das décadas de 1970 e 1980, as pornochanchadas, que segundo alguns apresentavam uma avalanche de filmes mal montados e mal dirigidos, onde o roteiro era mero pretexto para a apresentação de cenas de sexo (Lyra, 2003). Devemos, entretanto, lembrar que tais películas foram fundamentais para a manutenção da indústria em uma época de escassos recursos para o setor cinematográfico brasileiro.

Objetivos

Identificar filmes brasileiros que apresentem cenas com psicopatologia.

Método

Foram selecionados, por conveniência, 45 filmes produzidos no país, no período da "Retomada do cinema nacional". Este inclui as películas elaboradas de 1994 até 2004. Este período se segue à criação da Lei do Áudiovisual (1993) que liberou o setor privado para destinar até 3% do total do imposto de renda para a produção de filmes nacionais. Este auxílio permitiu a produção de filmes de maior qualidade técnica, trazendo trabalhos de excelente qualidade, o que culminou com inéditas indicações ao Oscar. O auxílio do governo foi muito importante para nossa indústria cinematográfica, visto que apenas os Estados Unidos e a Índia mantêm a produção de filmes sem auxílio estatal (Lyra, 2003).

Esta amostra foi direcionada pela disponibilidade das principais redes de locação de VHS e DVD, além de alguns filmes em cartaz nas redes de cinema. Os filmes foram assistidos sem que se tivessem informações prévias sobre o seu conteúdo.

Após esta fase, foram selecionados os filmes que continham cenas representando psicopatologia, listando-os segundo o tipo de patologia, ano de produção, gênero, diretor e principais atores (Adoro Cinema Brasileiro, Cinema com Rapadura).

Resultados

No período da "Retomada do cinema nacional" foram produzidos aproximadamente 300 filmes (Silva Neto, 2002). Foram selecionados 45 filmes (15% do total) que se encontram relacionados na tabela 1.

Dentre os 45 filmes, 27 apresentaram cenas representando psicopatologia. Estes 27 filmes estão relacionados na tabela 2.

Os seis filmes que abordaram, com mais ênfase, questões sobre sexualidade estão listados na tabela 3.

Discussão

A psicopatologia, por motivos didáticos e a fim de facilitar seu estudo e entendimento, divide a vida mental em várias funções psíquicas. Dessa forma, estuda-se a consciência e suas alterações, passando-se à atenção e suas alterações, orientação, memória e assim por diante. Diversas alterações psicopatológicas ou estados mentais alterados como, por exemplo, a dissociação da consciência, fenômenos alucinatórios, delírios e outros, podem ser ilustrados e mais bem entendidos a partir da visualização de cenas de filmes.

Os filmes selecionados trazem elementos diagnósticos (sinais e sintomas) que podem ser especialmente úteis no ensino de algumas das principais síndromes psiquiátricas. As cenas selecionadas permitem, em uma sala de aula, trazer à tona discussões sobre patologia geral e especial: esquizofrenia, depressão, suicídio, síndromes delirantes, abuso e dependência de drogas (sobretudo álcool, cocaína e maconha) e, principalmente, transtorno de personalidade. Ilustração de diversas funções psíquicas alteradas também foram encontradas.

A esquizofrenia e o papel dos transtornos mentais nos movimentos sociais podem ser abordados na análise da película "Paixão de Jacobina" (2002), dirigido por Fábio Barreto. Baseado no episódio histórico "A revolta dos Mücker", no Rio Grande do Sul, mostra em diversas cenas: transtorno dissociativo com perda de consciência, embotamento afetivo, ambivalência, alucinações auditivas, alterações quantitativas da sensopercepção (visual) e ecmnésia.

"Villa-Lobos: uma vida de paixão" (2000), dirigido por Zelito Vianna, é a biografia de um dos nossos maiores compositores, mostra com qualidade alterações de atenção voluntária e espontânea, pensamento prolixo, intoxicação alcoólica, distimia, além de permitir discussões sobre relacionamento entre casais.

Na comédia de costumes "A partilha" (2001), dirigida por Daniel Filho, podemos encontrar pensamento mágico, idéias de auto-referência, claustrofobia, ataque de pânico situacional, impulsividade, além de cenas leves com conteúdo parafílico, próprias para uma boa discussão.

"Memórias póstumas de Brás Cubas" (2001), dirigido por André Klotzel, passa para a tela com muita fidelidade o livro de Machado de Assis. A interessante análise de Leme e Lopes (Lopes, 1974), "A psiquiatria de Machado de Assis", assinala como nosso principal escritor conhecia claramente o delirium. O filme tem dificuldades com estas cenas, mas acompanhadas da descrição literária, permitem discutir muito sobre esta síndrome psicopatológica, lembrando que o livro é um material conhecido de muitos, por ser objeto de estudo na maioria das escolas brasileiras no ensino médio.

O transtorno de personalidade anti-social pode ser muito bem ilustrado para os neófitos em uma sessão com o filme "O invasor" (2001), dirigido por Beto Brant, e brilhantemente protagonizado por Paulo Miklos (vocalista do grupo Titãs) em seu primeiro e único trabalho como ator. No filme, este assassina um grande empresário do ramo da construção civil paulistana e termina conseguindo um vínculo amoroso com a filha órfã (baseado muito no compartilhar o uso de cocaína e maconha) e assume, por fim, o controle financeiro de um grande império.

As questões de sexualidade e violência, também muito abordadas, como em "Madame Satã" (2002), de Karim Ainouz, permitem discussões que ultrapassam a esfera psicopatológica e incluem problemas sociais e dilemas éticos e morais, que são o cotidiano da vida do médico.

Chama a atenção a porcentagem de psicopatologia encontrada na amostra abordada (60%), o que pode ser uma medida indireta do interesse que os transtornos mentais suscitam e de sua freqüência elevada na população. Em muitas cenas, a psicopatologia está associada à violência. No mundo real não é o que ocorre, e isto pode contribuir para o estigma que o portador de transtorno mental sofre. De forma positiva ou não, os filmes contribuem substancialmente para formar a percepção das pessoas sobre a patologia psiquiátrica e, por conseguinte, como tratar tais pessoas. São nos filmes de terror e suspense que encontramos, com mais freqüência e de forma estigmatizada, a caracterização da doença mental, embora ela apareça também nas comédias e nos documentários (hyler, 1988).

Segundo análise completa e cuidadosa de Hyler et al. (1991) sobre os diferentes retratos da doença mental nos filmes, cerca de seis estereótipos comuns contribuem para a manutenção deste estigma. O primeiro deles é o que apresenta o paciente como alguém de espírito livre e rebelde de certa forma destacado da sociedade por sua tendência crítica e desafiadora. Outro estereótipo é o doente mental homicida, geralmente encontrado nos filmes de terror e suspense, que perpetua o mito destas pessoas serem perigosas. Encontramos ainda o tipo narcisista e parasita, que retrata o doente mental como egoísta e auto-centrado, seguido do estereótipo animal que degrada as pessoas com tais patologias, tratando-as com desprezo e jocosidade. O paciente pode ser visto ainda como sedutor e, por fim, como um membro iluminado da sociedade. Os autores deste mesmo artigo sugerem aos profissionais da saúde que desafiem estas fontes de estigma através da realização de campanhas de informação ao público que ofereçam versões mais exatas sobre o tema em questão. Questões como estas, abordadas em sala de aula, estimulam o senso crítico dos alunos ou de profissionais já formados.

Vale a pena comentar o retrato das instituições psiquiátricas em tal amostra. Estas são, geralmente, apresentadas nos filmes como locais pouco acolhedores, com características de continência e isolamento como em "O bicho de sete cabeças" (2000), de Laís Bodansky, que condiz com uma realidade parcial. Tais aspectos estão de acordo com os retratos cinematográficos da doença mental, vista como perigosa e ameaçadora e que necessita ser duramente confrontada e posta sob controle.

Devem ser sempre apontadas as diferenças entre as cenas retratadas e o que realmente os pacientes vivenciam. O filme é apenas um instrumento didático, que jamais deve substituir a anamnese e o exame do paciente real e ao vivo.

Referências bibliográficas

ADORO CINEMA BRASILEIRO (Site) – www.adorocinemabrasileiro.com.br

CINEMA COM RAPADURA (Site) – www.cinemacomrapadura.com.br

Recebido: 03/05/2005 - Aceito: 25/07/2005

  • BERNARDET, J.C. - O Que é Cinema? Coleção Primeiros Passos Vol 9, Brasiliense, 2004.
  • DAL ZOT; J.S. - Lua de Outubro, o cinema gaúcho no divã. Rev Bras Psicoterapia 5:2;217-22; 2003.
  • FRITZ, G.K.; POE, R.O. - The Role of a Cinema Seminar in Psychiatric Education. Am J Psychiatry 136:2;207-10, 1979.
  • GABBARD, G.O.; GABBARD, K. - Countratransference in the Movies. Psychoanalytic Review 72:1;171-84, 1985.
  • HYLER, S.E. - DSM III at the Cinema: Madness in the Movies. Comprehensive Psychiatry 29:2;195-206, 1988.
  • HYLER, S.E. - Teaching Psychiatry? Let Hollywood Help! Academic Psychiatry 20:1;1-8; 1996.
  • HYLER, S.E.; GABBARD, G.O.; SCHNEIDER, I. - Homicidal Maniacal and Narcissistic Parasites: Stigmatization of Mentaly Ill Persons in the Movies. Hospital and Community Psychiatry 42:10;1044-9; 1991.
  • HYLER, S.E.; REMIEN, R. - Using Commercial Films to Teach about AIDS. J Pract Psych B Health 4;230-5, 1998.
  • LOPES, J.L. - A Psiquiatria de Machado de Assis Atual, Brasília, 1974.
  • LYRA, M. - O Novo Cinema Brasileiro De Carlota Joaquina a Carandiru. Planeta Tela Espaço Cultural. Curso realizado em Julho/Agosto 2003.
  • SCHNEIDER, I. - Images of the Mind: Psychiatry in the Commercial Film. Am J Psychiatry 134:6;613-20, 1977.
  • SILVA NETO, A.L. - Dicionário de Filmes Brasileiros São Paulo, Futuro Mundo, 2002.
  • Endereço para correspondência

    Rua Oscar Freire, 1518, ap. 77, Cerqueira César
    05409-010 – São Paulo – SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      25 Jul 2005
    • Recebido
      03 Maio 2005
    Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 785 , 05403-010 São Paulo SP Brasil, Tel./Fax: +55 11 2661-8011 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: archives@usp.br