RESUMO
O presente relato descreve uma condição rara de intussuscepção uterina em uma cadela sem raça definida, quatro anos de idade, diagnosticada por meio de celiotomia exploratória e análise anatomopatológica. Foi realizada ovariossalpingo-histerectomia (OSH) como tratamento. Essa patologia geralmente requer manejo cirúrgico porque o diagnóstico inicial pode ser desafiador.
Palavras-chave:
cão; intussuscepto; invaginação; útero
ABSTRACT
The present study describes a rare condition of uterine intussusception in a 4 year old crossbred female dog diagnosed by exploratory celiotomy and anatomopathological analysis. As treatment, a ovariohysterectomy (OH) was performed. This pathology usually requires surgical management because the initial diagnosis can be challenging.
Keywords:
dog; intussusceptum; invagination; uterus
INTRODUÇÃO
O sistema reprodutivo das cadelas é constituído por dois ovários, tubas uterinas, útero, cérvix, vagina, vestíbulo e vulva. O útero, assim como as demais partes do trato reprodutivo, é formado por um corpo em forma cilíndrica e dois cornos extremamente compridos e estreitos (Wykes e Olson, 1996WYKES, P.M.; OLSON, P.N. Moléstias do útero. In: BOJRAB, M.J. Mecanismos da moléstia na cirurgia dos pequenos animais. 2.ed. São Paulo: Manole, 1996. Cap. 83, p.665-669.). Seu tamanho varia em função da raça, idade, estrutura física, fase do ciclo estral e números de partos que a fêmea já apresentou (Apparício e Vicente, 2015).
O útero compõe-se de três camadas de revestimento: perimétrio, miométrio e endométrio. O perimétrio é formado por uma membrana serosa semelhante ao peritôneo (lisa, brilhante e transparente), constituindo a porção externa do órgão. O miométrio é formado por musculatura lisa; essa porção encontra-se medialmente, entre o perimétrio e o endométrio. Este, por sua vez, forma a camada interna do órgão, cuja constituição varia de acordo com a fase do ciclo estral (Apparício e Vicente, 2015).
As afecções uterinas são classificadas em congênitas e adquiridas. Anomalias congênitas são raras e, na maioria das vezes, são achados acidentais durante a ovariossalpingo-histerectomia (OSH) ou necropsia de pequenos animais. Entre as alterações congênitas, as mais comuns são cornos uterinos hipoplásicos, agenesia segmentar uterina e útero unicorno (Apparício e Vicente, 2015). Entretanto, as afecções uterinas adquiridas ocorrem com maior frequência, destacando-se a piometra, a hidrometra, a subinvolução dos sítios placentários, a metrite, a torção, o prolapso, a ruptura, as neoplasias e raramente a intussuscepção (Stone et al., 2007STONE, E.A.; CANTREL C.G.; SHARP N.J.H. et al. Ovário e útero. In: SLATTER, D. Manual de cirurgia de pequenos animais. 3.ed. 2007. cap.98, p.1487-1502.).
A intussuscepção de um órgão ocorre quando o segmento proximal (intussuscepto) telescopa dentro do segmento distal (intussusceptado) (Oliveira-Barros e Matera, 2009). De acordo com a literatura, a intussuscepção uterina é uma afecção pouco relatada em cadelas, porém, nos equinos e bovinos, é um agravante que pode ser observado em partos distócicos (Palmieri et al., 2011PALMIERI, C.; SCHIAVI, E.; DELLA SALDA, L. Congenital and acquired pathology of ovary and tubular genital organs in ewes: a review. Theriogenology, v.75, p.393-410, 2011.).
Em 1975, Gorham e Spink descreveram a ocorrência de intussuscepção uterina em uma cadela da raça Chow Chow, com cinco meses de idade, que apresentava havia quatro semanas corrimento vaginal sanguinolento e na qual foi realizada celiotomia exploratória e ovariossalpingo-histerectomia (OSH) como formas de diagnóstico e tratamento.
Há também a descrição em uma cadela Yorkshire Terrier, com quatro anos de idade, gestante há 65 dias, que, mesmo após o parto, persistiu com contrações uterinas. Por meio da palpação abdominal, constatou-se um aumento de volume na região do corno direito. Optou-se pela celiotomia exploratória, quando foi confirmada a intussuscepção uterina, e posteriormente realizou-se a ovariossalpingo-histerectomia terapêutica (Pinto Filho et al., 2015).
Borges et al., em 2016BORGES, L.W.; OLIVEIRA, P.M.; COSTA, M.C. et al. Intussuscepção de corno uterino em cadela. In: CONGRESSO BRASILEIRO ANCLIVEPA, 37., 2016, Goiânia. Anais... Goiânia: ANCLIVEPA, 2016. p.354. (Resumo expandido)., relataram o caso de uma cadela sem raça definida (SRD), cinco anos de idade, com 22 dias de puerpério e apresentando corrimento sanguinolento pela vulva há 15 dias. Após avaliação ultrassonográfica do útero, levantou-se a suspeita da intussuscepção uterina, que foi confirmada pela celiotomia exploratória. Como relatado nos casos anteriores, realizou-se ovariossalpingo-histerectomia terapêutica como tratamento. Na literatura existente, ainda há o relato de uma cadela da raça Cocker Spaniel (Isquierdo e Cueto, 2013ISQUIERDO, D.; CUETO, E. Intususcepción uterina. Relato de um caso clínico. Disponível em<http://www.seleccionesveterianrias.com/es/articulos/reproduccionanimal/intususcepcionuterinarelato-de-un-caso-clinico>. Acesso em 29 set. 2013.
http://www.seleccionesveterianrias.com/e...
) e outra cadela Pinscher (Zanatta, 2013ZANATTA, R. Intussuscepção uterina em cadela - relato de caso. In: ENCONTRO DE ATIVIDADES CIENTÍFICAS, 16., 2013, Londrina. Anais ... Londrina: Unopar, 2013. (Resumo expandido).).
O objetivo do presente trabalho foi relatar um caso de intussuscepção uterina em uma cadela sem raça definida, abordando o diagnóstico, a conduta terapêutica, bem como a discussão do caso.
CASUÍSTICA
Uma cadela, sem raça definida, de quatro anos de idade, 6kg, foi atendida no Hospital Veterinário da Universidade Estadual Paulista de Botucatu - Unesp, com suspeita de piometra. O proprietário relatou que o animal apresentava apatia, hiporexia, poliúria e polidpsia há três dias e negou ter observado presença de secreção vaginal. No exame físico, verificou-se rigidez abdominal e aumento de volume unilateral (abdominal direito) durante a palpação. Na inspeção da vulva, não foi observado qualquer tipo de secreção. Os exames complementares realizados foram hemograma, em que se observou ligeira leucocitose (19.000), e ultrassom, em que se detectou um aumento circular discreto no corno direito (2cm), com aspecto semelhante a um nódulo. Após a realização e avaliação dos exames, o tratamento estabelecido foi celiotomia exploratória seguida de ovariossalpingo-histerectomia (OSH) terapêutica pelo método das três pinças (Stone et al., 2007STONE, E.A.; CANTREL C.G.; SHARP N.J.H. et al. Ovário e útero. In: SLATTER, D. Manual de cirurgia de pequenos animais. 3.ed. 2007. cap.98, p.1487-1502.).
Foi utilizado o seguinte protocolo anestésico: medicação pré-anestésica com morfina (2mg/kg IM); indução com propofol (20mg/kg, IV). A manutenção anestésica foi realizada com vaporização de isoflurano em oxigênio a 100%, e a anestesia local com bupivacaína 0,5% intraperitoneal (16mg/kg). No transoperatório, foi administrado meloxicam (0,2mg/kg, IV) e cefalotina (30mg/kg, IV). Procedeu-se à tricotomia ampla de abdome, seguida de antissepsia com clorexidina degermante e clorexidina alcoólica (três vezes consecutivas). Realizou-se incisão de pele, subcutâneo e musculatura retroumbilical na linha média abdominal, com bisturi, completando-a com tesoura Metzenbaum. Após a exposição uterina, verificou-se que o corno uterino direito invaginava-se (intussuscepto) no lúmen do segmento seguinte, localizado caudalmente próximo à transição com o corpo do útero (intussuscepiente), situação compatível com intussuscepção de corno uterino. Realizou-se a ligadura do pedículo, utilizando-se nylon 0 e, posteriormente, ele foi excisado com o uso de bisturi. O corno uterino foi transfixado e ligado com nylon 0 e excisado com bisturi. A sutura muscular foi realizada em padrão festonado contínuo, utilizando-se nylon 0; no subcutâneo, realizou-se sutura cushing e sutura cutânea com Wolf contínuo, ambos com nylon 0.
No período pós-operatório, foram receitados: dipirona gotas (25mg/kg, TID, durante cinco dias), meloxicam (0,2mg/kg, VO, SID, por dois dias) cefalexina (30mg/kg, VO, BID, por 10 dias), omeprazol (1,0mg/kg, SID, durante 10 dias) e curativo local com iodo 2%, duas vezes ao dia, até a retirada dos pontos.
O útero foi encaminhado para avaliação anatomopatológica, que confirmou a intussuscepção. Na análise macroscópica, observou-se a invaginação do corno direito (Fig. 1) e, após abertura do segmento, contatou-se área focalmente extensa de necrose e ligeira hemorragia (Fig. 2).
Útero de uma cadela sem raça definida, de quatro anos, com intussuscepção uterina. Observa-se que o segmento cranial do corno uterino direito invagina-se no segmento caudal.
Útero de uma cadela sem raça definida, de quatro anos, com intussuscepção uterina. Observa-se área focalmente extensa de necrose e hemorragia no corno uterino direito.
DISCUSSÃO
De acordo com os sinais clínicos e os achados ultrassonográficos, alguns diagnósticos diferenciais, como hiperplasia do endométrio, piometra, hemometra, torção uterina, endometrite e neoplasias, foram cogitados. Porém, a intussuscepção uterina, por se tratar de uma condição rara e de difícil diagnóstico, não foi levada em consideração inicialmente.
O diagnóstico pré-operatório de intussuscepção uterina é complexo, fazendo com que a maioria dos casos necessitem de celiotomia exploratória para real confirmação do diagnóstico. Entretanto, a escolha de uma abordagem cirúrgica pode ser desafiadora, dependendo da condição clínica do paciente, visto que a localização, o tempo decorrido e a extensão da intussuscepção podem levar a agravantes do quadro clínico geral do animal, como necrose e ruptura uterina. Além disso, deve ser levado em consideração o histórico e os últimos eventos reprodutivos envolvendo o paciente, como parto, estro ou quaisquer outros acontecimentos que possam ter desencadeado a intussuscepção.
Acredita-se que uma série de eventos possam estar ligados para desencadear uma intussuscepção uterina, como alta motilidade e contração uterina, hipertrofia e edema uterino e maior elasticidade da musculatura do útero. Geralmente esses fatos estão associados a altas concentrações de estrógeno, que aumentam a elasticidade das fibras musculares uterinas, porém altos níveis de estrógenos só são comumente observados no período pós-parto, no fim do proestro e no estro (Borges et al., 2016BORGES, L.W.; OLIVEIRA, P.M.; COSTA, M.C. et al. Intussuscepção de corno uterino em cadela. In: CONGRESSO BRASILEIRO ANCLIVEPA, 37., 2016, Goiânia. Anais... Goiânia: ANCLIVEPA, 2016. p.354. (Resumo expandido).). Essa informação é condizente com os quadros de intussuscepção observados por Zanatta, em 2013ZANATTA, R. Intussuscepção uterina em cadela - relato de caso. In: ENCONTRO DE ATIVIDADES CIENTÍFICAS, 16., 2013, Londrina. Anais ... Londrina: Unopar, 2013. (Resumo expandido)., Borges et al., em 2016, e Pinto Filho, em 2015, e os justifica, porém não é condizente com o caso deste relato, pois o animal não se encontrava em puerpério ou estro.
Em contrapartida, diferentemente do relatado por Gorham e Spink no ano de 1975GORHAM, M.F.; SPINK, R.R. Uterine intussusception in a chow chow. Mod. Vet. Pract., v.56, p.35, 1975., o animal não apresentou qualquer tipo de secreção vaginal, dado esse importante, indicando que esse sinal clínico não é necessário para suspeita da intussuscepção uterina. A necrose de parte do corno uterino observada neste caso é resultado da isquemia causada pelo encarceramento de um segmento dentro do outro, o que impede a oxigenação das células, acarretando morte celular e possível comprometimento sistêmico do animal. Visto o não interesse do tutor em reproduzir o animal e a provável inviabilidade tecidual do corno uterino devido à área de necrose decorrente da intussuscepção, foi indicada e executada a OSH, considerando-se um tratamento definitivo, seguro, eficiente e que evita recidivas.
CONCLUSÃO
A intussuscepção uterina pode ocorrer em cadelas de diferentes raças, idades, fases do ciclo reprodutivo e pode ou não apresentar secreção vulvar. É uma afecção rara, de difícil diagnóstico, geralmente necessitando de uma celiotomia exploratória para o diagnóstico definitivo, porém deve ser considerada no diagnóstico diferencial de doenças do trato reprodutivo de cadelas.
REFERÊNCIAS
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- GORHAM, M.F.; SPINK, R.R. Uterine intussusception in a chow chow. Mod. Vet. Pract., v.56, p.35, 1975.
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» http://www.seleccionesveterianrias.com/es/articulos/reproduccionanimal/intususcepcionuterinarelato-de-un-caso-clinico - OLIVEIRA-BARROS, L.M.; MATERA, J.M. Intussuscepção em cães: revisão de literatura. Rev. Acad., Ciênc. Agrár. Ambient., v.7, p.265-272, 2009.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Out 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Oct 2019
Histórico
-
Recebido
07 Ago 2018 -
Aceito
28 Dez 2018