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O Discurso Auto-reflexivo: Processamento Metadiscursivo do Texto

Self-reflexive discourse: Metadiscoursive processing of the text

Resumos

A partir de uma ótica textual-interativa, este artigo aborda a questão da metadiscursividade, destacando as suas propriedades e a sua funcionalidade no processamento do texto falado. São caracterizadas diferentes modalidades de referência ao discurso, que envolvem focalizações do código em uso, da gestão do evento comunicativo e do esquema de construção do texto. A análise tem por dados trechos de inquéritos do Projeto NURC, dos tipos D2 e EF.

Metadiscurso; Auto-reflexividade; Texto falado


This paper, based on a text-interative point of view, deals with metadiscursiveness, pointing out its characteristics and functionality in the processing of the spoken text. Different discourse reference modalities are described, featuring focalizations of the code in use, of the management of the communicative event, and of the outline of the text structure. The data used in the analysis are passages from Projeto NURC inqueries, D2 and EF types.

Metadiscourse; Self-Reflexiveness; Spoken text


O Discurso Auto-reflexivo: Processamento Metadiscursivo do Texto

(Self-reflexive discourse: Metadiscoursive processing of the text)

Mercedes Sanfelice RISSO (Universidadde do Estado de São Paulo/Assis - CNPq)

Clélia Cândida A. Spinardi JUBRAN (Universidadde do Estado de São Paulo /Assis - CNPq)

ABSTRACT: This paper, based on a text-interative point of view, deals with metadiscursiveness, pointing out its characteristics and functionality in the processing of the spoken text. Different discourse reference modalities are described, featuring focalizations of the code in use, of the management of the communicative event, and of the outline of the text structure. The data used in the analysis are passages from Projeto NURC inqueries, D2 and EF types.

RESUMO: A partir de uma ótica textual-interativa, este artigo aborda a questão da metadiscursividade, destacando as suas propriedades e a sua funcionalidade no processamento do texto falado. São caracterizadas diferentes modalidades de referência ao discurso, que envolvem focalizações do código em uso, da gestão do evento comunicativo e do esquema de construção do texto. A análise tem por dados trechos de inquéritos do Projeto NURC, dos tipos D2 e EF.

KEY WORDS: Metadiscourse; Self-Reflexiveness; Spoken text.

PALAVRAS-CHAVE: Metadiscurso; Auto-reflexividade; Texto falado.

0. Introdução

Este artigo tem por objetivo o estudo do processo da metadiscursividade, apreendido como um recurso importante de estruturação textual, ativado freqüentemente na organização do texto falado. A apreensão desse recurso, pela análise de materiais do Projeto NURC/BR, contempla a descrição de um movimento de auto-reflexividade, pelo qual o "fazer" discursivo é referenciado no próprio discurso.

Fundamentado numa perspectiva textual-interativa, este estudo toma por base uma concepção pragmática de linguagem, como atividade verbal entre os protagonistas de um ato comunicativo, contextualizada no espaço, no tempo e no conjunto complexo de circunstâncias que movem as relações sociais entre os interlocutores. Na ação verbal estão, portanto, incorporados o enunciado e suas condições enunciativas. A adoção desse fundamento teórico leva a ver os componentes enunciativos como introjetados no produto lingüístico de um ato comunicativo — o texto.

O metadiscurso, por inscrever o produto verbal na situação enunciativa que o instaura, estabelece-se como uma das evidências dessa integração entre enunciado e enunciação.

Como propriedade discursiva, potencialmente presente em toda e qualquer manifestação textual, a metadiscursividade ganha, no caso específico da língua falada, uma densidade particular, pelo fato de as contingências da produção oral promoverem uma acentuada manifestação dos fatores enunciativos na estruturação do texto. Fortemente ancorado no entorno espaço-temporal de interação face a face, o texto falado é produzido de forma dinâmica e momentânea, o que favorece sensivelmente o afloramento, na sua superfície, de traços da enunciação. Em razão do monitoramento local e contínuo das construções verbais, esses traços são lingüisticamente materializados, ficando, portanto, acessíveis à análise. As formas metadiscursivas serão ressaltadas, na presente investigação, como um dos fenômenos verbais diretamente observáveis no produto dessa atividade emergencial de processamento formulativo.

1. Metadiscursividade: A Glosa do Próprio Discurso

A propriedade básica particularizadora da metadiscursividade é a da auto-relexividade do discurso: este se elabora focalizando-se a si mesmo, pela conjunção do que é dito com o ato de dizer. Por reportar o discurso ao ato de enunciação que o cria, auto-referenciando-se, o metadiscurso constitui-se simultaneamente como discurso e como glosa sobre o discurso.

No seu estatuto de discurso auto-referente, os enunciados metadiscursivos dão concretude a um vasto inventário de aspectos de textualização, que se desdobram em mecanismos variados de focalização da atividade discursiva, como entre outros: procedimentos mais pontualizados que recaem sobre o signo, explicando-lhe valores semânticos e funções em contextos comunicativos concretos, ou sinalizando o processamento de seleções lexicais; procedimentos que põem em destaque unidades mais amplas, como o tópico e o texto, explicitando-lhes a organização, por marcas de aberturas, fechos, retomadas, sínteses, exemplificações, reformulações ou mesmo de esquemas macro-estruturais de composição textual; procedimentos com foco na natureza dos atos de fala, pela rotulação de seu teor declarativo, responsivo ou interrogativo; procedimentos evidenciadores do caráter dialógico do texto falado, relacionados à administração das relações interacionais, com alvo na eficácia da comunicação, pela checagem da boa transmissão e recepção informacional.

Pela característica da auto-reflexividade, a metadiscursividade tem um ponto em comum com a metalinguagem, compreendida como fenômeno de auto-referenciação da língua: a frase metalingüística centra-se no próprio código verbal que está na base de sua formulação, incidindo sobre propriedades de forma e significado dos signos lingüísticos. Remetendo, assim, à estrutura da língua enquanto sistema, a metalinguagem, tomada por este ângulo, diferencia-se da metadiscursividade, por prescindir de um elemento fundamental para a operação metadiscursiva, que é a focalização do contexto discursivo. Essa distinção entre metalíngua e metadiscurso explicita uma polarização entre código, abstraído de atualizações interacionais, e "mise-en-scène" do código, que, na ótica textual-interativa aqui adotada, congrega o complexo da ação verbal, coenvolvendo enunciado e contingências enunicativas.

Uma atenuação dessa polarização é vista na concepção que Jakobson (1963) tem da função metalingüística. Segundo destaca Borillo (1985), à noção de mensagem centrada sobre o código, Jakobson acrescenta uma observação relativa a condições enunciativas para a ocorrência de enunciados metalingüísticos: a de que eles decorrem da necessidade de destinador e destinatário checarem, pela referência ao código, a eficácia comunicativa da mensagem.

A observação de Jakobson, por reportar as operações metalingüísticas ao ato de enunciação, representa um primeiro passo para aproximá-las das operações metadiscursivas. A perspectiva pragmática da linguagem, enfatizando a contextualização das realizações verbais, leva a uma confluência entre os procedimentos metalingüísticos e metadiscursivos, na medida em que as remissões às estruturas da língua passam a ser enfocadas pelo ângulo de seu funcionamento em situações comunicativas.

Apoiando-se nessa conceopção mais abrangente, gerada pelo tratamento discursivo dos fatos lingüísticos, Borillo (1985) comenta que:

"a metalinguagem é na verdade um discurso centrado sobre o código, mas código tomado em sentido amplo, remetendo tanto à estrutura da língua enquanto sistema, quanto à sua ativação em situação de comunicação, i. é, movido por um locutor, que se dirige a um destinatário — real ou virtual — em circunstâncias particulares".

Ao examinar a função metalingüística em situação de enunciação, Borillo (1985) a destaca como uma primeira modalidade de metadiscurso: a) a que faz referência ao discurso, especificando aspectos do código em uso na elaboração do texto. A investigação feita pelo Autor sobre a questão da metadiscursividade envolve ainda outras duas formas de intervenção do metadiscurso: b) a que se refere ao discurso como fato enunciativo, para explicar algumas de suas condições, ligadas à gestão do diálogo, tendo em vista sua inteligibilidade; c) a que se refere ao discurso enquanto construção de enunciados, para explicar seu desenvolvimento, sua estratégia e organização argumentativa. Esses três aspectos funcionais da glosa sobre o discurso serão considerados na análise do corpus, a ser apresentada no item 2 deste artigo.

Em decorrência dessa propriedade de auto-referenciação, pela tomada de elementos discursivos como objeto de focalização, o metadiscurso entra, na composição do texto, em pauta diferenciada da estrutura informacional. Denunciando momentos de processamento verbal na interação, estabelecendo-se como elementos explícitos de antecipação, avaliação e comentários da produção discursiva, firmando-se como indiciadores da montagem do texto, entre outras atuações, os enunciados metadiscursivos operam efetivamente no âmbito da atividade enunciativa. Como tal, mantêm-se exteriores aos conteúdos das proposições tópicas. Entretanto, asseguram a ancoragem pragmática desse conteúdo, ao circunscreverem a significação proposicional, de base informacional, no âmbito das significações geradas pelo espaço discursivo. Assim, em seu estatuto pragmático-discursivo, funcionam como embreadores dos enunciados com as condições de enunciação, ao apontarem para as instâncias produtoras do discurso, correlacionando-as simultaneamente com a estruturação textual-interativa.

Gülich e Kotschi (1995) reconhecem, igualmente, essa dimensão diferente que o metadiscurso assume relativamente à estrutura informacional. Focalizados como procedimentos típicos de qualificação, que envolvem avaliações e comentários de uma expressão ou seqüência de expressões integrantes do discurso em processo, os enunciados metadiscursivos, segundo os Autores, não atuam imediatamente no plano da estrutura informativa. Constituem manifestações explícitas de controle da atividade discursiva, que suspendem momentaneamente o fluxo informacional, designando propriedades de constituintes discursivos sob seu escopo.1 1 Embora concordemos com Gülich e Kotshi, no que dis respeito ao destaque do domínio particular de atuação do metadiscurso, nossa concepção integrativa de introjeção dos fatores pragmáticos na tessitura lingüística do texto distancia-nos de sua visão estratificada da estruturação textual em camadas, que leva os Autores a distinguirem entre um procedimento básico ( verbalização) e procedimentos adicionais de produção discursiva ( tratamento e qualificação).

A diferença entre enunciados metadiscursivos e proposições tópicas ganha evidência, no espaço textual, pelo fato de que o estatuto de metadiscurso é sempre assinalado. Nessa sinalização entram procedimentos verbais de natureza e níveis variados, indo de fatos prosódicos a construções referenciadoras do processamento lingüístico-textual-interativo. Esses procedimentos sinalizadores podem apresentar diferentes graus de estereotipia e ganharem formato ora mais estendido, ora mais conciso. Observados em relação à unidade tópica, mostram uma tendência para ocorrerem como incisos, o que salienta a diferença dada pela tônica pragmático-discursiva que eles comportam. Vistos em relação ao seu escopo — segmento do discurso por eles referenciado — os operadores de metadiscursividade tendem a se posicionar como prefaciadores, e, portanto, como mecanismos que anunciam antecipadamente, no texto, o valor discursivo do fragmento que eles introduzem. Indiciam-lhe o estatuto e funções discursivas (por exemplo, o seu papel de síntese, reformulação, repetição, exemplificação) apontam seu lugar e relação com as demais partes integrantes do texto, na macro-estrutura textual, qualificam sua força ilocutória, explicitam sua direção argumentativa, comentam propriedades de unidades lexicais que o constituem, conferem sua eficácia na relação comunicativa entre os interlocutores.

Em escala menor, a posição não prefaciadora pode destacar algumas das funções acima, como é o caso da última, mais propensa a ser expressa por operadores que sucedem seu escopo, como fecho do segmento - objeto de sua referência.2 1 Embora concordemos com Gülich e Kotshi, no que dis respeito ao destaque do domínio particular de atuação do metadiscurso, nossa concepção integrativa de introjeção dos fatores pragmáticos na tessitura lingüística do texto distancia-nos de sua visão estratificada da estruturação textual em camadas, que leva os Autores a distinguirem entre um procedimento básico ( verbalização) e procedimentos adicionais de produção discursiva ( tratamento e qualificação).

A observação dos papéis exercidos pelos operadores metadiscursivos demonstra uma intrincada rede de funções, marcadas por uma multiplicidade de possibilidades sinalizadoras.3 1 Embora concordemos com Gülich e Kotshi, no que dis respeito ao destaque do domínio particular de atuação do metadiscurso, nossa concepção integrativa de introjeção dos fatores pragmáticos na tessitura lingüística do texto distancia-nos de sua visão estratificada da estruturação textual em camadas, que leva os Autores a distinguirem entre um procedimento básico ( verbalização) e procedimentos adicionais de produção discursiva ( tratamento e qualificação). A diversificação dos mecanismos indiciadores de metadiscursividade torna a sua listagem bastante extensa e complexa, o que dificulta uma categorização das unidades aí envolvidas. Trata-se, com efeito, de uma lista aberta, constituída por uma variedade de formas e construções lingüísticas, sempre renovada no dinamismo das interações verbais.

Uma outra questão que destaca a dificuldade de categorização dos referidos operadores diz respeito ao fato de poderem estar elípticos, na construção sinalizadora, exatamente os termos referentes à atividade enunciativa, que explicitariam a focalização auto-reflexiva do discurso. A auto-reflexividade do discurso ganha evidência, nesses casos, pela recuperação desses termos, facilmente viabilizada com apoio em dados do evento comunicativo. Observe-se, por exemplo, a ausência dos verbos de natureza declarativa em contextos como: Compreendeu? Em primeiro lugar ..., que podem ser automaticamente decodificados como Comprrendeu o que eu disse? Em primeiro lugar, quero me referir ao seguinte.

2. Análise

A análise da manifestação da metadiscursividade em língua falada, aqui empreendida, assenta-se no exame da funcionalidade do metadiscurso na configuração das relações textuais-interativas. Os papéis a serem caracterizados contemplam as três modalidades de referência ao discurso, apontadas por Borillo (1985), e já mencionadas no item anterior.

As passagens selecionadas para análise constam do material do Projeto NURC, e mostram duas situações diferenciadas de coleta de dados: uma, em que o discurso é mediado por um entrevistador, que aciona o diálogo, provocando a fala dos informantes, e outra, em que não se verifica essa mediação, transcorrendo a fala por conta e iniciativa do próprio informante. No primeiro caso, enquadra-se o inquérito do tipo D2 (Diálogo entre Dois Informantes), número 255, do NURC/SP e, no segundo, o inquérito do tipo EF (Elocução Formal), número 049, do NURC/SSA.

O D2 é previsto como tomada de fala mais espontânea entre os Locutores em interação, reduzindo-se o papel discursivo do Documentador a eventuais participações, com o intuito de manutenção do diálogo que se desenvolve entre os Informantes. No entanto, no caso específico do D2 escolhido, a presença do Documentador, na ativação do evento interacional, é mais marcante, o que aproxima esse inquérito de uma situação típica de entrevista, característica de uma outra modalidade de material do NURC, o DID (Diálogo entre Informante e Documentador).

A própria natureza do papel discursivo do Documentador implica o desencadeamento de atos de fala centrados no fazer discursivo, uma vez que, enquanto alimentador de diálogo, o Documentador tem o discurso como objeto de sua fala. A ocorrência do metadiscurso é, portanto, uma constante nas intervenções do Documentador. No D2 sob análise, o aumento da freqüência do metadiscurso está em relação direta com as circunstâncias especiais de participação ativa do Documentador, aí verificada.

Este fato é visível no segmento abaixo, que recorta três momentos de manifestação do Documentador, seguido do turno de um dos Informantes.4 1 Embora concordemos com Gülich e Kotshi, no que dis respeito ao destaque do domínio particular de atuação do metadiscurso, nossa concepção integrativa de introjeção dos fatores pragmáticos na tessitura lingüística do texto distancia-nos de sua visão estratificada da estruturação textual em camadas, que leva os Autores a distinguirem entre um procedimento básico ( verbalização) e procedimentos adicionais de produção discursiva ( tratamento e qualificação).

Doc. com respeito ... ao telefone como eu digo eu gostaria que

o senhor colocasse o significado vamos dizer ... do

telefone para as comunicações ... em tese o senhor já

colocou ... mas eu gostaria que o senhor ... amiudasse

900 um pouco

(...)

945 Doc. então ... então agora nós ... vamos mexer aqui num

assunto que parece ser um pouco mais amplo ... o problema

da imprensa ... professor ... R. quer falar sobre a imprensa ou

dá a primazia aqui ao professor C.?

(...)

Doc. professor C. ... professor R. poderiam nos mencionar

vamos dizer na escala de:: ... — não sei se seria certo — de

valores ... os problemas de uma cidade:: ... de uma

1415 ciDAde comum ... ]

L1 (...)

1475 L2 é eu não teria muito que acrescentar ... o C. de certa

forma colocou muito bem o problema eu poderia só

complementar me referindo por exemplo a alguns

aspectos como a poluição ... que hoje em São Paulo se

torna insuportável né? e a poluição é reflexo exatamente

1480 dessa atitude individualista né? do homem de um modo

geral ... com seus condicionamentos a/ atuais né? eu até

costumo dar o exemplo né? o sujeito monta uma fábrica

na beira de um rio né? então ele não está muito

preocupado em saber se o resíduo da fábrica despejado no

1485 rio vai matar os peixes que estão dentro daquele rio ... ele

está preocupado que a fábrica produza e dê um lucro que

ele precisa daquele lucro et cetera quer dizer em primeiro

lugar ... entende? vêm as suas preocupações pessoais o

seu lucro ... entende? depois a comunidade

(...)

mas não é só em São Paulo ... eu acho que mesmo na

cidade pequena às vezes acontece isso quer dizer às vezes

a cidade é pequena o sujeito conhece o problema do outro

1515 mas também vive na dele como se diz na gíria né?

(D2-SP/255)5 5 A citação deste D2 é feita conforme transcrição publicada em Castilho e Preti (1987).

Os três lances de fala do Documentador acusam uma função preponderante de seu desempenho, que é a de sustentar a continuidade do ato comunicativo, pela freqüente proposição de tópicos a serem abordados pelos Locutores:

(1) com respeito ... ao telefone

(2) eu gostaria que o senhor colocasse o significado vamos dizer ... do telefone para as comunicações ...

(3) então ... então agora nós ... vamos mexer aqui num assunto que parece ser um pouco mais amplo ... o problema da imprensa ...

(4) professor C. ... professor R. poderiam nos mencionar vamos dizer na escala de:: ... - não sei se seria certo - de valores ... os problemas de uma cidade:: ... de uma ciDAde comum ...

Em todos os casos acima, observam-se prefaciadores metadiscursivos (em negrito) que conferem estatuto de tópico discursivo ao segmento subsequente, por eles escopado (sem negrito). A nomeação do tópico, assim desencadeada, ganha teor de metadiscurso, porque enquadra, no âmbito do discurso, os elementos referenciados, ao fazer deles pontos de centração do diálogo, em seu andamento. Estabelecidos desse modo como tópicos a serem focalizados, tais elementos escopam, por sua vez, toda a porção textual, de base cognitivo-informacional, concernente a eles. Configura-se, então, a referida ancoragem dos dados da estrutura informacional no contexto discursivo, traduzindo a estreita articulação entre os componentes ideacionais e os metadiscursivos, na elaboração textual-interativa.

A aferição da qualidade de tópico respalda-se na presença, no corpo dos segmentos metadiscursivos prefaciadores, de recursos tematizadores (com respeito, em (1) e de termos que designam atividades verbais (colocasse o significado, em (2); vamos mexer aqui num assunto, em (3); poderiam nos mencionar, em (4)). Essa designação das atividades verbais é essencial para o reconhecimento da auto-reflexividade do discurso, particularmente em situações interacionais no molde de entrevistas, como a do D2 em análise, onde as ações verbais nomeadas correspondem às atividades pressupostas no desempenho do papel discursivo dos entrevistados.

O conjunto de comentários sobre os fragmentos de (1) a (4) demonstra a dinamicidade da instauração do processo metadiscursivo, pela ação recíproca entre as partes constituintes desse processo e pela interdependência de várias funções: à atribuição de estatuto de tópico a um segmento discursivo relaciona-se a prévia nomeação do tópico, que, por sua vez, se sustenta em diferentes designações da ação verbal (falar acerca de), concernente com a noção de tópico.

Os procedimentos de topicalização, pontuando quadros de referências ao longo do diálogo, concretizam uma forma de intervenção do metadiscurso, que se refere ao discurso, enfocando a sua construção (cf. Borillo, 1985).

Na apresentação de tópicos, feita pelo Documentador, a nomeação de ações verbais pode vir acrescida de qualificações, que esclarecem as condições sob as quais a atividade verbal se realiza — o que lhes confere cunho metadiscursivo. É o que acontece no primeiro lance de fala do Documentador, no qual este insiste na continuidade de um tópico já em curso (telefone), precisando-lhe um aspecto (o significado do telefone para as comunicações), para, em seguida, qualificar a atividade do falante:

(5) ... em tese o senhor já colocou ... mas eu gostaria que o senhor ... amiudasse um pouco

No trecho acima transcrito, a expressão em tese mostra uma avaliação inicial que o Documentador faz do grau de extensão com que o assunto em pauta foi até então abordado pelo locutor. Na seqüência, o verbo amiudasse traduz a sugestão de particularização do tópico, concentrando em si a designação metafísica de uma ação declarativa e, simultaneamente, a qualificação dessa ação (falar detalhadamente).

Os recursos metadiscursivos destacados, associados a todo um conjunto de fatos lingüístico-argumentativos co-ocorrentes no contexto, denunciam o exercício de um controle polido, por parte do Documentador, sobre o comportamento verbal do locutor. Essa constatação mostra a metadiscursividade a serviço da configuração das relações interacionais.

No delineamento dessas relações, a representação da instância do locutor no texto pode realizar-se também metadiscursivamente. Isso se dá claramente no segmento (6), onde vemos o Documentador referir-se aos Informantes, enquanto sujeitos do discurso, a fim de gerir o diálogo, tendo em vista a seleção do locutor a quem deve ser delegado o turno subseqüente.

(6) ... professor ... R. quer falar sobre a imprensa ou dá primazia aqui ao professor C.?

Essa forma de administração do evento interacional acusa o envolvimento de mecanismos metadiscursivos, na referência ao discurso como fato enunciativo (Borillo, 1985). Já o fato que comentaremos a seguir enquadra-se em uma outra modalidade de referência ao discurso, vista por Borillo como explicitadora do código com base no qual o texto está sendo construído. Tal fato encontra-se na passagem (4), aqui retranscrita:

(4) professor C. ... poderiam nos mencionar vamos dizer na escala de:: ... - não sei se seria certo - de valores ... os problemas de uma cidade:: ... de uma ciDAde comum ...

Os incisos metadiscursivos assinalados projetam a preocupação com a formulação lingüística do texto, no que diz respeito ao processamento de seleções lexicais. O marcador vamos dizer e a frase parentética não sei se seria certo sinalizam, conjuntamente, o problema formulativo da pertinência dos signos escolhidos, para a adequada expressão do tópico discursivo, que o Documentador está submetendo aos Informantes. Segundo Silva (1995), sinalizadores metadiscursivos dessa natureza revelam uma estratégia pela qual o falante, ao anunciar ao ouvinte que uma dada formulação não é totalmente satisfatória, torna-o cúmplice da imprecisão verbal, diminuindo automaticamente sua própria responsabilidade por ela. Coloca-se, pois, em questão, o código em funcionamento numa situação efetiva de comunicação, e a eficácia de seu uso para a boa consecução dos objetivos interacionais.

Assim como o metadiscurso oferece pistas para a identificação e a caracterização do papel discursivo do Documentador, na mobilização das relações textuais-interativas, dados metadiscursivos importantes também ressaltam da materialidade lingüística do texto, na revelação das funções tipificadoras dos Informantes. O trecho do D2-SP/255, sob análise, registra o turno de um dos Informantes (L2), que se situa após a fala de L1 (não transcrita). Ambos discorrem sobre o mesmo tópico, principais problemas de uma cidade comum, introduzido pelo Documentador.

A fala de L2 comporta traços metadiscursivos que, ao mesmo tempo que nomeiam a atividade verbal peculiar à função de falar sobre o tema proposto, característica do papel do entrevistado, definem L2 como locutor subseqüente a L1:

(7) é eu não teria muito que acrescentar ... o C. de certa forma colocou muito bem o problema eu poderia só complementar me referindo por exemplo a alguns aspectos como poluição ...

Além de qualificarem a fala de L2 como sucedânea à de L1, os verbos acrescentar e complementar materializam no texto a parceria no desenvolvimento do tópico, pondo em evidência uma interação centrada (Goffman, 1976). Observa-se, com efeito, que L2 tem por parâmetro o desempenho de seu interlocutor, que é positivamente avaliado: o C. de certa forma colocou muito bem o problema. Trata-se de mais uma frase de cunho metadiscursivo, por tomar o discurso do interlocutor como objeto de consideração e comentário.

Alavancada na fala de L1, a de L2 faz o tópico progredir, mediante uma operação exemplificadora, veiculada pelo marcador metadiscursivo por exemplo, prototípico dessa operação. É por essa via que se dá a entrada do subtópico poluição como reflexo de atitudes individualistas, concretizador da exposição anteriormente feita pelo parceiro, sobre o individualismo em cidades grandes.

A estruturação interna desse subtópico compreende uma introdução, em que se coloca a tese, e um desenvolvimento, por meio de um procedimento de exemplificação, nitidamente marcado pela frase operadora da metadiscursividade eu até costumo dar o exemplo né? (l. 1481-1482). Essa frase classifica o seu escopo (de o sujeito a et cetera - l. 1482 a 1487) na categoria discursiva de exemplo, preenchendo a função, apontada pôr Borillo, de por em relevo aspectos da construção do texto. No esquema de composição do texto, a referida frase atua ainda como fator de coesão, na medida em que articula a introdução e o desenvolvimento do subtópico, conjugando a tese e o argumento comprovador.

Se, na situação acima, a frase metadiscursiva funciona relativamente a seqüências estruturais do tópico, nos contextos em que o metadiscurso destaca o código como objeto, são pontualizadas unidades menores, como em (8):

(8) às vezes a cidade é pequena o sujeito conhece o problema do outro mas também "vive na dele" como se diz na gíria né?

O enunciado metadiscursivo como se diz na gíria escopa a expressão vive na dele, contextualizando-a em um subcódigo especial — o da linguagem gíria. Dessa sinalização de mudança de registro, infere-se a preocupação do Informante em preservar-se de reações desfavoráveis ao seu desempenho de falante culto da língua, evitando, assim, a tipificação negativa de sua formulação. Essa visível estratégia de preservação de face reflete o jogo das relações interpessoais em um evento comunicativo de língua falada. Com procedimentos dessa ordem, o Informante do NURC deixa entrever a consciência que tem do desempenho verbal dele esperado, nessa situação particular de coleta de dados de norma culta.

Passando, agora, ao segundo trecho recortado para análise, relembramos que o critério para a sua escolha recaiu no fato de que, nele, não há a mediação de um Documentador. Este trecho é extraído de um inquérito do tipo EF (Elocução Formal), que registra uma situação de comunicação diferenciada da do D2. Aqui, como dissemos, o Informante toma a iniciativa da fala, discorrendo sobre um tema pré-estabelecido, em contexto de sala de aula. No papel de professor, domina quase exclusivamente o turno, exercendo sua ação verbal numa situação marcadamente didática.

Os reflexos dessas condições comunicativas se fazem notar na elaboração textual, com predominância da estrtutura ideacional do discurso sobre a interpessoal, e com maior projeção da organização global da informação em tópicos discursivos. Essas características propiciam o surgimento do metadiscurso, pontuando o texto, com referências à sua macroestrutura e à montagem das partes internas de sua composição. Na perspectiva de Borillo, o discurso torna-se auto-reflexivo, nesses casos, exatamente porque tem por foco a construção do texto.

A aula analisada, sobre região mamária e mediastínica, é bipartida nesses dois supertópicos, que se sucedem linearmente, sem interposições de um sobre outro. A demarcação desses supertópicos vem sob forma das frases metadiscursivas (9) e (10), nas quais, respectivamente, se dá o fechamento do primeiro tópico e a abertura do segundo.

(9) então ... eu acho que nada mais nós temos

a falar sobre a glândula ...6 5 A citação deste D2 é feita conforme transcrição publicada em Castilho e Preti (1987).

(10) ... agora nós vamos passar para o nosso outro assunto ... o outro assunto ... é a região metadiastínica ... então nós vamos começar a nossa região mediastínica ...

Circunscrevendo nossa análise à tessitura do primeiro supertópico, observamos que a sua explanação é precedida de uma passagem essencialmente metadiscursiva, de nomeação e enumeração dos subtópicos correspondentes aos passos de progressão textual. Se a nomeação representa a subdivisão do assunto (cf. a metadiscursividade do vocábulo item neste contexto), a enumeração define a sua seqüencialidade (cf. a sucessão dos numerais ordinais):

(11) Então é como eu tinha dito à você ... quarto item ... é a forma ... quinto ... dimensões ... infância ... puberdade ... etc ... sexto item ... nós temos a:: ... exploração .. exploração aqui vale a dizer é exame .. sétimo ... nós temos os planos cons::titutivos ... sexto ... exploração ... exploração é o exame ... feito na glândula ... nos planos constitutivos ... nós temos a pele ... temos o tecido subcutâneo ... e a camada ... retro ... mamária ... com a sua definição ... ligamento ... (especial) da mama ... oitavo ... nós temos os vasos ... e nervos ... nono ... é ... e as veias7 5 A citação deste D2 é feita conforme transcrição publicada em Castilho e Preti (1987).

A abertura da explanação propriamente dita do supertópico, que se dá logo após o trecho acima, é também marcada por prefaciadores metadiscursivos:

(12) ... bom ... então vamos ... já copiaram o que escreveu ... bom ... vamos começar ... região mamária :: ... ora nós definimos como sendo região mamária ... a região ocupada pela glândula mamária ...

As formas grifadas em (12), ao anunciarem o início iminente do tópico, funcionam como pistas indicativas de relações estruturadoras do texto. Nessa função, elas se encadeiam em uma ordem que acusa diferentes graus de transparência semântica, na referência à introdução do tema: de um marcador tipicamente estereotipado para a pontuação de abertura tópica (bom), o discurso passa a outro marcador menos cristalizado (então vamos), caminhando para uma perífrase verbal, totalmente transparente na tradução de um passo introdutor (vamos começar), até chegar ao recurso de topicalização (região mamária), que conjuga a sinalização da abertura com a denominação explicitadora do tópico. A complementaridade entre esses mecanismos metadiscursivos promove um processo de abertura enfática do supertópico. A entrada na exposição se dá logo depois, na passagem em análise, pelo padrão de uma formulação definidora, que se constitui como uma categoria clássica, em situações didáticas, para o começo de exposições.

O desenvolvimento do tópico assim introduzido obedece rigoraosamente à itemização do assunto, na ordem em que ela foi enumerada no prólogo da aula. O anúncio de cada etapa nova, na progressão do tópico, é sempre assinalado pelo procedimento metadiscursivo da topicalização, expresso por estruturas rotuladoras de cada campo de centração, que incorporam (13 a 16) ou não (17) locuções adverbiais de apresentação do assunto. Transcrevemos, abaixo, alguns recortes ilustrativos:

(13) quanto aos/ao número ... as mamas são em número de duas...

(14) quanto à forma ... quanto à forma ... a glândula mamária ... como vocês estão vendo ... ela representa a forma de uma semiesfera ...

(15) quanto às dimensões ... quanto às dimensões ... nós vamos notar que ... na mulher existem fases ..: em que ... as glàndulas mamárias aumentam consideravelmente de tamanho ...

(16) quanto à exploração ... a exploração é mais do ponto de vista clínico pra vocês terem uma idéia ... é um exame que se faz ...

(17) planos constitutivos ... então nós vamos encontrar/ver ... em planos constitutivos ... quais são os elementos que constituem a glândula mamária ...

Esses demarcadores metadiscursivos do esquema de organização do texto são índices de planejamento prévio, que costuma caracterizar as Elocuções Formais do NURC. A insistência com que são usados faz parte de procedimentos didáticos, que perseguem objetivos de clareza e inteligibilidade.

Por isso mesmo, esses elementos de informação pragmática (Fraser, 1990) ganham especial importância na configuração das relações textuais-interativas. O processo de designação do discurso, instanciando momentos de composição textual, tem um significativo alcance interacional, por facilitar o trabalho de formulação e apresentação dos tópicos, e , conseqüentemente, de recepção do texto como um todo.

A grande incidência do pragmático no texto evidencia-se particularmente quando procedimentos metadiscursivos contemplam o evento interacional em si próprio. Esse fato é observado no enunciado abaixo, pelo qual se fecha o contato da professora com os alunos, encerrando-se a aula:

(18) bom ... é só isso que eu tenho a dizer ... a vocês ...

*

* *

Os diferentes tipos de enunciados destacados na análise põem em relevo a propriedade básica da auto-reflexividade, pela qual o metadiscurso faz referência explícita ao discurso em que se inscreve.

Os aspectos particularizadores da focalização da atividade discursiva puderam ressaltar a funcionalidade do metadiscurso no processamento do texto falado, explicitando uma variada ordem de fatores de composição textual, engendrados na dinâmica da interação verbal.

Em consonância com a perspectiva teórica segundo a qual a linguagem é uma atividade verbal contextualizada em um conjunto complexo de circunstâncias enunciativas, a análise demonstrou também que as funções metadiscursivas correlacionam-se com os papéis discursivos que os locutores assumem, relativamente à natureza do ato comunicativo que protagonizam.

2 A observação aqui feita levanta a questão das correlações entre posição e função dos operadores metadiscursivos, como possível campo de investigação.

3 Essa constatação suscita uma frente de pesquisa que correlacione a pluralidade sinalizadora com a multifuncionalidade metadiscursiva. Um ponto a ser examinado seria a possível ligação entre determinadas funções e mecanismos sinalizadores específicos para indicá-las.

4 A análise do corpus não contemplará todas as ocorrências de metadiscurso, mas ressaltará as mais representativas das funções destacadas em cada ponto deste artigo.

6 As citações deste EF são feitas de acordo com transcrição apresentada em mimeo, pela equipe do NURC/SSA.

7 Não apresentamos integralmente a passagem, porque não dispomos da gravação e transcrição da parte inicial da aula.

  • BORILLO, A. (1985) Discours ou Metadiscours? DRLAV, 32.
  • CASTILHO, A. T. & D. PRETTI (Orgs.) (1987) A Linguagem Falada Culta na Cidade de Săo Paulo: materiais para seu estudo v. II - Diálogos entre dois Informantes. Săo Paulo: T. A. Queiroz/FAPESP.
  • FRASER, B. (1990) An Approach to Discourse Markers. Journal of Pragmatics, 114, North Holland.
  • GOFFMAN, E. (1976) Replies and Responses. Language in Society, 5.
  • GÜLICH, E. & T. KOTSCHI (1995) Discourse Production in Oral Communication. In: U.M. QUASTHOFF - Aspects of Oral Communication Berlim: Walter de Gruyter.
  • JAKOBSON, R. (1969) Lingüística e Comunicaçăo Săo Paulo: Cultrix/EDUSP.
  • SILVA, G. M. de O. e (1995) Anatomia e Fisiologia dos Marcadores Discursivos Năo-Prototípicos Rio de Janeiro: mimeo.
  • 1
    Embora concordemos com Gülich e Kotshi, no que dis respeito ao destaque do domínio particular de atuação do metadiscurso, nossa concepção integrativa de introjeção dos fatores pragmáticos na tessitura lingüística do texto distancia-nos de sua visão estratificada da estruturação textual em camadas, que leva os Autores a distinguirem entre um procedimento básico (
    verbalização) e procedimentos adicionais de produção discursiva (
    tratamento e qualificação).
  • 5
    A citação deste D2 é feita conforme transcrição publicada em Castilho e Preti (1987).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      1998
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