Acessibilidade / Reportar erro

Sobre a forma do particípio do português e o estatuto dos traços formais

On the form of portuguese past participle and the status of formal features

Resumos

Este trabalho mostra que o português tem três tipos de formação de particípio passado, que compartilham a presença da seqüência [Vacentuada + C + V] e diferem a respeito de sua localização dentro da palavra: (A) [[...]Radical + [Vacentuada+ C + V]], para todas as conjugações, (B) [[...Vacentuada... + C]Radical + V], para 1ª conjugação, e (C) [[...Vacentuada...]Radical + C + V], para 2ª e 3ª conjugações. A proposta específica do trabalho é que há uma estrutura abstrata de traços formais subjacente tanto à forma morfofonológica quanto à interpretação semântica gramatical: aquelas formações resultam de a interpretação de particípio ser satisfeita nessas três localizações. Essa análise é uma extensão da proposta de Chomsky (1995) sobre traços formais.

Particípio passado do português; Particípios duplos; Morfofonologia; Traços formais


This paper shows that Portuguese has three types of past participle formations, which share the presence of the string [stressedV + C + V] and differ with respect to its location within the word: (A) [[...]Root + [stressedV + C + V]], for all conjugations, (B) [[...stressedV...+ C]Root + V], for 1st conjugation, and (C) [[...stressed V...]Root + C + V], for 2nd and 3rd conjugations. The specific proposal of the paper is that there is an abstract structure of formal features underlying both the morphophonological form and grammatical semantic interpretation: those formations result from the participial interpretation being met at these three locations. This analysis is an extension of Chomsky's (1995) proposal about formal features.

Portuguese past participle; Double participles; Morphophonology; Formal features


Sobre a Forma do Particípio do Português e o Estatuto dos Traços Formais.* * Dedico este trabalho à memória do grande lingüista brasileiro Manuel Said Ali, que nunca cheguei a conhecer, mas cuja obra não canso de admirar. Agradeço a Mary Angotti, Rozana Naves, Cilene Rodrigues, Clóvis Santos e Eduardo Tuffani pelos valiosos comentários à primeiras versões e a Evanildo Bechara, Janete Garcia, Marta Scherre e John Schmitz pela ajuda bibligráfica. As observações de S. H. Lee e de dois pareceristas anônimos sobre a versão anterior a esta foram muito importantes a respeito de questões específicas.

(On the Form of Portuguese Past Participle and the Status of Formal Features)

Lucia LOBATO

(Universidade de Brasília)

ABSTRACT: This paper shows that Portuguese has three types of past participle formations, which share the presence of the string [stressedV + C + V] and differ with respect to its location within the word: (A) [[...]Root + [stressedV + C + V]], for all conjugations, (B) [[...stressedV...+ C]Root + V], for 1st conjugation, and (C) [[...stressed V...]Root + C + V], for 2nd and 3rd conjugations. The specific proposal of the paper is that there is an abstract structure of formal features underlying both the morphophonological form and grammatical semantic interpretation: those formations result from the participial interpretation being met at these three locations. This analysis is an extension of Chomsky's (1995) proposal about formal features.

RESUMO: Este trabalho mostra que o português tem três tipos de formação de particípio passado, que compartilham a presença da seqüência [Vacentuada + C + V] e diferem a respeito de sua localização dentro da palavra: (A) [[...]Radical + [Vacentuada+ C + V]], para todas as conjugações, (B) [[...Vacentuada... + C]Radical + V], para 1ª conjugação, e (C) [[...Vacentuada...]Radical + C + V], para 2ª e 3ª conjugações. A proposta específica do trabalho é que há uma estrutura abstrata de traços formais subjacente tanto à forma morfofonológica quanto à interpretação semântica gramatical: aquelas formações resultam de a interpretação de particípio ser satisfeita nessas três localizações. Essa análise é uma extensão da proposta de Chomsky (1995) sobre traços formais.

KEY WORDS: Portuguese past participle; Double participles; Morphophonology; Formal features.

PALAVRAS-CHAVE: Particípio passado do português; Particípios duplos; Morfofonologia; Traços formais.

0. Introdução

Na morfologia verbal do português, um fato interessante chama a atenção e se mantém inexplicado: a existência, para o mesmo verbo, de duas formas de particípio passado — uma dita regular, com uso de vogal temática verbal, a qual é portadora do acento tônico, daí ser essa forma arrizotônica, e a outra dita irregular, sem uso de vogal temática verbal e com acento sobre o radical, sendo essa forma então rizotônica —, como em expulsado/expulso, pegado/pego. À primeira vista poderia parecer que as formas irregulares são reduções das regulares. Essa hipótese já foi descartada por Said Ali (1919/1966), em seu excelente estudo da questão.1 1 O texto de Dificuldades da Lingua Portuguesa passou a incluir o capítulo sobre particípios duplos a partir da 2ª edição, de 1919. As citações neste artigo são de trechos das páginas 126-129 da 6ª edição, de 1966, e atualizam a ortografia. Said Ali observa que as formas irregulares não são "desvios ulteriores de processos gerais preestabelecidos" e aponta evidências empíricas nesse sentido. Uma é o fato de, em termos diacrônicos, qualquer uma das duas formas poder, em princípio, preceder a outra. Às vezes, de fato, a forma regular é mais antiga, e a irregular mais recente, como parece ser o caso de elegido/eleito. Mas, outras vezes, a forma regular é na verdade a mais recente das duas. Cita exemplos desse tipo em que o particípio irregular "ficou desalojado": absolvido/absoluto, cingido/cinto, despendido/despeso, defendido/defeso, dividido/diviso, resolvido/resoluto. Em outros casos ainda, a forma regular é antiga na língua e de uso corrente até hoje, e não há registro da forma alatinada: "Movido, metido e metudo, recebido e recebudo, vencido e vençudo, vivido, mencionam-se a miúdo nas crônicas e nos primeiros documentos; porém em nenhuma parte se encontram vestígios do uso de particípios correspondentes às formas latinas motum, missum, receptum, victum." Outra evidência é o fato de haver casos em que, como ele diz, "não se descobre como poderia ela [a forma irregular] ter provindo da forma regular mais extensa. A maior parte das vezes, pelo contrário, é vocábulo que precedeu à criação do verbo e se incorporou à sua conjugação." E ilustra: "Assim observamos junto do particípio normal entregado o concorrente terrível entregue. Já o seu aspecto externo nos surpreende. Excetuada a palavra livre — um adjetivo que também faz de particípio — não sabemos de outro exemplo de forma participial em -e em todo o português literário desde o seu começo até o fim da era seiscentista, e ainda mais tarde." Said Ali aceita então que tenha se formado primeiro o adjetivo entregue (em sintaxe do tipo ser entregue de alguma cousa), e a partir dele o verbo entregar, passando o adjetivo em seguida a ter função também de particípio. Sobre pago diz: "O latim só legou pacatum às línguas românicas, e o particípio pago é privativo do português. Supô-lo nascido da forma mais extensa seria hipótese gratuita, contrária às leis fonéticas."2 2 Camara (1972: 138-139, 1979: 160-161) esclarece que existem dois tipos de processos históricos de formação de particípio rizotônico no português: (1) persistência no português de particípios já existentes em latim clássico e latim vulgar, ou estabelecidos no latim vulgar ( dito, escrito, vindo, etc.), (2) formações novas no português. Distingue três tipos de processos de formações novas: (i) Formação a partir de adjetivo proveniente de particípio latino e que "foi novamente associado ao verbo respectivo ( preso, para prender; aceso, para acender; extinto, para extinguir), ou foi associado a um verbo derivado daquele de que era o particípio ( aceito , verbo accipere, para aceitar; expresso, verbo exprimere, port. exprimir, para expressar; expulso, verbo expellere, port. expelir, para expulsar)." (ii) Uso como particípio de um adjetivo cognato ( livre, para livrar; limpo, para limpar)." (iii) Finalmente, "criação de novos particípios desse tipo, pelo mecanismo de acrescentar ao radical verbal a vogal de um tema nominal em -o ou mesmo em -e ( pago, para pagar; ganho, para ganhar; gasto, para gastar; entregue, para entregar)." Acrescenta que a formação de particípios rizotônicos é "mecanismo dinâmico que tende a se expandir". Além de produtivas, essas formações rizotônicas obedecem a um padrão bem regular de formação, como tentaremos mostrar neste artigo. Dado isso, seria mais apropriado evitar chamá-las de irregulares, se bem que, por razões de estilo e simplicidade, às vezes assim as denominaremos. Camara (1970: Capítulo XIV) já havia explicitado que para os "verbos ditos `irregulares'" há "uma padronização também" e optou pelo uso das expressões "padrão geral" e "padrão especial" para referência às formações regulares e irregulares, respectivamente. Evidentemente, se não há relação derivacional entre as duas formas de particípio que um mesmo radical verbal gera, tem de estar havendo algum processo mais abstrato que leva à produção das duas.

Neste trabalho faremos um breve exame dos particípios portugueses, tentando contribuir para o entendimento da questão da sua forma. No entanto, estenderemos nossa atenção aos verbos que geram particípios únicos. Dada a limitação do escopo do trabalho à configuração morfofonológica, não nos deteremos na questão da categoria gramatical — um ponto sobre o qual muito se escreveu nos últimos anos.3 3 A respeito do português, V. Azevedo (1974, 1975), Arruda (1978), Casteleiro (1981), Lemle (1984), Pimenta-Bueno (1986), Schmitz (1984, 1989), Gamarski (1996), Gouvea (1996) e Pires (1996). Em virtude dessa exclusão, e por uma questão de simplicidade, examinaremos somente particípios que têm uso verbal, e formas não-verbais só serão citadas en passant. Com isso, estaremos também deixando de lado, neste momento, as questões argumental e aspectual.4 4 A questão argumental cruza a questão categorial, e tem a ver com os argumentos selecionados pelo item. Sobre a questão aspectual das formas -DO do português, conhecemos somente Schmitt (1996), que, no entanto, se dedica às ocorrências adjetivais dessas formas. Duas outras questões importantes que têm chamado a atenção dos estudiosos ficarão igualmente fora do escopo deste trabalho: a questão da variação entre as duas formas de particípio para um mesmo verbo e a questão da produtividade das formações rizotônicas.5 5 Barbosa (1993: 51) afirma que "a variação real é muito restrita, pois ela só existe entre os itens ganhado/ganho". Efetivamente, os candidatos a variantes são muito limitados, pois se restringem aos pares em que a forma rizotônica é usada em amplos contextos, incluindo ocorrência com ter, ser e estar, como acontece com aceito, entregue, ganho, gasto, pago e pego. Também ocorre variação regional. Rodrigues (c.p.) informou-nos sobre o uso normal das formas abrido (V) e escrivido (V, A) em Minas Gerais, região de Matutina, São Gotardo e Tiros (Triângulo Mineiro), onde a forma aberto também existe, mas como forma adjetival ( porta aberta `open door'). Segundo ela, essa variedade da língua foi influenciada pela variedade do português falada na Ilha da Madeira, e tem a propriedade de usar o b pelo v em formas como bassoura e trabesseiro. A variação também se dá em termos diacrônicos. Existem verbos que só têm a forma rizotônica atualmente, mas que tiveram ambas no português arcaico, como mostra Said Ali com o exemplo escrevido. Em outros casos foi a forma rizotônica que se perdeu, como ilustra esse autor: a língua conheceu assolto e ausoluto, como particípios de absolver, mas hoje somente se usa absolvido. Além disso, a maioria das formas rizotônicas é criação nova do português, como afirma Camara (1972, 1979) (V. N. 2).A produtividade do processo de formação rizotônica é confirmada pela criação espontânea, na língua oral, de formas novas de particípio, que, no entanto, causam riso. Barbosa (1993) cita chego, espalho, perco, prego, trago, que formam pares com chegado, espalhado, perdido, pregado, trazido. Mary Angotti (c.p.) atestou o par compro/comprado ("A diretora tinha compro os carimbos e não chegou até hoje."). Essas formas não têm apresentado flexão, em virtude de até agora só terem ocorrido em contextos com ter/haver. A questão da variação (em termos sincrônicos e diacrônicos) entre as duas formas de particípio para um mesmo verbo e da produtividade da formação rizotônica se entrecortam. Pode-se presumir que a variação sincrônica no âmbito de uma dada variedade da língua é uma etapa num processo maior de mudança. Essa idéia é favorecida pela intuição de que não existem sinônimos perfeitos. A produtividade da formação rizotônica seria decorrência desse processo de mudança. A respeito do fenômeno de variação morfossintática, V. Kroch (1994). Nosso objetivo será bem preciso. Primeiramente, aceitando a conclusão de Said Ali de que os particípios regulares e irregulares têm formações independentes, não ocorrendo derivação de um a partir do outro em qualquer nível que seja, nos perguntaremos o que determina a realização morfológica do particípio português como arrizotônico e/ou rizotônico. A partir daí todo o artigo se voltará para a tentativa de encontrar evidências indicadoras (i) da existência de caráter determinístico relativo na realização morfológica do particípio português e (ii) da existência de informações subjacentes levadas em conta pela língua nessa realização morfológica. A proposta do artigo é que essas informações subjacentes correspondem a uma certa configuração estrutural dos elementos de base construtores de estruturas (no sentido amplo da palavra, abrangendo construção morfológica e sintática) — os traços formais. Esses traços são `formais' em oposição aos traços semânticos e fonéticos, como [Humano] e [Nasal], que são traços `substantivos' (cf. Chomsky (1995, 1988)). Chomsky caracteriza os traços formais como capazes de provocar operações computacionais. Se a argumentação deste artigo estiver correta, esses traços têm efeito não somente nas operações sintáticas, mas também na produção da própria forma fonético-fonológica dos itens lexicais. A argumentação vai se restringir à defesa da existência daquelas informações, sem procurar identificá-las precisamente.

1. Generalidades distribucionais da forma dos particípios portugueses

1.1. Relação radical / forma do particípio

Os verbos do português que formam particípio se distribuem em três classes, quanto a essa formação: (i) verbos para os quais só existe a forma arrizotônica: aborrecer: aborrecido, amar: amado, cantar: cantado, formar: formado, ler: lido, preocupar: preocupado, sair: saído, ser: sido, sorrir: sorrido, ...; (ii) verbos para os quais só existe a forma rizotônica: dizer: dito, escrever: escrito, abrir: aberto, vir: vindo, ...; (iii) verbos para os quais existem ambas as formas: aceitar: aceitado/aceito, despertar: despertado/desperto, envolver: envolvido/ envolto, prender: prendido/preso, ...6 6 Há uma grande generalidade na formação de particípios no português, em relação ao conjunto total de verbos da língua: mesmo os verbos defectivos em sua maioria apresentam forma participial, que no caso (i) é sempre a arrizotônica, ou regular, para os defectivos que não possuem as flexões em que o acento cairia no radical e só se conjugam nas formas arrizotônicas, tais como aguerrir, combalir, delinqüir, empedernir, falir, punir, remir, etc., e (ii) pode ser só a regular ou ambas, para os defectivos que possuem flexões rizotônicas e arrizotônicas (como os defectivos que só não possuem a primeira pessoa do singular do presente do indicativo e formas dela derivadas — presente do subjuntivo, imperativo negativo e terceira pessoa singular e plural e primeira do plural do imperativo afirmativo), tais como abolir, aturdir, banir, brandir, carpir, demolir, emergir, exaurir, imergir, ungi r, etc. Cunha (1976: 426) aponta " concernir , esplender e alguns mais" como verbos "desusados no particípio". A nosso ver, concernido é forma normal (cf. Essa questão não teria me concernido, se a situação tivesse sido outra.). Almeida (1997, § 463.7) cita prazer. Já os derivados deste ( aprazer, comprazer, desprazer, ...) se conjugam regularmente (cf. Almeida e também Bechara (1963: 178)). Não estamos considerando neste artigo os verbos sem particípio. No entanto, seu estudo é crucial para o entendimento da questão dos traços formais: pelo menos para alguns desses verbos, a razão da lacuna poderia ser a inexistência, na configuração subjacente de traços formais projetada pelo radical, de propriedade essencial à realização de particípio. Evidentemente, se o português distingue essas três classes de verbos quanto à formação dos particípios, é porque assim tem de fazer — afinal, trata-se de um processo natural na língua, sobre o qual os falantes/ouvintes nada decidem.7 7 Apesar disso, o uso da forma arrizotônica para verbos analisados pela tradição gramatical como só aceitando a forma rizotônica é corriqueiro em crianças pequenas e às vezes até em adultos ( fazido, em vez de feito, por exemplo). Além disso, ocorre variação, como já mencionado (cf. N. 5). Em outras palavras, se as coisas assim acontecem, há razões subjacentes para tal. Isso nos leva a indagar sobre o tipo de informação que a língua leva em conta e que explica essas distinções:

(1) O que determina a realização morfológica do particípio português como arrizotônico e/ou rizotônico?

Dado que os radicais verbais são diferentes para cada classe, de imediato podemos concluir que há algum tipo de informação no próprio radical verbal que é levado em conta. Parece que, realmente, é o radical, e não o tema, o elemento determinante da formação participial, uma vez que as três conjugações formam particípios duplos; cf.: ganhar (ganhado/ganho), pegar (pegado/pego); morrer (morrido/morto), suspender (suspendido/ suspenso); excluir (excluído/excluso), imprimir (imprimido/impresso). No entanto, quanto ao acento, já se sabe (V. Bisol (1992, 1994), Lee (1994), Cagliari (1994), Massini-Cagliari (1992)) que a informação pertinente não pode estar restrita ao radical, uma vez que o acento primário leva em consideração a palavra morfológica como um todo, e não somente o radical. A questão do acento é por demais complexa para ser tratada aqui, e somente observaremos que há um cruzamento, ainda a ser compreendido, entre essa questão do acento nos particípios e a questão da forma participial.8 8 Tratamos da questão do acento nos particípios em Lobato (1998a), preparado posteriormente a este artigo. De qualquer modo, dado o caráter determinista da relação radical / forma do particípio, essa informação no radical verbal é não só pertinente para a formação do particípio, mas também determinante. A questão (1) pode, então, ser expressa mais especificamente e ao mesmo tempo sem referência ao acento:

(2) Que tipo de informação presente no radical verbal determina a realização morfológica do particípio português?

1.2. Regularidades fonológicas na formação de particípio

Existem regularidades distribucionais na ocorrência das formas de particípio do português que parecem apontar para a existência de informações abstratas precisas, subjacentes à realização morfológica. Consideremos algumas.

1.2.1. Relação Vogal Temática / Formação de Particípio

Apesar de termos concluído que é o radical, e não o tema, que contém a informação determinante para a forma do particípio português, os dados mostram que existem alguns padrões na derivação dessas formas relacionados com a vogal temática. Um deles diz respeito à formação de particípios rizotônicos únicos. Como expresso em (3) e ilustrado em (4), um verbo de primeira conjugação nunca pode formar particípio rizotônico, exclusivamente, apesar de poder formar arrizotônico único, como em (5):

(3) Verbos de 1ª conjugação necessariamente formam particípio arrizotônico.

(4) Particípios rizotônicos únicos:

a. 1ª conjugação: _____;

b. 2ª conjugação: dizer (dito), ver (visto), ... ;

c. 3ª conjugação: abrir (aberto), vir (vindo), ... .

(5) Particípios arrizotônicos únicos:

a. 1ª conjugação: cantar (cantado), falar (falado), ...;

b. 2ª conjugação: ler (lido), perceber (percebido), ...;

c. 3ª conjugação: medir (medido), pedir (pedido), ... .

Como verbos de primeira conjugação também projetam particípios duplos, parece que a pertinência à primeira conjugação não impede a formação de particípio rizotônico, mas força a possibilidade de formação de particípio arrizotônico. Isso, até o momento, parece um completo mistério:

(6) Por que todo radical que no infinitivo se associa à vogal temática verbal -a leva à derivação necessária da forma arrizotônica de particípio?

Evidentemente, não tem nenhum valor explicativo dizer que essa vogal é a produtiva em português, e portanto geradora de formas arrizotônicas. Na perspectiva que estamos adotando, a questão se coloca diferentemente: se os radicais que se associam a essa vogal têm de gerar a forma arrizotônica de particípio, é porque eles são portadores de algum tipo de informação abstrata que provoca essa situação. Tampouco seria explicativo responder que a presença da vogal temática verbal -a acarreta geração da forma arrizotônica porque toda vogal temática verbal de particípio é acentuada no português: esta resposta simplesmente levaria a uma nova pergunta:9 9 Segundo a análise de Camara (1972:122) existem dois casos de vogal temática verbal não-tônica no português: (i) o das formas de segunda pessoa singular e terceira singular e plural do presente do indicativo — am-a-s, am-a, am-a-m —, e segunda do singular do imperativo — am-a —, em que essas vogais são átonas, e (ii) o das formas do futuro do presente e do pretérito, do indicativo — am-a-rei, am-a-ria, ... —, em que são pretônicas. Numa perspectiva como a nossa, em que a forma fonética da palavra resulta da ida para a interface forma fonética (PF) de uma certa estrutura subjacente de traços, esses casos de não-acentuação da vogal temática teriam de receber uma explicação em termos desses mesmos traços. Enfim, não se trata, na verdade, de exceção. Simplesmente, nesses dois casos estaria sendo projetada uma estrutura subjacente de traços que levaria a esse tipo de projeção do acento.

(7) Por que as vogais temáticas verbais dos particípios têm sempre de ser portadoras de acento em português?

Observe-se que a exigência de que a vogal temática do particípio seja portadora do acento não é um universal: o latim clássico, por exemplo, licencia formas de particípio perfectivo com vogal temática não-acentuada . Por outro lado, o fato de só verbos de segunda e terceira conjugações poderem formar particípios rizotônicos únicos leva a concluir que há algum tipo de relação entre as vogais temáticas -e, -i e esse tipo de formação, de onde a indagação:

(8) Por que todo verbo que forma particípio rizotônico único projeta as vogais temáticas -e ou -i no infinitivo?

Dado o caráter automático dessa relação, ela tem de estar sendo causada por alguma propriedade abstrata bem precisa.

Um outro padrão relativo à ocorrência da vogal temática nos particípios é a perda sistemática da distinção entre vogal temática de segunda e terceira conjugações nesses itens, tendo-se o quadro em (9):10 10 Obviamente, uma explicação definitiva para a questão daria automaticamente uma explicação também para a mudança quanto ao uso da vogal temática e do acento ocorrida do latim para o português. Wohlmuth (1978) fornece subsídios importantes nessa direção. Em Lobato (1998a,b) apontamos algumas regularidades dessa mudança com relação ao acento.

(9) a. 2ª Conjugação: Infinitivo: Radical -er; Particípio: Radical -ido,

b. 3ª Conjugação: Infinitivo: Radical -ir; Particípio: Radical -ido.

Dada a total regularidade dessa formação e dado o fato de que não há nenhuma restrição do português à ocorrência de e imediatamente antes de d (cf: como parte do radical:11 11 Por uma questão de simplicidade, optamos, quando possível, por usar a forma ortográfica dos segmentos. Substantivos: dedo, medo; Adjetivo: ledo (ledo engano); Verbos: cedo, fedo; Advérbio: cedo; como afixo nominal: arvoredo, vinhedo, passaredo), o não-licenciamento do segmento -edo e obrigatoriedade do segmento -ido para os particípios de segunda conjugação só podem decorrer de alguma propriedade subjacente. A pergunta a que se chega então é:

(10) Por que todo radical verbal que no infinitivo se associa à vogal temática verbal -e rejeita essa vogal na adjacência à esquerda do sufixo participial -do, quando passa a exigir a vogal -i?

Evidentemente, a restrição diz respeito à manifestação da interpretação semântica de particípio passado verbal.

Um terceiro padrão diz respeito à não-realização de vogal temática verbal nas formas rizotônicas, em oposição à sua realização nas formas arrizotônicas, com uma cisão adicional, para as formas rizotônicas, entre primeira conjugação, de um lado, e segunda e terceira, de outro: para a primeira conjugação na grande maioria dos casos deixa-se o radical intacto — e não se realiza nem a vogal temática verbal nem a consoante d (aceitar: aceit(ad)o; despertar: despert(ad)o; expressar: express(ad)o; expulsar: expuls(ad)o; ganhar: ganh(ad)o; gastar: gast(ad)o, etc.) —, ao passo que para as segunda e terceira conjugações a norma é a alteração na forma do radical (imprimir: imprimido/impresso, suspender: suspendido/suspenso, etc.) (cf. Subseção 1.2.3. para as `exceções' a ambas as generalizações). Surgem então as perguntas:

(11) Por que certas formas de particípio podem dispensar o uso de vogal temática, mantendo basicamente o significado de particípio?

(12) Por que o processo de formação rizotônica de 1ª conjugação em geral deixa o radical intacto e o de 2º e 3ª em geral o altera?

Finalmente, um quarto tipo de padrão diz respeito à colocação do acento: independentemente de conjugação, nos particípios regulares, em que se tem vogal temática verbal, o acento cai sempre sobre esse elemento, daí as formas serem arrizotônicas, ao passo que nos irregulares, em que não se tem vogal temática verbal, o acento cai sempre sobre o radical, dai as formas serem rizotônicas (cf.: aceitado/aceito, pagado/pago). Dizer que as formas rizotônicas não podem manifestar a vogal temática verbal porque esta necessariamente teria de levar o acento ainda não seria uma resposta para a questão, pois de novo surgiria a pergunta (7). Tendo em vista o caráter automático dessas ocorrências, tem de haver algum tipo de informação subjacente arbitrando o jogo entre o acento e as formas regular/irregular:

(13) Que papel desempenha o acento na formação dos particípios?

1.2.2. Relação contexto fonético / forma do particípio

Os dados apontam para uma relação estreita entre forma fonética do radical verbal e tipo de formação do particípio. Por exemplo, parece ser necessária a presença de certos sons na palavra resultante, para a formação de particípios duplos, em virtude de lacunas como:

(14) acatado/*acato, começado/*começo, estado/*esto, falado/*falo, terminado /*termino, vendido/*vendo/*vento, ...

Uma outra evidência da inter-relação entre forma fonética do radical e tipo de formação participial são as características idiossincráticas dos radicais, para cada tipo de formação de particípio, como tentaremos mostrar no curso da próxima Seção. A necessidade de um certo padrão fonético seria também a justificativa para o fato apontado por Said Ali de inexistirem no português os particípios irregulares correspondentes às formas latinas motum, missum, receptum, victum (fato a que voltaremos no final da próxima Subseção):

(15) mover: movido/*moto; meter: metido/*misso; receber: recebido/*receito; viver: vivido/*vito.

1.3. Hipótese explicativa

A hipótese que fazemos, para explicar os fatos apontados, é que existe uma estrutura de traços abstratos subjacente aos itens lexicais e que um particípio rizotônico é formado quando o próprio radical verbal já é associado com certo traço (ou certos traços) característico(s) da interpretação de particípio.

2. Formações Morfológicas Participiais do Português

2.1. Tipos de Formações Morfológicas

Há três tipos morfológicos de formação de particípio em português:

(16) Formação Regular de Particípio em Português:

(1ª, 2ª e 3ª conjugações)

Radical + VT verbal acentuada + -d + VT nominal.

(17) Formações Irregulares de Particípio em Português:

i. 1ª conjugação:

Radical acentuado terminado em C diferente de d + VT nominal ou Radical acentuado terminado em nasal+d + VT nominal.

ii. 2ª e 3ª conjugações:

Radical acentuado + -t, -s + VT nominal ou Radical acentuado terminado em nasal + -d + VT nominal.

As formações irregulares estão ilustradas abaixo, primeiramente com as formas únicas e em seguida com as de particípios duplos (o processo de derivação aumenta o efetivo das listas: desdizer: desdito, reescrever: reescrito, satisfazer: satisfeito, transpor: transposto, prever: previsto, entreabrir: entreaberto, etc.). As formações regulares estão ilustradas nas listas de particípios duplos.

Particípios Irregulares Únicos:

2ª Conjugação:

dizer: dito,

escrever: escrito,

fazer: feito,

por: posto,

ver: visto,

3ª Conjugação:

abrir: aberto,

cobrir: coberto,

vir: vindo.

Particípios Duplos:12 12 Para listas bem mais extensas, mas incluindo particípios de uso estritamente não-verbal ( cinto e conteúdo, por exemplo) e formas com alteração afixal ( encher-enchido-cheio, escurecer-escurecido-escuro, entre outras), V. Pereira (1953) e Almeida (1964). Cf. Bechara (1963) para uma lista menor, mas, assim mesmo, divergente. V. também Cunha (1976). Estamos considerando que os particípios irregulares ilustrados têm uso verbal. Nos casos mais claros há coocorrência possível com ter ( aceito, expresso, expulso, ganho, aceso, expresso, ...), incluindo-se aí também formas como junto (Ele tem junto muito dinheiro ultimamente), menos natural mas possível. Para casos menos evidentes, usamos como critério a possibilidade de uso com ser da passiva ( Ele foi cego pela luz. Ele foi circunciso. A boiada foi dispersa. O trabalho não foi findo a tempo. As batatas foram fritas. Essa cláusula foi inclusa no contrato. O piso foi seco com este pano. O cavalo foi seguro pela rédea pelo peão numa fração de segundo.) e em oração reduzida com interpretação temporal diferente da oração principal ( Dispersa a boiada, foi difícil reunir o gado de novo. Findo o dia, ele voltou depressa para casa. Fritos os bifes, servimos o almoço. Livres os companheiros, ele se entregou. Quite a dívida, ele deixou de jogar. Murcha a flor, ela a tirou do vaso. Seco o rio, os moradores deixaram a aldeia. Segura a rédea, o cavalo se aquietou. Sepulto o filho, ele nunca mais falou do acidente. Revoltas as cinzas, não foi fácil juntá-las.). Circunciso é um caso limite: pode-se ter Ele foi circunciso, Circunciso o menino, eles voltaram para casa, mas a interpretação adjetival compete com a verbal de um modo mais forte do que nos exemplos anteriores. Em alguns casos uma dessas formas é marcada estilisticamente (por exemplo, As cinzas foram revoltas pelo vento.) e às vezes não é, definitivamente, esperada no uso oral cotidiano (por exemplo, não é usual o item tinto como particípio verbal, mas ele, no entanto, caberia bem num uso rebuscado: Tinta, por uma aguda sensibilidade, com as cores da emoção passional, sua poesia sangra.). Em outros casos, só uma forma é possível (a passiva parece impossível com quite, por exemplo). Há exemplos em que a interpretação verbal exige uma certa interpretação aspectual (por exemplo, Ele foi sujeito a tortura exige a leitura perfectiva (= Ele foi submetido a tortura.)). Esse mesmo item expressa potencialidade em exemplos como Nesse clima ela fica sujeita a crises asmáticas. Isso para nós indica que essas formas só contêm parte da estrutura de traços dos particípios nitidamente verbais. Foram excluídos os particípios que só ocorrem com estar e não aceitam os contextos acima ( cativo, completo, falho, misto, sito, ...; converso, nato, ...; excluso, ressurecto, ...). Os falantes/ouvintes consultados também rejeitaram vago nesses contextos. Os exemplos apresentados foram: O cargo foi vago com a saída do Ministro. Vaga a cátedra, foi aberto concurso. No entanto, no meu próprio julgamento este último exemplo é perfeitamente possível. Para certas formas há nítida variação nos julgamentos, como pudemos verificar para anexo e fixo: alguns falantes/ouvintes consultados, mas não todos, sentiram um certo desconforto com seu uso passivo (? O documento foi anexo ao currículo pela secretária. ? A prótese foi fixa no molde pelo protético.), assim como com o uso de fixo em oração reduzida (?? Fixa a data da partida, começamos os preparativos. ?? Fixa a data da partida, vamos agendar a programação da viagem.), mas não com o de anexo ( Anexo o documento, o currículo foi encaminhado.). O par elegido/eleito é interessante, pois o que se tem de comprovar é o uso verbal da formal regular, que ainda se mantém (cf.: Tê-lo elegido foi bom), apesar de muito restrito.

1ª conjugação:

aceitar: aceitado / aceito, cegar: cegado / cego, circuncidar: circuncidado / cincunciso, descalçar: descalçado / descalço, despertar: despertado / desperto, dispersar: dispersado / disperso, entregar: entregado / entregue, enxugar: enxugado / enxuto, expressar: expressado / expresso, expulsar: expulsado / expulso, findar: findado / findo, fixar: fixado / fixo, fritar: fritado / frito, ganhar: ganhado / ganho, gastar: gastado / gasto, isentar: isentado / isento, juntar: juntado / junto, libertar: libertado / liberto, limpar: limpado / limpo, livrar: livrado / livre, manifestar: manifestado / manifesto, matar: matado / morto, murchar: murchado / murcho, ocultar: ocultado / oculto, pagar: pagado / pago, pegar: pegado / pego, quitar: quitado / quite, salvar: salvado / salvo, secar: secado / seco, segurar: segurado / seguro, sepultar: sepultado / sepulto, soltar: soltado / solto, sujeitar: sujeitado / sujeito, suspeitar: suspeitado / suspeito, vagar: vagado / vago. 2ª conjugação: acender: acendido / aceso, benzer: benzido / bento, eleger: elegido / eleito, envolver: envolvido / envolto, incorrer: incorrido / incurso, morrer: morrido / morto, prender: prendido / preso, revolver: revolvido / revolto, suspender: suspendido / suspenso. 3ª conjugação: emergir: emergido / emerso, exprimir: exprimido / expresso, extinguir: extinguido / extinto, frigir: frigido / frito, imergir: imergido / imerso, imprimir: imprimido / impresso, incluir: incluído / incluso, inserir: inserido / inserto, restringir: restringido / restrito, submergir: submergido / submerso, tingir tingido / tinto.

2.2. Particularidades das Formações Participiais

As generalizações (16)-(17) mostram haver pelo menos duas diferenças básicas entre formação regular e formação irregular de particípio em português: uma relativa ao acento e a outra ao tipo de terminação do particípio. Com relação ao acento, a diferença é simples: acentuação na vogal temática para as formações regulares, e no radical para as irregulares, nas quais não ocorre vogal temática. Com relação às terminações, as diferenças são mais intrincadas, pois além da diferença entre formas arrizotônicas de um lado e rizotônicas de outro as formas rizotônicas de primeira conjugação se distinguem das de segunda e terceira.

Nas formas arrizotônicas, a terminação é, sem dúvida, um sufixo: há até uma vogal acentuada (a vogal temática verbal) marcando a fronteira entre o radical e esse sufixo (am-a-r : am-a-do; venc-e-r : venc-i-do; ped-i-r : ped-i-do). O padrão do processo de formação participial então é: [[...]Radical+ VT verbal acentuada + -d + VT nominal].

Nas formas rizotônicas de primeira conjugação, há uma grande variedade de terminações (to, so — e também sso/ço/xo —, co, cho, go, gue, nho, ndo, po, te, vre nos exemplos examinados), se bem que nas ocorrências efetivas a terminação to predomine (nos 35 exemplos de particípios duplos da primeira conjugação acima, 15 terminam em to, 5 em /so/ (com grafias (s)so, ço, xo) e 4 em go; para as demais terminações a relação foi de 1/35). As consoantes dessas terminações em geral são parte do radical verbal. Nos nossos 35 exemplos, em 33 casos a consoante da terminação da forma rizotônica é a última consoante do radical infinitivo (aceit-ar: acei-to, ceg-ar: ce-go, ...). Isso só não ocorre para circuncidar: cincunciso, enxugar: enxuto. Mas no caso de circuncidar: circunciso há algo especial: o radical infinitivo termina em d, uma consoante que não ocorre na sílaba final dos particípios rizotônicos, a não ser quando há nasalização na sílaba adjacente (vir: vindo, findar: findo), situação sobre a qual discorreremos adiante. Para enxugar: enxuto não há explicação óbvia, uma vez que a consoante g ocorre em formações participiais rizotônicas (por exemplo, pago, pego). Mas certamente deve haver uma explicação, e essa poderia ser fornecida pelo enfoque morfofonológico com base em traços formais que estamos sugerindo, caso ele se mostre viável. De qualquer modo, um fato importante nesses dois casos é que se trata somente de uma realização diferente de consoante final do radical — d, g para o infinitivo e s, t para o particípio, respectivamente —, havendo em comum o fato de a consoante da terminação pertencer ao radical. Portanto, para todas as formas rizotônicas de primeira conjugação o processo de formação é a adição da vogal temática nominal ao radical verbal acentuado, mantendo-se a última posição de consoante desse radical, e essa consoante só podendo ser d quando precedida de nasalidade. Enfim, o padrão é: Radical acentuado terminado em C(onsoante) diferente de d seguido de VT nominal, ou Radical acentuado terminado em nasal+d, seguido de VT nominal.13 13 Outras consoantes podem também estar ausentes, como nos parece verdadeiro para l e m.

Nas formas rizotônicas de segunda e terceira conjugações há pouca variação de terminação: essas se reduzem a -to, -so e nasal+-do. Nos particípios rizotônicos únicos só -to e nasal+-do ocorrem. Nas formas rizotônicas de particípios duplos só ocorrem -to e -so. A diferença crucial entre essas formações rizotônicas e as de primeira conjugação é que, agora, as consoantes nunca são parte do radical verbal (p.ex.: abr-i-r: aber-to; faz-e-r: fei-to; po-r: pos-to, ...). Portanto, essas terminações têm realmente um aspecto sufixal.14 14 Ao analisarmos as terminações dos particípios rizotônicos de segunda e terceira conjugações como sufixais estamos indo de encontro à análise de Camara (1972, 1979), que explicita (1979: 160): "Salvo para vindo, que é estruturalmente o sufixo -do, sem vogal temática, acrescentado ao radical vin- (em variação com ven-) não tem significação, do ponto de vista descritivo, considerar ainda um sufixo participial nessas formas [rizotônicas provenientes de étimo latino]. É mais econômico e mais condizente com a realidade funcional, interpretá-las hoje como temas em - o de um radical variante do radical verbal básico: dit-: diz ( es ); escrit: escrev( es); feit-: faz( es); post-: põ( es); vist-: vê ( s), abert-: abr( es); cobert-: cobr( es )." Essa proposta apresenta alguns problemas. Primeiro, não explica o fato de todos os particípios rizotônicos únicos terminarem em -to, com exceção de vindo, que representa uma generalidade à parte, não havendo uso de nenhuma outra consoante, contrariamente ao que acontece com as formações rizotônicas de primeira conjugação. Segundo, impede uma explicação para as correspondências fonéticas diacrônicas (por exemplo, na evolução do latim para o português, facere corresponde a fazer (mais precisamente: fácere > * facére > fazer ; cf. Coutinho (1941: 295)) e factum corresponde a feito (mais precisamente: factu > *faito > feito; cf. Coutinho (1941: 296)), havendo, portanto, no latim, o radical fac- em ambos os casos. Mas no infinitivo latino tinha-se o radical [fatš] e no particípio [fak]. Logo, nas correspondências fonéticas, a evolução foi a seguinte: [tš] > [z] no contexto [a] — [-e]; e [ak] > [ey] no contexto — [t]. Esse último tipo de correspondência ocorreu também em lacte > leite, por exemplo. Segundo a proposta de Camara, trataríamos feito como tendo o radical feit. O problema é que então se perde o relacionamento com a forma factum, onde o radical é fac e t é sufixal. A análise que estamos sugerindo capta perfeitamente o fato de ao radical do particípio latino fac corresponder fei em português. Evidentemente, as relações diacrônicas eram do conhecimento de Camara, que preferiu a outra análise por influência da posição estruturalista que adotou, como se deduz de suas palavras citadas acima nesta Nota. Em terceiro lugar, impede que se chegue a uma generalização a respeito das formações rizotônicas dessas duas conjugações em geral, incluindo as formações rizotônicas de pares participiais ( aceso, bento, morto, preso, suspenso, ...; impresso, incluso, inserto, restrito, submerso, ...): como mostramos no texto, qualquer formação rizotônica dessas duas conjugações termina em - to, - so, que eram sufixos em latim, e eventualmente nasal+ do, que, como veremos, tem explicação independente. Tal caráter sufixal já existia no latim: esses particípios em -to correspondem a formas latinas em -tu (apertu > aberto, copertu > coberto, dictu > dito, scriptu > escrito, factu > feito, positu > posto, *vistu > por visu > visto, etc.) e os em _so a formas em -su (accensu > aceso, defensu > defeso, sparsu > esparso, tensu > teso, prensu > preso, etc.) (cf. Coutinho (1941: 291, 303, 310)). Mas, evidentemente, por si só a derivação histórica não explica a ocorrência de -t, -s nesses exemplos em português, em contraste com a ocorrência de -d nas formas arrizotônicas. Nem explica por que -to ocorre com qualquer tipo de formação participial rizotônica, enquanto -so só ocorre nas formações rizotônicas de particípios duplos.15 15 Também rejeitamos, como não-explicativo, o critério de freqüência de ocorrência, segundo o qual tinham tendência a se conservar as formas rizotônicas de maior uso. A antigüidade da forma na língua tampouco é explicativa. Além disso, não tem validade empírica, como bem observou Said Ali (cf. também N. 2). Além da diferença quanto à variedade na terminação, as formas rizotônicas de segunda e terceira conjugações se distinguem das de primeira quanto aos processos fonológicos sofridos pelo radical. Com relação a formas rizotônicas de particípios duplos, na primeira conjugação na esmagadora maioria dos casos simplesmente acresce-se uma vogal temática nominal ao radical verbal completo (aceit-ar: aceit-o, express-ar: express-o, expuls-ar: expuls-o, fix-ar: fix-o, gast-ar: gast-o, pag-ar: pag-o, peg-ar: peg-o, solt-ar: solt-o, sujeit-ar: sujeit-o, ...), com alteração no radical em raros casos (mudança da última consoante em circuncid-ar: circuncis-o, enxug-ar: enxut-o),16 16 Em ma-t-ar: mor-to não se trata de modificação no interior do radical, uma vez que nesse caso a forma rizotônica é o particípio de morrer. ao passo que nas segunda e terceira conjugações praticamente sempre há uma grande alteração na forma do radical, que ora perde a última consoante (ben-z-er: ben-to, envol-v-er: envol-to, imer-g-ir: imer-so, revol-v-er: revol-to, submer-g-ir: submer-so, tin-g-ir: tin-to, ...) ou a nasalidade e uma consoante (ace-nd-er: ace-so, pre-nd-er: pre-so, ...), ou, em vez de uma seqüência de vogal e nasal no final do radical, passa a manifestar outra vogal e perde a nasalidade (expr-im-ir: expr-e-sso, impr-im-ir: impr-e-sso), ou mantém a última consoante do radical, mas tem uma alteração em sílaba anterior (inc-o-rr-er: inc-u-r-so), havendo alguns casos de conservação integral do radical, que então termina em vogal ou r (inclu-ir: inclu-so, inser-ir: inser-to, morr-er: mor-to). Na perspectiva que estamos adotando, o fato de os sons finais serem esses é significativo. Essa distinção entre formas rizotônicas de segunda e terceira conjugações, de um lado, e de primeira, de outro, se confirma com a ocorrência de diferenças marcantes concernentes à realização fonética nas formações únicas — todas de segunda e terceira conjugações —, em relação aos radicais de infinitivo correspondentes, como já apontamos na Subseção 1.2.1. Resumidamente, o padrão do processo de formação de particípios rizotônicos de segunda e terceira conjugações é: [[...Vacentuada...]Radical + -t, -s + VT nominal], ou [[... Vacentuada + nasal]Radical + -d + VT nominal].

3. Uma análise em termos de traços formais

3.1. Relação determinística entre traços formais e forma do particípio

O que os fatos acima nos dizem inicialmente, acerca das formações rizotônicas para verbos de primeira conjugação, é que o papel que é desempenhado nas formas arrizotônicas pela vogal temática acentuada e pelo -d é, nessas formas rizotônicas, de certo modo desempenhado dentro do radical por uma vogal acentuada e por uma consoante diferente de d, ou mesmo o d no caso de a consoante ser precedida de nasalidade. Fazemos a ressalva de que é `de certo modo', devido ao fato de as formas arrizotônicas serem sempre formas verbais (se bem que eventualmente possam também ter outro emprego; cf. ferido, metido), ao passo que há uma grande variedade categorial no uso das formas rizotônicas, o que salta aos olhos quando se consideram listas mais abrangentes do que as que examinamos (por exemplo: verbos — entregue, pego, etc.—, adjetivos — corrupto, omisso, perverso, submisso, etc.—; substantivos — assento, cinto, crucifixo, etc. — , preposições — salvo, exceto —, ocorrendo de muitos itens se enquadrarem em mais de uma dessas categorias). Na nossa percepção, isso significa que há casos com maior diferença na configuração estrutural de traços em relação à formação regular de particípio verbal, daí advindo a diferença categorial, e casos de maior identidade, daí advindo o uso verbal do particípio rizotônico em amplos contextos, incluindo ocorrência com ter, ser e estar, como acontece com aceito, entregue, ganho, gasto, pago e pego. Como estamos partindo da hipótese de que os elementos básicos da construção morfológica e sintática são traços formais, concluímos em seguida que nessas formações rizotônicas a vogal acentuada e a consoante relevante dentro do radical configuram uma estrutura subjacente de traços abstratos bem semelhante à associada à vogal temática acentuada e à consoante -d sufixal,17 17 Essa configuração poderia ocorrer mesmo para o caso de enxugar: enxuto, se o t, nesse caso, fosse a realização de traços formais ligados ao radical. satisfazendo pelo menos em parte à configuração de traços que caracteriza a interpretação de particípio.

Quanto às formações rizotônicas de segunda e terceira conjugações, o fato de sistematicamente a terminação ser um sufixo aponta para a não-configuração daquele mesmo tipo de estrutura no âmbito do radical dessas conjugações. É como se agora a informação subjacente à vogal temática já estivesse sendo encontrada dentro do radical, mas não a subjacente à consoante sufixal -d, daí advindo a necessidade de derivação sufixal. A necessidade de o sufixo não poder ser -do presumivelmente decorre de diferenças precisas entre essa nova estrutura subjacente de traços formais e a estrutura das formações regulares, que só a investigação poderá identificar. Finalmente, é razoável pensar que a grande alteração que ocorre no radical nesse tipo de formação resulte justamente do fato de haver derivação sufixal sem projeção de vogal temática; no entanto, não temos no momento elementos para dar uma explicação para essa questão.

É preciso dizer algumas palavras a respeito das formas vindo e findo, únicos casos de formas rizotônicas com presença da terminação do, sufixal para vindo mas não para findo. Essas duas exceções compartilham um fato em comum: a presença de nasalidade antecedendo a forma do. Em ambos os casos, a propriedade subjacente à nasalidade está presente também no radical infinitivo, uma conclusão favorecida, no caso de vindo, pela derivação histórica . Coutinho (p. 309) apresenta a seguinte derivação para o particípio vindo: *venitu por ventu > . Segundo Nunes (1930: 329, N.2), findo é "particípio do arc. , que desapareceu, sendo substituído por um derivado daquele." Teria sido então criado o verbo findar a partir do particípio findo. O contraste entre vindo e findo, de um lado, e extinto e junto, de outro, mostra que a adjacência da nasal é crucial para a ocorrência de do: naqueles casos há adjacência na estrutura subjacente entre nasal e a consoante da terminação, e ocorre o do, e nestes não há adjacência e ocorre o -to (cf. extinctu > extinto; junctu > junto; cf. também tinctu > tinto). A explicação mais viável, a nosso ver, consiste em se tratar a própria nasalidade manifesta como sendo o resultado da existência de uma certa configuração de traços formais com a informação crucial para a manifestação fonética como nasal. Nessa perspectiva, à forma vir poderia subjazer o traço que leva à nasalidade, mas sem que tivesse se constituído a configuração necessária para o acesso à interface PF, talvez porque esse traço estivesse tendo outro uso. Quanto ao particípio irregular em do, adviria da adjacência, no nível subjacente, aos traços associados à nasal.

Se bem sucedida, essa proposta poderia fornecer uma explicação para os diferentes tipos de relação entre vogal temática e formação de particípio que apontamos na Subseção 1.2.1.

Neste ponto, o leitor atento pode estar pensando ver uma contradição nesta proposta: Afinal, se há uma relação determinística entre traços subjacentes e forma morfofonológica, como pode o português gerar particípios duplos? Dado que nesse caso tem-se um único e mesmo radical, não se teria de projetar um único e mesmo tipo de particípio? Na verdade, não. O que acontece com os particípios duplos é que os dois itens gerados para cada par não são sinônimos perfeitos, o que é demonstrado pela diferente escolha que fazem dos auxiliares ter, ser, estar, na maioria dos casos. Enfim, há entre as duas formas dos pares de particípio diferenças de variados níveis (categoriais, aspectuais e argumentais, por exemplo), e mesmo nos casos das formas aceitado/aceito, entregado/entregue, ganhado/ganho, gastado/gasto, pagado/pago e pegado/pego, que consideramos os exemplos de maior aproximação entre as duas formas, não há sinonímia perfeita, se bem que aí as diferenças sejam mais sutis. Dentro do enfoque de traços que estamos sugerindo, é bem razoável supor que em todos os pares de particípios duplos os radicais sejam portadores de traços tais que permitem a dupla derivação, cada uma com sua interpretação. A dupla derivação seria então conseqüência da própria configuração estrutural de traços abstratos do radical.

Cabe aqui uma palavra de alerta sobre a proposta `determinista' deste artigo. Efetivamente, a relação determinística entre traços abstratos e forma morfofonológica que estamos dizendo existir tem de ser relativa: o próprio fato de poder haver geração dupla de particípios nos mostra que a relação traços/forma pode envolver uma escolha (mesmo que inconsciente). A questão é a seguinte. De um lado, parece haver uma relatividade na relação traços/forma, em função da interpretação semântica que se quer obter: quanto aos particípios duplos de uso geral na língua (em contraste com as inovações espontâneas, que fazem rir), dependendo do que se pretende expressar como informação categorial, argumental e aspectual, vai-se gerar uma, ou outra, configuração subjacente para os traços abstratos. De outro lado, há um nítido determinismo nessa relação, em virtude dos limites bem definidos para o que pode ocorrer, impostos pelos traços do próprio radical. A existência desses limites é clara, dada a idiossincrasia da relação "tipo de formação participial / radical", assim como da relação "tipo de interpretação categorial do particípio / radical".18 18 A idiossincrasia da relação entre radical e interpretação categorial dos particípios já havia sido enfatizada por Schmitz (1984, 1989). V. também Pires (1996). Em resumo, os traços do radical impõem limites ao que se pode gerar, e nesse sentido determinam o produto final, tanto em sua forma quanto em sua interpretação semântica, mas muitas vezes a informação do radical dá margem a uma dupla derivação, o que implica escolha, daí advindo o caráter relativo da relação determinística.

Voltemos agora às nossas observações na Subseção 1.2.2, sobre a relação contexto fonológico/forma do particípio. A respeito das formas irregulares latinas motum, missum, receptum, victum, que correspondem a formas regulares no português, o fato de, para os mesmos verbos, o latim gerar formas irregulares, e o português não, confirma que o fator crucial para a formação de particípio não está na sua semântica lexical, em si mesma. O que ocorre, a nosso ver, é o seguinte. Na morfologia manifesta, o latim distingue, e o português não, verbos ativos e verbos depoentes. Isso significa que a estrutura morfológica subjacente dos verbos é diferente, em algum aspecto, no latim e no português. A diferença apontada por Said Ali entre o latim e o português decorreria dessa diferença na estrutura morfológica subjacente de traços formais. Em outras palavras, haveria, sim, uma necessidade de um certo padrão fonológico superficial para a existência de um particípio passado numa língua, mas esse padrão é decorrência da estrutura subjacente de traços formais, daí que a genuína explicação para as formações de particípio está na estrutura subjacente de traços formais, e não na sua manifestação fonética.

Ao explicitarmos que o fator crucial na formação de particípio não está na semântica lexical em si mesma, não queremos dizer que as formações de particípio não dependam da informação semântica do radical: apesar de não dependerem da informação semântica substantiva (as listas de verbos de cada formação não constituem classes semânticas substantivas), parecem claramente depender da informação semântica de tipo léxico-estrutural (i.e., de tipo lexical e construtor de estrutura), daí advindo as diferenças aspectuais entre as duas formas de particípio duplos, por exemplo. Mas essa é uma questão que extrapola os limites deste artigo. Somente a título de ilustração da complexidade dessa questão, observe-se que verbos dos três tipos de formações podem ser ergativos com causação inexistente (cf. Rodrigues (1998) a respeito dessa distinção): secar: secado/seco; quebrar: quebrado/*quebro; abrir: aberto/*abrido.

O exame que acabamos de fazer dos padrões morfofonológicos superficiais dos particípios portugueses se baseou numa amostra de verbos da língua e somente desvela a ponta do iceberg. De qualquer modo, esse exame já é revelador (i) da existência de uma estreita relação entre informação no radical e tipo de formação do particípio, e (ii) do caráter determinístico dessa relação. Observe-se que essa informação subjacente não tem nada a ver com a geometria de traços, uma vez que as restrições em questão não envolvem classes naturais de sons no sentido dessa teoria (cf. os dados da Seção 2, por exemplo). De acordo com as conclusões deste artigo, essa informação é de tipo léxico-estrutural.19 19 Nesse ponto a proposta deste artigo se distingue da proposta da fonologia lexical prosódica, de diferentes níveis de derivação no léxico de uma língua. Usando a fonologia lexical, Lee (1995) propõe haver no léxico do português do Brasil dois níveis ordenados (Nível 1 e Nível 2), seguidos do nível pós-lexical; a flexão irregular e toda a derivação estariam no Nível 1, e a flexão regular no Nível 2 (Estamos deixando de lado as composições.). Logo, seguramente, para ele os particípios regulares seriam gerados no Nível 2, e os particípios irregulares únicos, assim como os irregulares de pares participiais de segunda e terceira conjugações, pertenceriam ao Nível 1 (p.ex.: visto, vindo; envolto, bento, morto, preso; expresso, imerso, impresso, omisso, submerso). Quanto aos particípios irregulares de primeira conjugação ( entregue, expulso, pago, pego, ...) não nos parece claro que tratamento teriam, uma vez que na verdade gozam de grande regularidade na sua formação (Radical Verbal intacto + Vogal Temática Nominal para a grande maioria dos casos), com as poucas `exceções' que indicamos ( enxugar: enxuto, por exemplo), marcando-se como irregulares sobretudo em relação à formação participial em - ado. Na proposta que estamos sugerindo essa questão não se coloca, pois a diferença crucial entre os vários tipos de formações participiais é decorrente de diferença na estrutura de traços formais projetada pelo radical verbal, de onde resultariam diferenças em relação à caracterização da configuração necessária para a ida a PF. Por outro lado, a investigação deste artigo também revela que haveria uma estrutura morfofonológica subjacente em termos de traços formais num nível mais abstrato do que o dos traços fonéticos e fonológicos habituais.

3.2. Derivação a Partir de Traços formais

Chomsky (1995) introduz o conceito de traços `formais', opondo esses aos traços `substantivos' de tipo semântico e fonético. Os traços formais são caracterizados como traços "usados pelas operações computacionais que constroem a derivação de uma expressão" (Chomsky, 1998: 51), e postulados como basicamente distintos dos traços que não têm esse papel e são, antes, inerentemente interpretativos (os traços substantivos semânticos e fonéticos).

O exame que fizemos dos particípios do português nos levou a concluir que existe, no nível da projeção morfológica dos radicais verbais, das vogais temáticas verbais, do sufixo participial e das vogais temáticas nominais, um certo tipo de informação que é levado em conta na construção desses itens. Pressupondo que tanto os itens lexicais quanto as estruturas sintáticas são construídos a partir de traços, analisamos aquela informação como ocorrendo sob a forma de traço, e, mais precisamente, sob a forma de traços formais. Se nossa análise estiver correta, ela estende a proposta de Chomsky em pontos importantes. Por falta de espaço, deixamos ao leitor o paralelo entre as duas propostas. Apontamos simplesmente que, se nossa análise estiver correta, os traços formais têm participação também na construção da forma morfofonológica e da interpretação semântica gramatical dos itens, e não somente na construção sintática. Poderia haver, na estrutura abstrata das línguas, como já proposto por Hjelmslev, uma forma da expressão e uma forma do conteúdo, além de uma substância da expressão e uma substância do conteúdo, e o caráter `formal' dos chamados traços formais estaria ligado aos níveis da `forma' da expressão e da `forma' do conteúdo. Nessa linha de pensamento, é bem viável supor que haveria uma construção simultânea da forma da expressão e da forma do conteúdo dos itens, por meio do uso de uma mesma configuração estrutural de traços formais.20 20 Desenvolvemos essa proposta em Lobato (1998b), posteriormente a este artigo.

Até agora não demonstramos que a informação subjacente em pauta ocorre sob a forma de traços. Essa, no entanto, parece ser a hipótese que os dados favorecem. Já concluímos que no português a leitura de particípio depende de informação relacionada com uma vogal acentuada e uma consoante, havendo três diferentes possibilidades de localização desses dois segmentos. Simplificadamente temos:

(18) a. [[...V...] - [C...]]Radical

b. [...V...]Radical - [C]

c. [...]Radical - [V] - [C]

Em (18a) essa informação se localiza toda no radical (1ª conjugação, formação irregular), em (18b), se localiza parcialmente no radical (2ª e 3ª conjugações, formação irregular), e em (18c) se localiza inteiramente fora do radical (formação regular). Além disso, essa leitura depende da projeção da vogal temática nominal após a consoante em questão. Para ser possível à interpretação participial ser encontrada em partes diferentes da palavra, mas sempre relacionadas com um dado tipo de segmento (V acentuada e um certo tipo de C), tem de ser verdade que no constituinte morfológico correspondente a cada um desses segmentos há um certo tipo de informação que provoca a leitura participial. Se isso é verdade, há uma relação estreita e necessária entre forma morfofonológica e interpretação semântica, na verdade muito mais estreita do que imaginado até agora nas propostas lingüísticas teóricas: à estruturação fonológica das palavras subjazeria um tipo de traço mais abstrato do que os traços que a fonologia tem proposto até agora, sendo esses traços também usados na interpretação semântica. Adviria daí tanto a flexibilidade na localização da informação participial na estrutura morfológica do particípio português quanto o caráter determinístico da relação informação morfofonológica/interpretação participial.

A existência dessa relação entre estrutura morfológica, estrutura fonológica e interpretação semântica favorece a proposta deste artigo de que a construção morfofonológica das palavras e a interpretação semântica gramatical lidam com o mesmo tipo de elemento — traços formais: a interface sonora e a interface semântica estariam operando sobre o mesmo tipo de informação subjacente, e o estatuto de traço para essas informações de interface seria decorrente das condições de legibilidade (cf. Chomsky, 1995, 1998).2121 A diferença entre flexão e derivação fornece outra possibilidade de argumentação a favor da nosso proposta. Os três processos de derivação de particípios no português mostram que a informação que leva à interpretação participial se distribui entre diferentes partes da palavra — radical verbal, vogal temática verbal, sufixo participial e vogal temática nominal —, numa combinação que depende em primeiro lugar de cada radical. Segundo Chomsky (1995, 1998), as propriedades flexionais são traços formais. Será a terminação regular de particípio uma propriedade flexional? Tradicionalmente, a formação de particípios tem sido tratada como flexional, como salienta Spencer (1991:193): [...] the creation of participles, gerunds and infinitival forms of verbs seems to involve a change of category, and yet the traditional, and in many respects most motivated, view is to regard them as part of the inflectional paradigm of the verb, not as a species of derivational morphology. No entanto, dada a fluidez da distinção entre flexão e derivação (cf. Spencer (pp. 193-197)) e dada a falta de entendimento, no estágio atual do conhecimento sobre linguagem, sobre a mesma, qualquer opção que fizéssemos não seria mais do que terminológica. Vamos, antes, levar em conta a seguinte observação de Spencer (p.197): the morphological devices of affixation, phonological processes and so on are just as likely to be used for derivation as for inflection. Se os mesmos dispositivos morfológicos e processos fonológicos são usados pela flexão e pela derivação, não parece irrazoável considerar que esses dois processos morfológicos lidam com as mesmas propriedades de base. Aceitando que as propriedades flexionais são traços formais, diremos, então, que as propriedades das formações participiais (em geral, e não somente a regular) são igualmente traços formais, mesmo que sejam derivacionais. Ora, se a geração de particípio se faz na base de traços formais, dados os três tipos de formação participial que identificamos, tem de ser verdadeiro que traços formais subjazem ao radical verbal, às vogais temáticas verbais, ao sufixo de particípio e às vogais temáticas nominais.

Os fatos em (18) também favorem a hipótese de a leitura de particípio depender de uma dada configuração estrutural de traços e não de um traço ou um simples conjunto de traços. Com efeito, se é verdadeiro que a leitura participial depende de informação projetada em pelo menos três diferentes partes da estrutura morfológica do item lexical, havendo uma ordem estrita entre essas três partes — sempre [Vacentuada + C + VTnominal] na ordem linear, o que produziria uma hierarquia, na estrutura morfológica, com essa ordem em espelho —, tem de ser verdade também que essa leitura depende de uma dada configuração de traços, e não somente de um dado traço ou dados traços.

4. Conclusão

Neste trabalho, lançamos um breve olhar sobre as formas de particípio passado do português, procurando apontar uma nova direção para o exame desses itens. Num enfoque radicalmente minimalista, segundo o qual traços formais são usados tanto na construção morfofonológica de itens lexicais quanto na construção de estruturas sintáticas e interpretação semântica de itens e estruturas, propusemos que os traços usados na derivação morfofonológica dos particípios são os mesmos usados na sua interpretação semântica. Evidentemente, a grande questão a ser respondida, mas que não examinamos no artigo, é:

(19) Quais são os traços formais?

Se o que dissemos tem algum fundamento de verdade, não se tem ainda nem uma teoria fonológica nem uma teoria morfológica capazes de explicar os dados apontados: seriam necessárias teorias que incorporassem o conceito de traços formais, a fim de se chegar a uma verdadeira explicação. Com um tal aparato talvez fosse possível se chegar a uma resposta para as diversas perguntas que deixamos em aberto neste trabalho.

  • ALMEIDA, N. M. de (1964) Gramática Metódica da Língua Portuguesa 17Ş ed. Săo Paulo, Saraiva.
  • ARRUDA, V. M. B. (1978) As Passivas de Estado e de Mudança de Estado em Portuguęs Contemporâneo. Dissertaçăo de Mestrado. Brasília, UnB.
  • AZEVEDO, M. M. (1974) On the Semantics of Estar + Participle Sentences in Portuguese. Linguistics 135: 25-33.
  • ____ (1975) On Passive-Like Sentences in Brazilian Portuguese. Language Sciences 38: 13-16.
  • BARBOSA, A. G. (1993) Particípios Duplos na Fala Carioca: Variaçăo e Distribuiçăo Lexical. Dissertaçăo de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ.
  • BECHARA, E. (1963) Moderna Gramática Portuguesa. 8Ş ed. Săo Paulo, Nacional.
  • BISOL, L. (1992) O acento e o pé métrico binário. Cadernos de Estudos Lingüísticos 22: 69-90. (Reimpresso como : O acento e o pé binário. Letras de Hoje 98, 1994, pp. 25-42.)
  • CAGLIARI, L. C. (1994) Regras de feedback. Letras de Hoje, 98: 55-76.
  • CAMARA JR., J. M. (1970) Estrutura da Língua Portuguesa. 2Ş ed. Petrópolis, Vozes.
  • _____ (1972) The Portuguese Language. Chicago, The University of Chicago Press.
  • _____ (1979) História e Estrutura da Língua Portuguesa 2Ş ed. Rio de Janeiro, Padrăo.
  • CASTELEIRO, J. M. (1981) Sintaxe Transformacional do Adjectivo: Regęncia das Construçőes Completivas. Lisboa, Instituto Nacional de Investigaçăo Científica.
  • CHOMSKY, N. (1995) The Minimalist Program Cambridge, Mass., The MIT Press.
  • _____ (1998) Linguagem e Mente: Pensamentos Atuais sobre Antigos Problemas. Brasília, Editora Universidade de Brasília.
  • COUTINHO, I. DE L. (1941) Pontos de Gramática Histórica. 2Ş Ed. Săo Paulo, Nacional.
  • CUNHA, C. (1976) Gramática da Língua Portuguesa. 3Ş ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, Fename.
  • GAMARSKI, L. (1996) Produtividade e produçăo de particípios passivos. Comunicaçăo lida no Encontro Nacional sobre Adjetivos Brasília, UnB.
  • GOUVEA, A. C. (1996) Formas V-do e classe de palavras. Comunicaçăo lida no Encontro Nacional sobre Adjetivos Brasília, UnB.
  • HJELMSLEV, L. (1971) Prolégomčnes ŕ une Théorie du Langage. Paris, Minuit. (1Ş ed. dinamarquesa: 1943]
  • KROCH, A. (1994) Morphosyntactic variation. Beals, K. et al., orgs. Papers from the 30th regional meeting of the Chicago Linguistic Society. Parasession on variation and linguistic theory.
  • LEE, S. H. (1994) A regra do acento do portuguęs: outra alternativa. Letras de Hoje 98: 37-42.
  • _____ (1995). Morfologia e Fonologia Lexical do Português do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas, Unicamp.
  • LEMLE, M. (1984) Análise Sintática: Teoria Geral e Descriçăo do Portuguęs Săo Paulo, Ática.
  • LOBATO, L. (1998a) Uma proposta minimalista para o acento de palavra. Mesa-redonda A interface fonologia/sintaxe. XIII Encontro Nacional da Anpoll Campinas, Unicamp.
  • _____ (1998b). What the form of Portuguese past participles reveals about formal features and language development. Ms. Brasília, UnB.
  • MASSINI-CAGLIARI, G. (1992) Sobre o lugar do acento de palavra em uma teoria fonológica. Cadernos de Estudos Lingüísticos 23: 121-136.
  • NUNES, J. J. (1930) Gramática Histórica Portuguesa. (Fonética e Morfologia). 2Ş ed. Lisboa, Clássica.
  • PEREIRA, E. C. (1953) Gramática Expositiva. Curso Superior. 88Ş ed. Săo Paulo, Nacional.
  • PIMENTA-BUENO, M. N. S. (1986) As formas [V+-do] em portuguęs: um estudo de classes de palavras. D.E.L.T.A 2 (2): 207- 229.
  • PIRES, A. M. G. (1996) As Formas V-DO em Portuguęs do Brasil: Características Sintáticas e Semânticas. Dissertaçăo de Mestrado. Brasília, UnB.
  • RODRIGUES, C. (1998) Aspectos Sintáticos e Semânticos das Estruturas Médias no Portuguęs do Brasil: Um Estudo Comparativo. Dissertaçăo de Mestrado. Brasília, UnB.
  • SAID ALI, M. (1966) Dificuldades da Língua Portuguesa. 6Ş ed. Rio de Janeiro, Acadęmica.
  • SCHMITZ, J. R. (1984) Problems in the Analysis of Portuguese Participles in -do. Baldi, P. (ed). Papers from the XIIth Linguistic Symposium on Romance Languages Amsterdam, Benjamins, pp. 549-564.
  • _____ (1989) Os particípios passados em -do em portuguęs. Estudos Lingüísticos. XVIII Anais de Seminários do GEL Lorena, GEL/Prefeitura Municipal de Lorena, pp. 594-603.
  • SCHMITT, C. (1996) Os adjetivos errados e os adjetivos vermelhos: diferenças aspectuais. Encontro Nacional sobre Adjetivos Brasília, UnB.
  • SPENCER, A. (1991) Morphological Theory Oxford, Blackwell.
  • WOHLMUTH, S. M. (1978) Lexicalization of the Irrregular Past Participle in Hispano-Romance up to and including the Alfonsine Period. In. F. H. Nuessel, Jr. (ed.). Linguistic Approaches to the Romance Lexicon. Washinghton, D.C., Georgetown University Press.
  • *
    Dedico este trabalho à memória do grande lingüista brasileiro Manuel Said Ali, que nunca cheguei a conhecer, mas cuja obra não canso de admirar. Agradeço a Mary Angotti, Rozana Naves, Cilene Rodrigues, Clóvis Santos e Eduardo Tuffani pelos valiosos comentários à primeiras versões e a Evanildo Bechara, Janete Garcia, Marta Scherre e John Schmitz pela ajuda bibligráfica. As observações de S. H. Lee e de dois pareceristas anônimos sobre a versão anterior a esta foram muito importantes a respeito de questões específicas.
  • 1
    O texto de
    Dificuldades da Lingua Portuguesa passou a incluir o capítulo sobre particípios duplos a partir da 2ª edição, de 1919. As citações neste artigo são de trechos das páginas 126-129 da 6ª edição, de 1966, e atualizam a ortografia.
  • 2
    Camara (1972: 138-139, 1979: 160-161) esclarece que existem dois tipos de processos históricos de formação de particípio rizotônico no português: (1) persistência no português de particípios já existentes em latim clássico e latim vulgar, ou estabelecidos no latim vulgar (
    dito,
    escrito,
    vindo, etc.), (2) formações novas no português. Distingue três tipos de processos de formações novas: (i) Formação a partir de adjetivo proveniente de particípio latino e que "foi novamente associado ao verbo respectivo (
    preso, para
    prender;
    aceso, para
    acender;
    extinto, para
    extinguir), ou foi associado a um verbo derivado daquele de que era o particípio (
    aceito , verbo
    accipere, para
    aceitar;
    expresso, verbo
    exprimere, port.
    exprimir, para
    expressar;
    expulso, verbo
    expellere, port.
    expelir, para
    expulsar)." (ii) Uso como particípio de um adjetivo cognato (
    livre, para
    livrar;
    limpo, para
    limpar)." (iii) Finalmente, "criação de novos particípios desse tipo, pelo mecanismo de acrescentar ao radical verbal a vogal de um tema nominal em
    -o ou mesmo em
    -e (
    pago, para
    pagar;
    ganho, para
    ganhar;
    gasto, para
    gastar;
    entregue, para
    entregar)." Acrescenta que a formação de particípios rizotônicos é "mecanismo dinâmico que tende a se expandir". Além de produtivas, essas formações rizotônicas obedecem a um padrão bem regular de formação, como tentaremos mostrar neste artigo. Dado isso, seria mais apropriado evitar chamá-las de irregulares, se bem que, por razões de estilo e simplicidade, às vezes assim as denominaremos. Camara (1970: Capítulo XIV) já havia explicitado que para os "verbos ditos `irregulares'" há "uma padronização também" e optou pelo uso das expressões "padrão geral" e "padrão especial" para referência às formações regulares e irregulares, respectivamente.
  • 3
    A respeito do português, V. Azevedo (1974, 1975), Arruda (1978), Casteleiro (1981), Lemle (1984), Pimenta-Bueno (1986), Schmitz (1984, 1989), Gamarski (1996), Gouvea (1996) e Pires (1996).
  • 4
    A questão argumental cruza a questão categorial, e tem a ver com os argumentos selecionados pelo item. Sobre a questão aspectual das formas -DO do português, conhecemos somente Schmitt (1996), que, no entanto, se dedica às ocorrências adjetivais dessas formas.
  • 5
    Barbosa (1993: 51) afirma que "a variação real é muito restrita, pois ela só existe entre os itens
    ganhado/ganho". Efetivamente, os candidatos a variantes são muito limitados, pois se restringem aos pares em que a forma rizotônica é usada em amplos contextos, incluindo ocorrência com ter,
    ser e
    estar, como acontece com
    aceito, entregue, ganho, gasto, pago e
    pego. Também ocorre variação regional. Rodrigues (c.p.) informou-nos sobre o uso normal das formas
    abrido (V) e
    escrivido (V, A) em Minas Gerais, região de Matutina, São Gotardo e Tiros (Triângulo Mineiro), onde a forma
    aberto também existe, mas como forma adjetival (
    porta aberta `open door'). Segundo ela, essa variedade da língua foi influenciada pela variedade do português falada na Ilha da Madeira, e tem a propriedade de usar o
    b pelo
    v em formas como
    bassoura e
    trabesseiro. A variação também se dá em termos diacrônicos. Existem verbos que só têm a forma rizotônica atualmente, mas que tiveram ambas no português arcaico, como mostra Said Ali com o exemplo
    escrevido. Em outros casos foi a forma rizotônica que se perdeu, como ilustra esse autor: a língua conheceu
    assolto e
    ausoluto, como particípios de
    absolver, mas hoje somente se usa
    absolvido. Além disso, a maioria das formas rizotônicas é criação nova do português, como afirma Camara (1972, 1979) (V. N. 2).A produtividade do processo de formação rizotônica é confirmada pela criação espontânea, na língua oral, de formas novas de particípio, que, no entanto, causam riso. Barbosa (1993) cita
    chego, espalho, perco, prego, trago, que formam pares com
    chegado, espalhado, perdido, pregado, trazido. Mary Angotti (c.p.) atestou o par
    compro/comprado ("A diretora tinha compro os carimbos e não chegou até hoje."). Essas formas não têm apresentado flexão, em virtude de até agora só terem ocorrido em contextos com
    ter/haver. A questão da variação (em termos sincrônicos e diacrônicos) entre as duas formas de particípio para um mesmo verbo e da produtividade da formação rizotônica se entrecortam. Pode-se presumir que a variação sincrônica no âmbito de uma dada variedade da língua é uma etapa num processo maior de mudança. Essa idéia é favorecida pela intuição de que não existem sinônimos perfeitos. A produtividade da formação rizotônica seria decorrência desse processo de mudança. A respeito do fenômeno de variação morfossintática, V. Kroch (1994).
  • 6
    Há uma grande generalidade na formação de particípios no português, em relação ao conjunto total de verbos da língua: mesmo os verbos defectivos em sua maioria apresentam forma participial, que no caso (i) é sempre a arrizotônica, ou regular, para os defectivos que não possuem as flexões em que o acento cairia no radical e só se conjugam nas formas arrizotônicas, tais como
    aguerrir, combalir, delinqüir, empedernir, falir, punir, remir, etc., e (ii) pode ser só a regular ou ambas, para os defectivos que possuem flexões rizotônicas e arrizotônicas (como os defectivos que só não possuem a primeira pessoa do singular do presente do indicativo e formas dela derivadas — presente do subjuntivo, imperativo negativo e terceira pessoa singular e plural e primeira do plural do imperativo afirmativo), tais como
    abolir,
    aturdir,
    banir,
    brandir,
    carpir,
    demolir,
    emergir,
    exaurir,
    imergir,
    ungi
    r, etc. Cunha (1976: 426) aponta "
    concernir ,
    esplender e alguns mais" como verbos "desusados no particípio". A nosso ver,
    concernido é forma normal (cf.
    Essa questão não teria me concernido, se a situação tivesse sido outra.). Almeida (1997, § 463.7) cita
    prazer. Já os derivados deste (
    aprazer,
    comprazer,
    desprazer, ...) se conjugam regularmente (cf. Almeida e também Bechara (1963: 178)). Não estamos considerando neste artigo os verbos sem particípio. No entanto, seu estudo é crucial para o entendimento da questão dos traços formais: pelo menos para alguns desses verbos, a razão da lacuna poderia ser a inexistência, na configuração subjacente de traços formais projetada pelo radical, de propriedade essencial à realização de particípio.
  • 7
    Apesar disso, o uso da forma arrizotônica para verbos analisados pela tradição gramatical como só aceitando a forma rizotônica é corriqueiro em crianças pequenas e às vezes até em adultos (
    fazido, em vez de
    feito, por exemplo). Além disso, ocorre variação, como já mencionado (cf. N. 5).
  • 8
    Tratamos da questão do acento nos particípios em Lobato (1998a), preparado posteriormente a este artigo.
  • 9
    Segundo a análise de Camara (1972:122) existem dois casos de vogal temática verbal não-tônica no português: (i) o das formas de segunda pessoa singular e terceira singular e plural do presente do indicativo —
    am-a-s,
    am-a,
    am-a-m —, e segunda do singular do imperativo —
    am-a —, em que essas vogais são átonas, e (ii) o das formas do futuro do presente e do pretérito, do indicativo —
    am-a-rei,
    am-a-ria, ... —, em que são pretônicas. Numa perspectiva como a nossa, em que a forma fonética da palavra resulta da ida para a interface forma fonética (PF) de uma certa estrutura subjacente de traços, esses casos de não-acentuação da vogal temática teriam de receber uma explicação em termos desses mesmos traços. Enfim, não se trata, na verdade, de exceção. Simplesmente, nesses dois casos estaria sendo projetada uma estrutura subjacente de traços que levaria a esse tipo de projeção do acento.
  • 10
    Obviamente, uma explicação definitiva para a questão daria automaticamente uma explicação também para a mudança quanto ao uso da vogal temática e do acento ocorrida do latim para o português. Wohlmuth (1978) fornece subsídios importantes nessa direção. Em Lobato (1998a,b) apontamos algumas regularidades dessa mudança com relação ao acento.
  • 11
    Por uma questão de simplicidade, optamos, quando possível, por usar a forma ortográfica dos segmentos.
  • 12
    Para listas bem mais extensas, mas incluindo particípios de uso estritamente não-verbal (
    cinto e
    conteúdo, por exemplo) e formas com alteração afixal (
    encher-enchido-cheio, escurecer-escurecido-escuro, entre outras), V. Pereira (1953) e Almeida (1964). Cf. Bechara (1963) para uma lista menor, mas, assim mesmo, divergente. V. também Cunha (1976). Estamos considerando que os particípios irregulares ilustrados têm uso verbal. Nos casos mais claros há coocorrência possível com
    ter (
    aceito,
    expresso,
    expulso,
    ganho,
    aceso,
    expresso, ...), incluindo-se aí também formas como
    junto (Ele tem junto muito dinheiro ultimamente), menos natural mas possível. Para casos menos evidentes, usamos como critério a possibilidade de uso com
    ser da passiva (
    Ele foi cego pela luz. Ele foi circunciso. A boiada foi dispersa. O trabalho não foi findo a tempo. As batatas foram fritas. Essa cláusula foi inclusa no contrato. O piso foi seco com este pano. O cavalo foi seguro pela rédea pelo peão numa fração de segundo.) e em oração reduzida com interpretação temporal diferente da oração principal (
    Dispersa a boiada, foi difícil reunir o gado de novo. Findo o dia, ele voltou depressa para casa. Fritos os bifes, servimos o almoço. Livres os companheiros, ele se entregou. Quite a dívida, ele deixou de jogar. Murcha a flor, ela a tirou do vaso. Seco o rio, os moradores deixaram a aldeia. Segura a rédea, o cavalo se aquietou. Sepulto o filho, ele nunca mais falou do acidente. Revoltas as cinzas, não foi fácil juntá-las.).
    Circunciso é um caso limite: pode-se ter
    Ele foi circunciso, Circunciso o menino, eles voltaram para casa, mas a interpretação adjetival compete com a verbal de um modo mais forte do que nos exemplos anteriores. Em alguns casos uma dessas formas é marcada estilisticamente (por exemplo,
    As cinzas foram revoltas pelo vento.) e às vezes não é, definitivamente, esperada no uso oral cotidiano (por exemplo, não é usual o item
    tinto como particípio verbal, mas ele, no entanto, caberia bem num uso rebuscado:
    Tinta, por uma aguda sensibilidade, com as cores da emoção passional, sua poesia sangra.). Em outros casos, só uma forma é possível (a passiva parece impossível com
    quite, por exemplo). Há exemplos em que a interpretação verbal exige uma certa interpretação aspectual (por exemplo,
    Ele foi sujeito a tortura exige a leitura perfectiva (= Ele foi submetido a tortura.)). Esse mesmo item expressa potencialidade em exemplos como
    Nesse clima ela fica sujeita a crises asmáticas. Isso para nós indica que essas formas só contêm parte da estrutura de traços dos particípios nitidamente verbais. Foram excluídos os particípios que só ocorrem com
    estar e não aceitam os contextos acima (
    cativo,
    completo,
    falho,
    misto,
    sito, ...;
    converso,
    nato, ...;
    excluso,
    ressurecto, ...). Os falantes/ouvintes consultados também rejeitaram
    vago nesses contextos. Os exemplos apresentados foram:
    O cargo foi vago com a saída do Ministro. Vaga a cátedra, foi aberto concurso. No entanto, no meu próprio julgamento este último exemplo é perfeitamente possível. Para certas formas há nítida variação nos julgamentos, como pudemos verificar para
    anexo e
    fixo: alguns falantes/ouvintes consultados, mas não todos, sentiram um certo desconforto com seu uso passivo (?
    O documento foi anexo ao currículo pela secretária. ?
    A prótese foi fixa no molde pelo protético.), assim como com o uso de
    fixo em oração reduzida (??
    Fixa a data da partida, começamos os preparativos. ??
    Fixa a data da partida, vamos agendar a programação da viagem.), mas não com o de
    anexo (
    Anexo o documento, o currículo foi encaminhado.). O par
    elegido/eleito é interessante, pois o que se tem de comprovar é o uso verbal da formal regular, que ainda se mantém (cf.:
    Tê-lo elegido foi bom), apesar de muito restrito.
  • 13
    Outras consoantes podem também estar ausentes, como nos parece verdadeiro para
    l e
    m.
  • 14
    Ao analisarmos as terminações dos particípios rizotônicos de segunda e terceira conjugações como sufixais estamos indo de encontro à análise de Camara (1972, 1979), que explicita (1979: 160): "Salvo para
    vindo, que é estruturalmente o sufixo
    -do, sem vogal temática, acrescentado ao radical
    vin- (em variação com
    ven-) não tem significação, do ponto de vista descritivo, considerar ainda um sufixo participial nessas formas [rizotônicas provenientes de étimo latino]. É mais econômico e mais condizente com a realidade funcional, interpretá-las hoje como temas em -
    o de um radical variante do radical verbal básico:
    dit-:
    diz (
    es );
    escrit:
    escrev(
    es);
    feit-:
    faz(
    es);
    post-:
    (
    es);
    vist-:
    (
    s),
    abert-:
    abr(
    es);
    cobert-:
    cobr(
    es )." Essa proposta apresenta alguns problemas. Primeiro, não explica o fato de todos os particípios rizotônicos únicos terminarem em
    -to, com exceção de
    vindo, que representa uma generalidade à parte, não havendo uso de nenhuma outra consoante, contrariamente ao que acontece com as formações rizotônicas de primeira conjugação. Segundo, impede uma explicação para as correspondências fonéticas diacrônicas (por exemplo, na evolução do latim para o português,
    facere corresponde a
    fazer (mais precisamente:
    fácere > *
    facére >
    fazer ; cf. Coutinho (1941: 295)) e
    factum corresponde a
    feito (mais precisamente:
    factu > *faito > feito; cf. Coutinho (1941: 296)), havendo, portanto, no latim, o radical
    fac- em ambos os casos. Mas no infinitivo latino tinha-se o radical [fatš] e no particípio [fak]. Logo, nas correspondências fonéticas, a evolução foi a seguinte: [tš] > [z] no contexto [a] — [-e]; e [ak] > [ey] no contexto — [t]. Esse último tipo de correspondência ocorreu também em
    lacte >
    leite, por exemplo. Segundo a proposta de Camara, trataríamos
    feito como tendo o radical
    feit. O problema é que então se perde o relacionamento com a forma
    factum, onde o radical é
    fac e
    t é sufixal. A análise que estamos sugerindo capta perfeitamente o fato de ao radical do particípio latino
    fac corresponder
    fei em português. Evidentemente, as relações diacrônicas eram do conhecimento de Camara, que preferiu a outra análise por influência da posição estruturalista que adotou, como se deduz de suas palavras citadas acima nesta Nota. Em terceiro lugar, impede que se chegue a uma generalização a respeito das formações rizotônicas dessas duas conjugações em geral, incluindo as formações rizotônicas de pares participiais (
    aceso,
    bento,
    morto,
    preso,
    suspenso, ...;
    impresso,
    incluso,
    inserto, restrito,
    submerso, ...): como mostramos no texto, qualquer formação rizotônica dessas duas conjugações termina em -
    to, -
    so, que eram sufixos em latim, e eventualmente nasal+
    do, que, como veremos, tem explicação independente.
  • 15
    Também rejeitamos, como não-explicativo, o critério de freqüência de ocorrência, segundo o qual tinham tendência a se conservar as formas rizotônicas de maior uso. A antigüidade da forma na língua tampouco é explicativa. Além disso, não tem validade empírica, como bem observou Said Ali (cf. também N. 2).
  • 16
    Em
    ma-t-ar:
    mor-to não se trata de modificação no interior do radical, uma vez que nesse caso a forma rizotônica é o particípio de
    morrer.
  • 17
    Essa configuração poderia ocorrer mesmo para o caso de
    enxugar: enxuto, se o
    t, nesse caso, fosse a realização de traços formais ligados ao radical.
  • 18
    A idiossincrasia da relação entre radical e interpretação categorial dos particípios já havia sido enfatizada por Schmitz (1984, 1989). V. também Pires (1996).
  • 19
    Nesse ponto a proposta deste artigo se distingue da proposta da fonologia lexical prosódica, de diferentes níveis de derivação no léxico de uma língua. Usando a fonologia lexical, Lee (1995) propõe haver no léxico do português do Brasil dois níveis ordenados (Nível 1 e Nível 2), seguidos do nível pós-lexical; a flexão irregular e toda a derivação estariam no Nível 1, e a flexão regular no Nível 2 (Estamos deixando de lado as composições.). Logo, seguramente, para ele os particípios regulares seriam gerados no Nível 2, e os particípios irregulares únicos, assim como os irregulares de pares participiais de segunda e terceira conjugações, pertenceriam ao Nível 1 (p.ex.:
    visto, vindo; envolto, bento, morto, preso; expresso, imerso, impresso, omisso, submerso). Quanto aos particípios irregulares de primeira conjugação (
    entregue, expulso, pago, pego, ...) não nos parece claro que tratamento teriam, uma vez que na verdade gozam de grande regularidade na sua formação (Radical Verbal intacto + Vogal Temática Nominal para a grande maioria dos casos), com as poucas `exceções' que indicamos (
    enxugar: enxuto, por exemplo), marcando-se como irregulares sobretudo em relação à formação participial em -
    ado. Na proposta que estamos sugerindo essa questão não se coloca, pois a diferença crucial entre os vários tipos de formações participiais é decorrente de diferença na estrutura de traços formais projetada pelo radical verbal, de onde resultariam diferenças em relação à caracterização da configuração necessária para a ida a PF.
  • 20
    Desenvolvemos essa proposta em Lobato (1998b), posteriormente a este artigo.
  • 21 A diferença entre flexão e derivação fornece outra possibilidade de argumentação a favor da nosso proposta. Os três processos de derivação de particípios no português mostram que a informação que leva à interpretação participial se distribui entre diferentes partes da palavra — radical verbal, vogal temática verbal, sufixo participial e vogal temática nominal —, numa combinação que depende em primeiro lugar de cada radical. Segundo Chomsky (1995, 1998), as propriedades flexionais são traços formais. Será a terminação regular de particípio uma propriedade flexional? Tradicionalmente, a formação de particípios tem sido tratada como flexional, como salienta Spencer (1991:193): [...] the creation of participles, gerunds and infinitival forms of verbs seems to involve a change of category, and yet the traditional, and in many respects most motivated, view is to regard them as part of the inflectional paradigm of the verb, not as a species of derivational morphology.
    No entanto, dada a fluidez da distinção entre flexão e derivação (cf. Spencer (pp. 193-197)) e dada a falta de entendimento, no estágio atual do conhecimento sobre linguagem, sobre a mesma, qualquer opção que fizéssemos não seria mais do que terminológica. Vamos, antes, levar em conta a seguinte observação de Spencer (p.197): the morphological devices of affixation, phonological processes and so on are just as likely to be used for derivation as for inflection. Se os mesmos dispositivos morfológicos e processos fonológicos são usados pela flexão e pela derivação, não parece irrazoável considerar que esses dois processos morfológicos lidam com as mesmas propriedades de base. Aceitando que as propriedades flexionais são traços formais, diremos, então, que as propriedades das formações participiais (em geral, e não somente a regular) são igualmente traços formais, mesmo que sejam derivacionais. Ora, se a geração de particípio se faz na base de traços formais, dados os três tipos de formação participial que identificamos, tem de ser verdadeiro que traços formais subjazem ao radical verbal, às vogais temáticas verbais, ao sufixo de particípio e às vogais temáticas nominais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2000
    • Data do Fascículo
      Fev 1999
    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: delta@pucsp.br