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Mulheres na Física: Lise Meitner

CARTA AO EDITOR

Mulheres na Física: Lise Meitner

De 23 a 25 de maio de 2005, aconteceu, no Rio de Janeiro, o evento 2nd Iupap International Conference on Women in Physics, no qual se discutiu, além dos trabalhos científicos apresentados, o papel e a contribuição das mulheres no ensino e na pesquisa em Física, no mundo. Assim, quero aproveitar a oportunidade para, em poucas linhas, contar sobre o trabalho de uma extraordinária física, pouco conhecida entre a nova geração de físicos. Seu nome é Lise Meitner (na língua de Goethe Lise é pronunciado como Lizê), que teve que transpor inúmeras dificuldades para inicialmente se formar em física e depois conseguir um emprego remunerado (de 1907 a 1912 ela trabalhou sem remuneração, como pesquisadora convidada). Lise conseguiu angariar o respeito e o reconhecimento dos seus pares, pelo alto nível da Física que ela produziu, tornando-se uma autoridade mundial em Física Nuclear e com reconhecida liderança no Wilhelm Kaiser Institüt de Berlim.

Em 1944, a Real Academia de Ciências da Suécia concedeu o Prêmio Nobel de Química a Otto Hahn, em reconhecimento pela sua descoberta da fissão nuclear (for his discovery of the fission of heavy nuclei), mas não premiou Lise Meitner, que colaborou com Hahn no experimento que levou à descoberta do fenômeno e que, logo depois, juntamente com o seu sobrinho, o também físico Otto Robert Frisch, interpretou e explicou corretamente o processo de fissão do urânio-235 (235U), em um artigo seminal, de três páginas apenas, publicado em 1939 na revista Nature.

Lise Meitner nasceu em 7 de novembro de 1878, foi a terceira dos sete filhos de uma família judia de Viena (Áustria). Ainda jovem, Lise converteu-se ao protestantismo para fugir dos preconceitos raciais vigentes na sociedade européia da época, que se somavam aos preconceitos que sofriam as mulheres que se dedicavam a atividades intelectuais. No entanto, a conversão não foi de nenhuma utilidade quando, em março de 1938, a Áustria e a Alemanha, então sob regime nazista, se juntaram para formar um único país (Anschluss). As leis raciais anti-semitas válidas para cidadãos alemães foram aplicadas também para os austríacos, e Lise teve que fugir para a Suécia para não ser deportada para algum campo de concentração, onde teria sido certamente assassinada.

Devido às restrições impostas pelas leis austríacas para o acesso das mulheres ao ensino superior, Lise só conseguiu entrar na Universidade de Viena em 1901. Depois de assistir às aulas de Ludwig Boltzmann, ela percebeu que a Física era a sua vocação. Otto Frisch, escreveu sobre esse fato, com Boltzmann ela teve a visão de que a Física era o campo de batalha para a derradeira verdade, visão essa que nunca perdeu [1].

Obtido o doutorado em 1906, no ano seguinte Lise foi a Berlim com a intenção de trabalhar com Max Planck. Mas devido a uma série de circunstâncias ela começou a trabalhar com o químico Otto Hahn, que a incumbiu de pesquisar as propriedades físicas das substâncias radioativas, enquanto Hahn pesquisaria as propriedades químicas. A colaboração durou cerca de 30 anos, cada um chefiava um departamento no Instituto Kaiser Wilhelm de Química, em Berlim. Juntos, ou independentemente, obtiveram importantes resultados no então novo campo da Física Nuclear, conseguindo competir, com sucesso, com físicos de renome como Irène Curie, Frédéric Joliot e outros.

Com certeza, seu mais importante trabalho, pelo qual será sempre relembrada, diz respeito à descoberta da fissão nuclear. In 1934, o físico Enrico Fermi havia produzido isótopos radioativos bombardeando núcleos com nêutrons, mas surgiu um enigma com o urânio. Como resultavam muitas espécies de núcleos, a pergunta natural que se fazia era: poderia algum deles ser um elemento transurânico (número atômico maior que 92)? Meitner convenceu Hahn e seu assistente Fritz Strassmann a trabalharem juntos em um novo projeto cujo objetivo visava verificar se isso era possível.

Após a sua chegada à Suécia no verão de 1938, na qualidade de refugiada, Meitner conseguiu uma posição no instituto de pesquisa do físico Manne Siegbahn, em Estocolmo. Sua biógrafa conta que sem ser convidada a se juntar ao grupo de Siegbahn, nem receber recursos para fazer sua própria pesquisa, tinham-lhe cedido apenas um espaço para montar um laboratório, mas ela não tinha colaboradores, equipamentos ou suporte técnico, nem mesmo seu próprio molho de chaves... [1].

Enquanto Hahn e Strassmann tentavam identificar seus elementos transurânicos, Meitner mantinha-se informada dos seus avanços na pesquisa pela correspondência que mantinha com Hahn.

Em 13 de novembro de 1938 Hahn foi se encontrar com Meitner em Copenhagen, Dinamarca, e acatando a sua sugestão, Hahn e Strassmann fizeram mais alguns novos experimentos com um produto do urânio que eles pensavam que fosse um isótopo do elemento rádio (Z = 88), quando então verificaram que, de fato, se tratava de bário (Z = 56). Eles publicaram os resultados na revista Naturwissenschaften (número de 6 de janeiro de 1939) sem incluir o nome de Meitner como co-autora. Após tomarem conhecimento dos resultados, Meitner e Frisch entenderam imediatamente a natureza física do fenômeno; utilizando o modelo da gota líquida para o núcleo atômico, proposto anteriormente por Niels Bohr, eles conseguiram dar uma explicação teórica convincente. Eles batizaram o processo com o nome fissão nuclear. A palavra fissão foi emprestada da biologia, que é usada para descrever a divisão de uma célula em duas outras. O trabalho apareceu na revista Nature [2], do qual transcrevo trechos, traduzidos para o português, que julguei mais pertinentes para entender a importância do artigo:

...À primeira vista, este resultado [de Hahn e Strassmann] parece difícil de entender. A formação de elementos bem abaixo do urânio fora considerada anteriormente, mas sempre foi rejeitada por razões físicas, na medida em que a evidência química não era totalmente clara. A [suposição] emissão, num curto período de tempo, de um grande número de partículas carregadas pode ser descartada pela pequena penetrabilidade da 'barreira coulombiana', como sugerido pela teoria do decaimento alfa, de Gamow.

...Por conta de sua densidade saturada e forte energia de troca, espera-se que partículas em um núcleo pesado se movam de forma coletiva com alguma semelhança com o movimento de uma gota líquida. Se o movimento se tornar suficientemente violento, pela adição de energia, tal gota poderia se dividir em duas gotas menores.

...Parece, portanto, possível que o núcleo de urânio tenha pequena estabilidade de forma, e que possa, após captura de um nêutron, dividir-se em dois núcleos de tamanhos aproximadamente iguais (...) Esses dois núcleos se repelirão e ganharão uma energia de cerca de 200 MeV, como calculado pelo raio e carga nucleares (...) Todo o processo de 'fissão' pode ser descrito de forma essencialmente clássica, sem ter que considerar o 'efeito túnel' da mecânica quântica, que seria extremamente pequeno, por conta das grandes massas envolvidas.

Embora mais tarde asseverou-se que os efeitos quânticos são importantes, Meitner e Frisch conseguiram captar toda a essência do processo. A estimativa da energia liberada (200 MeV) na fissão de um único núcleo de 235U mostrou-se correta, embora não toda ela se transforme em energia cinética dos fragmentos. Mas o ponto mais importante foi o de conjecturar a instabilidade de forma do núcleo atômico, e que sua fissão seria desencadeada pela absorção de um nêutron. Presumivelmente, a fissão do núcleo atômico foi obtida anos antes pelo próprio Hahn e por outros grupos de pesquisa na França e na Inglaterra, mas nunca essa possibilidade foi aventada como resultado dos experimentos, pois o pensamento dominante era a obtenção de elementos transurânicos

No final de 1939, após o início da Segunda Grande Guerra (1939-1945), em seu refúgio em Manchester, Inglaterra, Frisch e Rudolf Peierls - outro físico fugido da Alemanha - fizeram os primeiros cálculos estimativos, verificando a plausibilidade da fabricação de uma bomba atômica a partir da energia liberada na fissão de cerca de 10 kg de 235U.

Atualmente, historiadores da Ciência entendem que a explicação do fenômeno de fissão requereu de Meitner e de Frisch uma profunda percepção física, da mesma magnitude da descoberta de Hahn e de Strassmann. Mas, supõe-se que a abrupta interrupção da colaboração científica de Meitner, com Hahn e Strassmann e, mais ainda, o seu exílio e isolamento científico, devem ter criado uma ''falta de compreensão'', por parte do comitê do prêmio Nobel, da importância de sua contribuição para o processo de elaboração e entendimento, a nível teórico-conceitual, dos resultados do experimento. O ''erro'' do comitê Nobel, nunca foi reconhecido pelos responsáveis, mas em 1966 ele foi parcialmente corrigido, quando Hahn, Meitner e Strassmann receberam o Prêmio Fermi, láurea concedida nos Estados Unidos, pelo reconhecimento do trabalho dos três na descoberta da fissão nuclear.

Já aposentada, em uma entrevista perguntaram a Lise como e por que tanto ela como Hahn não desenvolveram alguma doença relacionada com a exposição à radiação, já que tinham manipulado materiais radioativos por muitos anos. A sua resposta foi, porque eu sempre insisti para que todos os membros que trabalhavam no laboratório lavassem muito bem as mãos e várias vezes ao dia, ao que Hahn, que estava ao seu lado, completou: ...e até hoje não perdi esse hábito.

Lise Meitner morreu em 27 de outubro de 1968, poucos dias antes de completar 90 anos de idade. Nunca casou e não deixou descendentes.

Salomon S. Mizrahi

Departamento de Física - UFSCar

São Carlos, SP

Referências

[1] Ruth Lewin Sime, Lise Meitner: A Life in Physics (University of California Press, 1996). Ver também Sharon Bertsch McGrayne, Mulheres que Ganharam o Prêmio Nobel em Ciências (Editora Marco Zero, São Paulo, 1995) e Elisabeth Crawford, Ruth Lewin Sime and Mark Walker, Physics Today 50, 26 (1997).

[2] L. Meitner and O. Frisch, Nature 143, 239 (1939).

1 E-mail: salomon@df.ufscar.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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