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Haverá uma volta aos quartéis?

LEITURA COMPLEMENTAR 1

Haverá uma volta aos quartéis?

Walder de Góes

Professor titular de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Brasília

Em primeiro lugar, algumas perguntas: por que os militares brasileiros têm sido atores políticos de primeira grandeza? Por que os efeitos da ação militar de 64 são diferentes dos efeitos das intervenções anteriores? Por que agora, vinte anos depois, os militares estão reduzindo a sua participação no processo político? E o futuro? Como será o futuro?

A sabedoria política mineira ensina que "manda quem pode, obedece quem tem juízo". É uma frase dura, mas verdadeira. Os militares podem mais, porque têm duas vantagens principais sobre os civis. A primeira é a superioridade em organização. A segunda é o monopólio das armas. Isso ocorre em todo o mundo, mas os efeitos são diferentes em cada país. Na Bolívia, por exemplo, os efeitos têm sido uma vasta tragédia política.

Ora, já sabemos que o poder tem horror ao vácuo. Se alguém abandona um certo espaço, outro alguém logo o ocupa. Se a sociedade civil é desorganizada e desarmada, isso significa que a penetração militar no espaço político é quase sempre irresistível. Mas por que não é sempre assim, em muitos países? Porque, se por um lado as Forças Armadas têm força para intervir, outras vezes não existem motivações para fazê-lo.

As motivações para não intervir são quatro: o profissionalismo, o 'princípio da superioridade civil', o temor do enfraquecimento da corporação militar pela divisão que a ação política provoca e o temor de guerras civis e luta armada entre camaradas.

No Brasil, o profissionalismo é fraco. As Forças Armadas sofreram um processo retardado de profissionalização e ainda não existe uma consciência profissional desenvolvida. O 'princípio da superioridade civil' é inexistente. Ao contrário, os militares se consideram mais qualificados do que os civis. As duas outras disposições para não intervir existem na consciência militar brasileira, mas elas não têm sido capazes de eliminar o impulso à ação política.

Inversamente, as motivações para intervir são fortes nas Forças Armadas brasileiras. Em primeiro lugar, porque elas desenvolveram uma crença particular, qual seja a de que os militares têm a missão providencial de salvar a pátria. E, afinal, não é legítimo tudo o que se faça para salvar a Pátria? Em segundo lugar, porque sempre há interesses a defender. Ora são interesses de classe, pois as Forças Armadas estão obviamente articuladas com determinados setores da sociedade, ora são interesses da própria corporação, pois com freqüência os militares entendem que os governos não lhes estão fazendo justiça.

Mas é claro que existem intervenções militares de diferentes tipos e níveis. Cada caso é um caso. E os casos variam conforme a cultura política de cada sociedade. Num país com povo educado, pleno desenvolvimento das instituições políticas, em que as diferentes classes estejam organizadas e em que as disparidades de renda não sejam grandes, o papel político dos militares não passa do que está previsto na Constituição. Este não é o caso do Brasil e é por isso que aqui os militares são atores políticos de primeira grandeza.

Assim já digo alguma coisa sobre a questão do futuro. Ou seja, o papel que os militares brasileiros desempenharão no futuro depende de como evolua a cultura política do país.

Agora, a segunda parte: por que os efeitos da ação militar de 64 são diferentes dos efeitos das intervenções militares anteriores?

Vale lembrar, de raspão, algumas ações políticas dos militares no passado. Basta o período republicano. Já a República foi obra dos militares, pois a queda do Império somente se tornou viável quando os insatisfeitos foram conspirar no Clube Militar. Vargas não teria tomado o poder, em 1930, não fora o sólido apoio militar que obteve, nem teria instituído o Estado Novo sem os seus bons generais. Em 45, os generais decretaram o fim provisório de Vargas e, em 1954, o seu fim definitivo. Depois vêm as histórias que envolveram Café Filho e Carlos Luz e vem a figura do general Lott, que protegeu JK e virou candidato à Presidência. Em 1961, os militares criaram o parlamentarismo.

Esses episódios são diferentes entre si. Cada caso é um caso. Mas há um fio comum que os identifica. Em toda a história republicana, as intervenções militares foram momentâneas, não afastaram completamente as elites civis e não se preocuparam em criar bases para a permanência continuada da direção do poder político. As ações militares foram episódios conjunturais que não geraram realidades estruturais. Elas criaram políticas, mas não alteraram a substância íntima do sistema político.

A intervenção de 1964 foi diferente. Por seus desdobramentos, ela transformou tendências conjunturais em realidades estruturais. Penso que, ao longo dos últimos vinte anos, deu-se uma invasão militar do Estado, massiva e generalizada. E que isso afetou, severamente, as bases sobre as quais tradicionalmente funcionava o sistema político brasileiro. Essa penetração militar do Estado se deu em dois níveis: no nível informal e no nível formal. No primeiro, os militares passaram a ocupar generalizadamente cargos civis na administração pública. No segundo, criaram ou fortaleceram instituições através das quais o pensamento militar passou a exercer papel determinante nas decisões governamentais.

O regime de 1964 pode ser dividido em dois momentos distintos. O primeiro é o do controle militar direto da cúpula governamental, pura e simplesmente. Nessa etapa os militares não ocupam o segundo e o terceiro escalões da administração federal. Essa é a obra do segundo momento e está associada ao crescimento do papel do Estado na economia. O poder passou a ser compartilhado por burocratas e militares. Os burocratas dominam a produção das informações, conceitos e valores que orientam o Estado, mas o fazem em nome dos militares e sob inspiração de suas criações doutrinárias e ideológicas.

Civis e militares passam a trabalhar lado a lado, compartilhando concepções de governo, dividindo responsabilidades, coordenando interesses e fundindo suas visões-de-mundo. Os dois níveis passam a se influenciar reciprocamente e a forjar as políticas governamentais.

Vejamos agora a penetração militar formal. Ela tem dois pilares. Um é a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional, que se expandiu no pós-64. Outro é o SNI, criado em 64. A Secretaria-Geral do CSN é, de longe, o mais importante centro formulador de decisões do governo federal. Ela é integrada por uma chefia de gabinete, seis subchefias, a Secretaria Especial de Informática, dois grupos especiais permanentes e grupos ocasionais. Seus quadros permanentes são restritos, mas a Secretaria-Geral do CSN tem o poder de requisitar funcionários e solicitar estudos a quaisquer órgãos da administração federal, direta e indireta. As atribuições das subchefias, secretarias especiais e grupos de trabalho cobrem praticamente todos os campos: política interna e política externa, economia e finanças, terras e fronteiras, assuntos militares, assuntos psicossociais, etc.

Do ângulo dessa análise, no entanto, interessa ressaltar apenas dois aspectos. O primeiro é o de que a Secretaria-Geral do CSN produz estudos e pareceres que influenciam decisivamente as opções estratégicas adotadas pela presidência da República, e, por todo o governo federal. Ela não opera no dia-a-dia da administração federal, pois somente se ocupa de opções estratégicas mas, as suas avaliações são determinantes das concepções gerais e dos princípios que orientam a ação governamental em seu conjunto. O segundo é o de que, integrando civis e militares, a Secretaria-Geral funde as perspectivas políticas e ideológicas dos dois atores principais do Estado: os militares e os burocratas.

O outro pilar da penetração formal, o SNI, transformou-se num organismo gigantesco. Ele está presente em todos os ministérios (através das Divisões de Segurança e Informação), em todas as autarquias e empresas do Estado (através da Assessoria de Segurança e Informação), em todos os Estados (através das delegacias) e na maioria dos municípios (através de representantes). Esta rede complexa e tentacular é articulada por uma agência central, localizada em Brasília, dotada de sofisticados quadros de analistas e formidáveis sistemas de processamento de dados.

Agindo quase sempre em associação com a Secretaria-Geral do CSN, o SNI exerce forte impacto nas decisões governamentais. Esse impacto assume diferentes formas. Através de seus pareceres e julgamentos, o SNI afeta o modo de pensar e direciona as decisões. Infundindo o temor, ele condiciona os procedimentos daqueles que, temendo represálias, preferem não desafiar os juízos e interesses de organismos tão poderosos.

Então, por que agora, vinte anos depois de 64, os militares estão reduzindo sua participação no processo político? A palavra chave continua sendo legitimidade. Aurélio tem razão, ao dizer que legitimidade é a qualidade daquilo que a maioria considera bom e justo. Mas a ciência política é mais realista do que os produtores de dicionários. Ela diz que legitimidade é mais. É também a qualidade daquilo que compõe interesses justos ou não, e realiza aspirações, justas ou não. Ou, ainda, a qualidade daquilo que seja considerado bom e justo por não se ter descoberto seu mal oculto.

Ora, a intervenção de 64 foi produzida por um amplo acordo de elites e teve o apoio de parcelas importantes das classes médias. Não preciso me estender sobre este ponto. Todos nós já o sabemos de-cor-e-salteado. Mas interessa dizer que, sob esse aspecto, a intervenção de 64 foi legítima. As elites, e parte das classes médias, a pediram e esses setores souberam criar um clima de opinião pública em que se exaltava a necessidade de mudança. Pois a legitimidade da ação militar de 64 foi se esgotando justamente na medida em que seus suportes sociais desapareciam, na medida em que aquele acordo se desfazia.

Muitos analistas chamam a atenção para o excesso de autoritarismo, traduzido na repressão e no cerceamento das liberdades. Entendem que esta foi a motivação principal dos grupos que, defendendo os direitos humanos, passaram a exigir a liberalização. E que essa exigência obrigou o regime a se abrir. Aceito o argumento, mas não o vejo como o principal. Aconselho que se explore a existência de uma associação entre a abertura política — ou o retraimento dos militares — e a crise econômica. A crise econômica acabou com a unidade da elite. Os recursos se tornaram mais escassos, a disputa desses recursos se tornou mais acirrada e a elite se fragmentou. Ora, se o regime militar se baseava na unidade da elite...

Além disso, a elite passou a dizer que o regime militar estatizou a economia e que a estatização é responsável pela crise econômica. Em suma, a elite retirou o apoio que dava aos governos militares porque eles passaram a apresentar maus resultados. E as classes médias? Enquanto a economia ia bem, melhores empregos e melhores salários realizavam as expectativas ou alimentavam os sonhos de ascensão social. Com a crise, a mobilidade social despencou, despencaram-se as esperanças. Portanto, também para as classes médias o regime não serve, os militares são incompetentes, é preciso mudar.

Esta explicação, porém, ainda é insuficiente. O inglês Samuel Finer escreveu um belo livro sobre os regimes militares. Deu a ele o título de Man on Horseback, isto é, homem a cavalo. O livro não trata do Brasil, mas o título é extremamente apropriado para nosso caso. Pois não é notável a dimensão cavalariana de nosso sistema político? Finer acha, e diz no livro, que as razões corporativas contam muito nos processos de liberalização dos regimes militares. Estou de acordo.

Os militares, diz Finer, começam a perder o pé da situação sempre que se desintegra a liderança militar que promoveu a intervenção. É o caso do Brasil. E perdem totalmente o pé quando a politização divide as Forças Armadas, surgindo a necessidade de que a unidade seja recomposta. Finer sugere que toda corporação militar, ao assumir diretamente o poder político, se substitui aos partidos e, assim passa a abrigar em seu bojo as lutas típicas dos partidos políticos. Portanto, se a quebra da unidade foi causada pela ação política, sua reconquista depende de que essa ação política seja eliminada ou moderada. No momento, as Forças Armadas estão justamente tentando recompor a unidade perdida, através da concentração do seu papel no processo político.

Não há dúvida de que ainda teremos os militares na política por muito tempo. Primeiro, porque nossa cultura política é subdesenvolvida. Segundo, porque a presença massiva dos militares no Estado, através de processos formais e informais, é de difícil reversão. Terceiro, porque as elites desunidas não têm capacidade de substituir os militares. Quarto, porque basta a redução do papel político — não é necessário sua total eliminação — para que os militares realizem seus objetivos corporativos, inclusive os da unidade.

Mas também não há dúvida de que o modelo de intervenção direta e ostensiva já não é praticável e está sendo abandonado, de modo lento mas seguro. De todo modo, cabe dizer que a expressão "volta aos quartéis" é pura expressão retórica de tendências nas Forças Armadas para limitar a sua ação política ostensiva e direta e,, assim, preservar o que é essencial, ou seja, a capacidade dos militares de funcionar como força arbitral e como parceiros de civis na condução do Estado.

Genuína volta aos quartéis é que não é, pois se assim fosse não haveria quartéis suficientes para tanta gente...

Apenas a partir da Guerra do Paraguai, nossas Forças Armadas se constituíram como corporações regulares. Assim, ao contrário do que aconteceu em outros países, sua consciência profissional começou a se desenvolver bastante tarde.

Em 1964, pela primeira vez na história da república, a intervenção dos militares não foi um episódio momentâneo.

Quando o papel do Estado na economia nacional cresceu, militares e civis passaram a dividir funções burocráticas.

Hoje, os militares começam a reduzir sua participação na política. Isso seria um indício de que já não se sentem tão legitimados como há vinte anos atrás?

Com a crise econômica, as elites deixaram de apoiar ostensivamente os governos militares e a classe média acabou de se desiludir.

Quando exercem o poder diretamente, os militares acabam assumindo o papel dos partidos políticos e isso pode tornar-se uma ameaça á unidade das Forças Armadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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