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As crises em nossa história

LEITURA COMPLEMENTAR 2

As crises em nossa história

Boris Fausto

Historiador, professor da USP e integrante do Conselho Deliberativo do CEDEC

É freqüente a afirmação de que esta é a maior crise de nossa história. Acho, porém, que em vez de tentar estabelecer uma precária medida das crises brasileiras ao longo do tempo, vale a pena ressaltar, nessa comparação, os traços que distinguem a atual. Talvez, assim, acabe por acentuar o seu imenso alcance.

Convém lembrar que essa comparação não é simples. Com relação ao passado, estamos confortavelmente instalados: as divergências de interpretações são inevitáveis mas sabemos, em linhas gerais, como se gestaram as crises, como se desenvolveram e como chegaram a um fim, mesmo precário. O presente é bem mais complexo. Para usar a velha imagem, estamos em plena travessia do túnel e, se a travessia parece ser bastante longa, não temos idéia de quão longa será. Mais do que isso, não sabemos se haverá luz no fim do túnel ou mais escuridão.

É possível, em um sentido geral, traçar um padrão das crises brasileiras, a partir de 1930. Em recente artigo na revista Senhor n.º 139, Álvaro Caropreso e Raimundo Pereira lembraram que as rupturas de 1930, 1945, 1954 e 1964 se caracterizaram pela derrubada de forças no poder, enquanto as de 1937 e 1968 representaram uma consolidação de forças hegemônicas que, tendo tomado o poder em coligação com outras, conseguem eliminá-las para ter as mãos livres e implantar seus modelos de Estado. Obviamente, a ruptura atual se aproxima do primeiro tipo. É possível, também, distinguir entre conjunturas decisivas no sentido de que quebram uma ordem anterior (1930, 1964), das que acumulam condições, assinalam derrotas ou vitórias parciais no caminho da ruptura, como é o caso de 1954.

Entretanto, vistas sob a luz de um foco mais próximo, as diferentes conjunturas de crise têm um desenho próprio. Não só porque as forças sociais se posicionam de forma variável, como ainda porque estas forças (classes ou instituições) se transformaram bastante, sobretudo nos últimos tempos. Para ficar apenas nos exemplos mais expressivos, lembremos as profundas alterações internas e de inserção na área sócio-política que ocorreram na Igreja de um lado, e nas Forças Armadas de outro, nos últimos vinte anos.

Em termos simplificados, a conjuntura atual corresponde à crise do regime militar instaurado em 1964 e que se consolidou em 1968. Parece, assim, mais frutífero no recurso à história comparar a crise dos anos 1963-1964, que desemboca no movimento de 31 de março, com a crise presente que desemboca... não sabemos ainda onde. Como se tem assinalado com freqüência, a ex-'" pressão "golpe de 1964" vale como recurso da fala corrente, mas não dá conta da manutenção histórica iniciada naquele ano. Sob a forma do golpe, ocorria na verdade uma contra-revolução. Com isto, não quero dizer que as premissas de uma revolução social estivessem maduras no período. Mas o certo é que a intensa mobilização das "camadas inferiores" (das classes sociais aos subalternos das Forças Armadas) foi abafada pela violência e, mais do que isto, pela construção de uma ordem autoritária-conservadora, , com apoio em uma base social significativa.

Se, em termos simplificados, a crise de nossos dias é a crise do regime autoritário, instaurado -no país a partir de 1964 também em termos simplificados, a conjuntura dos anos 1962-1963 pode ser caracterizada, do ângulo político, pela crise do populismo. A aliança entre classes ou setores de classes — a burguesia nacional, parte da classe operária e da classe média — promovida por um Estado que passava por ser a síntese das aspirações do povo, entrou em parafuso por várias razões: 1) pelos limites estruturais e políticos do modelo de desenvolvimento autônomo, baseado no pressuposto de uma forte burguesia nacional. Isto era visível já no governo Juscelino quando o "nacionalismo" foi se convertendo em "desenvolvimento", com a crescente internacionalização da economia brasileira, não obstante as desavenças entre o governo e o FMI; 2) pela mobilização das classes trabalhadoras, inclusive dos setores do campo, tradicionalmente sem vez, a que veio somar-se a base das Forças Armadas; 3) pela ação de grupos localizados no aparelho do Estado, promovendo as reformas de base ou estimulando o movimento popular, na tentativa de dar conteúdo radical ao esquema populista esvaziado de uma sustentação de classe.

Lembremos que a transição, ainda incerta, do modelo de desenvolvimento, no início da década de 60 em meio à instabilidade política, não se fez sem problema. Alguns deles são familiares aos nossos ouvidos; tendência à queda do PIB (Produto Interno Bruto), inflação crescente, pressão dos credores da dívida externa.

Do ângulo social, o movimento de 1964 agregou sob o toque do clarim quase todos os que tinham a perder, dos latifundiários improdutivos (lembram-se)?, à classe média assediada pela inflação e pela reforma urbana.

* * *

As crises se nutrem de dados objetivos: problemas econômicos, descalabro administrativo, desastres políticos etc. Mas são também um fenômeno de consciência. Os setores sociais afetados, de maneira e em graus muito diversos, vivem uma sensação penosa de crise. Tomando o período de um ano, entre novembro de 1982 e novembro de 1983, por exemplo, a percepção é da rápida passagem de uma situação de esperança a uma profunda intranqüilidade. De certo modo, convergiam para definir a situação de esperança o jogo de esconde-esconde do governo e das expectativas da oposição. Do lado do governo, não obstante as dificuldades no plano econômico-financeiro, havia todo um esforço para esconder o lixo debaixo do tapete. Com sua ironia pesada, hoje também em crise, o ministro Delfim desmentia, por exemplo, os boatos de que o Brasil iria pedir socorro ao FMI, a exemplo do México, um país encarado com o desdém que merecem os irresponsáveis. Do lado das oposições, parecia lógico concentrar-se na campanha eleitoral onde a crítica à política econômica entrava como ingrediente retórico, sem que se percebesse, com raras exceções, toda sua amplitude.

Em alguns meses após as eleições, como sabemos (e vivemos), os problemas econômico-financeiros do país ganharam o primeiro plano. A multidão formada pelos assalariados das mais variadas faixas acompanha a história de suspense da dívida externa, rói-se com a inflação descontrolada, com a ameaça de perda do emprego ou com a procura dele.

O quadro de nossos dias, com suas repercussões sociais, é muito diverso e infinitamente mais grave que o dos anos 1962-1963. A inflação e sua manipulação política foram elementos integrantes da crise que levou à derrubada de João Goulart. Basta lembrar como a inflação ajudou a deslocar a classe média e a estabelecer distâncias entre o governo e a massa trabalhadora. No seu conjunto, porém, os problemas vinculados à crise final de um modelo ocorriam quando outro — o do "desenvolvimento associado" — já se esboçava. A passagem se deu em uma conjuntura internacional de expansão das atividades econômicas, o que aliás permitiu a implantação em poucos anos do novo modelo, com o recurso da compressão salarial pela violência.

Vê-se por aí que as diferenças entre as duas épocas não se medem apenas em termos quantitativos, segundo o vulto da dívida externa ou os índices de inflação. A crise atual se desdobra no interior de um organismo tomado por uma febre convulsiva sem que existam forças sociais em condições de impor profundas alterações no terreno econômico. Por isso as alternativas são medidas defensivas ou opções que se situam mais no plano do discurso do que da viabilidade imediata. Além disto (não é segredo para ninguém), a crise brasileira de nossos dias se desenrola em uma conjuntura internacional recessiva, da qual aliás faz parte.

Embora não conheçamos todos os possíveis desdobramentos da crise, é certo que ela se distingue de qualquer outra na história brasileira pelas perspectivas de sua duração, assim como por suas conseqüências profundamente negativas no plano econômico e social.

Ainda não sabemos todo o significado da pauperização (juntando os órfãos do milagre e os órfãos da crise) e do desemprego, na vida cotidiana e na qualidade dos movimentso sociais. Lembremos, no plano da vida cotidiana, o problema da criminalidade. É evidente o interesse de setores reacionários — com ampla repercussão popular, é bom que se diga — em aterrorizar a população para fazer retornar a violência policial em larga escala e propor medidas como a pena de morte. Não obstante, trata-se de um problema real, de grandes proporções e que não se reduz à violência da polícia. Questão de todos os dias cujo enfrentamento ultrapassa a simples denúncia da "violência do sistema", por mais verdadeira que ela seja.

Do ângulo dos movimentos sociais, a comparação ajuda a elucidar algumas coisa. As mobilizações de 1963-1964 caracterizaram-se por uma definição mais nítida de classe social ou de grupo; mobilização de setores operários, de diferentes segmentos sociais do campo, da base das Forças Armadas, dos estudantes. Não quero com isto dizer que não ocorressem manifestações de protesto do "povo em geral", enquanto consumidor, tendo como alvo preferido os meios de transporte. Afinal de contas, os "quebra-quebras" fazem parte da história semi-oculta das grandes cidades brasileiras, desde pelo menos o início do século. Mas estas manifestações, onde se incluíam até mesmo os saques, tinham um caráter esporádico e circunscrito, nada comparável ao quadro atual. Este é marcado pelas "explosões de rua" ou pela organização dos movimentos de base, em grande parte sob influência da Igreja, cujos objetivos não dizem respeito diretamente à produção, mas ao consumo popular, indo da exigência de creches ao boicote de gêneros alimentícios.

Estas constatações não pretendem de nenhum modo negar a importância do movimento operário na conjuntura de nossos dias. Nem muito menos sugerir a "superioridade" dos movimentos sociais nos anos 1963-1964. Pelo contrário, o movimento operário — ou pelo menos seus setores mais articulados — mobiliza-se hoje a partir de um grau de maturidade muito maior: ele não se projeta sob a sombra e às vezes o incentivo do Estado, mas como um movimento autônomo cujas reivindicações corporativas se convertem imediatamente em reivindicações políticas, na medida em que se chocam com a política econômica do governo.

Se a conjuntura atual se caracteriza pela possível derrubada de forças no poder e não pela consolidação de forças hegemônicas, nem por isso ela traz consigo apenas uma negatividade. A constatação se torna mais clara quando nos voltamos para o terreno estritamente político. A ruptura dos anos 1963-1964 caracterizou-se não apenas pela desagregação de um regime democrático específico, com todos os seus limites, mas pela crise da própria democracia como valor. Do ponto de vista das forças conservadoras, a democracia se transformaria em obstáculo à implantação do novo modelo econômico e, sobretudo, ao amordaçamento dos "inferiores sociais". No âmbito da esquerda, em maior ou menor grau segundo seus diferentes matizes, as instituições democráticas eram, quando muito, toleradas. Em geral, não pareciam passar de um velho entulho atravancando os novos caminhos a serem percorridos pela Nação, através das reformas de base, sob a bandeira do nacionalismo. Paradoxalmente, na medida em que o tema da ampliação participatória do regime democrático não era relevante para a esquerda daqueles anos, as forças conservadoras puderam utilizar-se da arma da defesa da democracia, como instrumento aglutinador de suas fileiras.

O contraste com a situação de hoje é flagrante. Ressalvados alguns grupos de extrema esquerda e de extrema direita, estes especialmente perigosos, a afirmação de fidelidade aos valores democráticos se tornou hoje um lugar-comum. Não creio que haja sempre sinceridade nisto. A diferença entre o discurso e a prática é notória. Além disto, entre muitos integrantes da cúpula das Forças Armadas, em amplos setores da classe dominante e de sua representação política, a mudança não decorre da convicção mas do pragmatismo resultante de um desgaste. Sob a pressão dos acontecimentos, pode ocorrer aí uma rápida reconversão autoritária. Por último, há todo um problema de conteúdo da democracia que, na visão conservadora, se reduz às nada desprezíveis, porém, manifestamente insuficientes "liberdades formais".

No terreno da construção de uma ordem democrática, a conjuntura atual lembra a de 1945-1946 quando o país saiu da ditadura do Estado Novo, no clima de frente democrática contra o nazi-fascismo. Mais uma vez, as diferenças se impõem: não havia então catástrofe econômica à vista, nem incertezas quanto ao futuro (pelo contrário, vivia-se a euforia de novos tempos), nem problemas sociais com a magnitude dos atuais.

Inevitavelmente, percebemos com facilidade as ilusões do passado e temos dificuldade para vislumbrar as do presente. Apesar disto e apesar de tudo, o Brasil de hoje, tão diverso estruturalmente daquele de quase quarenta anos atrás, é . um país muito mais articulado e mais maduro na compreensão de seus problemas. Como mesmo nas piores conjunturas nem tudo está escrito de antemão, estes são fatores importantes para que mantenhamos a esperança.

Embora em cada um dos momentos em que o Brasil se viu frente a uma crise, neste século, a sociedade apresentasse uma feição especial, é possível descobrir pontos comuns nas crises de nossa história.

Problemas econômicos, instabilidade política, são elementos obrigatórios numa época de crise.

Boatos e desmentidos eram "arroz com feijão" no período eleitoral. "Pedir ajuda ao FMI? Miragem!"

Esta crise é diferente de todas as outras que já aconteceram na história do Brasil. Ela vai durar mais e terá conseqüências mais profundas.

As mudanças que podemos observar na atuação dos movimentos sociais mostram mais um ângulo de onde divisamos a singularidade da crise atual.

Hoje, nos mais diferentes setores da sociedade, democracia é a palavra de ordem. Como em 1945.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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