Acessibilidade / Reportar erro

A eficácia do direito na consolidação democrática

The effectiveness of law in the democratic consolidation

Resumos

Busca-se avaliar a eficácia do direito econômico e social num Estado como o brasileiro. Conclui-se que a baixa eficácia revela a crise estrutural de um Estado nacional cujas instituições não lograram compatibilizar ordem legal e justiça material, certeza jurÃdica e reformas sociais, estabilização macro-econômica e legitimação democrática.


The author argues that economic and social law lacks effectiveness in Brazil. For him this is due to the structural crisis of a national State unable to match legal order with material justice, judicial certainty with social reforms, macroeconomic stabilization with democratic legitimation.


DIREITO E DIREITOS

A eficácia do direito na consolidação democrática* * Trabalho preparado para o workshop sobre "El papel del derecho en los processos de post-transición. democrática", em julho de 1993 no International Institute for the Sociology of Law, era Oñati, Espanha.

The effectiveness of law in the democratic consolidation

José Eduardo Faria

Professor do Departamento de Filosofia, Sociologia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e pesquisador do Centro de Estudos de Direito e Sociedade

RESUMO

Busca-se avaliar a eficácia do direito econômico e social num Estado como o brasileiro. Conclui-se que a baixa eficácia revela a crise estrutural de um Estado nacional cujas instituições não lograram compatibilizar ordem legal e justiça material, certeza jurídica e reformas sociais, estabilização macro-econômica e legitimação democrática.

ABSTRACT

The author argues that economic and social law lacks effectiveness in Brazil. For him this is due to the structural crisis of a national State unable to match legal order with material justice, judicial certainty with social reforms, macroeconomic stabilization with democratic legitimation.

A exemplo de Janus, o processo de transição democrática na América Latina tem duas faces: do ponto de vista jurídico-formal, ele começa com a restauração do respeito à lei, avança com o restabelecimento dos mecanismos representativos e o retorno das eleições diretas, por meio do voto secreto e universal, e se encerra no ato da promulgação de uma nova constituição; do ponto de vista político-substantivo, no entanto, o processo de transição democrática somente estaria terminado caso se revelasse capaz de propiciar a estabilização da moeda, a retomada do crescimento, a superação das desigualdades sociais, regionais e setoriais e o equacionamento da marginalização econômica de amplos segmentos da sociedade.

Como se vê, embora a expressão "transição democrática" seja de uso constante para designar o processo de distensão do autoritarismo ao pluralismo, ela não é, por si só, explícita e auto-unívoca.1 1 Como afirma Luciano Martins, há "uma diferença básica entre o uso corrente (político, jornalístico...) da expressão "transição para a democracia" e o tratamento que a reveste quando utilizada na literatura acadêmica, pois, nesta, os desfechos desses processos de transição são quase sempre problematizados. Não obstante isso, mesmo nessa literatura a ênfase tem sido posta (e nem sempre enquanto hipótese) no desfecho democrático. Talvez por essa razão a probabilidade de seu prevalecimento e o próprio processo de transição têm sido preponderantemente examinados à luz da correlação de forças e do jogo político entre os declarados defensores da democracia e seus reais ou potenciais opositores autoritários, sem muita atenção talvez para o padrão de ação política que caracteriza o desempenho doe primeiros. A abordagem alternativa tem sido a de considerar esse padrão, quando ele indica um baixo desempenho ou está eivado de práticas antitéticas à prática democrática como uma das seqüelas do autoritarismo, a qual tenderia a se diluir através da própria experiência democrática". Cf. Luciano Martins, Ação Política e Governabilidade na Transição Política Brasileira, Campinas, Unicamp, mimeo, 1988. O problema desse conceito está na complexidade de seu objeto: longe de ser linear ou racional, tal processo não se esgota com a dissolução de um regime autoritário, mediante uma simples liberação do sistema político. A elaboração teórica dos processos de "abertura", especificamente aquela produzida nos anos 80, afirma que eles só se consolidam efetivamente quando o regime recém-liberalizado, além de restaurar o pleno exercício do pluralismo, restituir os direitos políticos e as garantias públicas, restabelecer institutos jurídicos abolidos ou pervertidos durante o regime autoritário e definir regras democráticas para o jogo representativo, também institucionaliza os direitos sociais e econômicos e promove reformas e mudanças estruturais. Evidentemente, o alcance, a natureza e o grau de urgência dessas reformas e mudanças variam de sociedade para sociedade; por isso, em cada uma delas é diferente seu peso e sua importância para viabilizar a "construção democrática", do mesmo modo que também é distinto o tipo de resistência a elas oposto.2 2 Cf. Guillermo O'Donnell, 'Transições, continuidade e alguns paradoxos" in A democracia do Brasil: dilemas e perspectivas, Fábio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.) São Paulo, Vértice, 1988; e Luciano Martins, Ação Política e Governabilidade na Transição Política Brasileira, op. cit. O grande desafio, nesses casos, é encontrar um ponto de equilíbrio entre a implementação dessas mudanças e reformas e as resistências a elas oferecidas; o que, na prática, exclui um jogo de soma zero ao mesmo tempo em que exige amplas estratégias de negociação, acompanhadas de uma combinação entre técnicas econômicas e "lucidez política" capaz de propiciar o ajuste tanto dos objetivos aos meios quanto das carências sociais aos recursos disponíveis.

Nesta definição, a transição corresponde à primeira etapa do processo de democratização. A etapa seguinte corresponde à "pós-transição" ou à "consolidação democrática", aqui entendida como o momento de formulação, implementação e realização das condições sociais, culturais, econômicas, administrativas e políticas necessárias ao funcionamento de um regime realmente aberto, pluralista e legítimo, capaz de explicitar — e, ao mesmo tempo, de atender — as diferentes demandas emanadas do interior da sociedade. Nas sociedades que estiveram durante muito tempo sujeitas a uma forte discriminação, quer na participação política, quer na distribuição de renda e no acesso ao consumo, o desafio que se interpõe para a governabilidade democrática, nos períodos de pós-transição, é conjugar o conjuntural ao estrutural. Ou seja, compatibilizar os imperativos de curto prazo, em matéria de estabilização da moeda, saneamento das finanças, equacionamento da dívida externa, definição de investimentos, e reequilíbrio do sistema econômico, e as exigências de médio e longo prazos, em matéria de um planejamento consistentemente formulado a partir de um projeto político explícito e legitimado por uma clara maioria. Esse é um desafio sempre difícil de ser vencido, pois as políticas de curto prazo muitas vezes têm seu sucesso condicionado a profundas alterações nas regras vigentes de funcionamento do sistema econômico e do sistema jurídico-judicial, enquanto a definição de um planejamento de médio prazo costuma exigir a estabilização dessas mesmas regras em ambos os sistemas.

Tal desafio se expressa sob a forma de uma situação dilemática, em que a precariedade do equilíbrio entre as exigências de curto prazo e os imperativos de médio e longo prazos, aumentando o "hiato" entre os recursos necessários e os recursos efetivamente disponíveis para a resolução dos problemas "sistêmicos" por uma estrutura decisória sobrecarregada, pode acabar propiciando condições políticas para um possível realinhamento de coalizões conservadoras capazes de impedir o governo de decidir dentro das regras democráticas e, em decorrência, de bloquear a própria dinâmica do processo de pós-transição democrática. Esse bloqueio fica nítido quando o padrão de governabilidade imposto em nome da "salvação nacional" requer uma separação autoritária entre a gestão "administrativa" da economia e a formação política da "vontade geral", a pretexto de neutralizar a explosão de reivindicações, e/ou exige uma "conciliação" cooptadora entre diferentes setores sociais — o que perverte a transição e a consolidação democráticas ao convertê-las numa continuidade disfarçada do regime político anterior.

Em suma: como a democratização sem modernização do Estado, sem estabilização econômica e sem mudanças sociais costuma desembocar em ingovernabilidade e como o custo dessa mesma modernização, dessa estabilização e dessas mudanças pode acabar levando à erosão do regime democrático, o desafio acima mencionado se traduz, pela dificuldade de se saber, na dinâmica política e na especificidade de cada contexto localizado, qual o lado da alternativa deve ser valorizado quando a complexidade das dificuldades econômicas, num período de pós-transição, atinge níveis explosivos: o lado da acumulação de "capital democrático" contra as resistências anti-democráticas, que se valem de crises que impedem qualquer cálculo econômico e da incapacidade dos governos para controlá-las com a finalidade de neutralizar e/ou retardar a consolidação da transição; ou o lado da maximização dos intrumentos da política econômica para, mediante a combinação de severas medidas de caráter fiscal e monetário com duras medidas de controle estatal dos preços e salários, reestruturar as contas públicas e disciplinar o sistema produtivo.

OS IMPERATIVOS DA ECONOMIA E AS EXIGÊNCIAS DO DIREITO

Como nessas situações dilemáticas, que condicionam tanto a dinâmica quanto o próprio alcance dos processos de transição e consolidação democráticas, direito e governabilidade tendem a acabar convertidos em pólos conflitantes, quando não excludentes, uma alternativa metodologicamente viável para discutir o tema proposto é encará-lo paradigmaticamente pelas suas extremidades. Ou seja: pelo ângulo da tensão estrutural entre a lógica jurídica, com sua racionalidade assentada em princípios e premissas de caráter formal, e a lógica econômica, voltada à consecução de resultados positivos de natureza substantiva. Em termos esquemáticos, que encerram o risco de algum maniqueísmo, essa tensão entre os imperativos da economia e as exigências do direito pode ser vista como resultante do choque entre duas posições diametralmente antagônicas: a procura da essência alocativa, por parte dos economistas, especialmente aqueles que tomam a economia de mercado e o modo capitalista de produção como base institucional para seus diagnósticos, suas análises e suas políticas; e a preocupação com o enquadramento legal-racional do poder com a calculabilidade das expectativas e com a certeza jurídica, por parte dos juristas, principalmente aqueles cujo saber profissional e cuja visão de mundo foram forjados a partir de um modelo legalista-liberalista de direito e Estado.

É a permanente preocupação com os resultados, ou seja, com o sucesso de seus programas e a eficácia de suas decisões, que muitas vezes leva os economistas a não dar a devida importância à s leis e aos códigos. "Valorizaremos (...) os fins acima dos meios e preferiremos o bem ao útil (...). O ritmo em que poderemos atingir esse nosso destino de satisfação econômica será condicionado por quatro fatores — nossa capacidade de controlar a população, nossa determinação em evitar guerras e dissensões civis, nossa disposição em confiar à ciência, e o ritmo de acumulação, fixado pela margem entre a produção e o consumo; este último facilmente zelará por si depois da ocorrência dos três primeiros".3 3 Cf. John Maynaid Keynes, "As possibilidades econômicas de nossos netos", in Keynes, Tamás Szmrecsà myi (org.), São Paulo, Ática, 1978, pp. 158-159. Para uma análise das implicações éticas deste tipo de afirmação, ver Joan Robinson, "A polêmica em economia política", in Introdução à Teoria Geral do Emprego, Rio de Janeiro, Fundo da Cultura, 1960; Jacob Viner, "A relação entre a economia e a ética", in Ensaios Selecionados, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1972; e Amartya Sen, "Comportamento econômico e sentimentos morais", in Lua Nova 25, 1992. Nesse caso, e falando em termos weberianos, a racionalidade material seria mais importante do que a formal; na medida em que as premissas da ação e da decisão econômicas não são regras que precisam ser obedecidas de maneira estrita, porém recursos avaliados do ponto de vista de sua adequação para a realização de determinadas tarefas e para a consecução de determinados objetivos, o direito tenderia a se converter num mero instrumento de poder, isto é, tenderia a ser relativizado em sua generalidade abstrata por critérios de oportunidade e interpretação, perdendo, em função de sua validade formal, sua capacidade de legitimar o proceso de formulação, implementação e execução de políticas governamentais.

Como a apropriação, o controle e a transferência dos recursos públicos e a prerrogativa de concessão de estímulos, quotas e subsídios sempre consistem numa formidável fonte de poder, é a preocupação com risco de eventuais arbítrios que, nos períodos de transição e consolidação democrática, leva os juristas a se converterem nos profissionais dos procedimentos, dos prazos e das argumentações lógico-formais — numa palavra, nos guardiães da legalidade. "Toda e qualquer tentativa de limitar o poder, a fim de, impedindo-lhes os abusos, assegurar a liberdade e outros direitos fundamentais, esbarra sempre num problema: a organização limitativa do poder própria para momentos de normalidade é inadequada para os períodos de grave crise. Isto, na verdade, já foi visto pelos romanos. De fato, no período republicano, em que existia uma divisão do poder entre cônsules, Senado e povo (que participava do governo no comitia), tal organização logo se revelou incapaz de superar as graves crises decorrentes, seja da guerra com inimigo estrangeiro, seja da insurreição provocada internamente por facção descontente. Entretanto, aperceberam-se bem cedo os romanos que a superação de tais crises, caso não se fizesse sob um sistema disciplinado pelo direito, que desse poderes maiores à autoridade incumbida de restabelecer, ou manter, a ordem constitucional, mas ao mesmo tempo lhe impusesse alguns limites mínimos, levaria ao perecimento da própria ordem constitucional que se almejava salvaguardar. Isto é, conduziria à tirania." 4 4 Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras", in Revista de Informação Legislativa; Brasília: Senado Federal, 1990, nº 108, p. 33. Para uma análise das implicações jurídico-políticas deste tipo de afirmação, ver Norberto Bobbio, "Ética e Política", e Michelangelo Bovero, "Ética e Política entre maquiavelismo e Kantismo", ambos in Lua Nova, São Paulo: Cedec, 1992, nº25. Nessa ótica, portanto, a racionalidade formal, que se estabelece por meio de uma disjunção entre as premissas e o aparelho burocrático que as executa, seria mais importante do que a material — o que faz do direito um instrumento de "segurança" dos cidadãos.

Se essa tensão no relacionamento entre os imperativos da economia e as exigências do direito pode ser identificada como "natural" nas sociedades bem integradas, com uma economia estável e um sistema jurídico depurado em suas concepções jurídicas de eqüidade, nas sociedades sem tais características, como as da América Latina, a situação é outra. Em tais sociedades, a tensão tende a converter em antagonismo declarado à medida que surgem problemas econômicos crescentemente complexos; problemas que comprometem a aplicação de direitos sociais cuja efetividade depende da eficiência do setor público na prestação de serviços básicos e cuja qualidade está proporcionalmente condicionada pelo nível da receita tributária do Executivo; que acarretam mudanças profundas em hábitos de vida e acesso a consumo, modificando os padrões de poupança voluntária e compulsória; e que alteram os critérios vigentes de alocação de recursos, exigindo dos governantes a edição de inúmeros "regulamentos e necessidades".5 5 "Regulamentos e necessidades", segundo Duguit, são "leis editadas com base no poder regulamentar do Executivo, submetidas à ratificação invalidatória por parte do Legislativo". Cf. Leon Duguit, Traité du Droit Institutionel, Paris, LGDJ, 1980. É em face da excessiva produção desses "regulamentos" que emergiu, nas últimas décadas, a tese a favor de um "estado de necessidade econômica", no âmbito do Direito Constitucional. Ver, nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras", in Revista de Informação Legislativa, op. cit., p. 35. Nesse cenário, uma das conseqüências do processo de "juridificação"6 6 Cf. Brian Bercusson, "Juridication and disorder", in G. Teubner (org.) Juridification of Social Spheres, Berlim, Walter de Gruyter, 1987; e Barry Mitnick, The Political Economy of Regulation, Nova York, Columbia University Press, 1980. provocado pela enorme produção de leis, decretos, portarias e instruções normativas, por parte dos responsáveis pela política macro-econômica, aumentando de modo muitas vezes desordenado e desarticulado o número de matérias e atividades reguladas juridicamente, acaba sendo a perda da capacidade de predeterminação das decisões concretas por meio do próprio direito positivo7 7 Essa perda da capacidade de determinação do direito decorreria da multiplicação desenfreada de normas que se limitam a prescrever a consecução de determinados fins à administração pública. Ver, nesse sentido, Ingeborg Maus, Rechtstheorie und Politische Theorie im Industriekapitalismus, Munique, Fink Verlag, 1986, pp. 277-331. . Nos países com sistemas sociais fracamente integrados, estigmatizados por uma inflação crônica que expressa uma baixa capacidade governamental, quer de controle, quer de indução do comportamento dos agentes econômicos, e exige programas de ajuste que invariavelmente suscitam choques distributivos, essa tensão entre os imperativos da economia e as exigências do direito costuma derivar para o confronto aberto — a ponto de, muitas vezes, acabar pondo em risco a própria consolidação da transição democrática.

À luz dessa tensão e do risco que ela enseja em quase toda a América Latina, a polaridade entre eficiência econômica e certeza jurídica, entre programas anti-inflacionários e ordem constitucional, entre gestão de políticas públicas e reconhecimento dos direitos individuais, entre meios tidos como ilegais e fins considerados legítimos, numa palavra, entre governabilidade substantiva e legitimidade legal-racional, delimita o campo temático deste trabalho. Dentro desse campo, tal confronto será aqui tratado a partir de um problema específico, relativo à crescente falta de eficácia de certas normas de direito econômico e social no âmbito de um Estado recém-saído de um processo de transição democrática e formalmente dotado de um grande poder de intervenção — o Estado brasileiro. Tradicionalmente definida pelos juristas como "o poder de produzir efeitos jurídicos concretos" na regulação de atos, situações e comportamentos por meio de códigos e leis, a eficácia jurídica tem sido examinada sob duas perspectivas: no plano dogmático, os códigos e as leis são eficazes quando aplicados a partir dos procedimentos e determinações estabelecidos por um sistema legal formalmente "válido" — validade aqui compreendida como uma característica intrínseca de uma ordem normativa hierarquizada e piramidal, ou, nas palavras de Kelsen, como "o modo de existência específico das normas jurídicas"; no plano jus-sociológico, os códigos e as leis são eficazes quando encontram na realidade por eles disciplinada e regulada as condições políticas, sociais, econômicas e culturais para sua aceitação e para o reconhecimento de sua legitimidade.

Longe de se excluírem, essas duas definições de eficácia são analiticamente ricas quando utilizadas em conjunto no exame de problemas concretos8 8 Assumo como sinônimos, neste trabalho, os conceitos de eficácia e de efetividade, limitando-me à distinção de dois planos analíticos: o dogmático e o jus-sociológico. Alguns teóricos do direito, contudo, diferenciam esses dois conceitos. Por eficácia, designam as modalidades formais e as condições técnico-jurídicas da aplicação de normas válidas; por efetividade, designam o acatamento das normas jurídicas pelos seus destinatários e a consecução, em termos concretos, dos objetivos previstos pelo legislador. A divergência entre o que dizem esses autores e o modo como utilizo analiticamente as noções de efetividade, enquanto sinônimos, são, em minha opinião, mínimas. Ver, nesse sentido, P. Lascoumes e E. Serverin, "Theories et pratiques de l'effectivité du Droit", in Droit et Societé, Paris, 1986, nº 2, pp. 101-123; Arnaud et alii, "Effectivité", in Vocabulaire Juridique, Paris, PUF, 1987; e François Rangeon, "Reflexions sur l'effectivité du droit", in Les usages du savoir juridique, Daniéle Loschak (org.), Paris, Centre Universitaire de Recherches Administratives et Politiques de Picardie/PUF, 1989. — entre outros motivos porque, aplicada de modo exclusivista, a eficácia na perspectiva dogmática subestima a diversidade e a complexidade das relações que os atores sociais mantêm com o direito; e, no sentido jus-sociológico, subestima os riscos da dissolução dos valores e procedimentos especificamente jurídicos numa dimensão utilitarista ou instrumental, por meio de variados mecanismos de violência simbólica. Nesse sentido, um determinado sistema jurídico não se torna eficaz apenas porque é um conjunto de regras internamente coerente, em termos lógico-formais, ou porque está sustentado no monopólio da força do poder que o positivou; ele também se torna eficaz porque os cidadãos incorporam em suas consciências a premissa de que essas regras devem ser invioláveis. Sem a internalização de um sentido genérico de disciplina e sem o respeito à s diretrizes legais, a eficácia de um sistema jurídico acaba sendo de algum modo comprometida, independentemente do grau de coercibilidade do Estado que o impõe. Em suma: apontado o campo temático deste trabalho e, dentro dele, identificado o problema específico da eficácia jurídica, resta agora apresentar a questão central que será aqui examinada.

Ela diz respeito ao impacto do direito positivo sobre o sistema produtivo. Como é sabido, no período coberto pela transição democrática brasileira, as estruturas empresariais foram profundamente alteradas pelas transformações tecnológicas contemporâneas, que substituíram as clássicas plantas industriais baseadas no uso de maquinaria especializada e em amplos contingentes de trabalhadores semi-qualificados por plantas mais flexíveis ou maleáveis, preparadas para fabricar bens heterogêneos, aptas a responder às mudanças exigidas pelo mercado e operadas por grupos selecionados de trabalhadores altamente capacitados. Apesar da redemocratização do país, no plano político, o direito econômico e social brasileiro não acompanhou esse processo de "especialização flexível" da produção, mantendo a rigidez lógico-formal de normas basicamente voltadas à padronização das ações dos agentes produtivos e organizadas a partir da tradicional distinção entre a legalidade e a ilegalidade dos comportamentos dos "sujeitos de direito". Como as novas estruturas empresariais destacam-se hoje por um número cada vez maior de ações cuja amplitude e flexibilidade impedem sua rigorosa padronização pelos textos legais, por mais abrangentes e/ou minudentes que possam ser, o direito econômico e social em vigor na pós-transição democrática revela-se gradativamente ineficaz. A intervenção e o controle governamental nele baseados tendem a fracassar naquelas matérias que, por causa da "especialização flexível" da produção, não conseguem ser subordinadas às rotinas e aos padrões gerais das políticas econômicas. Preocupados em submeter às suas determinações essas novas estruturas produtivas, os programas de estabilização adotados em 1990 e em 1991 caracterizaram-se por exigir decisões ad hoc nas dimensões temporal, social e temática, fugindo desse modo ao rigor lógico-formal tradicional do direito econômico e social e levando suas normas a serem continuamente reformuladas e reinterpretadas caso a caso, em conformidade com os interesses específicos e conjunturais das autoridades econômicas.

É por esse motivo que as decisões vinculantes do direito positivo brasileiro já não "penetrariam" de modo imediato e automático na essência do sistema produtivo, cuja lógica operacional cada vez mais "flexibilizante" revela-se crescentemente insuscetível à racionalidade formal do ordenamento jurídico vigente. As dificuldades enfrentadas pelo Executivo para efetuar um controle direto dos comportamentos dos agentes produtivos no cotidiano da regulação sócio-econômica, desde a consolidação da transição democrática no plano político, entreabrem um certo deslocamento da autoridade formal do Executivo para algumas instâncias mediadoras que, embora não tendo por função natural o controle social, terminam exercendo-o como parte integrante da concretização de seus fins próprios. Daí a emergência de procedimentos negociados de elaboração normativa e tomada de decisões no âmbito do sistema produtivo — procedimentos esses cujos ritmos próprios e lógicas específicas têm propiciado o advento de uma jurisprudência ad hoc que, muitas vezes, firma-se em descompasso com o que está formalmente prescrito pelo direito positivo.

Para se compreender o alcance desse problema, é necessário partir de uma visão "realista" da sociedade na qual esse sistema produtivo está inserido. Longe do que postula o paradigma normativista e legalista de direito e de Estado, com sua visão de mundo liberal clássica, a sociedade brasileira na pós-transição democrática não deve ser encarada apenas como uma pluralidade de cidadãos livres, independentes e atomizados, exclusivamente encarados a partir de sua individualidade. Na medida em que a estrutura social do país se caracteriza por elevados graus de heterogeneidade e pela coexistência de diferentes segmentos estratificados, alguns altamente desenvolvidos e outros altamente marginalizados, a sociedade brasileira também pode ser vista como uma pluralidade conflitante de diferentes grupos e coletividades. Nesse contexto atravessado por formas discrepantes de sociabilidade, algumas enraizadas em termos históricos e outras irrompendo na dinâmica de um contínuo processo de transformação das formas de produção e consumo, a expansão e a multiplicação desses grupos e coletividades tendem a tornar a vida política mais divisível, a modificar o perfil da regulação institucional e a alterar a direção da evolução social. Trata-se de um processo que, já visível no início da transição democrática, está levando à superação das situações em que era possível referir as relações sociais somente a "pessoas", acarretando o progressivo enfraquecimento do indivíduo como unidade relevante de ação e provocando a generalização das grandes organizações como forma de atuação política. Nos segmentos mais modernos e desenvolvidos do país, as relações sociais hoje cada vez mais se referem à interação entre as diferentes organizações das quais as "pessoas" fazem parte como empresários, trabalhadores, sindicalistas, etc.

INTEGRAÇÃO SOCIAL E INTEGRAÇÃO SISTÊMICA

Constituindo-se originalmente em torno de conglomerados empresariais, associações sindicais e corporações profissionais, as grandes organizações se destacam pelo alto grau de sua diferenciação interna, pela sua capacidade de agir estrategicamente, pela sua crescente autonomia com relação aos controles jurídico-político-administrativos estatais, pela extrema sofisticação de suas formas de atuação e pela permanente reivindicação de interesses sociais segmentados. É justamente porque elas tendem a forjar suas próprias racionalidades, criar seus próprios recursos, gerar seus próprios mercados e definir seus próprios valores, na luta pela concretização de seus interesses, que a sociedade brasileira, especialmente nos setores industrializados e urbanizados mais modernos, pode ser vista antes como uma constelação de "governos privados" do que como uma associação de indivíduos articulada por um "governo público".

Uma das principais características dessas organizações é sua tríplice capacidade de ação estratégica, associativa e criativa em face da crescente complexidade de seu meio ambiente. A capacidade estratégica se expressa pela eficácia com que executam cálculos de custo/benefício, promovem intercâmbios de bens, serviços e informações com outras organizações e fazem exercícios de simulação (imaginando situações nas quais cada uma se coloca no papel das concorrentes, procurando avaliar qual seria a reação delas); seu comportamento passa, então, a ser ajustado por essas expectativas. A capacidade associativa decorre da eficácia com que cada organização descobre pontos comuns e identifica áreas de conflito de interesses com relação às demais organizações, o que lhe permite somar esforços e formar coalizões que maximizem seus benefícios e minimizem seus custos. A capacidade criativa se traduz sob a forma de um processo de aprendizagem, de decodificação de informações, de adaptação ao meio ambiente e de desenvolvimento de modos e técnicas de ação, o que permite a cada organização ajustar-se internamente para melhor se posicionar em suas interações com as demais organizações.

É o alto grau de racionalização e objetivação atingido por essas organizações, com suas hierarquias funcionais, seus sistemas de O & M, suas regras disciplinares e seus sistemas próprios de segurança, que faz com que tendam a se colocar acima e fora do alcance tanto do direito positivo quanto da inter-subjetividade do espaço público protagonizado por cidadãos formalmente livres. Tal tendência é exponenciada pelo fato de que as necessidades de escala e as oportunidades de ação, possibilitadas pelos avanços da ciência, da tecnologia, das comunicações e dos transportes, levam essas organizações a um tipo de crescimento que ultrapassa a capacidade de controle, regulação e planejamento dos Estados "finalistas" ou intervencionistas.9 9 Tara uma discussão teórica desta questão, ver Rudolf Wietholter, "Materialization and Proceduralization in Modern Law", in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner, (org.), Berlim, De Gruyter, 1985; e François Ost, "Between order and disorder: the game of law", in Autopoietic law: a new approach to law and society, G. Teubner (org.), Berlim, De Gruyter, 1988. Trata-se de um crescimento cada vez mais condicionado pelos programas de global sourcing das grandes empresas transnacionais, criados especificamente com o objetivo de formar uma ampla rede de fornecedores mundiais capazes de garantir o suprimento de suas unidades localizadas em diferentes países. Nessa busca por novos espaços e formas de atuação, por opções de investimento, por maior rentabilidade para seus excedentes e por novas fontes de matérias-primas, energia e conhecimento, elas criam interdependências e interconexões com outras organizações, desenvolvem processos decisórios multibu-rocráticos e produzem estruturas interligadas de gestão, fiscalização e programação — o que abre caminho para (a) uma progressiva fragmentação e privatização das funções públicas, (b) a erosão da tradicional concepção unitária de ordem jurídica, encarada como fonte exclusiva de autoridade formal, (c) a substituição da hierarquia institucional, formalmente estabelecida pela Constituição, por uma "heterarquia" organizacional estabelecida por grandes conglomerados, centrais sindicais, corporações profissionais, etc., e (d) a conversão do caráter centrípeto dos sistemas sociais num caráter centrífugo — o que transforma as sociedades contemporâneas em sociedades basicamente "plurifinalistas" e policêntricas.10 10 Cf. Helmut Willke, "The tragedy of the State", in ARSP-Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, 1986, vol. LXXXII p. 647.

Preocupadas com as formas, os limites e os fundamentos tanto da ação estatal quanto do exercício do poder, as concepções modernas de Estado soberano foram formuladas a partir do pressuposto de uma "comunidade nacional de destino"; ou seja, uma comunidade de indivíduos que governa a si própria é soberana para determinar seu próprio futuro. Esse pressuposto, contudo, tem sido posto em questão pela natureza e pelo alcance das diferentes interconexões organizacionais, cujos padrões recentes de comportamento por vezes impedem o Estado soberano de programar com "exclusividade" suas ações e decisões. Em termos concretos, muitos governos nacionais têm perdido a capacidade de determinar o que é apropriado para seus cidadãos e de controlar seus agentes produtivos. Numa situação-limite, a "sociedade de homens" culminaria substituída por uma "sociedade de organizações", na medida em que cada cidadão acabaria enquadrando sua vida profissional, política, social e mesmo familiar na(s) organização(ões) à (s) qual(is) pertence. Trata-se de um processo de mudança que desloca o importante problema da integração social, tradicionalmente disciplinado pelas normas formais do direito positivo, para uma integração sistêmica alimentada e "normatizada" tanto pelas expectativas de lucro, produtividade e consumo dos integrantes de cada organização empresarial e/ou sindical, quanto pelas exigências técnicas dos novos paradigmas da produção capitalista.

No caso da evolução industrial brasileira, a diferenciação funcional registrada entre os anos 40 e 80 conduziu a uma progressiva — apesar de contraditória — especialização e diversificação dos agentes produtivos, cujo impacto sobre as estruturas social e geo-ocupacional do país minou gradativamente os tradicionais efeitos de "nivelamento", "unidimensionalização" e "universalização" produzidos pela regulação formal feita com base em modelos normativistas e legalistas de direito. Dada a instabilidade crônica que tomou conta da economia brasileira desde esse período, cujas seqüelas e incertezas até hoje vêm corroendo a vitalidade do sistema jurídico e negando à s grandes organizações as condições institucionais para planejar suas atividades a médio e longo prazos, ela se viu obrigada a buscar um retorno imediato para seus investimentos, adotando estratégias cada vez mais pragmáticas de satisfação a curto prazo, em detrimento de outras que possibilitariam expectativas de maiores lucros no futuro.

Trata-se de um comportamento defensivo que tem levado as grandes organizações, especialmente as situadas nos segmentos oligopolizados e monopolizados da economia, a uma tendência crescente de "autonomia", procurando extrair do meio ambiente todas as vantagens possíveis (como reservas de mercado, incentivos fiscais, créditos subsidiados e tratamentos favorecidos) ao menor custo de concessões (em termos de livre concorrência, ou seja, de uma efetiva competição econômica). Esse comportamento tem sido basicamente determinado pela capacidade estratégica de cada organização, produzindo linhas "egoísticas" de atuação; tem sido igualmente condicionado por sua capacidade associativa, abrindo caminho para a formação de coalizões defensivas contra planos governamentais, reivindicações sindicais e mudanças legislativas; e tem ainda sido sustentado por sua capacidade criativa, mediante o desenvolvimento de técnicas que ampliam a eficácia das outras duas capacidades.

Como a espiral inflacionaria e as turbulências econômicas dela decorrentes levam todas as organizações a agir da mesma maneira, os padrões "egocêntricos" terminam por prevalecer no cenário sócio-econômico, provocando assim comportamentos predatórios que apenas reforçam os impulsos gerais de auto-defesa. Interagindo de modo perverso, esses comportamentos tendem a tornar medíocre o desempenho global do sistema produtivo, ampliando as desigualdades setoriais, acentuando as diferenças regionais, aumentando as disparidades sociais e acirrando os conflitos distributivos. "Forma-se um padrão de ação/reação contraditória — isto é, em desequilíbrio — que determina a aceitação de resultados cada vez menos satisfatórios, a partir de um esforço cada vez maior de auto-defesa. Acelera-se o processo inflacionário para se obter cada vez menos satisfação, Mas não se admite a possibilidade de abandono do padrão comportamental, para buscar uma situação de maior equilíbrio e ganhos mais reais, porque o sacrifício teria de ser feito no curto prazo e, ainda, no horizonte prevalecente de incertezas."11 11 Cf. S. H. Abranches, "O Leviatã anêmico: dilemas presentes e futuros da política social", in Planejamento e Políticas Públicas. Rio de Janeiro, 1988.

Essa é a razão pela qual economistas de diferentes posições doutrinárias, partindo da profunda heterogeneidade estrutural do país, (a) constatando que as alternativas de gestão econômica por parte do Executivo tendem a se reduzir na mesma proporção em que se expandem as interconexões organizacionais, (b) reconhecendo a enorme diversificação, quer do mercado de bens, quer do mercado de trabalho, e (c) conscientizando-se da necessidade de um Estado efetivamente capaz de colocar na agenda política as questões-limite, que revelam hoje o risco de uma ruptura dos padrões de integração de toda a sociedade, afirmam que o combate à inflação jamais é um processo simples; um processo que dependeria da consistência técnica e da racionalidade substantiva de um programa de ajuste macro-econômico. Pelo contrário, como a inflação alimenta a insegurança dos agentes produtivos, encurtando os horizontes do processo decisório, inviabilizando os cálculos racionais e estimulando as atividades especulativas, e como nas estruturas industriais marcadas pela "heterarquia organizacional" o Estado não consegue realizar muitas de suas funções macroeconômicas e sociais sem a colaboração das diferentes organizações em confronto, os programas anti-inflacionários na pós-transição democrática brasileira exigem, como condição necessária (porém não suficiente) de sucesso, um consenso amplo e capaz de romper com as múltiplas resistências dos conglomerados empresariais, das centrais sindicais e das corporações profissionais.

Em face do tradicional caráter corporativista da estrutura sindical brasileira, que consagra uma distribuição desigual de prerrogativas e vantagens funcionais, bem como das reconhecidas disparidades em termos de poder de barganha nos meios trabalhistas, que propicia crescentes transferências de renda para os setores mais preparados e capacitados na defesa e promoção de seus interesses, o combate à inflação sempre exigiu um considerável grau de cooperação entre os agentes produtivos — cooperação esta alcançável somente por meio de uma delicada e intrincada negociação política. Por isso mesmo, ao se negar a lançar ele próprio as bases para esse tipo de negociação, por razões que não cabem ser aqui discutidas, e ao tentar tratar de modo tão centralizador quão homogêneo um mercado de bens e um mercado de trabalho historicamente divididos em segmentos com dinâmicas distintas, no que se refere à formação dos preços e salários, era natural que o primeiro governo eleito pelo voto direto após a consolidação da transição democrática viesse a enfrentar crescentes dificuldades para fazer "penetrar" os textos legais por ele especialmente formulados para viabilizar seus dois programas de estabilização da moeda.

Embora seu poder formal de intervenção no sistema produtivo em princípio fosse expressivo, tal a abrangência das burocracias e regras especialmente criadas para assegurar a concretização de seus planos de estabilização da moeda, esse governo não alcançou resultados satisfatórios em matéria de controle de preços e salários. Quanto mais ampliou seu poder de intervenção e multiplicou seus meios de ação, muitas vezes de modo inconstitucional, paradoxalmente menos obteve, em termos proporcionais, o acatamento às suas determinações. Quanto mais procurou regular todos os espaços, dimensões e temporalidades do sistema produtivo por meio de uma intrincada teia regulatória, menos revelou-se capaz de expandir de modo eficaz seu raio de ação e de mobilizar os instrumentos de que formalmente dispunha para exigir respeito a suas ordens. Reagindo contra elas, seja simplesmente ignorando-as, seja por meio de ações judiciais, inúmeras organizações situadas em diversos setores econômicos e sociais passaram a agir com base no pressuposto (jamais enunciado) de que suas demandas eram os únicos critérios válidos para determinar seus respectivos comportamentos; tendo desenvolvido estratégias de auto-defesa em face das deficiências operacionais do Executivo e das determinações discrepantes oriundas do furor regulatório das autoridades econômicas, tais organizações não se limitaram a preservar e/ou aumentar seus próprios espaços; elas também procuraram redefinir sua própria ética e gerar suas próprias regras em áreas específicas das relações sócio-econômicas. Foi esse padrão de comportamento maximizador e "egoísta" que as levou a "instrumentalizar" o acatamento das leis em vigor, invocando-as quando elas lhes eram convenientes, desrespeitando-as quando não lhes conviam.

Nesse cenário paradoxal de hiper-centralização administrativa e instrumentalização do acatamento de legislação vigente, por parte dos agentes produtivos, rompendo com a concepção de "administração pública" tradicionalmente definida pelos manuais de Direito Administrativo como um aparato burocrático uniformemente hierarquizado e composto por órgãos cujas competências e procedimentos estão atribuídos por normas gerais e abstratas12 12 Condicionados pela noção tradicional de Estado de Direito, em cujo âmbito o Executivo limita-se a atuar como simples prestador de serviços básicos, os manuais de Direito Administrativo tendem a encarar a "administração pública" numa perspectiva exclusivamente jurídica, a partir dos princípios da legalidade e do equilíbrio dos poderes. A dificuldade enfrentada por esses manuais é conjugar (especialmente por causa do advento do Estado-Provedor, com suas funções reguladoras, controladoras, planejadoras e arbitrais) poder discricionário e certeza jurídica, eficácia na gestão econômica e segurança do direito. Dito de outro modo: como a "administração pública", nos Estados intervencionistas, é um aparato burocrático que procura programar ele próprio instrumentos jurídicos e as normas de que necessita, nem sempre esses manuais são sensíveis ao problema da compatibilização entre uma governabilidade condicionada por crises estruturais profundas, que exigem um amplo raio de ação por parte do Executivo, e uma ordem legal efetivamente capaz de propiciar essa governabilidade garantindo ao mesmo tempo a continuidade da certeza jurídica. , a linearidade do movimento "causa/efeito" inerente às concepções tradicionais de direito positivo foi sendo gradativamente substituída, à medida que fracassava a política econômica do primeiro governo da pós-transição democrática, pela crescente circularidade de sistemas relativamente autônomos.13 13 Para uma discussão jus-sociológica da evolução dos sistemas jurídicos hierarquizados para sistemas normativos circulares, ver Alberto Febbrajo, "From hierarchical to circular models in the Sociology of Law", in European Yearbook in the Sociology of Law, Milano, Giuffrè, 1988; e "The rules of the game in the Welfare State", in Dilemmas of Law in Welfare State, op. cit Uma prova disso está no fato de que, apesar de se ter formalmente proibido o repasse dos aumentos salariais aos preços finais, os grandes monopólios e oligopólios decidiram conceder antecipações e bonificações para seus funcionários, repassando-as aos consumidores, aceitando negociar com os sindicatos; e estes, ao conseguirem reajustes expressivos, legitimaram-se perante sua própria clientela, sem que o Executivo conseguisse impedir a expansão dessas alianças informais de interesses. O que explica a falta de eficácia das determinações governamentais é o fato de que, no Brasil da pós-transição democrática, a diversidade de comportamentos dos agentes produtivos decorre tanto da capacidade diferenciada das empresas de fixar seus preços sem incorrer em perdas de mercado quanto da capacidade dos sindicatos de assegurar aumentos salariais sem conflitos confrontacionais com os empregadores.

Por causa da proteção à concorrência externa dispensada à s empresas industriais pelo Estado, responsável pela constituição de amplas reservas de mercado e grandes cartéis em determinados setores da economia, existe uma relação direta entre a capacidade de certos conglomerados de arbitrar seus preços sem o risco de perda de mercado e o poder dos sindicatos de obter sucessivas majorações salariais. Quanto maior é o grau de oligopolização e monopolização no setor de atuação desses conglomerados, maior sua capacidade de repassar aumentos salariais para seus preços finais — o que lhes permite atender reivindicações trabalhistas de modo pragmático com o fim de neutralizar riscos de conflitos selvagens com os sindicatos. E como estes tendem a ser política, econômica e institucionalmente mais fortes quanto mais se concentram nos setores oligopolizados, são eles que, nas lutas trabalhistas, se destacam não só pelo seu alto poder de mobilização, barganha e confronto, mas, igualmente, pela conquista dos melhores ganhos salariais e benefícios sociais. Trata-se, portanto, de um processo que tende a promover uma gradativa, porém substancial, transferência de renda dos setores mais competitivos. Neles, por existir uma concorrência que impede as empresas de embutir nos preços de seus produtos os reajustes concedidos sem o perigo de perder sua posição no mercado, as negociações entre o capital e o trabalho são compreensivelmente muito mais duras e tensas do que para os setores oligopolizados — setores estes que, conforme suas conveniências e seus interesses, podem agir segundo a lei ou, então, contra ela:

"Desde que seja possível repassar aos preços os aumentos de salários, as empresas não resistem às demandas dos sindicatos. Com isso, evitam problemas com sua força de trabalho, reduzem o nível de conflito e as negociações salariais tornam-se efetivamente tranqüilas. Dada a crise financeira do Estado e suas empresas, essa filosofia não pode ser aplicada neste setor, da mesma forma que tampouco atinge o segmento competitivo da economia. Esse acordo não consciente entre as empresas do segmento oligopolizado da economia e seus sindicatos mais ativos tem efeitos devastadores sobre o processo inflacionário e a distribuição de salários. O repasse dos aumentos nominais de salários aos preços, por parte das empresas, significa que o custo real da mão-de-obra não cresce e suas margens de lucro são mantidas. Quanto aos trabalhadores, os pertencentes aos sindicatos mais organizados têm melhores condições de defender salários reais devido à tendência das empresas deste segmento. No segmento competitivo, como a concorrência é maior, as empresas terão um comportamento menos leniente, pois seu poder de repassar aos preços os reajustes obtidos pelos trabalhadores é menor. Em conseqüência, não só os preços nestes setores crescem menos que os dos setores mais oligopolizados e/ou monopolistas, como os salários tendem a crescer menos que a taxa de inflação. Nesse contexto, ganham (ou deixam de perder) os trabalhadores do segmento oligopolizado e dos sindicatos mais ativos e organizados, pois a inflação média tenderá a ser menor que a taxa de crescimento dos preços destes setores, e perdem os trabalhadores do segmento competitivo do mercado de bens, pela razão inversa. Esse processo não pode ser quebrado por uma empresa individualmente. Se uma empresa do setor oligopolizado decide endurecer no processo de negociações de forma isolada, enfrentará sérios conflitos com seus sindicatos e verá o salário real de seus trabalhadores se reduzir em relação à média do setor. O resultado final seria um aumento do conflito dentro da empresa, queda de produtividade e, possivelmente, ao contrário do que se poderia esperar, piora de sua posição concorrencial em relação a seus competidores."14 14 Cf. Edward Amadeo e José Márcio Camargo, "Mercado de trabalho e dança distributiva", in Fábio Giambiagi e José Márcio Camargo (orgs.), Distribuição de Renda no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.

Como a inflação sempre afeta a distribuição de renda a favor dos agentes com maior capacidade de fixar seus preços e contra os que não conseguem defender-se por meio do reajuste de seus salários nominais, o primeiro governo da transição pós-democrática, ao procurar controlá-la com medidas homogêneas e ao tentar executar a reordenação global da economia (a) sem reconhecer o potencial de autonomia de determinados grupos sociais, (b) sem converter em interlocutores as principais lideranças econômicas e trabalhistas e (c) sem valorizar a constituição de organismos de intermediação de interesses sócio-econômicos para assegurar quer a "vinculabilidade" quer a "efetividade" dos seus planos de ajuste, acabou não conseguindo vencer a resistência dos diferentes setores sócio-econômicos; particularmente daqueles dotados de alto poder de mobilização e confrontação e de uma aguda consciência de sua posição cartelizada e estratégica no sistema produtivo. A partir daí, em vez de promover uma gradativa substituição da forte carga impositiva, proibitiva e restritiva inerente à s medidas provisórias por estratégias mais sutis de persuasão e cooptação dos agentes produtivos, esse governo passou a editar desenfreadamente portarias, decretos e atos declaratórios — ou seja, uma legislação dispositiva condicionada por conjunturas muito específicas e transitórias. Além de pouco inteligente, essa foi também uma reação paradoxal. Por quê?

Porque na medida em que tentou ampliar o alcance de seu poder formal de intervenção por meio de um complexo legislativo formado por diferentes leis de circunstância e regulamentos de necessidade que, intercruzando-se, produziram inúmeros micro-sistemas e distintas cadeias normativas, as autoridades econômicas acabaram caindo na própria armadilha por elas criada para apreender os agentes produtivos nas malhas de uma ordem jurídica excessivamente reguladora e minudente. Num sistema jurídico assim "inflacionado", em que a velocidade e a intensidade na produção de novas portarias, pareceres e decretos leva o Executivo a perder a dimensão exata do valor jurídico das regras que edita e dos atos que disciplina, todas elas acabam sendo passíveis de um contínuo trabalho interpretativo por parte de seus destinatários — interpretação aqui entendida como um ato hermenêutico que não se resume à "descoberta da vontade da lei" (conforme as doutrinas jurídicas de caráter idealista, que pressupunham, ingenuamente, uma verdade própria nas normas a serem interpretadas); implicando um processo de comunicação e uma crítica ideológica à s regras editadas no "passado", a interpretação de algum modo acaba sendo um ato "novo" que possibilita, no "presente", uma espécie de "reconstrução" da realidade.

Como a legislação dispositiva editada pelo primeiro governo da transição pós-democrática se caracterizou ora pelo seu inter-cruzamento disfuncional com a legislação ordinária, rompendo com a univocidade, a homogeneidade e a organicidade do sistema jurídico em vigor, ora pela "textura aberta" de suas normas, em face do uso abusivo de conceitos vagos e/ou estereotipados, ela propiciou as mais variadas "leituras" — o que terminou por favorecer, no momento de sua aplicação, a "instrumentalização" do acatamento da legislação vigente pelos agentes produtivos. Ao agirem desse modo paradoxal, gerando em nome do combate à inflação econômica uma inflação jurídica que conduziu à desvalorização do instrumental normativo que tinham ao seu dispor e ao subseqüente desvirtuamento dos aparatos burocráticos de cuja direção estavam investidos, as autoridades econômicas não se limitaram a tornar o Executivo vulnerável à s batalhas judiciais, submetendo-o a sucessivas e humilhantes derrotas nos tribunais. Elas também aumentaram ainda mais as tensões e as incongruências entre a estrutura do processo de negociações coletivas, o conflito distributivo e os subseqüentes efeitos da própria espiral inflacionária.

CORPORATIVISMO E DEMOCRACIA

Essa relação ambígua entre o poder formal e a fraqueza real do primeiro governo da transição pós-democrática configura um caso de situação-limite para a democracia brasileira. Esse caso (a) revela os limites materiais de capacidade de regulação, direção e intervenção do Estado no plano sócio-econômico; (b) expressa o agravamento de sua inaptidão estrutural com relação a fatos sociais complexos, que exigem do setor público a instrumentalização de um número cada vez maior de mecanismos de decisão e controle para assegurar o cumprimento de suas funções potencialmente contraditórias de reprodução e legitimação; e (c) aponta o esgotamento de "incrementalismo jurídico", isto é, da utilização do direito como simples instrumento de implementação de programas econômicos e políticas públicas. Configurando uma crise generalizada de um padrão específico de intervencionismo estatal, esses três problemas configuram o que Gunther Teubner, numa sofisticada teorização sobre os Estados "finalistas" e suas implicações jurídicas15 15 Cf. G. Teuhner, "Substantive and Reflexive Elements in Modern Law", in Law and Society Review, 1983, v. 17; "After legal instrumentalism? Strategic models of post-regulatory law", in International Journal of the Sociology of Law, 1984, v. 12; "The regulatory trillemma", in Quaderni Fiorentini, 1984, v. 13; "Corporate responsibility as a problem of company constitution", in EUI_Working Paper, Fiesole: European University Institute, 1985; "Social order from legislative noise?", in State, Law and Economy as autopoietic systems: regulation and automony in a new perspective: Berlim, De Gruyter, 1987; Autopoietic Lam a new approach to law and society, op. cit.; "Hypercycle in law and organization: the relationship between self-observation, self-constitution and autopoiesis", in European Yearbook in the Sociology of Law, op. cit.; "Enterprise corporatism: new industrial policy and the essence of legal person", in The American Journal of Comparative Law, 1988, nº 1, v. XXXVI; "How the law thinks: toward a construtivist epistemology of law", in Law and Society Review, 1989, v. 23; e "And God laughed: indeterminacy, self-reference and paradox in law", in Critical legal thought: an American-German Debate, D. Trubek e C. Joerges (orgs.), Baden-Baden, Nomos, 1989. , chama de trilema regulatório. um tríplice dilema formado (a) pela progressiva "indiferença" recíproca entre o direito e a sociedade, (b) pela tentativa de "colonização" da sociedade por parte das leis e (c) pela crescente "desagregação" do direito por parte da sociedade.

O primeiro dilema decorre do fato de que, por causa do alto grau de diferenciação estrutural e funcional das sociedades contemporâneas, cada sub-sistema social tenderia a respeitar somente as regras forjadas em seu interior, e não as normas jurídicas emanadas do poder central do Estado. Ou seja: quanto mais complexos são os sistemas sociais, menor seria a autoridade institucional do Estado, em termos de controle direto das inúmeras interações entre indivíduos, grupos e coletividades. Já o segundo dilema decorre do fato de que, por causa de sua natureza cada vez mais teleológica e técnica, o direito positivo tenderia a tratar com categorias excessivamente "particularizantes" as relações sociais básicas, destruindo sua autenticidade e minando sua identidade. Ou seja: quanto mais esse direito positivo substitui suas tradicionais normas abstratas e genéricas por normas bastante técnicas e específicas, mais comprometeria as relações vitais que constituem a espinha dorsal de uma dada sociedade. Por fim, o terceiro dilema advém do fato de que, por causa da alta mobilidade social e mudanças ultimamente ocorridas nos sistemas político-administrativo e sócio-econômico, um direito positivo de caráter cada vez mais "finalístico" acabaria enfrentando sempre problemas de racionalidade sistêmica. Ou seja: quanto mais ele multiplica suas normas e leis específicas para intervir "tecnicamente" na dinâmica de uma sociedade complexa, menor seria sua coerência interna e sua organicidade — o que revelaria, com o tempo, sua progressiva incapacidade de dar conta das tensões e dos conflitos sociais a partir de um conjunto minimamente articulado de "premissas decisórias".

Decorre daí, em face da crise estrutural do Estado brasileiro na pós-transição democrática e de seu instrumental jurídico, ilustrada no item anterior pela progressiva incapacidade do governo de agir de modo independente na formulação de políticas públicas e pela sua decrescente influência sobre os comportamentos inter-individuais, a necessidade de uma racionalidade legal nova e capaz de dar conta do caráter corporativista que vai caracterizando seu efetivo processo de tomada de decisões; uma racionalidade forjada a partir da conscientização, pelos legisladores, de que as formas de relações produtivas determinadas pela interconexão entre as organizações exigem do Estado papéis originais de intermediação, que somente podem ser exercidas com a colaboração delas. Portanto, uma racionalidade responsável por uma legislação pragmática no âmbito do direito econômico e social, apta a renunciar à regulação exaustiva dos processos produtivos, voltando-se menos à consecução dos resultados concretos, mediante a regulação "padronizadora" e "tipificadora" dos comportamentos de cada empresário e de cada trabalhador, e mais à coordenação das diferentes formas de legalidade forjadas no interior do sistema econômico. Também decorre daí, nesse contexto de "inter-legalidades" geradas pelos diferentes poderes, procedimentos e valores dos grandes conglomerados empresariais, das entidades sindicais e dos grupos de interesse, a exigência de novas condições operacionais para o funcionamento de um direito econômico e social inteiramente reformulado na sua concepção e na sua operacionalidade; um direito cujas regras, à semelhança das normas e quase-normas utilizadas pelo Direito Internacional para lançar as bases de coexistência e cooperação entre as nações, sejam capazes de servir como técnicas de gestão e neutralização das tensões, incertezas e contingências sempre presentes em todo processo produtivo; um direito em condições de promover o engate estrutural da pluralidade de sistemas jurídicos diferenciados e de seus respectivos "espaços sócio-legais", com seu impacto altamente diversificado em termos setoriais, locais e regionais; em suma, um direito econômico e social preparado para assegurar o equilíbrio inter-organizacional em determinados segmentos do sistema produtivo, garantindo um mínimo de governabilidade por parte do Executivo e neutralizando a natural propensão dos grupos situados nos setores estratégicos e/ou oligopolizados a agir de maneira imperialista e colonizante sobre os demais — o que comprometeria o equilíbrio "ecológico" do sistema social globalmente considerado.16 16 Ver Vittorio Olgiati, Positive Law and Socio-legal Orders: an operational coupling for Sociology of Law, Oñati, International Institute for Sociology of Law, 1991; Helmut Willke, "Societal guidance through law", in State, Law and Economy as Autopoietic Systems: regulation and autonomy in a new perspective, G. Teubner (org. ), op. cit.; Philip Selznick and Philippe Nonet, Law and Society in transition: toward responsive law, Nova York, Harper and Row, 1978; Niklas Luhmann, "The self-reproduction of law and its limits", in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner (org. ), op. cit.; "Closure and oppenness: on reality in the world of Law; in Autopoietic Law. a new approach to Law and Society, G. Teubner (org. ) op., cit. Decorre daí, por fim, a indispensabilidade de se repensar doutrinariamente todo o direito positivo a partir de paradigmas sensíveis à tendência das organizações à autonomia e à independência, na proporção direta de sua capacidade de mobilização, confronto e barganha.

O desafio que esse quadro entreabre, em termos de efetividade da democracia brasileira num momento de profunda crise econômica gerida por um governo politicamente fraco, não está apenas na consecução das demandas de aumento de participação popular no processo político, com base no pressuposto de que a legitimidade democrática se realiza fundamentalmente por meio da expansão da cidadania, da institucionalização do voto direto e da consagração de regra de maioria. Esse desafio também não se esgota com o equacionamento das reivindicações impossíveis de serem atendidas a curto prazo pelo governo — qualquer que seja ele — e com as exigências de maior eficácia no exercício dos já amplos poderes de direção, controle e planejamento do Estado no processo produtivo. Diante da crise estrutural do Estado intervencionista e do advento da "heterarquia organizacional", abrindo caminho para situações ocorridas no âmbito de organizações nas quais os cidadãos não dispõem no seu dia-a-dia de condições de sinalizar sua aprovação ou seu desacordo, esse desafio é mais amplo.

Por um lado, ele diz respeito ao alcance da democracia com relação à expansão das diferentes interconexões organizacionais nos campos sócio-econômico e jurídico-administrativo, criando sistemas normativos próprios e alterando a natureza mesma da ordem constitucional; o problema aqui é saber como (re)dimensionar a democracia num contexto de soberania formal erodida por situações de fato, habilitando-a a garantir a autonomia estatal em face das organizações, ou seja, a assegurar a efetiva capacidade do Estado de agir com independência e liberdade na formulação de políticas verdadeiramente públicas. Por outro lado, como a "democracia organizacional" pressupõe o egoísmo maximizador como condição de sua racionalidade, esse desafio põe em discussão a possibilidade de se transformar o direito em instrumento de composição dos interesses distintos das diversas organizações, mediante procedimentos que se revelem capazes de evitar que cada uma delas tente extravazar seus domínios às custas das demais e de lhes propiciar, sem comprometer sua autonomia, as condições para um mínimo de entendimento.

Se nesse complexo cenário de policentrismo e de plurifinalidade, em que a competição entre as organizações tende a prevalecer sobre a competição entre indivíduos livres e atomizados, um dos principais problemas da pós-transição democrática brasileira está na forma de se garantir a autonomia do Estado. Em face de uma gama de centros nem sempre harmoniosamente interconectados de poder e de autoridade, o desafio acima mencionado não implica novos reforços na capacidade de intervenção direta do Estado na vida social e econômica, como ocorreu com o regime burocrático-autoritário nas décadas de 60 e 70. Exige, isto sim, o desenvolvimento de fórmulas aptas a articular o sistema de poderes e de autoridades múltiplas a principios ordenadores fundamentais, constituindo dessa maneira uma estrutura comum de normas de ação consensual, normas estas capazes de propiciar uma regulação indireta dos conflitos entre as diferentes organizações, nas situações-limite, e de balizar as soluções por elas próprias auto-formuladas para seus problemas mais rotineiros. Que fórmulas seriam essas?

No Brasil da pós-transição democrática, os conflitos coletivos entre grandes conglomerados, entidades sindicais e grupos de interesse com diferenciado poder de articulação, barganha e luta, renovando-se continuamente numa conjuntura sócio-econômica instável, têm acelerado o processo de esgotamento do poder regulatório do Estado. Tal esgotamento vem ocorrendo quer no nível formal da produção de normas a um só tempo abrangentes e minudentes, quer no nível substantivo da apropriação e distribuição dos recursos públicos, obrigando o Estado a delegar competências decisórias em determinadas áreas e a assumir papéis inéditos em outras — papéis estes que são antes os de intermediação e garantidor de soluções pactadas em arenas extra-parlamentares do que os de detentor do poder de império segundo a representação clássica da soberania. Exigindo intrincadas negociações e mediações culminando em acordos que se assemelham mais "a um tratado internacional com a inevitável cláusula rebus sic stantibus do que a um contrato de direito privado cujas regras para a eventual dissolução são estabelecidas pela lei"17 17 Cf. Norberto Bobbio, Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. , sempre sob a fachada de normas jurídicas pragmaticamente formuladas a partir de situações de fato, esses conflitos coletivos têm aberto caminho para a emergência de um processo de composição de interesses com feições corporativistas — um "corporativismo" que está para o plano sócio-político como o direito inter-organizacional examinado no item anterior está para o plano sócio-econômico.

A expressão "corporativismo" tem sido utilizada na literatura política e jurídica para designar uma forma específica de organização sócio-econômica e político-administrativa, em cujo âmbito as posições de poder costumam ser estabelecidas de modo a restringir o espaço para disputas; estas, quando ocorrem, tendem a ser limitadas e "privatizadas" por grupos funcionais e especializados. Apesar de este tipo de organização sócio-econômica e político-administrativa ter feito parte, durante décadas, do repertório de propostas de regimes anti-democráticos, especialmente daqueles de inspiração católico-conservadora, a literatura política e jurídica hoje promove uma distinção entre os sistemas corporativos autoritários, baseados no ordenamento hierárquico da sociedade por um Estado forte e protagonizados por associações de interesses dele dependentes, e os sistemas corporativos "pluralistas", resultantes de situações de mercado que, por meio de associações de interesses autônomas, acabam impondo limites e fixando parâmetros à ação do Estado. Enquanto o corporativismo autoritário tem sido chamado de "estatal", o segundo, forjado a partir dos sistemas de representação de interesses das sociedades industriais, tem sido designado como "social".

Produzindo uma legalidade fragmentária e assimétrica, cuja validade formal exerce funcionalmente o papel de uma complexa teia simbólica na qual muitas decisões com grandes implicações sócio-econômicas são mascaradas, e em cujo âmbito o que vale não é o que está formalmente estatuído pelas leis, mas o que é pactuado a partir dos tipos de negociação e mediação acima apresentados, o corporativismo em expansão no país nada tem a ver com os regimes totalitários institucionalizados pelo fascismo, pelo franquismo e pelo salazarismo. Ou seja: não se trata de um sistema burocraticamente centralizado de setorialização e harmonização de interesses; um sistema controlado pelo Estado a partir de elites mais ou menos coesas e homogêneas, assentado num número limitado de categorias profissionais funcionalmente diferenciadas e ordenadas de modo unitário, hierárquico e não competitivo na gestão dos conflitos coletivos; um sistema que atua de cima para baixo autoritariamente, impondo variados controles quer na relação das lideranças entre si, quer na articulação das demandas e apoios, incorporando grupos estratégicos emergentes e privilegiando óticas particularistas na defesa das posições relativas no jogo econômico. Ao valorizar uma representação de interesses limitada a matérias específicas de política econômica, esse tipo de corporativismo implica numa renúncia informal, porém efetiva, à autonomia política institucionalmente conquistada pelos citoyens com as revoluções burguesas, dos séculos XVIII e XIX; por conseguinte, também implica sua submissão às exigências de organizações públicas e privadas destinadas a moldá-las segundo seus interesses funcionais, em termos de reprodução controlada da força de trabalho e do capital.

Esse "novo" corporativismo é pluralista, ou seja, sensível à diversidade e heterogeneidade de focos de interesse e fontes de pressão existentes nas sociedades complexas; trata-se de um corporativismo com feições originais e de natureza "social", concebido como um sistema pragmático de representação, barganha e acomodação de interesses entre grupos privados e públicos bem organizados. Valorizando uma arena de representação e decisão paralela à arena parlamentar-eleitoral, esse "neo"-corporativismo é, originariamente, um conceito forjado a partir da experiência política de diversos países europeus. Neles, "um grau significativo de controle sobre decisões econômicas cruciais, que, na teoria democrática convencional, deveria permanecer com os representantes dos cidadãos no parlamento e no gabinete, foi simplesmente transferido para uma espécie de parlamento industrial não-eleito, constituído pelos líderes das associações centrais. Esse deslocamento do poder para fora do controle dos representantes eleitos parece irreversível, pelo menos no quadro das instituições da poliarquía — na verdade, a menos que se estabeleça um regime autoritário. Acho difícil resistir à conjectura de que estamos testemunhando uma transformação na democracia tão fundamental e duradoura quanto a mudança que levou das instituições do governo popular na cidade-estado à s instituições da poliarquía no estado-nação".18 18 Cf. Robert A. Dahl, Dilemmas of Pluralist Democracy, New Haven, Yale University Press, 1982, p. 80 e segs. ; e After the Revolution? Authority in a good society, New Haven, Yale University Press, 1970. Ver, nesse sentido, Philippe Schmitter, "Still the Century of Corporatism?", in The New Corporatism: Social-Political Structures in the Iberian World, Frederich Pike e Thomas Stich (orgs.), Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1974; em colaboração com Gerhard Lehmbruch, Patterns of Corporatist Policy Making, London, Sage, 1982; "Democratic Theory and Neocorporatist Pratice", in Social Research, Nova York, New School for Social Research, 1983, v. 50; e "La concertación social en perspectiva comparada", in Concertación Social, Neocorporativismo y Democracia, Alvaro Espina (org.), Madri, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991.

Ao contrário do corporativismo "estatal", esse sistema é dotado de estruturas formais e informais de negociação, pois é impulsionado de baixo para cima, em face tanto da capacidade de mobilização e pressão de cada grupo quanto de sua localização estratégica na divisão do trabalho — o que permite ao corporativismo "social" transcender as esferas de interesses setoriais e abranger decisões de caráter bem mais amplo, em termos de políticas salarial, fiscal, industrial, tecnológica, etc. Apesar do crescente poder formal regulamentar e fiscalizador do Estado, a "montagem" de um regime corporativista desse gênero se dá, na prática, a partir das análises de custo/benefício e dos cálculos políticos dos grupos de interesse eficazmente articulados, de organizações dotadas de capacidade de ação estratégica, associativa e criativa e dos sindicatos trabalhistas ou patronais localizados em posições estratégicas no sistema produtivo privado e/ou estatal — e, por isso mesmo, com grande poder de influência na formulação, implementação e execução das políticas públicas. Quem tem esse poder, tende a se comportar "faccionariamente"; quem não tem, por falta de meios para agir, praticamente está fora do jogo.

Na lógica do "neo"-corporativismo, as transações entre essas organizações e associações são quase sempre conflitivas. Não são, todavia, necessariamente competitivas, na medida em que cada uma delas tem sua "jurisdição" assegurada, esforçando-se permanentemente por ampliá-la — o que conduz, algumas vezes, a tentativas de "invasão" ou de "colonização" de outras "jurisdições". Justamente porque estabelece uma série de canais formais e informais e de procedimentos oficiais e oficiosos para o acesso dos diferentes grupos e setores sociais à s esferas públicas de decisão, esse "neo"-corporativismo propicia o deslocamento de parte das prerrogativas do Legislativo para o Executivo, sob a forma de uma "tecnicização" da política, de uma "repolitização" da técnica, de uma certa "calibração" da opinião pública e de uma estratégia para a gestão do dissenso no âmbito das forças sociais menos articuladas.

Evidentemente, o aumento do poder discricionário dos órgãos burocráticos do Executivo encarregados de aplicar normas com "conceitos jurídicos indeterminados"19 19 Os "conceitos jurídicos indeterminados" são expressões vagas utilizadas pragmaticamente pelo legislador com a finalidade de propiciar o ajuste de certas normas a uma realidade cambiante ou ainda pouco conhecida; graças a esses conceitos, o intérprete pode adequar a legislação à s condições socioeconômicas, políticas e culturais que envolvem o caso concreto e condicionam a aplicação da lei. Cf. Klaus Gunther, The pragmatic and functional indeterminacy of law, mimeo, 1990. e regras de caráter dispositivo voltadas a diretrizes administrativas específicas acaba concedendo aos burocratas governamentais uma autorização implícita para utilizar os meios que consideram mais eficazes para a consecução de objetivos específicos. A subseqüente perda da capacidade do Legislativo de predeterminar as decisões concretas do Executivo, por meio das normas abstratas e genéricas da legislação ordinária e constitucional, implica num desproporcional aumento da margem de manobra das instâncias administrativas deste último poder. É isso que permite a utilização das regras inerentes à racionalidade da burocracia estatal como regras privadas; por causa do aumento descomensurado da margem de manobra de cada uma dessas instâncias, muitas vezes há casos de órgãos burocráticos submetidos a regras dispositivas e a políticas públicas que lhes impõem fins incompatíveis entre si, exigindo de seus aplicadores uma complexa responsabilidade de negociação e "ponderação" — o que amplia ainda mais esse seu poder discricionário, colocando-os diante do desafio de terem de agir simultaneamente com os limites do ordenamento jurídico, com o exercício de suas atribuições funcionais básicas e com os interesses de sua "clientela" e seus grupos sociais de referência.

Ao acelerar o processo de "publicização" do direito privado e, paralelamente, o processo de "administrativização" do direito público subjacente à setorialização das demandas e à departamentalização das negociações, configurando assim uma ordem jurídica formada por vários "estratos" nem sempre congruentes de normas, códigos e leis, uma vez que muitas delas estão voltadas a objetivos específicos, a interesses muito distintos e a propósitos até mesmo conflitantes, o corporativismo "social" torna possíveis inúmeros e intrincados compromissos particularistas firmados no interior dos "anéis burocráticos" do Estado — compromissos estes fortemente protegidos da ingerência de grupos e interesses mais amplos e formalizados pelo tipo de direito inter-"organizacional" examinado nos primeiros itens deste trabalho.

BUROCRACIA, CORPORATIVISMO E DIREITO

É por causa dessa tendência do "neo"-corporativismo à "transmigração" de determinadas instâncias estatais para outras, produzindo uma ordem jurídica assimétrica, fragmentária e capaz de traduzir a correlação de forças possível em contextos sociais cujas mudanças são demasiadamente rápidas e intensas para se sedimentarem em soluções normativas a um só tempo coerentes e orgânicas, que seus críticos o consideram incompatível com a democracia.20 20 A crítica ao "corporativismo social" é que ele, enquanto instrumento de formação e canalização de vontade política, de organização e seleção de demandas e de elaboração e implementação de decisões, produziria a concentração do poder num espaço econômico reduzido, neutralizando a possibilidade de afirmação democrática do poder político. A ampliação desordenada do aparelho e das funções estatais propiciada pelo corporativismo, dada a interdependência entre os sistemas econômico e político, também tenderia a reduzir a capacidade de governo numa perspectiva voltada aos "despossuídos — à queles que, não tendo meios para agir no cenário corporativo, estão fora do jogo. No entanto, exatamente porque é apto a lidar com a heterogeneidade de demandas em contextos marcados por elevados graus de heterogeneidade estrutural, o "neo"-corporativismo possibilitaria a superação da clássica oposição formal entre ordem política e ordem social herdada do modelo liberal de direito e Estado. A compatibilização de engrenagens corporativas como essas com a democracia, afirma F. W. Reis, poderia ser obtida desde que elas fossem progressivamente institucionalizadas por dispositivos organizacionais e jurídicos capazes de assegurar a visibilidade e a responsabilidade das decisões tomadas em seu interior, inibindo o potencial de distorções democráticas nelas contido. A articulação dos diferentes interesses sociais com o Estado, especialmente dos interesses funcionais ou ocupacionais, revelar-se-ia um componente indispensável da relação do Executivo com a sociedade, contribuindo assim para impedir a excessiva autonomia do aparelho estatal e sua própria subordinação unilateral a determinados interesses. "O corporativismo, bem entendido, é parte da própria democracia; em vez da denúncia rombuda do corporativismo, cumpre enfrentar lucidamente a tarefa de construir, com senso de equilíbrio e medida, nosso necessário corporativismo, o que equivale a reconstruir nosso complexo e viciado aparelho estatal". Cf.F. W. Reis, "Crise brasileira e construção institucional", in Condições para a retomada do desenvolvimento, J. Paulo dos Reis Veloso (org.), São Paulo, Nobel, 1991, p. 149. Como abre caminho para essa ordem jurídica com dispositivos sobrepostos, não sincronizados no tempo e subsidiários de distintas correlações de forças, o corporativismo "social" propiciaria, em vez da "segurança do direito", uma "aplicação seletiva" das leis segundo as alterações que vão ocorrendo quer no âmbito dos grandes conglomerados, das associações sindicais e demais organizações com maior capacidade de articulação, conflito e barganha, quer no interior do próprio aparelho estatal. Em face da inexistência de uma correlação de forças estável e suficientemente forte para propor um projeto sócio-político hegemônico e convertê-lo em programas concretos de governo, o Estado muitas vezes acabaria sendo obrigado a agir à revelia das políticas públicas a que ele mesmo se propõe, ora subvertendo o quadro jurídico-institucional, ora sendo cúmplice, por ação ou por omissão, com comportamentos que o violam.

Por meio da "aplicação seletiva" dessa ordem jurídica assimétrica e fragmentária, mediante a instrumentalização de normas numa direção distinta da que foi originariamente formulada e a não-regulamentação de certos direitos para bloquear a implementação dos benefícios que eles asseguram, o Estado subsidiário do corporativismo "social" revelar-se-ia capaz de gerar um "efeito de distanciamento" em relação à ordem constitucional em vigor. Graças a tal efeito, esta ordem seria neutralizada sempre que os diferentes "anéis burocráticos" correspondessem a interesses corporativos suficientemente fortes para serem mobilizados. Em outras palavras, esse efeito permite que a contínua ruptura da legalidade formal do Estado, por causa da "aplicação seletiva" da lei, não seja acompanhada automaticamente pela quebra da legitimidade desse mesmo Estado.

No Brasil da pós-transição democrática, a expansão generalizada de compromissos particularistas firmados no âmbito dos "anéis burocráticos" do Executivo tem gerado alguns desdobramentos convergentes. De todos eles, três merecem destaque: a) articulados por políticas fiscais, trabalhistas, previdenciárias, etc. e voltados a problemas como desenvolvimento tecnológico, reserva de mercado e fixação de prioridades para gastos públicos, tais compromissos costumam favorecer apenas os grupos de interesse e os setores mais bem preparados para obter maiores vantagens do que as negociadas globalmente por meio dos processos tradicionalmente previstos pela ordem constitucional; b) como a explicitação dessas estratégias corporativas de favorecimento coloca em risco a natureza particularista das políticas adotadas, as negociações tendem a ser encobertas sob a aparência de decisões técnicas e pautadas por critérios de racionalidade, produtividade e eficiência, o que propicia o florescimento de inúmeros tipos de vínculos clientelísticos ao mesmo tempo que alimenta, dentro do aparelho estatal, um crescente conflito entre hierarquias burocráticas por novas posições de poder; c) à medida que novos favorecimentos são pactuados, sua concretização exige de cada "anel burocrático" sucessivas edições de normas reguladoras e expedientes funcionais, exigência essa que os leva muitas vezes a extravasar os estreitos limites das competências formais a eles atribuídas pela ordem constitucional; e que termina por dispersar e esvaziar o "poder de império" com o qual o núcleo central do Executivo sempre subordinou as atividades das autarquias, empresas e sociedades de economia mista por ele mesmo instituídas. Cada um desses "anéis", em face de sua progressiva autonomia gerada por essa variação entre seu poder formal e seu poder efetivo, acaba competindo com o núcleo central do Executivo, "roubando" dele parte de sua "titularidade legislativa" e de sua "competência regulamentar".

Em termos institucionais, portanto, o cenário institucional da pós-transição democrática brasileira revela (a) um grande número de "zonas de incerteza" presentes nas relações entre um Executivo internamente diferenciado em múltiplos "anéis burocráticos", todos eles medindo forças entre si para expandir seus respectivos poderes, e (b) uma sociedade fragmentada por um sem-número de contradições. Ou seja, entre um Estado "balcanizado" e uma sociedade caracterizada por profundas desigualdades sociais, setoriais e regionais, por intensas alterações em suas hierarquias socioeconômicas, pela emergência de novos segmentos sociais utilizando de modo diferenciado os canais de representação e os instrumentos de participação política, pela multiplicação de reivindicações conflitantes e excludentes, pelo entrechoque de valores e programas antitéticos; enfim, por uma explosão de litigiosidade que, assumindo inúmeras configurações, vai cortando, tanto horizontal quanto verticalmente, as fronteiras da estratificação social. Como quem detém as fontes de incerteza no âmbito de um intrincado sistema de relações e atividades dispõe de um grande poder sobre todos os demais grupos profissionais e setores sociais cuja situação pode ser afetada por essa mesma incerteza, o poder politicamente efetivo subjacente a uma ordem jurídica fragmentária e assimétrica decorre do modo como essas "zonas" infra e paraestatais são controladas pelos grupos empresariais, sindicais e profissionais mais bem organizados.

Esse tipo de "corporativização" do Estado não é um fenômeno que ocorre exclusivamente na pós-transição democrática brasileira. Num rápido exame comparativo, ele pode ser constatado em países latino-americanos e europeus que também enfrentaram o desafio da consolidação democrática em meio a profundas crises econômicas. São países nos quais os atores políticos, após terem redefinido com formas originais de ação e de luta as relações do Estado com a sociedade e pressionados por uma ampla revisão estrutural das instituições de direito até então vigentes, "redescobriram" o sistema social como o "lugar" da política e, com isso, deslocaram a clássica questão da constituição dos sujeitos políticos, tradicionalmente subsumida na relação partido-Estado (enquanto relação que predefinía o espaço exclusivo e privilegiado de uma ação dotada de legitimidade, reconhecimento e eficácia). Nos países do sul da Europa que passaram por processos de reconstitucionalização de suas instituições, na década de 70, várias vezes o Estado revelou-se incapaz de subordinar o processo de acumulação a determinados compromissos sócio-políticos básicos no plano produtivo, o que estimulou a violação maciça das conquistas trabalhistas e sociais consignadas em suas respectivas Cartas e na própria legislação complementar.

No caso de Portugal, como aponta Boaventura Santos, emergiu por trás do Estado formal um Estado paralelo atuando de modo bastante sutil, tolerando o descumprimento da lei em certos casos, deixando de acionar as instituições encarregadas de reprimir a violação dos direitos sociais, não regulamentando a Constituição e não prevendo dotações orçamentárias para os serviços destinados a implementar políticas públicas. "O Estado formal corre paralelo ao informal; o Estado concentrado desdobra-se numa prática de Estado difuso e o macro-Estado, numa prática de micro-Estado; o Estado amplo comporta-se como se fosse um Estado mínimo." Dessa maneira, "o Estado oficial coexiste com um Estado paralelo, subterrâneo". Agindo assim, o Estado paralelo passa a promover a um só tempo métodos oficiosos e informais de gestão administrativa, que terminam privilegiando as decisões tecnocráticas em detrimento das regras do jogo democrático. "Em áreas formalmente reguladas pelo Estado, as práticas sociais que contam com a omissão informal do Estado são tão decisivamente condicionadas por ela quanto as que contam com a sua ação positiva. O fato de o Estado intervir, tanto pela sua presença (formal), como pela sua ausência (informal), confere à intervenção estatal um caráter dúplice e abstrato. Daí a instabilidade estrutural da atuação do Estado."21 21 Cf. Boaventura Santos, "O Estado e a Sociedade na Semi-Periferia do Sistema Mundial: o caso português", in O Estado e a Sociedade em Portugal, Porto, Afrontamento, 1990, p. 136.

O caso português é sugestivo como marco comparativo para a análise das condições de eficácia da ordem jurídica brasileira na pós-transição democrática. Ele revela que os riscos de um Estado paralelo e de sua tendência à desvalorização dos direitos sociais residem na inviabilização de pactos sociais assentados em compromissos legais. Como afirma Boaventura, a discrepância entre o Estado formal e o informal não é sempre do mesmo grau e também está igualmente distribuída por todos os domínios da atuação do Estado. "Dada a heterogeneidade das lealdades corporativas dos vários setores que compõem a classe dirigente, os equilibrios são muito precários e os compromissos têm de ser constantemente renegociados. A instabilidade é tanto maior quanto é certo que, num Estado democrático, a classe dirigente tem de prestar particular atenção às condições da sua conservação no poder, o que obriga a concessões às classes subordinadas, concessões que têm de ser suficientemente reais para obterem a cooptação destas no interior do sistema político." Assim, "os compromissos, os conflitos e os equilibrios são freqüentemente transportados para a legislação promulgada e, com eles, a instabilidade, a precariedade e a heterogeneidade que os caracterizam".22 22 Ibidem, pp. 138-139.

Em suma: ao abandonar as formas e práticas jurídicas convencionais do Estado de Direito de matiz liberal para se ajustar estruturalmente em conformidade com as pressões conflitantes e excludentes de uma sociedade diversificada, heterogênea e estigmatizada por desequilíbrios; ao aumentar seu poder de intervenção sob a forma de instruções normativas, resoluções e decretos para melhor administrar as diferentes articulações e agregações de interesses contraditórios; e ao aprofundar seus critérios de racionalidade material, revestindo-os de uma aparente neutralidade em nome do caráter "técnico" das demandas que filtra e atende, esse Estado subsidiário do "corporativismo social" (a) facilita o deslocamento da ação política de seus canais tradicionais; (b) restringe o alcance de certos confrontos de interesses, tornando-os menos expostos e visíveis às lideranças partidárias, isto é, "privatizando-os" e localizando-os no interior do aparelho estatal; e (c) estimula transformações pelas quais o poder decisório se transfere das instituições governamentais formais para modos mais difusos de organização das desigualdades sociais, setoriais e regionais.

Por causa dessa intersecção entre as fronteiras do que é público e do que é privado, político e técnico, estatal e não-estatal, formal e informal, o que se tem é uma situação que ilustra bem a natureza e alcance do corporativismo "social": do lado do setor público, a visão que cada "anel burocrático" possui do conjunto do aparelho estatal e de suas políticas é sempre parcial, em face da falta de transparência e de uma efetiva lógica formal no processo decisório; já do lado dos interesses privados, a possibilidade de se poder recorrer a diversas instâncias burocráticas aumenta as opor tunidades de cada organização empresarial, sindical e profissional de assegurar maiores vantagens no encaminhamento de suas demandas. Como decorrência dessa intersecção de fronteiras, o tipo de corporativismo em análise abre caminho para um intrincado jogo de confrontos e coalizões intra-burocráticos, tendo em vista a mobilização dos recursos disponíveis em função de projetos diversos, específicos e colidentes entre si, ou seja, para a expansão das disputas entre os diferentes "anéis burocráticos" pelo alargamento de suas áreas de influência e para a multiplicação das "zonas de incerteza", a partir das pressões excludentes das forças sociais em luta.

Na medida em que o fortalecimento de alguns "anéis" por vezes implica (a) a invasão do espaço de outros "anéis", em termos de um controle combinado de recursos de poder, de recursos financeiros e de recursos institucionais, e (b) uma progressiva absorção tanto das funções reais destes últimos quanto dos próprios instrumentos pelos quais atuam, invasão essa sempre estimulada externamente pelas organizações empresariais, sindicais e profissionais por elas beneficiadas, as instituições formais do Estado cada vez mais tenderão a contar, em seu interior, com centros de poder novos e relativamente autônomos. São centros que se caracterizam por estilos administrativos específicos, por clientelas próprias e por tendências distintas de tomadas de decisões, desenvolvendo rivalidades de objetivos, diferenças de orientação e jurisprudências interna corporis peculiares, passando assim a deter prerrogativas políticas semi-independentes, com relação ao que foi estabelecido pela ordem constitucional.

A exemplo da redemocratização de alguns países do sul da Europa, como Portugal, a história latino-americana também oferece bons exemplos mostrando como, nos processos de consolidação democrática dos anos 80, a expansão das demandas pela ampliação dos direitos sociais, a hiperinflação, a estagnação industrial, o desemprego generalizado, a recessão econômica e a explosão de conflitos coletivos costumam (a) comprometer quer a unidade quer a governabilidade de seus respectivos sistemas políticos e (b) acentuar seu caráter corporativista, na medida em que tendem a deixá-los sem normas jurídicas reguladoras eficazes e sem regras decisórias reconhecidas por todos. As conseqüências desse processo,- em países como o Chile e a Argentina, culminaram no conhecido fenômeno de "bloqueio do processo decisório", ou seja, num amplo conjunto de situações de incertezas em que os poderes estabelecidos vão, progressivamente, perdendo parâmetros para cálculos minimamente racionais.23 23 Cf. Norbert Lechner, "Derecho y Estado en América Latina", in La crisis del Estado en América Latina, Caracas, Cid, 1977; "La lucha por el ordem" e "El consenso como estratégia y como utopia", in La Conflictiva y Nunca Acabada Construción del Ordem Deseado, Santiago, Flacso, 1984; Adam Przeworski, "Ama a incerteza e serás democrático", in Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 1984, nº 9; e Maria Ermínia Tavares de Almeida, "Reformismo democrático em tempos de crise", in Lua Nova, São Paulo, Cedec nº 22.

Nesses países, a concepção liberal burguesa de direito e de Estado, ao colidir com as exigências de acumulação feitas pelos setores empresariais, com as expectativas de reformas socioeconômicas dos setores populares e com as próprias necessidades funcionais das máquinas administrativas públicas, revelou-se crescentemente disfuncional. O formalismo jurídico foi aí incapaz de propiciar uma costura simbólica das contradições internas dessas sociedades, mesmo ampliando a vagueza e a indeterminação de suas normas com o objetivo de forjar um mundo de aparências apto a consagrar uma ordem política democrática imaginária e a fornecer a ilusão de um ordenamento constitucional coerente e lógico. E também não foi capaz de servir como instrumento eficaz nas gestões voltadas a programas de estabilização da moeda e/ou de reforma social. Além de não contar com um instrumental legal à altura de seus projetos e desafios, os respectivos governos desses países não souberam ainda conter a tendência de seus programas reformistas em estimular a própria expansão das atividades governamentais e em exceder, em termos de gastos públicos, o que podia ser financiado pela poupança interna ou pelo fluxo de recursos externos, exacerbando assim as tendências inflacionárias de suas economias.

À semelhança desses países, o Brasil não tem conseguido enfrentar de modo competente o sempre problemático processo de ajuste entre estruturas sócio-econômicas em mutação e procedimentos jurídico-políticos superados. Ou seja: não vem sabendo vencer o desafio da compatibilização (a) entre a acumulação privada e estatal de capital, necessária à expansão econômica, e a distribuição mais eqüitativa dos excedentes, necessária à legitimação da ordem social; (b) entre a maximização dos direitos sociais pelos setores populares, imprimindo um caráter cada vez mais coletivo e classista aos conflitos, e a estabilidade de instituições de direito consolidadas em torno dos princípios da livre iniciativa, da livre disposição contratual e da igualdade formal perante a lei; e (c) entre as demandas contrastantes interpostas pela consolidação do regime democrático, que fez das negociações políticas a conditio sine qua non para a eficácia dos programas governamentais, e pela lógica da "emergência econômica", que pressupõe um Executivo capaz de coordenar rápida e imperativamente o equacionamento de uma ampla crise de natureza estrutural. Ao desenvolver abrangentes projetos de reforma administrativa, de abertura do mercado interno ao comércio internacional e de remessas de lucros ao exterior, tentando com isso modernizar a economia brasileira a partir de situações de fato, mas sem saber como adequar novos procedimentos formais à formulação de uma vontade coletiva e sem perceber em tempo que a relação entre o grau de efetividade das políticas sociais e o apoio e a paz social por eles propiciados não guardam uma relação necessária e unívoca, o Brasil da pós-transição democrática vem vivendo uma experiência jurídico-política dramática.

Essa experiência revela, para concluir, que ambiciosos programas de ajuste macroeconômico têm tido, como conseqüência prática na pós-transição democrática brasileira, a ampliação da competição social por recursos e poder, desagregando interesses antes combinados, ferindo costumes fortemente enraizados e rompendo estruturas jurídicas tradicionais no âmbito do sistema produtivo. Essa competição tem sido exponenciada pelo pragmatismo muitas vezes irracional de uma gestão cotidiana da inflação por dirigentes tecnicamente incompetentes e politicamente débeis, cujos sucessivos equívocos e abusos exaurem os intrumentos de política econômica à disposição do Executivo. Em resposta à perversão da certeza jurídica, justificada pelas autoridades com base no argumento da "necessidade econômica", a luta de diferentes setores sociais pela restauração da segurança do direito vai sobrecarregando o Judiciário, expondo-o a contradições impossíveis de serem dirimidas a partir das leis e dos ritos processuais vigentes. No plano do Legislativo, a concentração da capacidade do mundo no Executivo e a opção por um estilo técnico-autoritário de decisão por vezes entorpecem o controle parlamentar; vencido o impacto inicial, contudo, o Congresso tende a impor limites estreitos sobre os dirigentes econômicos do Executivo, reduzindo o seu campo de manobra, liquidando com a tática dos fatos consumados e pondo fim a um estilo de ação baseado nos arcana imperil, isto é, na produção de medidas elaboradas em segredo por reduzidas equipes de especialistas, sem consultas ao Congresso e sem a interlocução com lideranças empresariais ou sindicais. Num cenário como esse aplicam-se as palavras de Przeworski e Lechner quanto ao futuro da consolidação ou pós-transição democrática, no sentido de que ela não é propriamente uma necessidade política, mas uma simples possibilidade, ou seja, um resultado contingente dos conflitos que estão condicionando a efetividade das instituições jurídicas sobre uma economia cada vez mais regida por suas próprias regras e por sua racionalidade intrínseca; uma economia aparentemente insuscetível a qualquer tipo de controle, inclusive pela racionalidade lógico-formal do ordenamento jurídico em vigor; uma economia que, deixada livremente ao sabor dos interesses das grandes organizações e dos cartórios do sistema produtivo, não tem condição alguma de reintegrar a sociedade numa perspectiva de progresso e justiça social.

  • 1 Como afirma Luciano Martins, hĂĄ "uma diferença bĂĄsica entre o uso corrente (polĂtico, jornalĂstico...) da expressĂŁo "transição para a democracia" e o tratamento que a reveste quando utilizada na literatura acadĂŞmica, pois, nesta, os desfechos desses processos de transição sĂŁo quase sempre problematizados. NĂŁo obstante isso, mesmo nessa literatura a ĂŞnfase tem sido posta (e nem sempre enquanto hipĂłtese) no desfecho democrĂĄtico. Talvez por essa razĂŁo a probabilidade de seu prevalecimento e o prĂłprio processo de transição tĂŞm sido preponderantemente examinados Ă  luz da correlação de forças e do jogo polĂtico entre os declarados defensores da democracia e seus reais ou potenciais opositores autoritĂĄrios, sem muita atenção talvez para o padrĂŁo de ação polĂtica que caracteriza o desempenho doe primeiros. A abordagem alternativa tem sido a de considerar esse padrĂŁo, quando ele indica um baixo desempenho ou estĂĄ eivado de prĂĄticas antitĂŠticas Ă  prĂĄtica democrĂĄtica como uma das seqĂźelas do autoritarismo, a qual tenderia a se diluir atravĂŠs da prĂłpria experiĂŞncia democrĂĄtica". Cf. Luciano Martins, Ação PolĂtica e Governabilidade na Transição PolĂtica Brasileira, Campinas, Unicamp, mimeo, 1988.
  • 2 Cf. Guillermo O'Donnell, 'Transiçþes, continuidade e alguns paradoxos" in A democracia do Brasil: dilemas e perspectivas, FĂĄbio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.) SĂŁo Paulo, VĂŠrtice, 1988;
  • 3 Cf. John Maynaid Keynes, "As possibilidades econĂ´micas de nossos netos", in Keynes, TamĂĄs SzmrecsĂ myi (org.), SĂŁo Paulo, Ătica, 1978, pp. 158-159.
  • Para uma anĂĄlise das implicaçþes ĂŠticas deste tipo de afirmação, ver Joan Robinson, "A polĂŞmica em economia polĂtica", in Introdução Ă  Teoria Geral do Emprego, Rio de Janeiro, Fundo da Cultura, 1960;
  • Jacob Viner, "A relação entre a economia e a ĂŠtica", in Ensaios Selecionados, Rio de Janeiro, Fundação GetĂşlio Vargas, 1972;
  • e Amartya Sen, "Comportamento econĂ´mico e sentimentos morais", in Lua Nova 25, 1992.
  • 4 Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A disciplina constitucional das crises econĂ´mico-financeiras", in Revista de Informação Legislativa; BrasĂlia: Senado Federal, 1990, nÂş 108, p. 33.
  • Para uma anĂĄlise das implicaçþes jurĂdico-polĂticas deste tipo de afirmação, ver Norberto Bobbio, "Ătica e PolĂtica",
  • e Michelangelo Bovero, "Ătica e PolĂtica entre maquiavelismo e Kantismo", ambos in Lua Nova, SĂŁo Paulo: Cedec, 1992, nÂş25.
  • 5 "Regulamentos e necessidades", segundo Duguit, sĂŁo "leis editadas com base no poder regulamentar do Executivo, submetidas Ă  ratificação invalidatĂłria por parte do Legislativo". Cf. Leon Duguit, TraitĂŠ du Droit Institutionel, Paris, LGDJ, 1980.
  • 6 Cf. Brian Bercusson, "Juridication and disorder", in G. Teubner (org.) Juridification of Social Spheres, Berlim, Walter de Gruyter, 1987;
  • e Barry Mitnick, The Political Economy of Regulation, Nova York, Columbia University Press, 1980.
  • 7 Essa perda da capacidade de determinação do direito decorreria da multiplicação desenfreada de normas que se limitam a prescrever a consecução de determinados fins Ă  administração pĂşblica. Ver, nesse sentido, Ingeborg Maus, Rechtstheorie und Politische Theorie im Industriekapitalismus, Munique, Fink Verlag, 1986, pp. 277-331.
  • 8 Assumo como sinĂ´nimos, neste trabalho, os conceitos de eficĂĄcia e de efetividade, limitando-me Ă  distinção de dois planos analĂticos: o dogmĂĄtico e o jus-sociolĂłgico. Alguns teĂłricos do direito, contudo, diferenciam esses dois conceitos. Por eficĂĄcia, designam as modalidades formais e as condiçþes tĂŠcnico-jurĂdicas da aplicação de normas vĂĄlidas; por efetividade, designam o acatamento das normas jurĂdicas pelos seus destinatĂĄrios e a consecução, em termos concretos, dos objetivos previstos pelo legislador. A divergĂŞncia entre o que dizem esses autores e o modo como utilizo analiticamente as noçþes de efetividade, enquanto sinĂ´nimos, sĂŁo, em minha opiniĂŁo, mĂnimas. Ver, nesse sentido, P. Lascoumes e E. Serverin, "Theories et pratiques de l'effectivitĂŠ du Droit", in Droit et SocietĂŠ, Paris, 1986, nÂş 2, pp. 101-123;
  • Arnaud et alii, "EffectivitĂŠ", in Vocabulaire Juridique, Paris, PUF, 1987;
  • e François Rangeon, "Reflexions sur l'effectivitĂŠ du droit", in Les usages du savoir juridique, DaniĂŠle Loschak (org.), Paris, Centre Universitaire de Recherches Administratives et Politiques de Picardie/PUF, 1989.
  • 9 Tara uma discussĂŁo teĂłrica desta questĂŁo, ver Rudolf Wietholter, "Materialization and Proceduralization in Modern Law", in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner, (org.), Berlim, De Gruyter, 1985;
  • e François Ost, "Between order and disorder: the game of law", in Autopoietic law: a new approach to law and society, G. Teubner (org.), Berlim, De Gruyter, 1988.
  • 10 Cf. Helmut Willke, "The tragedy of the State", in ARSP-Archiv fĂźr Rechts und Sozialphilosophie, 1986, vol. LXXXII p. 647.
  • 11 Cf. S. H. Abranches, "O LeviatĂŁ anĂŞmico: dilemas presentes e futuros da polĂtica social", in Planejamento e PolĂticas PĂşblicas. Rio de Janeiro, 1988.
  • 13 Para uma discussĂŁo jus-sociolĂłgica da evolução dos sistemas jurĂdicos hierarquizados para sistemas normativos circulares, ver Alberto Febbrajo, "From hierarchical to circular models in the Sociology of Law", in European Yearbook in the Sociology of Law, Milano, Giuffrè, 1988;
  • e "The rules of the game in the Welfare State", in Dilemmas of Law in Welfare State,
  • 14 Cf. Edward Amadeo e JosĂŠ MĂĄrcio Camargo, "Mercado de trabalho e dança distributiva", in FĂĄbio Giambiagi e JosĂŠ MĂĄrcio Camargo (orgs.), Distribuição de Renda no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
  • 15 Cf. G. Teuhner, "Substantive and Reflexive Elements in Modern Law", in Law and Society Review, 1983, v. 17;
  • After legal instrumentalism? Strategic models of post-regulatory law, in International Journal of the Sociology of Law, 1984, v. 12;
  • The regulatory trillemma, in Quaderni Fiorentini, 1984, v. 13;
  • "Corporate responsibility as a problem of company constitution", in EUI_Working Paper, Fiesole: European University Institute, 1985;
  • Social order from legislative noise?, in State, Law and Economy as autopoietic systems: regulation and automony in a new perspective: Berlim, De Gruyter, 1987;
  • Autopoietic Lam a new approach to law and society, op. cit.; "Hypercycle in law and organization: the relationship between self-observation, self-constitution and autopoiesis", in European Yearbook in the Sociology of Law,
  • op. cit.; "Enterprise corporatism: new industrial policy and the essence of legal person", in The American Journal of Comparative Law, 1988, nÂş 1, v. XXXVI;
  • How the law thinks: toward a construtivist epistemology of law, in Law and Society Review, 1989, v. 23;
  • e "And God laughed: indeterminacy, self-reference and paradox in law", in Critical legal thought: an American-German Debate, D. Trubek e C. Joerges (orgs.), Baden-Baden, Nomos, 1989.
  • 16 Ver Vittorio Olgiati, Positive Law and Socio-legal Orders: an operational coupling for Sociology of Law, OĂąati, International Institute for Sociology of Law, 1991;
  • Helmut Willke, "Societal guidance through law", in State, Law and Economy as Autopoietic Systems: regulation and autonomy in a new perspective, G. Teubner (org.
  • ), op. cit.; Philip Selznick and Philippe Nonet, Law and Society in transition: toward responsive law, Nova York, Harper and Row, 1978;
  • Niklas Luhmann, "The self-reproduction of law and its limits", in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner (org.
  • ), op. cit.; "Closure and oppenness: on reality in the world of Law; in Autopoietic Law. a new approach to Law and Society, G. Teubner (org.
  • 17 Cf. Norberto Bobbio, Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da polĂtica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
  • 18 Cf. Robert A. Dahl, Dilemmas of Pluralist Democracy, New Haven, Yale University Press, 1982, p. 80 e segs.
  • ; e After the Revolution? Authority in a good society, New Haven, Yale University Press, 1970.
  • Ver, nesse sentido, Philippe Schmitter, "Still the Century of Corporatism?", in The New Corporatism: Social-Political Structures in the Iberian World, Frederich Pike e Thomas Stich (orgs.), Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1974;
  • em colaboração com Gerhard Lehmbruch, Patterns of Corporatist Policy Making, London, Sage, 1982;
  • Democratic Theory and Neocorporatist Pratice, in Social Research, Nova York, New School for Social Research, 1983, v. 50;
  • e "La concertaciĂłn social en perspectiva comparada", in ConcertaciĂłn Social, Neocorporativismo y Democracia, Alvaro Espina (org.), Madri, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991.
  • 19 Os "conceitos jurĂdicos indeterminados" sĂŁo expressĂľes vagas utilizadas pragmaticamente pelo legislador com a finalidade de propiciar o ajuste de certas normas a uma realidade cambiante ou ainda pouco conhecida; graças a esses conceitos, o intĂŠrprete pode adequar a legislação Ă s condiçþes socioeconĂ´micas, polĂticas e culturais que envolvem o caso concreto e condicionam a aplicação da lei. Cf. Klaus Gunther, The pragmatic and functional indeterminacy of law, mimeo, 1990.
  • 20 A crĂtica ao "corporativismo social" ĂŠ que ele, enquanto instrumento de formação e canalização de vontade polĂtica, de organização e seleção de demandas e de elaboração e implementação de decisĂľes, produziria a concentração do poder num espaço econĂ´mico reduzido, neutralizando a possibilidade de afirmação democrĂĄtica do poder polĂtico. A ampliação desordenada do aparelho e das funçþes estatais propiciada pelo corporativismo, dada a interdependĂŞncia entre os sistemas econĂ´mico e polĂtico, tambĂŠm tenderia a reduzir a capacidade de governo numa perspectiva voltada aos "despossuĂdos Ă queles que, nĂŁo tendo meios para agir no cenĂĄrio corporativo, estĂŁo fora do jogo. No entanto, exatamente porque ĂŠ apto a lidar com a heterogeneidade de demandas em contextos marcados por elevados graus de heterogeneidade estrutural, o "neo"-corporativismo possibilitaria a superação da clĂĄssica oposição formal entre ordem polĂtica e ordem social herdada do modelo liberal de direito e Estado. A compatibilização de engrenagens corporativas como essas com a democracia, afirma F. W. Reis, poderia ser obtida desde que elas fossem progressivamente institucionalizadas por dispositivos organizacionais e jurĂdicos capazes de assegurar a visibilidade e a responsabilidade das decisĂľes tomadas em seu interior, inibindo o potencial de distorçþes democrĂĄticas nelas contido. A articulação dos diferentes interesses sociais com o Estado, especialmente dos interesses funcionais ou ocupacionais, revelar-se-ia um componente indispensĂĄvel da relação do Executivo com a sociedade, contribuindo assim para impedir a excessiva autonomia do aparelho estatal e sua prĂłpria subordinação unilateral a determinados interesses. "O corporativismo, bem entendido, ĂŠ parte da prĂłpria democracia; em vez da denĂşncia rombuda do corporativismo, cumpre enfrentar lucidamente a tarefa de construir, com senso de equilĂbrio e medida, nosso necessĂĄrio corporativismo, o que equivale a reconstruir nosso complexo e viciado aparelho estatal". Cf.F. W. Reis, "Crise brasileira e construção institucional", in Condiçþes para a retomada do desenvolvimento, J. Paulo dos Reis Veloso (org.), SĂŁo Paulo, Nobel, 1991, p. 149.
  • 21 Cf. Boaventura Santos, "O Estado e a Sociedade na Semi-Periferia do Sistema Mundial: o caso portuguĂŞs", in O Estado e a Sociedade em Portugal, Porto, Afrontamento, 1990, p. 136.
  • 23 Cf. Norbert Lechner, "Derecho y Estado en AmĂŠrica Latina", in La crisis del Estado en AmĂŠrica Latina, Caracas, Cid, 1977;
  • "La lucha por el ordem" e "El consenso como estratégia y como utopia",
  • in La Conflictiva y Nunca Acabada Construción del Ordem Deseado, Santiago, Flacso, 1984;
  • Adam Przeworski, "Ama a incerteza e serĂĄs democrĂĄtico", in Novos Estudos, SĂŁo Paulo, Cebrap, 1984, nÂş 9;
  • e Maria ErmĂnia Tavares de Almeida, "Reformismo democrĂĄtico em tempos de crise", in Lua Nova, SĂŁo Paulo, Cedec nÂş 22.
  • *
    Trabalho preparado para o
    workshop sobre "El papel del derecho en los processos de post-transición. democrática", em julho de 1993 no International Institute for the Sociology of Law, era Oñati, Espanha.
  • 1
    Como afirma Luciano Martins, há "uma diferença básica entre o uso corrente (político, jornalístico...) da expressão "transição para a democracia" e o tratamento que a reveste quando utilizada na literatura acadêmica, pois, nesta, os desfechos desses processos de transição são quase sempre problematizados. Não obstante isso, mesmo nessa literatura a ênfase tem sido posta (e nem sempre enquanto hipótese) no desfecho democrático. Talvez por essa razão a probabilidade de seu prevalecimento e o próprio processo de transição têm sido preponderantemente examinados à luz da correlação de forças e do jogo político entre os declarados defensores da democracia e seus reais ou potenciais opositores autoritários, sem muita atenção talvez para o padrão de ação política que caracteriza o desempenho doe primeiros. A abordagem alternativa tem sido a de considerar esse padrão, quando ele indica um baixo desempenho ou está eivado de práticas antitéticas à prática democrática como uma das seqüelas do autoritarismo, a qual tenderia a se diluir através da própria experiência democrática". Cf. Luciano Martins,
    Ação Política e Governabilidade na Transição Política Brasileira, Campinas, Unicamp, mimeo, 1988.
  • 2
    Cf. Guillermo O'Donnell, 'Transições, continuidade e alguns paradoxos"
    in A democracia do Brasil: dilemas e perspectivas, Fábio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.) São Paulo, Vértice, 1988; e Luciano Martins,
    Ação Política e Governabilidade na Transição Política Brasileira, op. cit.
  • 3
    Cf. John Maynaid Keynes, "As possibilidades econômicas de nossos netos",
    in Keynes, Tamás Szmrecsà myi (org.), São Paulo, Ática, 1978, pp. 158-159. Para uma análise das implicações éticas deste tipo de afirmação, ver Joan Robinson, "A polêmica em economia política",
    in Introdução à Teoria Geral do Emprego, Rio de Janeiro, Fundo da Cultura, 1960; Jacob Viner, "A relação entre a economia e a ética",
    in Ensaios Selecionados, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1972; e Amartya Sen, "Comportamento econômico e sentimentos morais",
    in Lua Nova 25, 1992.
  • 4
    Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras",
    in Revista de Informação Legislativa; Brasília: Senado Federal, 1990, nº 108, p. 33. Para uma análise das implicações jurídico-políticas deste tipo de afirmação, ver Norberto Bobbio, "Ética e Política", e Michelangelo Bovero, "Ética e Política entre maquiavelismo e Kantismo", ambos
    in Lua Nova, São Paulo: Cedec, 1992, nº25.
  • 5
    "Regulamentos e necessidades", segundo Duguit, são "leis editadas com base no poder regulamentar do Executivo, submetidas à ratificação invalidatória por parte do Legislativo". Cf. Leon Duguit,
    Traité du Droit Institutionel, Paris, LGDJ, 1980. É em face da excessiva produção desses "regulamentos" que emergiu, nas últimas décadas, a tese a favor de um "estado de necessidade econômica", no âmbito do Direito Constitucional. Ver, nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras",
    in Revista de Informação Legislativa, op. cit., p. 35.
  • 6
    Cf. Brian Bercusson, "Juridication and disorder",
    in G. Teubner (org.)
    Juridification of Social Spheres, Berlim, Walter de Gruyter, 1987; e Barry Mitnick,
    The Political Economy of Regulation, Nova York, Columbia University Press, 1980.
  • 7
    Essa perda da capacidade de determinação do direito decorreria da multiplicação desenfreada de normas que se limitam a prescrever a consecução de determinados fins à administração pública. Ver, nesse sentido, Ingeborg Maus,
    Rechtstheorie und Politische Theorie im Industriekapitalismus, Munique, Fink Verlag, 1986, pp. 277-331.
  • 8
    Assumo como sinônimos, neste trabalho, os conceitos de eficácia e de efetividade, limitando-me à distinção de dois planos analíticos: o dogmático e o jus-sociológico. Alguns teóricos do direito, contudo, diferenciam esses dois conceitos. Por eficácia, designam as modalidades formais e as condições técnico-jurídicas da aplicação de normas válidas; por efetividade, designam o acatamento das normas jurídicas pelos seus destinatários e a consecução, em termos concretos, dos objetivos previstos pelo legislador. A divergência entre o que dizem esses autores e o modo como utilizo analiticamente as noções de efetividade, enquanto sinônimos, são, em minha opinião, mínimas. Ver, nesse sentido, P. Lascoumes e E. Serverin, "Theories et pratiques de l'effectivité du Droit",
    in Droit et Societé, Paris, 1986, nº 2, pp. 101-123; Arnaud et alii, "Effectivité",
    in Vocabulaire Juridique, Paris, PUF, 1987; e François Rangeon, "Reflexions sur l'effectivité du droit",
    in Les usages du savoir juridique, Daniéle Loschak (org.), Paris, Centre Universitaire de Recherches Administratives et Politiques de Picardie/PUF, 1989.
  • 9
    Tara uma discussão teórica desta questão, ver Rudolf Wietholter, "Materialization and Proceduralization in Modern Law",
    in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner, (org.), Berlim, De Gruyter, 1985; e François Ost, "Between order and disorder: the game of law",
    in Autopoietic law: a new approach to law and society, G. Teubner (org.), Berlim, De Gruyter, 1988.
  • 10
    Cf. Helmut Willke, "The tragedy of the State",
    in ARSP-Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, 1986, vol. LXXXII p. 647.
  • 11
    Cf. S. H. Abranches, "O Leviatã anêmico: dilemas presentes e futuros da política social",
    in Planejamento e Políticas Públicas. Rio de Janeiro, 1988.
  • 12
    Condicionados pela noção tradicional de Estado de Direito, em cujo âmbito o Executivo limita-se a atuar como simples prestador de serviços básicos, os manuais de Direito Administrativo tendem a encarar a "administração pública" numa perspectiva exclusivamente jurídica, a partir dos princípios da legalidade e do equilíbrio dos poderes. A dificuldade enfrentada por esses manuais é conjugar (especialmente por causa do advento do Estado-Provedor, com suas funções reguladoras, controladoras, planejadoras e arbitrais) poder discricionário e certeza jurídica, eficácia na gestão econômica e segurança do direito. Dito de outro modo: como a "administração pública", nos Estados intervencionistas, é um aparato burocrático que procura programar ele próprio instrumentos jurídicos e as normas de que necessita, nem sempre esses manuais são sensíveis ao problema da compatibilização entre uma governabilidade condicionada por crises estruturais profundas, que exigem um amplo raio de ação por parte do Executivo, e uma ordem legal efetivamente capaz de propiciar essa governabilidade garantindo ao mesmo tempo a continuidade da certeza jurídica.
  • 13
    Para uma discussão jus-sociológica da evolução dos sistemas jurídicos hierarquizados para sistemas normativos circulares, ver Alberto Febbrajo, "From hierarchical to circular models in the Sociology of Law",
    in European Yearbook in the Sociology of Law, Milano, Giuffrè, 1988; e "The rules of the game in the Welfare State",
    in Dilemmas of Law in Welfare State, op. cit
  • 14
    Cf. Edward Amadeo e José Márcio Camargo, "Mercado de trabalho e dança distributiva",
    in Fábio Giambiagi e José Márcio Camargo (orgs.),
    Distribuição de Renda no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
  • 15
    Cf. G. Teuhner, "Substantive and Reflexive Elements in Modern Law",
    in Law and Society Review, 1983, v. 17; "After legal instrumentalism? Strategic models of post-regulatory law",
    in International Journal of the Sociology of Law, 1984, v. 12; "The regulatory trillemma",
    in Quaderni Fiorentini, 1984, v. 13; "Corporate responsibility as a problem of company constitution",
    in EUI_Working Paper, Fiesole: European University Institute, 1985; "Social order from legislative noise?",
    in State, Law and Economy as autopoietic systems: regulation and automony in a new perspective: Berlim, De Gruyter, 1987;
    Autopoietic Lam a new approach to law and society, op. cit.; "Hypercycle in law and organization: the relationship between self-observation, self-constitution and autopoiesis",
    in European Yearbook in the Sociology of Law, op. cit.; "Enterprise corporatism: new industrial policy and the essence of legal person", in
    The American Journal of Comparative Law, 1988, nº 1, v. XXXVI; "How the law thinks: toward a construtivist epistemology of law",
    in Law and Society Review, 1989, v. 23; e "And God laughed: indeterminacy, self-reference and paradox in law",
    in Critical legal thought: an American-German Debate, D. Trubek e C. Joerges (orgs.), Baden-Baden, Nomos, 1989.
  • 16
    Ver Vittorio Olgiati,
    Positive Law and Socio-legal Orders: an operational coupling for Sociology of Law, Oñati, International Institute for Sociology of Law, 1991; Helmut Willke, "Societal guidance through law",
    in State, Law and Economy as Autopoietic Systems: regulation and autonomy in a new perspective, G. Teubner (org. ), op. cit.; Philip Selznick and Philippe Nonet,
    Law and Society in transition: toward responsive law, Nova York, Harper and Row, 1978; Niklas Luhmann, "The self-reproduction of law and its limits",
    in Dilemmas of Law in the Welfare State, G. Teubner (org. ), op. cit.; "Closure and oppenness: on reality in the world of Law;
    in Autopoietic Law. a new approach to Law and Society, G. Teubner (org. )
    op., cit.
  • 17
    Cf. Norberto Bobbio,
    Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
  • 18
    Cf. Robert A. Dahl,
    Dilemmas of Pluralist Democracy, New Haven, Yale University Press, 1982, p. 80 e segs. ; e
    After the Revolution? Authority in a good society, New Haven, Yale University Press, 1970. Ver, nesse sentido, Philippe Schmitter, "Still the Century of Corporatism?",
    in The New Corporatism: Social-Political Structures in the Iberian World, Frederich Pike e Thomas Stich (orgs.), Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1974; em colaboração com Gerhard Lehmbruch,
    Patterns of Corporatist Policy Making, London, Sage, 1982; "Democratic Theory and Neocorporatist Pratice",
    in Social Research, Nova York, New School for Social Research, 1983, v. 50; e "La concertación social en perspectiva comparada",
    in Concertación Social, Neocorporativismo y Democracia, Alvaro Espina (org.), Madri, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991.
  • 19
    Os "conceitos jurídicos indeterminados" são expressões vagas utilizadas pragmaticamente pelo legislador com a finalidade de propiciar o ajuste de certas normas a uma realidade cambiante ou ainda pouco conhecida; graças a esses conceitos, o intérprete pode adequar a legislação às condições socioeconômicas, políticas e culturais que envolvem o caso concreto e condicionam a aplicação da lei. Cf. Klaus Gunther,
    The pragmatic and functional indeterminacy of law, mimeo, 1990.
  • 20
    A crítica ao "corporativismo social" é que ele, enquanto instrumento de formação e canalização de vontade política, de organização e seleção de demandas e de elaboração e implementação de decisões, produziria a concentração do poder num espaço econômico reduzido, neutralizando a possibilidade de afirmação democrática do poder político. A ampliação desordenada do aparelho e das funções estatais propiciada pelo corporativismo, dada a interdependência entre os sistemas econômico e político, também tenderia a reduzir a capacidade de governo numa perspectiva voltada aos "despossuídos — à queles que, não tendo meios para agir no cenário corporativo, estão fora do jogo. No entanto, exatamente porque é apto a lidar com a heterogeneidade de demandas em contextos marcados por elevados graus de heterogeneidade estrutural, o "neo"-corporativismo possibilitaria a superação da clássica oposição formal entre ordem política e ordem social herdada do modelo liberal de direito e Estado. A compatibilização de engrenagens corporativas como essas com a democracia, afirma F. W. Reis, poderia ser obtida desde que elas fossem progressivamente institucionalizadas por dispositivos organizacionais e jurídicos capazes de assegurar a visibilidade e a responsabilidade das decisões tomadas em seu interior, inibindo o potencial de distorções democráticas nelas contido. A articulação dos diferentes interesses sociais com o Estado, especialmente dos interesses funcionais ou ocupacionais, revelar-se-ia um componente indispensável da relação do Executivo com a sociedade, contribuindo assim para impedir a excessiva autonomia do aparelho estatal e sua própria subordinação unilateral a determinados interesses. "O corporativismo, bem entendido, é parte da própria democracia; em vez da denúncia rombuda do corporativismo, cumpre enfrentar lucidamente a tarefa de
    construir, com senso de equilíbrio e medida, nosso necessário corporativismo, o que equivale a reconstruir nosso complexo e viciado aparelho estatal". Cf.F. W. Reis, "Crise brasileira e construção institucional",
    in Condições para a retomada do desenvolvimento, J. Paulo dos Reis Veloso (org.), São Paulo, Nobel, 1991, p. 149.
  • 21
    Cf. Boaventura Santos, "O Estado e a Sociedade na Semi-Periferia do Sistema Mundial: o caso português",
    in O Estado e a Sociedade em Portugal, Porto, Afrontamento, 1990, p. 136.
  • 22
    Ibidem, pp. 138-139.
  • 23
    Cf. Norbert Lechner, "Derecho y Estado en América Latina",
    in La crisis del Estado en América Latina, Caracas, Cid, 1977; "La lucha por el ordem" e "El consenso como estratégia y como utopia",
    in La Conflictiva y Nunca Acabada Construción del Ordem Deseado, Santiago, Flacso, 1984; Adam Przeworski, "Ama a incerteza e serás democrático",
    in Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 1984, nº 9; e Maria Ermínia Tavares de Almeida, "Reformismo democrático em tempos de crise",
    in Lua Nova, São Paulo, Cedec nº 22.
  • 24
    Ibidem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1993
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br