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Qualidade de vida e desenvolvimento: o enfoque normativo de Sen e Nussbaum

Functioning and capability: the foundations of Sen's and Nussbaum's developmental ethics

Resumos

O artigo avalia as contribuições de Amartya Sen e de Martha Nussbaum para a elaboração de uma estrutura normativa adequada à compreensão do desenvolvimento em âmbito nacional e internacional. Segundo essa perspectiva o foco em determinados estados e atividades (functionings) valiosos para os seres humanos é mais apropriado, para avaliar o desenvolvimento do ponto de vista moral, do que o foco em utilidades, bens primários ou necessidades básicas.


The article discusses the contributions of Amartya Sen and Martha Nussbaum to the building of a normative framework for evaluating international and national development. Sen's and Nussbaum's stress on an approach to development with a focus on valuable capabilities and "functionings" rather than on utility, primary goods or basic needs, is examined.


QUALIDADE DE VIDA

Qualidade de vida e desenvolvimento: o enfoque normativo de Sen e Nussbaum

Functioning and capability: the foundations of Sen's and Nussbaum's developmental ethics

David Crocker* * "Functioning and capability: the foundations of Sen's and Nussbaum's development ethics". Political Theory,20, 1992, 4. Tradução de Álvaro de Vita.

Professor de Filosofia na Universidade do Colorado, onde dá cursos sobre ética, filosofia política, filosofia latino-americana e ética do desenvolvimento internacional. Ele é presidente da International Development Ethics Association (IDEA)

RESUMO

O artigo avalia as contribuições de Amartya Sen e de Martha Nussbaum para a elaboração de uma estrutura normativa adequada à compreensão do desenvolvimento em âmbito nacional e internacional. Segundo essa perspectiva o foco em determinados estados e atividades (functionings) valiosos para os seres humanos é mais apropriado, para avaliar o desenvolvimento do ponto de vista moral, do que o foco em utilidades, bens primários ou necessidades básicas.

ABSTRACT

The article discusses the contributions of Amartya Sen and Martha Nussbaum to the building of a normative framework for evaluating international and national development. Sen's and Nussbaum's stress on an approach to development with a focus on valuable capabilities and "functionings" rather than on utility, primary goods or basic needs, is examined.

Amartya Sen e Martha Nussbaum estão elaborando uma nova e importante ética para o desenvolvimento internacional. A fome no mundo e outras graves privações, argumentam, indica deficiências tanto científicas, técnicas e políticas quanto conceituais e éticas. Desde o inícios dos anos 70, Sen, um economista e teórico da escolha social nascido na Índia, vem refletindo criticamente sobre os conceitos morais pressupostos na economia do desenvolvimento, no policy making e na ação pública. Ele também vem desenvolvendo uma perspectiva normativa original para aperfeiçoar a teoria e a prática do desenvolvimento internacional. Essa perspectiva normativa é bastante tributária da tradição aristotélica/marxista e de sua concepção da existência e do florescimento humanos. A retomada por Sen dessa tradição ética é informada pelo diálogo com a filósofa Martha Nussbaum. Uma das principais estudiosas do pensamento grego e especialmente da ética aristotélica, Nussbaum escreveu com Sen um artigo (IC; ver apêndice para as abreviações deste e dos demais trabalhos) sobre a ética do desenvolvimento global e nacional. Além disso, Nussbaum comparou as idéias de Sen com as de Aristóteles e defendeu o que ela chama de uma "investigação moral aristotélica" e uma "social-democracia aristotélica" como noções significativas para o desenvolvimento internacional (NFC, NRV, ASD, LK, HN e HF).1 1 Grande parte do trabalho recente de Sen e Nussbaum, em conjunto ou separadamente, vinculou-se ao World Institute for Development Research (WIDER), Helsinqui, que é parte da Universidade das Nações Unidas. O WIDER patrocinou um projeto sobre qualidade de vida que resultou no volume, organizado por Nussbaum e Sen, entitulado The Quality of Life (Oxford, Claredon Press, 1993). Em agosto de 1991, o WIDER organizou uma conferência, denominada "Human Capabilities, Men and Equality", em que Sen e Nussbaum apresentaram trabalhos. Ainda que existam certas diferenças teóricas entre ambos, os trabalhos de Sen e de Nussbaum convergiram para uma "ética da capacidade" inovadora e promissora.

Essa visão conjunta merece ser analisada e avaliada não só pelo pequeno mas crescente grupo multidisciplinar e multicultural envolvido com a ética internacional do desenvolvimento mas também por especialistas em ética política e social em geral.2 2 Ver "Toward Development Ethics" (World Development 19, no.5,1991, p.466). Procederei em duas etapas. Primeiro situarei a ética de Sen e Nussbaum no contexto de suas contribuições abrangentes ao que denominei "teoria-prática do desenvolvimento".3 3 Ibid. Ver também David A. Crocker, "La natureza y la práctica de una ética del desarollo" (Revista de Filosofia de la Universidad de Costa Rica 26, no.63-64, 1988), pp. 49-56. Em segundo lugar, discutirei a avaliação de Sen e Nussbaum das suposições morais presentes nas orientações teóricas sobre o desenvolvimento que enfatizam respectivamente bens, utilidades e a satisfação de necessidades básicas. Em um ensaio subseqüente, explorarei a proposta de Sen e de Nussbaum de que devemos entender o processo de desenvolvimento nacional e internacional como a expansão de capacidades humanas básicas e como a promoção de formas valiosas de existência e de atividade. Nesse segundo ensaio investigarei, finalmente, as implicações dessas categorias morais fundamentais para a reformulação das noções de liberdade, direitos e justiça.

O CONTEXTO

Sen e Nussbaum estão criando o que chamam de "uma estrutura conceituai e filosófica na qual discutir alguns problemas urgentes que emergem no curso do 'desenvolvimento', sobretudo do desenvolvimento econômico" (IC, 299). Esses problemas urgentes são tanto teóricos quanto práticos, pois o "campo" do desenvolvimento envolve diferentes tipos de teoria e prática. Sen e Nussbaum contribuíram, em primeiro lugar, para esclarecer o próprio conceito de desenvolvimento. Em "Development: Which Way Now?" (1983; RVD, 485-508) e em "The Concept of Development" (1988; CD), Sen enfatiza o aspecto valorativo de "desenvolvimento" e argumenta que o conceito pode e deve ser redefinido na medida em que os investigadores percebem mais claramente que espécie de mudanças estão tentando promover. Para Sen e Nussbaum, o conceito de desenvolvimento é inerentemente impregnado de valor no sentido de que produz critérios para avaliar o que conta como uma boa mudança social, como uma "mudança benéfica" (IC, 307) e, mais fundamentalmente, o que permite a "realização de uma vida melhor" para os seres humanos (CD, 15). Os dois teóricos examinam criticamente as diferentes concepções de desenvolvimento e seus componentes valorativos. Coisas tais como o crescimento econômico ou o aumento do PIB per capita são somente meios — e às vezes não muito bons — para algo diverso. Esse "algo diverso" diz respeito ao "bem-estar", à "qualidade de vida" e ao "padrão de vida" humanos. O desenvolvimento tem por objetivo último melhorar os tipos de vida que seres humanos estão vivendo. Tanto em teoria quanto na prática, em conseqüência, o desenvolvimento deve ser definido em relação àquilo que seres humanos podem e devem ser e fazer. Sen e Nussbaum empregam o termo "efetividades" ("funetionings") para designar esses modos de ser e atividades. O que é, então, o desenvolvimento? Eles respondem: a promoção de certas efetividades humanas e a expansão das capacidades humanas de efetivar essas formas de existência e de atividade.

Em segundo lugar, Sen e Nussbaum não somente redefinem o conceito de desenvolvimento mas também articulam e defendem uma ética explícita do desenvolvimento. Em textos tais como as Dewey Lectures de 1985, denominadas "Well being, Agency, and Freedom" (WAF) e Ethics and Economics (EE), Sen esboça um ponto de vista ético fundamental que ele chama de "ética da capacidade" (GI, 14). Em Resources, Values, and Development (RVD), ele articula sua "ética social" (FF) no que se refere a questões de desenvolvimento e distribuição internacionais. Entre outras coisas, ele defende a adequação moral dos conceitos de efetividade e de capacidade em comparação com conceitos diversos tais como os de bens e de utilidade. Ele também discute o que deveríamos entender como efetividades valiosas e capacidades básicas. A partir de 1988, Nussbaum, apoiando-se em seus trabalhos sobre a ética de Aristóteles, escreveu uma série de ensaios (NFC, NRV, LK, ASD, HC, HF e HN) que aprofundaram e sistematizarm a orientação teórica de Sen. O que este ensaio discute são os conceitos fundamentais dessa ética conjunta e a relação que eles mantêm com perspectivas distintas.

Em terceiro lugar, Sen e Nussbaum, juntos (IE) ou separadamente, oportunamente retomam certas questões meta-éticas concernentes à natureza, ao método, às limitações de informação e à objetividade da investigação moral, especialmente diante de discordâncias éticas e diferenças culturais globais. A meta-ética de Sen e Nussbaum traz a promessa de colocar sob uma nova ótica, se não mesmo de solucionar, algumas de nossas exaustivas controvérsias tais como as que opõem objetivismo a subjetivismo, absolutismo a relativismo, essencialismo a anti-essencialismo e universalismo a particularismo. O trabalho de Sen e Nussbaum, ademais, ajuda-nos a entender como a investigação moral pode superar as fronteiras nacionais e culturais e contribuir para a criação de uma ética global. Como diz Nussbaum,

"Muitos dos problemas mais urgentes de justiça e de distribuição com que se defrontam os seres humanos que vivem em Estados-nação são hoje, em sua verdadeira natureza, problemas internacionais que exigem comunicação e um esforço comum em escala global para serem efetivamente solucionados. A Aristóteles pode ter sido possível pensar a água e o ar como problemas que cada cidade era capaz de enfrentar por si mesma; eles são hoje problemas urgentes para todos os seres humanos em conjunto e em comum. Também o são os problemas conexos da fome e da falta de alimentos e a questão urgente de preservar a ecologia do planeta. Se queremos sobreviver enquanto espécie e planeta, sem dúvida precisamos pensar o bem-estar e a justiça internacionalmente e em conjunto." (ASD, 207)

Um quarto ponto é o de que Sen reconhece que uma ética do desenvolvimento precisa ser elaborada em relação dialética com a investigação empírica sobre o que causa e impede o (bom) desenvolvimento, assim como o que produz e evita a pobreza, a carência de alimentos, a fome endêmica, a exploração, o sexismo e outras deficiências de desenvolvimento. As ciências sociais precisam da ética para esclarecer o que devemos entender por "privação" humana, "bem-estar", "padrão de vida", "qualidade de vida" e "desenvolvimento". E a ética necessita da investigação empírica para saber o que está ocorrendo (e porque) no mundo e o que pode ser efetivo para tornar o mundo melhor. Uma vez mais, Sen esteve na dianteira, esclarecendo e avaliando hipóteses acerca da causação e de mecanismos causais. Essa "orientação de engenharia" (EE, 4) à economia e ao desenvolvimento inclui seu importante Poverty and Famine: An Essay on Entitlement and Deprivation (1981; ver também HE, AI e ID) e seu trabalhos recentes sobre privação desproporcional e mortalidade feminina (RVD, 346-85; AI, 118-26; GCC, MW e GI). É de se notar especialmente o argumento de Sen de que freqüentemente é a ausência de titularidades legais e de outro tipo a alimentos e à renda, e não a escassez de produtos, que explica de forma causal coisas tais como a fome e a injustiça na família.4 4 "Titularidade", para Sen, não é um termo moral e sim descritivo e se refere ao conjunto dos distintos complexos de bens de que uma pessoa pode dispor em uma sociedade.

Sen e Nussbaum, finalmente, estão preocupados não somente com o desenvolvimento teórico normativo e empírico mas também com a prática e as políticas de desenvolvimento. À luz de sua linha teórica da capacitação, Sen argumenta que "o objeto da ação pública pode ser entendido como a ampliação da capacidade das pessoas de serem responsáveis por "atividades e estados" valiosos e valorizados (HPA, 12). Em Hunger and Public Action, Sen e Jean Drèze investigaram diversas formas de superar deficiências de titularidade e de realizar o objetivo "capacitivo" de ser capaz de evitar a fome endêmica. Eles também mostram como essas estratégias diferem das concebidas para promover outros objetivos tais como a equidade de renda e a maximização da utilidade. Sen aplica ainda critérios éticos para avaliar as lições, as realizações e as falhas de políticas públicas em países e regiões tais como a Índia, a áfrica, a China e o Sri Lanka (PF, SI, AI e ID). Também é visível a influência prática de Sen no Human Development Report 1990 do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU).5 5 Human Development Report 1990. Oxford, Oxford University Press, 1990. Ele foi consultor desse informe inovador e esboçou boa parte dele. Sua influência no relatório é clara na medida em que o desenvolvimento nacional é definido como "desenvolvimento humano", o que por sua vez é concebido em ligação com a formação, expansão e utilização de "capacidades humanas".6 6 Ibid., p. 10. O relatório do PDNU propõe um novo "índice de desenvolvimento humano" como forma de medir os êxitos e as deficiências de desenvolvimento. Nussbaum, da mesma forma, extrai lições e explora implicações da ética das capacidades para projetos e políticas de desenvolvimento em Bangladesh, na Índia e na Escandinávia (IC, ASD e HF).7 7 Especialmente importante para Nussbaum foi o trabalho de Many Chen sobre o desenvolvimento. Ver Marty Chen. A Quiet Revolution: Women in Transition in Rural Bangladesh (Dhaca, BRAC, 1986), e "A Matter of Survival: Women's Right to Work in India and Bangladesh", paper apresentado na Conferência WIDER, "Human Capabilities: Women, Men and Equality", Helsinque, agosto de 1991.

Em suma, a ética do desenvolvimento de Sen e Nussbaum situa-se, como é de se esperar de tal ética, em um contexto de interação dialética com outros elementos da teoria e da prática do desenvolvimento. Aquilo que entendemos valer a pena promover, como algo intrinsecamente valioso, será importante tanto para a análise causal como para as recomendações de política pública. Uma das razões da importância dessa "ética das capacidades" é a de que ela frutiferamente vincula, sem confusão ou fusão, aqueles elementos que de forma desafortunada e mesmo desastrosa foram separados.

AVALIAÇÃO DE CONCEPÇÕES DISTINTAS

Qual é, pergunta Sen, "a ótica correta para entender o desenvolvimento?" (CD, 19) Mais especificamente, que categoria ou categorias éticas deveriam ser as mais fundamentais, segundo as quais os outros conceitos de nossa ética do desenvolvimento devem ser definidos ou esclarecidos? Responder a esta questão, diz Sen, é estabelecer o "fundamento" de uma ética.

Devemos ser cuidadosos sobre o sentido preciso em que Sen e Nussbaum são "fundacionais". O fundamento que ambos procuram não é "uma prova incontestável de alguma coisa a partir de uma dada área de fatos externos" (HC, 25). Isto é, eles não estão tentando fundamentar ou derivar dedutivamente uma ética de alguma metafísica da natureza ou do que chamam de explanação "externalista" de uma essência humana trans-histórica. Tal explanação dependeria de um realismo metafísico ou científico que pretende oferecer uma "visão olho de Deus" sobre o que as coisas, incluindo os seres humanos, são em si mesmas. Tal "externalismo" procura transcender o discurso humano e ser "radicalmente independente de nossas escolhas reais, nossas auto-percepções, nossos medos e esperanças" (HF, 8). O que é preciso, ao invés disso, é uma fundamentação "internalista" (ver IC e HF) que se proponha superar a dicotomia de absolutismo e relativismo. Enquanto o primeiro aspira à Verdade não-histórica, o segundo se satisfaz com verdades meramente locais ou regionais.8 8 Essa concepção "internalista" da investigação, verdade e objetividade éticas apóia-se na crítica a Platão e na interpretação de Aristóteles de Nussbaum e também na distinção de Hilary Putnam entre realismo externalista e internalista (IC, 324 n.26; HN, 28-29). Ver, por exemplo, Hilary Putnam, Realism with a Human Face (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1990) e "Pragmatism and Moral Objectivity", paper apresentado na Conferência WIDER antes mencionada. Começamos "escavando" (RVD, 310) de dentro da experiência e do discurso humanos e nos envolvemos em uma investigação valorativa acerca de que coisas fazemos e sobre o que devemos considerar intrinsecamente valioso em nossas vidas humanas. Interrompemos a procura quando descobrimos, mediante um "discurso cooperativo crítico" (TA, 62), que espécie de conceitos morais interpretam melhor esses objetos de valor intrínseco:

"Devemos perguntar que coisas são tão importantes a ponto de sem elas não considerarmos uma vida como uma vida humana. Tal investigação valorativa acerca do que é mais fundo e essencial em nossas vida, de modo algum pressupõe um fundamento metafísico externo; ela pode ser uma forma de olhar para nós mesmos, perguntando o que realmente pensamos sobre nós mesmos e o que une nossa história." (HF, 10) "Qualquer teoria moral teria que começar com algum diagnóstico primeiro de valor ... Concordo inteiramente que é preciso escavar em busca de fundamentos, mas há um problema substancial envolvido em decidir em que ponto parar a escavação." (RVD, 310)9

"A distinção instrumental-intrínseco diz respeito à questão fundamental sobre o que é considerado como valioso em si mesmo e o que deve ser visto como importante somente porque contribui para outros objetivos mais básicos." (FF, 772)

Os "fundamentos" de Sen e Nussbaum retomam, então, às questões (e a algumas das respostas) do eudemonismo clássico grego. Como os seres humanos devem viver suas vidas? (EE, 2-4); LK, 23-29; HC, 180) O que deveríamos entender por florescimento humano e comunal? Que espécies de coisas são intrinsecamente boas e não somente instrumentalmente valiosas para os seres humanos? A felicidade é o objetivo último ou ela é apenas um subproduto ou algum tipo de evidência do valor intrínseco? Bens tais como alimentos ou renda são intrinsecamente bons ou são valiosos apenas por contribuem para alguma outra coisa? O que é esta outra coisa? Quais são os portadores de valores intrínsecos? Em que espaço ou espaços éticos devemos operar? Chegamos ao fim ia linha quando falamos na satisfação de certas necessidades ou no respeito a certos direitos? Ou existem categorias éticas que são mais fundamentais?

Essa investigação ética desenvolve-se mediante dois métodos relacionados. Primeiro, Nussbaum defende um tipo de extensão social do "equilíbrio reflexiva" rawlsiano. Individual e coletivamente, empenha-mo-nos em alcançar consistência e harmonia entre os nossos desejos e crenças éticas: "O que o indivíduo vem a perceber mais claramente é uma concepção do bem que ele recebe da sociedade e segundo a qual ele se propõe vive; em uma sociedade; o acordo público é alcançado como resultado do escrutínio e do esclarecimento recíprocos de diferentes propostas individuais" (TA, 61). Importante nessa investigação compartilhada é a reflexão crítica sobre "as narrativas comunais de auto-definição e auto-esclarecimento" (HN, 13). Essas narrativas, originárias de comunidades diversas, refletem e nos ajudam a refletir sobre os limites éticos existentes entre os homens e os deuses, de uma parte, e entre os homens e as bestas, de outra. Um segundo método de investigação ética, que se aplica a alguns mas não a todos os princípios éticos, consiste em esclarecer que normas gerais estão pressupostas nessa prática de investigação crítica compartilhada. Comprometer-se com esse tipo de investigação equivale a "auto-validar" (HN, 17) certas normas, tais como a reciprocidade e a racionalidade prática, que definem a atividade. Não é possível demonstrar dedutivamente essas normas sem resumi-las verdadeiras e sem pressupô-las no procedimento. Mas qualquer tentativa de invalidar essas normas, por meio de discussão e de diálogo crítico, mostra que o crítico respeita as normas constitutivas do diálogo. Esse "argumento de auto-validação" (HN, 17) não oferece uma prova incontestável pois, como Aristóteles percebeu, o crítico sempre pode retirar-se da investigação comunal (ou alterá-la) e da forma de vida da qual ela faz parte. O que essa forma de investigação faz, como uma modalidade de "internalismo", é apelar para as crenças e práticas com as quais muitos de nós já estão comprometidos. A prática da investigação ética compartilhada tem, então, uma "estrutura auto-justificante" e essa estrutura "recomenda" o que resulta da investigação como "uma base apropriada para a pesquisa ética ulterior" (HN, 21-22).

Com base nessa investigação valorativa internalista, Sen e Nussbaum propõem que a melhor categoria para traduzir a preocupação moral consiste no espaço ético das capacidades e das efetividades humanas. Em outros termos, quando concebemos a realização humana e a liberdade de ser capaz de realizar, nós identificamos o âmbito do valor intrínseco (para humanos). O que é intrinsecamente valioso para os seres humanos e oferece a base para outras investigações são certos tipos de efetividades humanas, ou seja, certos estados e atividades e as capacidades para efetivá-los. Vejamos agora como essa resposta emerge da crítica que os dois autores fazem das respostas distintas mais importantes.

A FOCALIZAÇÃO EM BENS

Uma forma de definir categorias éticas fundamentais consiste em identificar certos bens ou mercadorias como intrinsecamente valiosos ou como eticamente básicos em algum outro sentido. Renda, PIB (per capita) e crescimento econômico (em bens e serviços) foram as categorias inicialmente favoritas dos economistas e praticantes do desenvolvimento no pós-guerra. Chamemos esta versão de localização "grosseira" em bens e mercadorias. Essa visão, argumenta Sen, tem pontos fortes e fragilidades. Ela percebe corretamente que o desenvolvimento não ocorre sem prosperidade material. As pessoas sequer podem ser, para não falar em ter bem-estar ou uma boa vida, se não dispõem de certos bens. Além disso, bens materiais podem tanto ser uma evidência quanto as causas de efetividades valiosas. A boa idéia desse ponto de vista desanda, entretanto, quando meros meios são convertidos em fins. O resultado é o que Sen, seguindo Marx, denomina "fetichismo das mercadorias". Ao invés da ênfase recair no que os bens "podem fazer para as pessoas, ou melhor, o que as pessoas podem fazer com esses bens e serviços" (RVD, 510), a focalização em bens freqüentemente colapsa em uma valorização dos bens como intrinsecamente bons em si mesmos. E daí? Sen e Nussbaum apresentam quatro objeções.

Primeiro, Sen e Nussbaum apelam a nossos julgamentos refletidos (aristotélicos) de que as mercadorias não são em si mesmas bens e sim somente o são devido à relação que mantêm com — o que elas fazem para — os seres humanos:

"O bem-estar de uma pessoa não é realmente uma questão de quão rica ela é ... A posse de mercadorias é um meio para o fim que é o bem-estar, mas essa posse dificilmente pode ser o próprio fim." (CC, 28)

"Mercadorias não são mais do que meios para outros fins. O foco, no final das contas, tem que recair em que vida queremos levar e no que podemos ou não fazer, no que podemos ou não ser." (SL, 16)

"Riqueza, renda e posses simplesmente não são bens sem si mesmos. Ainda que muitas pessoas possam ser obcecadas por acumulá-los .... o que elas realmente têm, quando conseguem fazê-lo, não passa de um amontoado de coisas inúteis. Um amontoada útil, mesmo sendo um montão de coisas, nada é se não for empregado nas atividades e nos modos de existência dos seres humanos." (ASD, 210)

Uma segunda crítica diz respeito ao podemos chamar de "argumento da variabilidade interpessoal" (ver RVD, 511; WAF, 199; SL, 16; FC,277; ASD, 211; LK, 62). Devido às variações entre indivíduos, o mesmo bem pode tanto ajudar alguns, e causar dano a outros, como pode favorecer bastante o bem-estar de uns e bem pouco o de outros. Ainda que o consumo de alimentos normalmente amplie a efetividade humana, ele pode matar a pessoa sufocada com um espinho de peixe. Para efetivar suas capacidades adequadamente, o lutador Milo necessita de mais comida do que a criança ou o inválido e de menos comida do que um lutador do mesmo tamanho mas infestado de parasitas.10 10 O lutador Milo foi um atleta ateniense que se tornou famoso—talvez exageradamente—pelo destaque que recebeu nas discussões de Aristóteles ( EN I 106b3) e de Nussbaum (ASD, 211). Mulheres grávidas ou em amamentação têm necessidades nutricionais diversas das que tinham antes da gravidez ou do nascimento da criança. Não somente ocorre de a utilidade de um dado bem variar entre as pessoas, mas também de a mesma efetividade humana ser promovida, ainda que em uma mesma sociedade, por bens diversos ou por diferentes cestas de bens. Sen chama isso de uma "correspondência de muitos-para-uma" (RVD, 512) entre complexos de bens e determinadas capacidades. Ser adequadamente nutrido é algo que pode resultar de dietas radicalmente diferentes. Uma saúde boa é um estado que pode ser promovido por proporções diversas de boa alimentação e de cuidados médicos preventivos ou curativos. Uma concepção de bem-estar que focaliza bens ao invés de pessoas inevitavelmente negligencia a "conversão variável" de bens em efetividades e capacidades humanas valiosas:

"Para ter uma idéia do bem-estar de uma pessoa, indubitavelmente temos que passar para as "efetividades", a saber, para o que a pessoa consegue fazer com os bens que estão a seu alcance. Temos que perceber, por exemplo, que uma pessoa portadora de deficiência pode não ser capaz de fazer muitas das coisas que, com o mesmo complexo de recursos, uma pessoa saudável consegue fazer." (CC, 10)

Uma terceira crítica apresenta este último ponto em termos sociais e não individuais. A focalização em bens leva facilmente a um tipo de convencionalismo ou de relativismo cultural. O vestuário que promove uma efetividade básica, por exemplo, é diferente nas florestas úmidas da Costa Rica e na tundra do Alasca. Sen formula a mesma idéia com respeito à capacidade valiosa de aparecer em público sem sentir vergonha (RVD, 27, 332-38). Ele cita com freqüência a observação de Adam Smith sobre a obrigatoriedade de usar camisa de linho em aparições públicas na Inglaterra do século dezoito (RVD, 335). Seria difícil até mesmo encontrar uma camisa de linho no Colorado do século vinte, quanto mais sentir-se humilhado por aparecer em público sem estar vestindo uma. O aspecto importante é o de que o ponto de vista das capacidades pode reter a noção de um núcleo culturalmente invariante (absoluto) nas concepções tanto de bem-estar quanto de privação, ao mesmo tempo em que admitindo como relativos a contextos históricos e culturais quaisquer meios específicos de satisfação (SL, 18; RVD, 333; RVD, cap. 14; NRV). Apoiando-se em Aristóteles, Nussbaum formula uma quarta crítica a essa versão grosseira. Não é só que os bens materiais não são os fins últimos ou os meios invariantes para esses fins; um excesso deles também pode ser danoso. Uma quantidade excessiva de uma coisa boa pode ser ruim (ASD, 210). Bens e a cobiça por eles muitas vezes tornam as pessoas excessivamente competitivas, dominadoras, arrogantes e as levam a "ter uma atitude mercenária em relação a outros tipos de coisas boas" (ASD, 256, n.20). Essa atitude pode chegar ao ponto de resultar no que Nussbaum chama de "uma mercantilização de partes do eu" (HF, 42), como é o caso, por exemplo, quando corpos de mulheres são tratados como mercadorias em transações de mercado e em procedimentos legais concernentes ao estupro. Com respeito a isso, pode-se mencionar ainda a musculação e os concursos de beleza, assim como a crescente utilização de esteróides e de cirurgias cosméticas.

Uma versão muito mais sofisticada da focalização em bens é a de John Rawls.11 11 Ver John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1971); "Kantian Contructivism in Moral Theory: The Dewey Lectures 1980" (Journal of Philosophy 77, no.9, 1980, pp. 515-572); "Social Unity and Primary Goods", in Utilitarianism and Beyond, volume organizado por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge, Cambridge Universtiy Press, 1982); "Justice as Fairness: Political not Metaphysical" (Philosophy and Public Affairs 14,1985, pp. 223-251; publicado em Lua Nova 25,1992, com o título "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica"); "The Idea of an Overlapping Consensus" (Oxford Journal of Legal Studies 7,1987, pp. 1-25); "The Priority of Right and Ideas of the Good" (Philosophy and Public Affairs 17,1988,251-276); e "The Domain of the Political Overlapping Consensus" (New York University Law Review 64,1989,233-255). Rawls concebe o bem-estar individual e faz comparações interpessoais em relação ao que chama de "bens primários sociais", entre os quais a renda e a riqueza têm uma certa centralidade. A teoria dos bens primários de Rawls, entretanto, difere em pontos importantes da visão comentada acima. Nem em Uma teoria da justiça nem em seus textos mais recentes Rawls sustenta que os bens primários são intrinsecamente valiosos. De fato, uma parte essencial do liberalismo de Rawls e daquilo que ele chama de "anti-perfeccionismo" é a idéia de que questões de valor intrínseco ou último devem ser vistas, dentro dos limites especificados por sua teoria, como objeto de escolha individual e não de preocupação governamental. Rawls, entretanto, apresenta uma lista de bens primários como desempenhando um papel importante em sua teoria da "justiça como equidade". Pelo menos à primeira vista, esse papel exclui que se leve em conta as capacidades e efetividades humanas que Sen e Nussbaum julgam ser o "espaço" apropriado para uma ética social. Vejamos brevemente a complexa teoria dos bens primários de Rawls e os pontos de diferença que emergiram entre ele, de uma parte, e Sen e Nussbaum, de outra.

Em Uma teoria da justiça, Rawls enumera os "bens primários sociais" como "direitos e liberdades, prerrogativas e oportunidades, renda e riqueza" e "auto-respeito".12 12 Rawls, Theory, p.62. Estes supostamente são os bens que todos os indivíduos racionais querem ter independentemente de seus fins últimos na vida: "Permanecendo outras condições constantes, eles preferem uma liberdade e oportunidades mais amplas a mais restritas e uma parcela maior a uma menor da riqueza e da renda".13 13 Ibid.,p.396. Rawls não propõe essa lista de bens como aquilo que as pessoas deveriam desejar e os governos deveriam promover como fim último. Diferentemente, ele concebe a lista como uma "teoria fraca do bem", que pode ser empregada em seu dispositivo justificativo, a "posição original", para motivar seus contratantes racionais na escolha de princípios de justiça. Os bens primários nos dizem o que essas partes desejam e consideram ser de seu benefício racional. A lista também dá a Rawls um critério para avaliar as "pretensões legítimas" de uma pessoa e desse modo permite a ele fazer comparações interpessoais com respeito a quão "bem situadas" as pessoas são. Na teoria de Rawls, o conceito de direito tem prioridade sobre o de bem no sentido de que uma concepção de justiça, supostamente escolhida pelas partes na posição original, provê uma estrutura eqüitativa na qual as pessoas escolhem e se empenham em realizar sua própria concepção do bem. Diversamente do que ele chama de uma teoria "perfeccionista" de justiça, a teoria de Rawls não propõe uma "concepção forte do bem", a saber uma concepção última de excelência humana que todo governo deveria promover e a que todas as pessoas deveriam aspirar.14 14 Ibid., p.25,260,325-26,396.

Em seus textos mais recentes, Rawls procurou se desvencilhar da idéia de que em Uma teoria da justiça ele estivesse tentando deduzir seus princípios de justiça de algum conceito moralmente neutro de racionalidade, associado a uma teoria empírica acerca do que as pessoas em toda parte de fato desejam. Rawls agora enfatiza que os bens primários, que ainda devem ser empregados para derivar princípios de justiça, são eles próprios justificados por nossas concepções dos cidadãos como "pessoas morais" livres e iguais e como capazes de participar da cooperação social:

"Esses bens, dizemos, são os que os cidadãos necessitam enquanto pessoas livres e iguais, e as pretensões de dispor de tais bens devem ser vistas como aquelas que são pertinentes."15 15 Rawls, "The Priority of Right", p.257. "Os bens primários são identificados perguntando-se pelas coisas que em geral são necessárias como as condições sociais e os meios-para-todos-os-fíns para capacitar os seres humanos a realizar e exercitar suas capacidades morais e a perseguir seus fins últimos (supondo-se que se mantenham dentro de certos limites)."16 16 Rawls, "Kantian Constructivism", p.526.

O que vem a ser, precisamente, a concepção de Rawls de pessoas morais socialmente cooperativas e sua lista revisada de bens primários, bens que ele acredita serem necessários para pessoas assim? Para Rawls, pessoas morais são "caracterizadas por duas capacidades morais e pelos correspondentes interesses de ordem mais elevada em realizar e exercitar essas capacidades".17 17 Ibid.,p.535. Pessoas morais, em primeiro lugar, têm a capacidade para e um interesse em um "senso de justiça", isto é, a capacidade de compreender, aplicar e agir segundo princípios de justiça. Segundo, pessoas morais têm a capacidade e o desejo de constituir, revisar e de perseguir racionalmente uma concepção do bem. Em uma "sociedade bem ordenada", os cidadãos vêem a si mesmos e aos outros como pessoas morais. Eles também cooperam uns com os outros na medida em que se sujeitam à concepção compartilhada de justiça e, nos limites desta concepção, definem e tentam alcançar o próprio bem. Esses limites excluem as organizações autoritárias e as concepções do bem baseadas na dominação e no servilismo. Para serem livres e iguais, os cidadãos precisam dispor (de níveis mínimos) de certos bens primários. A lista original de Rawls agora ampliou-se um pouco para incluir o seguinte: "as liberdades fundamentais", tais as liberdades de consciência e as liberdades políticas; "a liberdade de movimento e de escolha livre da ocupação apoiada em um background de oportunidades diversas"; "as capacidades e as prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade"; "renda e riqueza"; e "as bases sociais do auto-respeito".18 18 Rawls, "The Priority of Right", p.257. Neste ensaio de 1988, Rawls abre a porta para uma ampliação da lista que inclua itens tais como "tempo de lazer" e "ausência de dor física".

Nessa "teoria fraca do bem", Rawls chama a renda e a riqueza de "meios-para-todos-os-fins" e qualifica os itens restantes como "características de instituições".19 19 Ibid., p.257. Nós os democratas, diz Rawls, supomos que esses itens são instrumentalmente bons como os meios necessários à cidadania democrática. Isto é, dentro dos limites eqüitativos estabelecidos pela justiça, acreditamos que pessoas morais livres e iguais necessitarão de cada um desses bens para levar adiante seus fins últimos. Cabe aos cidadãos — e não ao Estado ou aos filósofos—decidir acerca de seus próprios fins últimos.

Rawls denomina sua teoria mais recente, com a ênfase que põe no ideal de personalidade moral e de cidadania democrática, "uma concepção política" de justiça. Aceitando o fato da irredutível diversidade — com respeito às concepções do bem — em uma sociedade democrática, Rawls rejeita como "utópica" qualquer doutrina moral "abrangente" e "geral". Uma doutrina é abrangente quando inclui uma concepção "acerca do que é de valor último na vida humana";20 20 Ibid.,p.252. e é geral quando se aplica não somente à esfera pública mas também a outros âmbitos da vida. Em contraste, uma concepção política, de que "justiça como equidade" é o exemplo preferido, consitui-se em uma "interface consensual" de e para cidadãos livres e iguais. O consenso diz respeito a bens instrumentais e a princípios distributives que somente são relevantes para o âmbito político. O direito é prévio ao bem no sentido de que "os princípios de justiça (política) estabelecem limites às formas de vida admissíveis"21 21 Ibid.,p.251. e às concepções pessoais do bem intrínseco. Dado o fato da diversidade ideológica, um governo que tomasse o bem prévio ao direito teria que promover uma e somente uma concepção do bem e fazer distribuições com base nisso. Mas, para Rawls, tal "promoção" teria que recorrer, de forma inaceitável, ao uso coercitivo do poder estatal e assim violaria a liberdade das pessoas decidirem sobre seus próprios fins últimos.

Na versão de Rawls da focalização em bens, dessa forma, o espaço moral dos bens é entendido não como o locus de fins últimos e sim de meios indispensáveis à realização de determinados ideais democráticos, incluindo os ideais de cooperação social e de escolha autônoma. Dados esses meios e fins, Rawls concebe os princípios públicos de justiça — para o âmbito político — como uma estrutura eqüitativa que restringe os cidadãos na escolha de e nas formas de realizar seus fins últimos (que podem ou não incluir o valor último da participação política).

Como Sen e Nussbaum avaliam essa complexa e sutil visão rawlsiana? De uma parte, Sen aplaude a "teoria da justiça de grande alcance" de Rawls por ter "contribuído para uma radical regeneração da filosofia política e da ética contemporâneas" (IF, 52). Ele reconhece um débito pessoal "enorme" para com Rawls e chega a afirmar que sua própria visão não é senão "uma possível extensão da perspectiva rawlsiana" (RVD, 339; ver EW, 218). Sen concorda com os argumentos de Rawls, em particular, de que o utilitarismo (1) reduz a pessoa "ao lugar em que se passa a coisa valiosa chamada felicidade", e (2) tem por implicação que aqueles com gostos de gourmet devem receber mais renda do que aqueles que têm gostos "baratos" (RVD, 279-280). Os cidadãos democráticos de Rawls, em contraste, têm a responsabilidade de escolher fins pessoais consistentes com os bens primários eqüitativamente disponíveis. Ademais, além de certas liberdades civis, políticas e pessoais (negativas), esses bens primários incluem bens tais como renda e riqueza. (A liberdade rawlsiana é negativa no sentido de liberdade de interferências por parte de outros ou do Estado.) Os princípios de justiça de Rawls asseguram "a "prioridade' da liberdade individual, condicionada à vigência de uma liberdade similar para todos" (IF, 52). Por essa razão, conclui Sen, "a teoria rawlsiana da justiça chamou muito a atenção para as implicações éticas e políticas da liberdade individual" (IF, 52).

Apesar da aprovação de Sen à façanha de Rawls, aquele e Nussbaum encontram deficiências sérias no espaço moral rawlsiano dos bens primários. Primeiro, Sen aplica à teoria de Rawls uma variante de seu "argumento da diferença individual":

"Comparar os bens primários de que dispõem diferentes pessoas não é exatamente o mesmo que comparar as liberdades que são de fato usufruídas por diferentes pessoas, ainda que as duas coisas estejam intimamente relacionadas. Os bens primários são meios para a liberdade, mas eles não podem representar o grau de liberdade, dada a diversidade com que os seres humanos convertem bens primários na liberdade de perseguir seus diferentes objetivos." (IF, 52; ver ASD, 211)

A teoria dos bens primários de Rawls, argumenta Sen, seria uma boa forma de avaliar a situação das pessoas e de fazer comparações interpessoais se as pessoas fossem muito semelhantes. Entretanto, em verdade "somos diferentes" e "diferentes de formas diversas" (J, 120). Graças a Rawls, somos energicamente lembrados de um tipo de tal variação, a saber, "a variação entre fins — entre as diferentes concepções do bem que pessoas diferentes têm" (J, 120). Rawls, entretanto, erra em não fazer justiça à "variação inter-individual" na relação entre bens primários e "a liberdade de perseguir fins" (J, 120): "as variações relacionadas à sexo, idade, dotes genéticos e muitos outros fatores nos conferem capacidades desiguais de edificar a liberdade em nossas vidas, mesmo que tenhamos o mesmo complexo de bens" (J, 121; ver EW, 215-216; IF, 52). Por isso, a igualdade na titularidade de bens primários pode vir de mãos dadas com sérias desigualdades nas reais liberdades usufruídas por pessoas diferentes" (J, 115). A liberdade de um aleijado de se movimentar e, de modo mais geral, de ser capaz de "levar a vida que escolheria" (IF, 49) exigirá mais renda e recursos do que uma pessoa "normal" necessita para ter a mesma liberdade. A liberdade no sentido amplo, positivo, não é somente — como na liberdade negativa — "a ausência das interferências que uma pessoa pode exercer sobre outra (ou que o Estado pode exercer sobre os indivíduos)" (IF, 49). A liberdade positiva inclui a ausência de outros tipos de limitações, tais como a pobreza e a ignorância, e a existência de opções genuínas. O foco de Rawls em bens primários, junto com sua concepção negativa de liberdade, negligencia as liberdades positivas que as pessoas "efetivamente dispõem de escolher entre formas diferentes de vida que elas têm razões para valorizar" (J, 115). A justiça não deve dizer respeito apenas a bens primários e liberdades negativas; ela também precisa concernir à liberdade positiva e efetiva de realização.

Rawls, Sen admite, não está "ignorando" (EW, 216) inteiramente as necessidades especiais dos deficientes, velhos e doentes, mas lamentavelmente está "adiando" (CWM, 30) o enfrentamento desses casos. Se a razão para tal adiamento é a de que esses problemas são incomuns, tanto Sen como Nussbaum insistem em que são acidentes e deficiências bastante generalizados (J, 116; ASD, 211; HF, 46). Se a razão, argumenta Nussbaum, é a de que os fisicamente incapacitados não são membros plenamente cooperativos da sociedade, isso seria inconsistente com a ênfase de Rawls nos cidadãos enquanto pessoas morais (ASD, 211). Se Rawls acredita que o problema da variabilidade individual pode ser enfrentado depois do contrato básico, nos níveis legislativo ou judicial de sua "seqüência de quatro etapas"22 22 Rawls, Theory, pp. 195-201. , então, sustenta Sen, o fato de que pessoas diferentes podem ter capacidades diferenciadas de influenciar os estágios posteriores significa que essas diferenças seriam mais apropriadamente levadas em conta no contrato original (J, 117 n.18; OI, 19). Nussbaum enfatiza que há muitas variações moralmente importantes entre as pessoas além das diferenças produzidas por deficiência ou acidente. Essas diferenças incluem coisas tais como titularidades e poder social desiguais, que a análise de Rawls negligencia em larga medida.23 23 Em justiça a Rawls, deve-se notar que há uma vertente de Uma teoria da justiça em que Rawls reconhece que poder e vantagens desiguais resultam no valor desigual de bens primários tais como a liberdade individual (ver Theory pp. 277-278). Ver também Alan Gilbert, "Equality and Social Theory in Rawl's A Theory of Justice" (Occasional Review 8/9, 1978, pp. 92-117). Norman Daniels tenta robustecer a capacidade da teoria de Rawls de lidar tanto com a deficiência física quanto com a desigualdade de poder social enfatizando, mais do que o próprio Rawls, o princípio de "igualdade equitativa de oportunidade". Ver Norman Daniels, "Equality of What: Welfare, Resources or Capabilities?" (Philosophy and Phenomenological Reserarch 50, Suplemement Fall 1990, pp. 173-96). Injustiças desse tipo só podem ser reveladas e em alguns casos removidas se focalizamos não somente bens, mas também o que impede ou promove a conversão igual desses bens em capacidades.

Em segundo lugar, Sen e Nussbaum argumentam que Rawls já se moveu para o espaço das capacidades, mas o fez de modo incompleto, vacilante e equivocado. Lembre-se que agora Rawls explicitamente defende seus bens primários argumentando que são necessários para a personalidade moral e para a cooperação social. A personalidade moral, por sua vez, envolve a capacidade de escolha autônoma por parte de cada um dos próprios objetivos básicos. Rawls, então, argumenta Sen, "está realmente à procura de algo como capacidades", pois "ele defende o foco em bens primários discutindo o que os bens primários capacitam as pessoas a fazer" (RVD, 320). Mais especificamente, a crítica de Rawls do militarismo parece pressupor algo como a noção de Nussbaum sobre a "natureza distintiva das pessoas" (HV, 45). Similarmente, Rawls de fato está endossando pelo menos uma capacidade humana, a de fazer escolhas, ainda que como um ideal pressuposto na prática democrática e não como um "fim último". Além do mais, Rawls muitas vezes arrola "as bases sociais do auto-respeito" como um de seus bens primários, uma formulação que sugere que o auto-respeito, se em si mesmo não é um bem passível de distribuição, tem uma origem institucional. No entanto, argumenta Sen, Rawls também afirma que o bem primário em questão é o "auto-respeito" enquanto tal, "uma capacidade de alcançar" (RVD, 32) um certo tipo de efetividade pessoal. Rawls, finalmente, inclui bens não-materiais como liberdades, direitos, oportunidades e (mais recentemente) a "ausência de sofrimento físico" em sua lista de bens primários. Ainda que Rawls incline-se a falar desses itens — excetuando o último — como "características de instituições", e não de pessoas, Nussbaum sustenta que a expansão da lista para além de riqueza e renda mostra que Rawls está tateando à procura de uma noção de capacidades humanas (ASD, 249 n.73).

Rawls respondeu somente à primeira crítica de Sen, mas a resposta é relevante a ambas as objeções. O argumento da "variabilidade individual" é viciado porque pressupõe exatamente aquilo que a concepção política de Rawls pretende evitar, a saber, uma doutrina moral abrangente e geral. Sen e Nussbaum respondem à réplica de Rawls de duas maneiras significativamente distintas, o que sugere uma diferença importante em suas versões da ética das capacidades.

Sen aceita a premissa de Rawls de que necessitamos uma concepção política de justiça, mas defende a "liberdade efetiva" ou a "capacidade de escolha" argumentando que isso não é parte de uma concepção moral abrangente. Sen sustenta que Rawls entendeu mal sua visão "[d]as liberdades efetivas usufruídas por diferentes pessoas — que têm objetivos possivelmente divergentes — de levar as diferentes vidas que tenham razões para valorizar" (J, 112). Sen insiste em que ao falar em liberdades efetivas e não em bens e mercadorias, ele não está pressupondo uma doutrina abrangente específica: "a capacidade exprime uma liberdade de escolher entre vidas distintas (combinações de efetividades), e seu valor não precisa derivar de uma "doutrina abrangente" específica, que prescreva uma certa forma de vida" (J, 117).

O ponto central de Sen é o de que os bens primários de Rawls, incluindo o bem da liberdade negativa, devem ser entendidos como meios para uma liberdade positiva que possibilite a escolha entre formas diversas de vida e entre diferentes concepções dos fins últimos. Qualquer que seja a concepção da boa vida que se apresente, é melhor—devido à variabilidade individual — mover-se no espaço da liberdade positiva ou das capacidades do que no espaço dos bens primários. Rawls traçou a linha divisória entre liberdade e não-liberdade em um ponto arbitrário por não ter incluído em suas liberdades básicas a liberdade de movimento do deficiente físico. Mesmo ampliando-se a noção de liberdade para incluir não só as liberdades positivas mas também as negativas, ainda estamos distantes de uma visão moral geral ou abrangente. Isso não é o mesmo que dizer que a visão de Sen é moralmente neutra, já que o utilitarismo e o "liberismo" (libertarianism) são rejeitados devido ao foco dessa visão no "espaço das capacidades". Mas tampouco a teoria de Rawls é completamente neutra, uma vez que o autoritarismo e o perfeccionismo nietzschiano são incompatíveis com a suposição de Rawls de que estamos elaborando uma concepção de termos eqüitativos de cooperação para cidadãos ou sujeitos morais livres e iguais. A "avaliação da justiça fundamentada em capacidades" é mais definida do que a teoria de Rawls porque, se Sen está certo, sua perspectiva exclui ainda visões não-autoritárias, como a do próprio Rawls, que se abstêm de endossar a liberdade positiva. Tais exclusões, entretanto, ainda deixariam lugar para um vasto leque de diferentes bens e efetividades que diferentes indivíduos podem escolher ou ter razões para valorizar:24 24 Discussões com Lawrence Crocker ajudaram-me a entender a noção de liberdade positiva de Sen e crítica deste a Rawls.

"As pretensões individuais devem ser avaliadas não pelos recursos ou pelos bens primários que respectivamente as pessoas detenham, e sim pelas liberdades de que efetivamente dispõem de escolher entre diferentes formas de vida que elas tenham razões para valorizar." (J, 114) "Mesmo do ponto de vista como um todo do compromisso social com a liberdade individual podem haver, é claro, visões distintas acerca dos pesos relativos que devem ser atribuídos a aspectos diferentes da liberdade, a saber, às liberdades negativas e positivas. A aceitação dessa perspectiva geral não deve ser entendida como uma exclusão de visões diferenciadas acerca desses pesos relativos." (IF, 54)

Não é que Sen esteja negando a possibilidade de, ou que seja desejável, ir mais longe no espaço das capacidades e desenvolver uma concepção mais definida sobre "a" boa vida. Ele reconhece que Nussbaum está fazendo exatamente isso:

"As pessoas realmente têm, é claro, objetivos diferentes. Até que ponto em um nível mais profundo e sofisticado pode-se frutiferamente admitir um conjunto de objetivos gerais comuns, esta é uma questão importante que Martha Nussbaum vem enfrentando de uma perspectiva aristotélica." (GI. 20)

Entretanto, independentemente de o projeto de Nussbaum e de outros similares serem bem-sucedidos, "é importante reconhecer que comparações interpessoais de capacidades não se tornam impossíveis devido à ausência de uma "doutrina abrangente'" consensual (GI, 20). Podemos fazer algum progresso na ética social identificando o espaço moral apropriado, e dessa forma rejeitando não só visões autoritárias mas também visões incompletas ou unilaterais como o "welfarismo", devido à ênfase exclusiva na utilidade, o "liberismo", com seu foco somente na liberdade negativa (IF, 54), e a teoria rawlsiana, devido a sua recusa em reconhecer a liberdade positiva.

Nussbaum responde à réplica de Rawls de modo bastante diverso do de Sen. A estratégia daquela é a de argumentar que a utilização de Rawls dos bens primários já o compromete com uma teoria ou concepção moral do bem que se propõe ser abrangente mas que é significativamente incompleta. Em vez de defender a "liberdade efetiva" ou a "escolha" como relativamente neutras com respeito a doutrinas morais, Nussbaum aceita o desafio e argumenta que os ideais de Rawls de escolha autônoma e de sociabilidade são eles próprios parte de uma concepção (liberal) do bem humano. Rawls, argumenta Nussbaum, não pode defender sua própria teoria dos bens primários sem pressupor uma concepção abrangente acerca dos bons estados e atividades humanos. Rawls não pode avaliar seus bens primários como tendo valor sem pressupor uma teoria mais robusta da boa vida, sem assumir "um ponto de vista sobre que efetividades são constitutivas da boa vida humana" (NFC, 152; ver ASD, 214,227,248 n.73). Se renda e riqueza são necessárias para um indivíduo ser uma pessoa moral e um cidadão, então a teoria de Rawls apregoa a capacidade de realizar escolhas pessoais e políticas e o ideal de vida cooperativa como componentes da boa vida, pelo menos no âmbito político. Uma vez que se aceita essa idéia, na visão de Nussbaum, podemos então discutir se não há outros tipos de capacidades da pessoa que também deveriam fazer parte de nossa concepção do florescimento humano tanto no âmbito político como no não-político.

Que estratégia, a de Sen ou a de Nussbaum, devemos escolher para criticar a sofisticada focalização em bens de Rawls? Acredito que ambas têm seu lugar, mas precisam ser entendidas como operando em níveis distintos. Sen está "esculpindo", para trocar nossas pás por cinzéis, o "espaço das capacidades". Nussbaum está argumentando que deveríamos preencher ou descrever em detalhe esse espaço com "capacidades" que vão bastante além, ainda que os incluam, das duas capacidades morais e do ideal de cooperação social de Rawls. As respostas de Sen e Nussbaum a Rawls, então, pressupõem duas formas de investigação moral que ocorrem em níveis distintos de determinação ética. Suas óticas diversas também pressupõem dois sentidos bastante distintos de "capacidade". Como veremos, por "capacidades" Sen entende as oportunidades reais, as possíveis efetividades valiosas ou as liberdades efetivas de realizar. Nussbaum, em contraste, entende as capacidades como as faculdades ou as potências valiosas de uma pessoa que podem e devem ser realizadas em efetividades valiosas.

A VISÃO UTILITARISTA

O foco em bens, seja na versão grosseira ou na rawlsiana, superestima esses bens em detrimento de pessoas. A perspectiva "welfarista", da qual o utilitarismo é o principal exemplo, enfatiza excessivamente os estados mentais das pessoas e negligencia outros aspectos de seu bem-estar. Essa perspectiva vai além da focalização em bens ao interpretar o bem-estar humano e o bom desenvolvimento como características das próprias pessoas (CC, 23). Ela se perde, entretanto, ao somente prestar atenção em um único aspecto do bem-estar humano, a saber, a utilidade. A "reação mental" da utilidade, como quer que se a interprete, é uma concepção incompleta e imprecisa do bem-estar individual e não consegue, como veremos adiante, produzir um conceito apropriado de igualdade social.

Ao objetar ao "welfarismo", Sen está criticando um componente da teoria moral utilitarista que impregna grande parte da economia neoclássica e que continua sendo um ponto de vista dominante na ética filosófica. Sen distingue três características do utilitarismo:

(1)Consequencialismo: a correção de ações — e (de forma mais geral) da escolha de variáveis de controle [por exemplo, atos, normas, motivos] — deve ser julgada inteiramente pela natureza benéfica do conseqüente estado de coisas;

(2)Welfarísmo: a natureza benéfica de estados de coisas deve ser julgada inteiramente pela natureza benéfica do agregado de utilidades individuais nos respectivos estados de coisas;

(3)Sum-ranking: a natureza benéfica de qualquer agregado de utilidades individuais deve ser julgada inteiramente pela soma total dessas utilidades.

Como veremos adiante, Sen tem simpatia por um consequencialismo concebido de forma ampla, sobretudo se é capaz de acomodar ações que respeitam direitos nos estados de coisas a serem avaliados. O que ele encontra de moralmente problemático no utilitarismo é o seu "welfarismo" e seu método de agregação. Tratarei a seguir da crítica de Sen ao sum-ranking. Consideremos primeiro o ele que vê como deficiência no "welfarismo".

Sen reconhece que o welfarismo pode se apresentar de diferentes formas, dependendo da interpretação da utilidade individual como (os estados mentais de) felicidade, satisfação de desejos ou escolha (informada) entre opções. Para os nossos propósitos, será suficiente se limitar à avaliação de Sen das duas primeiras interpretações da utilidade.25 25 Tanto Sen como Nussbau se dão conta que certas formas de utilitarismo — for exemplo, as que enfatizam preferências informadas ou esclarecidas — afastaram-se significativamente da teoria pura das preferências do utilitarismo econômico e aproximam-se da "perspectiva das capacidades" (ver CC, 24; SL, 9-12; LK, cap. 2 e 3; HF, 41). Ver R. B. Brandt, Theory of lhe Good and lhe Right (Oxford, Clarendon, 1979); e James Griffen, Well Being: Its Meaning, Measurement and Moral Importance (Oxford, Clarendon Press, 1986). Analisar e avaliar os afastamentos que ainda persistem entre o utilitarismo filosófico e a ética das capacidades está além do escopo deste ensaio.

Sen identifica duas deficiências no welfarismo. Primeiro, "o bem-estar não é a única coisa valiosa" (EE, 4b). O welfarismo concebe os humanos como nada mais do que os loci ou os "lugares" de certos "estados mentais". Este ângulo de visão de forma funesta ignora o que Sen chama de o "aspecto agência" (WAF, 169) da pessoa. Os humanos não somente passam por experiências e satisfazem preferências; eles são também juizes, avaliadores e agentes. Assim como satisfazem desejos derivados de suas concepções do bem, eles também decidem acerca dessas concepções e as revisam. Todos esses objetivos básicos muitas vezes vão bastante além da busca da própria utilidade pelo agente (ou de qualquer outra concepção de bem-estar ou de "benefício pessoal"; (EE, 58-59). Sen está aqui tentando fazer justiça à ênfase kantiana na agência e na autonomia. A agência e o bem-estar são, para Sen, duas dimensões fundamentais e irredutíveis da existência humana.

Segundo, Sen tem argumentos poderosos para sustentar que "a utilidade não representa adequadamente o bem-estar" (EE, 47). Mesmo que nos restringíssemos ao aspecto bem-estar da existência humana, a "métrica da utilidade" muitas vezes oferece uma expressão bastante pobre do bem-estar ou da privação pessoais. Sen reconhece que ser feliz pode ser uma evidência de bem-estar (CC, xi) e que a felicidade (ser capaz dela) é uma parte do bem-estar (WAF, 195-96). Sendo todas as demais condições iguais, é melhor ser feliz do que sentir-se miserável. Sen chega ao ponto de considerar a felicidade uma "importante efetividade" (WAF, 200) e uma "extraordinária realização" (EE, 60).26 26 Seguindo Aristóteles, Nussbaum considera o prazer como superveniente à atividade e não, como Sen inclina-se a pensar, como uma efetividade separada e especial. Mas a felicidade ou a satisfação de desejos certamente não é suficiente para o bem-estar e é lamentavelmente imprecisa como uma medida do bem-estar.

Para defender seu ponto de vista, Sen apresenta o que eu poderia chamar de "argumento das pequenas mercês". As pessoas, sustenta Sen, podem sofrer de grave privação e mesmo assim serem cheias de alegria. Se não esperam muito da vida, elas podem ter muito contentamento com quaisquer "pequenas mercês" que surjam para elas. Essa visão das "pequenas mercês" aparece em um ensaio de Ralph Waldo Emerson, "A experiência", que Sen parece desconhecer:

"Por compaixão tornei-me um pouco impaciente e sentimental, mas é só me deixarem em paz para que eu saboreie cada hora e o que ela me proporciona, o prato do dia, de tão boa vontade quanto o maior fuxiqueiro do botequim. Eu sou grato às pequenas mercês. Eu troquei experiências com um amigo meu que espera o máximo do universo e que se desaponta com qualquer coisa que seja menos do que o melhor, e descobri que me encontro no outro extremo, nada esperando, e sempre muito agradecido por bens singelos ... Se aceitamos o bem que encontramos, sem nada perguntar, de muitas coisas seremos cumulados."27 27 Emerson, Ralph Waldo. The Complete Essays and Other Writings of Ralph Waldo Emerson. Volume organizado por Brooks Atkinson. Nova Iorque, Modern Library, 1940. p.351.

É preciso admitir que Emerson está tentando levar seu leitor a reconhecer que a fonte das coisas boas da vida não é a análise "acadêmica" e sim o cotidiano e aquilo que é comum (na "rota usual" de vida).28 28 Comentando uma primeira versão deste artigo, Tracy Strong defendeu essa forma de interpretar Emerson. O que preocupa Sen, entretanto, é que muitas vezes são justamente as idéias filosóficas, políticas ou religiosas que mentalmente condicionam aqueles que estão objetivamente sujeitos a privações—que são privados até mesmo dos "bens singelos" de Emerson — a aceitar e a encontrar justificação para a própria privação (WAF, 188). Dadas tais "noções de legitimidade e de correção" (GI, 2), as pessoas muito pobres ajustam suas aspirações e desejos ao pouco que é possível (RVD, 309); "levadas pela desesperança", elas fazem "os compromissos mais derrotistas com a dura realidade" (RVD, 512). Dado um grau suficientemente baixo de aspirações e um alto grau de adaptação à desgraça, não surpreende que uma pessoa se alegre enormemente com "pequenas mercês" e que "seu coração dê pulos sempre que ela vê um arco-íris no céu" (EW, 217). Em vez de o estado mental subjetivo refletir privações bastante objetivas, "essas privações são silenciadas e abafadas" (WAF, 191):

"Há vidas em que pequenas mercês necessariamente contam muito". (WAF, 191)

"O mendigo desesperançado, o trabalhador sem terra temporário, a dona de casa dominada, o desempregado embrutecido ou o coolie depauperado podem todos ter alegrias com pequenas mercês e conseguir suprimir o sofrimento agudo pela necessidade de continuar sobrevivendo, mas em termos éticos seria profundamente equivocado atribuir, devido a sua estratégia de sobrevivência, um valor pequeno à perda de bem-estar que sofrem." (EF, 45-46; ver WAF, 191)

"'Aquele que só deseja pouco não tem necessidade de muito' pode ser um bom conselho para se contentar e se resignar com uma realidade dura. Mas não é uma fórmula para julgar o bem-estar. E nem é uma receita de justiça social." (RVD, 34)

O resultado dessa "falsa consciência" é o de que "muitas vezes desigualdades agudas sobrevivem justamente porque encontram aliados entre os que sofrem as privações. O desvalido acaba por aceitar a legitimidade de uma ordem injusta e torna-se um cúmplice implícito dela." (GCC, 126)

O outro lado dessa moeda dialética é o de que as pessoas podem ter bem-estar e mesmo opulência (estar "bem de vida") e mesmo assim serem infelizes ou frustradas (WAF, 196; ASD, 2123); elas podem ter desejos insatisfeitos por vinhos raros e Ferraris.

Finalmente, ainda que o descontentamento não necessariamente revele bem-estar, há casos em que ele deve ser avaliado positivamente; a indignação com uma ordem social injusta pode ser um ingrediente importante da auto-afirmação individual e do progresso social (RVD, 512).

Essas considerações, em conjunto, mostram as deficiências morais dos métodos welfarista e utilitarista de explanação moral. O bem-estar humano não pode ser identificado à utilidade e, para Sen, o bem humano não pode ser identificado ao bem-estar. Fazer essas identificações equivale a consagrarr a injustiça nacional ou internacional. O que precisamos é de uma perspectiva preocupada com o que as pessoas são capazes de ser e de fazer — em que ser feliz ou obter o que se deseja é somente uma capacidade valiosa entre outras (EW, 211; RVD, 318). Nussbaum formula bem essa idéia:

"O aristotélico leva o desejo a sério, como uma das coisas sobre a qual deveríamos indagar quando inquirimos quão bem uma ordem capacita as pessoas a viver. Mas ele insiste em que também perguntemos, ainda mais insistentemente, sobre o que as pessoas envolvidas estão efetivamente aptas a fazer e ser — e, verdadeiramente, a desejar. Não somente consideramos se elas estão demandando educação, mas como estão sendo educadas; não apenas se vêem a si mesmas como razoavelmente saudáveis, mas quanto tempo vivem, quantas de suas crianças morrem, em resumo, como é a sua saúde." (ASD, 213)

NECESSIDADES BÁSICAS

A visão das necessidades básicas (VNB) com respeito ao desenvolvimento internacional, tal como desenvolvida nos anos 70 e 80 por economistas e policymakers do desenvolvimento tais como Paul Streeten, Frances Stewark e Mahbub ul Haq, "chama a atenção, de uma forma imediata e poderosa, para a importância do tipo de vida que as pessoas são capazes de levar" (SL, 24).29 29 Ver, por exemplo, Paul Streeten, com Shavid Javed Burki, Mabbub ul Haq, Noiman Hicks e Frances Steward, First Things First: Meeting Basic Needs in Developing Countries (Nova Iorque, Oxford University Press, 1981). A melhor explanação filosófica da VNB, analisada e avaliada como superior às concepções tanto de desenvolvimento visto como "crescimento" quanto às de "crescimento com equidade", é de Jerome M. Segal, "What is Development?" Working paper DN-1 (College Park, MD, Institute for Philosophy and Public Action, 1986). Já em 1973, o próprio Sen argumentou em favor da superioridade da perspectiva das necessidades sobre as outras opções então disponíveis: "a ênfase que adotei neste livro recaiu principalmente em necessidades, e a estrutura analítica aqui apresentada é inviesada nessa direção" (EI, 104). E em 1981, Sen ainda descreve sua própria visão emergente como "uma versão da visão baseada em necessidades" (RVD, 301). Trata-se, diz Sen, tanto de uma importante descoberta quanto de uma visão que necessita de um "fundamento" mais profundo e sólido. Sen apresenta sua própria concepção como um aperfeiçoamento da visão das necessidades.

O que Sen considera atraente na VNB? É uma visão que critica os pontos de vista que definem o desenvolvimento em relação ao crescimento econômico — mesmo o crescimento econômico eqüitativo — de bens ou utilidades. O desenvolvimento econômico e social, diz a VNB, é uma questão de bem-estar humano, o que por sua vez é uma função da satisfação de certas necessidades básicas ou humanas. Não podemos realmente afirmar que uma sociedade seja desenvolvida, a não ser que ela promova uma boa vida para todos os seus cidadãos e lhes assegure a liberdade de escolhê-la. O próprio Streeten afirma isso com eloqüência: "uma visão do desenvolvimento baseada em necessidades básicas busca estabelecer as oportunidades para o pleno desenvolvimento físico, mental e social da personalidade humana, para então derivar as formas de realizar esse objetivo."30 30 Streeten et al., op. cit., p.33.

Sen também defende a VNB da objeção de que o crescimento econômico e a satisfação de necessidades são mutuamente excludentes, e de que a visão das necessidades básicas, se adotada por um país, reduz seu crescimento econômico e prosperidade material. Sen responde a isso de duas maneiras. Primeiro, o crescimento econômico é um meio indispensável e não um fim em si mesmo. Segundo, a controvérsia necessidades versus crescimento, se adequadamente entendida, não diz respeito a satisfazer necessidades em oposição à prosperidade material, e sim a satisfazer necessidades de imediato ou satisfazê-las no futuro — opções que, tanto uma quanto a outra, exigem bens econômicos como meio (RVD, 515).

Apesar de bastante simpático a ela, Sen faz cinco críticas à VNB. Denominarei estas objeções de (1) crítica dos fundamentos, (2) crítica da variabilidade individual, (3) crítica da interdependência social, (4) crítica da minimidade e (5) crítica da passividade.

(1)A primeira crítica de Sen à VNB é a de que é uma visão desprovida de um fundamento adequado. Novamente, isso não significa que a VNB tenha fracassado em produzir uma justificação conclusiva ou transcendental para si mesma pois, como vimos antes, Sen se satisfaz com a justificação falível possibilitada por equilíbrio reflexivo. Não dispor de um fundamento significa, diversamente, que a VNB deixa a noção de necessidades no an intuitivamente plausível, mas conceitualmente ambígua e sem sustentação argumentativa (como uma categoria moral não-redutível). A VNB não conseguiu solucionar a "questão em aberto" sobre o que se deveria entender, entre as interpretações distintas sobre isso, pelo recurso a necessidades. A satisfação de necessidades é importante devido ao estado mental de satisfação? Isso seria uma recaída no "welfarismo". Satisfazer necessidades é algo redutível a prover as pessoas de certas quantidades de bens e mercadorias? Se esse é o caso, então a VNB torna-se uma nova versão do fetichismo das mercadorias, com as correspondentes deficiências discutidas acima. A VNB não dispõe de uma ponderação sobre até que ponto a categoria de necessidades é moralmente última. O que Sen quer mostrar, acredito, é que a VNB malogrou em esclarecer a natureza e a variedade das necessidades e em justificar necessidades (básicas) como uma categoria mais fundamental do que bens mercadorias, utilidades, florescimento humano ou direitos.31 31 Sen não se pergunta sobre a razão disso. Uma explicação óbvia, que me foi sugerida por Peter Penz, é a de que os economistas ou não são treinados em justificação filosófica ou então estão mais preocupados em justificar politicamente a VNB. Uma outra explicação é a de que a ausência de discussão acerca de fundamentos deve-se aos problemas que os economistas têm com a "conversa sobre necessidades", como por exemplo a suposta falta de precisão e de quantificação das necessidades. Talvez o malogro em "fundamentar" as necessidades, e a tendência de defini-las em termos de mercadorias ou de utilidades, deva-se à estrutura referencial ou à "fórmula relacionai" de nosso conceito de necessidades: uma pessoa A necessita de X para Y. É fácil escorregar da necessidade de X tanto para X em si mesmo, aquilo que se necessita, quanto para Y, o objetivo para o qual isso é necessário. Ver a discussão de David Braybrooke sobre "os ataques ao conceito de necessidades" em Meeting Needs (Princeton, Princeton Universitu Press, 1987), cap. 1.

Sen argumenta que a VNB pode progredir levantando explicitamente a questão dos fundamentos e a ela respondendo pela interpretação de necessidades como capacidades. O foco deve se colocar em certas "realizações" humanas valiosas, tais como "gozar de boa saúde, ser bem alimentado e ser alfabetizado ... [e] ser capaz de escolher livremente levar uma determinada vida" (CD, 16-17). Se interpretamos as necessidades básicas como efetividadess valiosas (e como capacidades de realização), encontraremos um conceito de bem-estar e de florescimento humanos que é moralmente apropriado, conceitualmente fundamental e operacionalmente prático. Seremos capazes de cumprir o objetivo original da VNB sem recair no fetichismo das mercadorias ou no subjetivismo utilitarista.

Em resposta ao paper de Sen de 1983 (RVD, ensaio 20), Paul Streeten, um dos principais elaboradores da VNB, levanta explicitamente a questão "fundacional" da VNB: "referem-se as necessidades básicas às condições para uma vida longa, plena e saudável, ou a um complexo de bens e serviços, que se supõe propiciarem a oportunidade para essas condições?"32 32 Streeten, P. "Basic Needs: Some Unsettled Questions". World Development 12, n.9, 1984,p.974. Revelando a dificuldade em responder a sua questão, Streeten prossegue: "sabe-se muito pouco sobre as relações causais entre a provisão de itens específicos, a capacidade de satisfazer certas necessidades e a realização de uma vida plena."33 33 Ibid. A ética da capacidade de Sen, em contraste, exibindo seu caráter aristotélico e interpretando necessidades básicas exatamente como liberdades ou capacidades efetivas, concebe essas liberdades como parte do conteúdo de, ao invés das condições ou meios para, uma vida plena. Sen aprovaria a disposição de Streeten de questionar a provisão de mercadorias como o que é fundamental. Mas demandaria de Streeten ir mais fundo e conceber a satisfação de necessidades como a promoção das liberdades de alcançar efetividades valiosas.

(2)A VNB, segundo Sen, de fato muitas vezes colapsou na focalização de bens e mercadorias e por isso está sujeita à crítica do fetichismo das mercadorias. A necessidade humana de alimento tendeu a ser substituída pelo foco no alimento de que se necessita. Ainda que a VNB reconheça em princípio que quantidades diferentes do mesmo bem são necessárias a indivíduos diferentes, operacionalmente ela tendeu a definir "necessidades básicas" em termos de (certas quantidade de) alimento, água, vestuário e leitos hospitalares. Sen enfatiza especialmente o que antes denominei de "argumento da variabilidade individual": "minha principal dificuldade diz respeito à forma pela qual necessidades básicas são tipicamente definidas em termos de necessidades por mercadorias, e penso que isso é um erro ... devido à enormidade de variações interpessoais na conversão de bens em capacidades."34 34 Correspondência pessoal com Sen, 3 de fevereiro de 1991. Além disso a VNB, segundo Sen, negligenciou em larga medida a "correspondência de-muitos-para-uma" entre bens e capacidades: mesmo no caso de um só indivíduo, uma dada efetividade pode ser alcançada com mais de um complexo de bens e serviços. A VRS, então, não foi capaz de exorcizar plenamente o fantasma do fetichismo das mercadorias. Essa deficiência, Sen dá a entender, é produzida pelo malogro da VNB em delimitar um espaço diferenciado para o conceito de necessidades.

(3)A terceira crítica de Sen à VNB é o "argumento da interdependência social", ainda um tanto tateante e pouco desenvolvido. A VNB enfatiza as necessidades humanas por certos bens. Mas mesmo com respeito à necessidade nutricional, é difícil especificar um complexo ou uma quantidade de alimentos em termos absolutos, ou de uma forma culturalmente invariante. O problema só se resolve quando passamos para capacidades importantes, tais como ser capaz de aparecer em público sem sentir vergonha ou de participar da vida da comunidade. Esses tipos de capacidades e de realizações fazem uma referência essencial às ações ou aos julgamentos de outras pessoas. As necessidades de bens para efetivar certas capacidades não se resumem à provisão de (uma certa quantidade de) mercadorias a um indivíduo isolado; é preciso ainda levar a "interdependência social" em conta (RVD, 514). A capacidade de uma determinada pessoa de aparecer em público sem sentir vergonha mantém uma relação essencial e substancial com os julgamentos ou avaliações culturalmente relativos de outros membros da sociedade sobre como fazê-lo de forma aceitável.35 35 Um problema que a ética da capacidade precisa enfrentar é o de que até que ponto a visão de cada um sobre o êxito ou a desonra públicos deve ser determinada pelas avaliações culturalmente relativas de outros membros da sociedade, ou pela manipulação da propaganda comercial. O que pensar do adolescente que diz "papai, eu morreria de vergonha diante de meus amigos sem uma jaqueta de couro cravada de metal igual a que Madonna usou em Procura-se Susan Desesperadamente"? Devo este problema a Tracy Strong. Natalie Dandekar levanta uma questão similar, com respeito a "jeans de grife" e a tênis de basquete "Air Jordan", em "Who Decides and for Whom? Some Comments no Braybrooke's Meeting Needs" em Kenneth Aman (org.), Ethical Principles for Development: Needs, Capacities or Rights? (Upper Montclair, Institute for Critical Thinking, 1991).

Em sua crítica, Sen sujeita a VNB a uma escolha entre duas alternativas desconfortáveis. Ou a VNB colapsa em uma focalização em bens (que guardam relação com certas capacidades), ou isso não ocorre. Se ocorre, então ela não será capaz de especificar bens de uma forma culturalmente invariante. A camisa de linho necessária para evitar a humilhação pública na Inglaterra do século XVIII não se prestará para a mesma coisa na Los Angeles do século XX. Se a VNB escolhe a outra opção, entretanto, então "as necessidades por bens podem não ser identificáveis em termos absolutos" (RVD, 514). Sen sustenta, em contraste, que podemos especificar a privação e a aptidão absolutas e culturalmente invariantes em termos de capacidades. Infelizmente, Sen não oferece argumentos em favor dessa proposição, e pode parecer que necessidades e capacidades afinal se encontrem no mesmo barco. É possível dizer de forma justificada que todas as pessoas têm ou uma necessidade universal por X ou uma capacidade universal para X, em que X é suficientemente geral para permitir diferentes especificações concretas em contextos culturais diferentes. Se há uma distinção que diferencie a linguagem das necessidades daquela das capacidades, tal distinção deve estar em outro ponto. Em um ensaio subseqüente, argumento que Sen deveria seguir Nussbaum e fazer uma distinção mais marcada entre necessidades e capacidades.

(4)A quarta objeção de Sen à VNB, a "crítica da minimidade", formula-se da seguinte maneira: a VNB faz uma distinção entre necessidades básicas e não básicas, e então interpreta necessidades básicas em termos dos níveis quantitativos mínimos de bens — tais como alimentos, água, vestuário — requeridos para satisfazer essas necessidades. O foco recairia na satisfação "de necessidades mínimas e não mais do que isso" RVD, 515).

Sen vê dois problemas nesse foco em um limiar quantitativo, ambos, segundo ele, evitados por sua ética da capacidade. Primeiro, o foco em níveis mínimos quantitativos restringe a VNB à avaliação de indivíduos sujeitos à privação e de países pobres. Uma visão mais abrangente e menos enviesada seria a que permitisse falar em graus de benefício ou de desenvolvimento de qualquer indivíduo e de todos os países e regiões. É preciso abandonar a noção de que os indivíduos e os países ou bem são desenvolvidos ou não o são. E a existência, no mundo todo, de diferentes graus de desenvolvimento econômico e social precisa ser levada em conta. Além disso, independentemente de quantos indivíduos situem-se abaixo de certo nível social, é desejável focalizar também as desigualdades entre os países e dentro deles. Uma forma de fazer isso é entender por "capacidade básica" algo distinto do que a VNB entende por "necessidade básica". Esta última é um limiar quantitativo que uma pessoa, para sobreviver ou viver decentemente, precisa ultrapassar. A primeira diz respeito a uma avaliação qualitativa acerca de que tipos de efetividades são mais valiosas. O que continua sendo útil na noção de limiar, do que o próprio Sen se vale com respeito à noção de direitos básicos, é a idéia de que o bom governo deverá assegurar que todos os membros da sociedade, ultrapassando esse limiar, estejam aptos a escolher uma vida de realização de capacidades valiosas. Mas a ética da capacidade também é útil quando queremos discutir graus diferentes de privação entre os países e dentro deles.

A segunda deficiência do conceito da VNB de um limiar mínimo, correlata à primeira, é a de que os privilegiados, sejam indivíduos ou países, podem facilmente chegar à idéia equivocada de que suas responsabilidades morais terminam quando certos níveis mínimos de "satisfação de necessidades" são alcançados — não levando em conta se há coisas tais como oportunidades para efetividades valiosas ou desigualdades incompatíveis com o auto-respeito. O foco em capacidades, sustenta Sen, não se empresta a essa contração excessiva da responsabilidade moral e se abre à compreensão da justiça como "igualdade de capacidades" (RVD, 515). Voltarei a essa questão em um ensaio posterior.

Parece-me que Sen é realmente bem sucedido em mostrar a superioridade de sua visão sobre versões anteriores da VNB. O que não é tão claro é se os mesmos avanços podem ser feitos em uma perspectiva como a de Nussbaum, em que, na linguagem de Sen, a "espaço das necessidades" não foi de todo substituído pelo "espaço das capacidades" ou segundo este interpretado.

(5)A quinta razãode Sen para reformular a ética baseada em necessidades diz respeito ao que denomino "critica da passividade":

"' Necessidades' é um conceito mais passivo do que 'capacidades', e pode-se dizer que a perspectiva da liberdade positiva vincula-se naturalmente a capacidades (o que as pessoas podem fazer?) e não à satisfação de necessidades (o que pode ser feito para as pessoas?)." (RVD, 514)

Sen admite que o foco em necessidades é retoricamente apropriado à ajuda a dependentes tais como as crianças, os doentes e os deficientes. Agentes de desenvolvimento, de fato, precisam fazer certas coisas para satisfazer as necessidades de beneficiários que, desafortunadamente, encontram-se pelo menos temporariamente passivos. O ponto que Sen quer ressaltar é o de que uma ética da capacidade nos permite afirmar que a boa ação pública não somente distribui bens a recipientes passivos mas também amplia as escolhas das pessoas e promove suas capacidades, incluindo a capacidade de escolha. Supõe-se que os adultos, agora, e as crianças, no futuro, sejam agentes morais, e o desenvolvimento social genuíno tem por meta prover as condições nas quais eles mesmos adquiram e ampliem capacidades valiosas, a de real escolha inclusive.

O que dizer desse argumento? Sen admite que sua proposta só difere em "ênfase", presumivelmente porque a VNB pode incluir na lista de necessidades básicas coisas tais como as necessidades de auto-respeito, auto-desenvolvimento e de escolha autônoma. A satisfação das outras necessidades pode ser interpretada como a "capacitação" dos recipientes — mediante formas diversas de ajuda — para dar conta de sua meta-necessidade de ação autônoma e geradora de auto-respeito, e assim desenvolverem a si próprios e a suas sociedades. Com as locuções apropriadas, as conotações "passivas" da VNB podem ser substituídas por expressões que denotam a atividade do recipiente, sem negar o papel libertador que a ajuda externa pode desempenhar.

Essa reformulação retórica da VNB só funcionará, entretanto, se também houver uma mudança mais profunda de perspectiva. Essa mudança, de que Sen não se dá conta, diz respeito à VNB ter que expandir sua lista de necessidades "básicas" muito além das que lhes são favoritas — as necessidades "materiais", "biológicas" ou "de subsistência" — e incorporar necessidades tais como as de autonomia, inteligência (comunicação simbólica) e sociabilidade.36 36 Ver, por exemplo, Van Weigel, "The Basic Needs Approach: Overcoming the Poverty of Homo Oeconomicus" (World Development 14,1986), pp. 1428-29. É bem possível, entretanto, que mostrar que todos os seres humanos, e somente eles, têm algum tipo de necessidade (objetiva? subjetiva?) por essas características "superiores" seja mais difícil do que mostrar que eles devem ter um leque amplo de escolha. A dificuldade aqui não é a de que essas necessidades superiores não possam ser satisfeitas, e sim a de que seria preciso mostrar que elas existem e deveriam existir em cada um e em todos os seres humanos.

Em resumo, Sen e Nussbaum identificam tanto pontos fortes quanto fragilidades em cada uma das três perspectivas éticas para a avaliação do desenvolvimento nacional e internacional. Mesmo na versão rawlsiana dos bens primários, bens são necessários mas insuficientes seja para a liberdade positiva, seja para o florescimento humano. A utilidade, no melhor dos casos, captura parte da boa vida e, no pior, justifica graves privações e desigualdades. A visão das necessidades humanas básicas têm a preocupação de que o desenvolvimento beneficie os seres humanos de formas que vão além de suas preferências subjetivas e que satisfaçam certas necessidades básicas. Esse ponto de vista, entretanto, ou recai no foco em bens ou em utilidades, ou então não consegue esclarecer e defender suas suposições fundamentais, ou ainda emprega uma linguagem excessivamente sujeita a vários tipos de mal-entendidos. Está implícita na crítica de Sen e Nussbaum a ética da capacidade, o fundamento normativo de um novo paradigma para os objetivos e as estratégias do desenvolvimento internacional.

APÊNDICE: ABREVIAÇÕES DOS TEXTOS DE SEN E NUSSBAUM CITADOS NO ARTIGO OU PERTINENTES AO DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL, EM ORDEM CRONOLÓGICA

De Nussbaum:

FG: Nussbaum, Martha. Fragility of goodness: luck and ethics in tragedy and philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, 1986. TA: _________ Therapeutic arguments: Epicures and Aristotle. In Schofiel, M. e Striker, G. (orgs.). The norms of nature: studies in Hellenistic ethics. Cambridge, Cambridge University Press, 1986. NFC: _________ Nature, function and capability: Aristotle on political distribution. Oxford Studies in Ancient Philosophy, vol. supl, 145-84,1988. NRV: _________ Non-relative virtues: an Aristotelian approach. Midwest Studies in Philosophy 13,1988, pp.32-53. ASD: _________ Aristotelian social democracy. In Douglass, R.B. e Mara, G.R. (orgs.). Liberalism and the good. New York, Routledge, 1990. LK: _________ Love's knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford, Oxford University Press, 1990. Ensaios 2, 7 e 15 sobretudo. HC: ________. Human capabilities, female human beings. Paper apresentado na conferência do WIDER sobre "Human Capabilities: Women, Men and Equality", Helsinque, agosto de 1991. Universidade Brown, mimeo. HF: _________ Human functioning and social justice: in defense of Aristotelian essentialism. Political Theory 20, pp. 202-47. HN: _________ Aristotle on human nature and the foundations of ethics. Volume em honra de Bernard Williams, organizado por J. Altham e R. Harrison. No prelo, Cambridge University Press.

De Nussbaum e Sen juntos:

IC: Nussbaum, Martha e Sen, Amartya. Internal criticism and Indian rationalist traditions. In Krauss, M. (org.). Relativism, interpretations and confrontations. Notre Dame, University of Notre Dame Press, pp. 229-325. _________ (orgs.). The Quality of life. Oxford, Clarendon Press, 1993.

De Sen:

EI: Sen, Amartya. On economic inequality. Oxford, Clarendon, 1973. UW: _________ Utilitarism and welfarism. Journal of Philosophy 76, 9, 1979. pp. 463-89. EW: _________ Equality of what? In Mcmurrin, S. M. (org.). Tanner Lectures on Humans Values. Vol. 1. Salt Lake, University of Utah Press, 1980. PF: _________ Poverty and famine: an essay on entitlement and deprivation. Oxford, Clarendon, 1981. _________ Public action and the quality of life in developing countries. Oxford Bulletin of Economics and Statistics 43,1981, pp. 287-319. CWM: _________. Choice, welfare and mesarument. Oxford, Blackwell, 1982. _________ How is India doing? New York Review of Books 29, dezembro de 1982. RA: _________ Rights and agency. Philosophy and Public Affairs 11, 1,1982, pp. 3-39. _________ The food problem: theory and practice. Third World Quarterly 4,1982, pp. 447-59. RNH: _________ The right not to be hungry. In Floistad, G. (org.). Contemporaty philosophy: a new survey. Vol. 2. Haya, Martinus Nijhoff, 1982. UB: Sen, A. e Williams, B. (orgs.). Utilitarianism and beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982. ER: Sen, A. Evaluator relativity and consequencial evaluation. Philosophy and Public Affairs 12,2,113-32. RVD: _________ Resources, values and development. Oxford, Blackwell; Cambridge-MA, Harvard University Press, 1984. CC: _________ Commodities and capabilities. Amsterdam, North Holland, 1985. -.: _________ The moral slanting of markets. Social Philosophy and Policy 2,2,1985, pp. 1-19. -: _________ Rights as goals. In Guest, S. e Milne, A. (orgs.). Equality and discrimination: essays in freedom and justice. Stuttgart, Franz Steiner, 1985.
  • * "Functioning and capability: the foundations of Sen's and Nussbaum's development ethics". Political Theory,20, 1992, 4.
  • 1 Grande parte do trabalho recente de Sen e Nussbaum, em conjunto ou separadamente, vinculou-se ao World Institute for Development Research (WIDER), Helsinqui, que é parte da Universidade das Naçőes Unidas. O WIDER patrocinou um projeto sobre qualidade de vida que resultou no volume, organizado por Nussbaum e Sen, entitulado The Quality of Life (Oxford, Claredon Press, 1993).
  • 2 Ver "Toward Development Ethics" (World Development 19, no.5,1991, p.466).
  • 3Ibid. Ver também David A. Crocker, "La natureza y la práctica de una ética del desarollo" (Revista de Filosofia de la Universidad de Costa Rica 26, no.63-64, 1988), pp. 49-56.
  • 5Human Development Report 1990. Oxford, Oxford University Press, 1990.
  • 7 Especialmente importante para Nussbaum foi o trabalho de Many Chen sobre o desenvolvimento. Ver Marty Chen. A Quiet Revolution: Women in Transition in Rural Bangladesh (Dhaca, BRAC, 1986),
  • 8 Essa concepçăo "internalista" da investigaçăo, verdade e objetividade éticas apóia-se na crítica a Platăo e na interpretaçăo de Aristóteles de Nussbaum e também na distinçăo de Hilary Putnam entre realismo externalista e internalista (IC, 324 n.26; HN, 28-29). Ver, por exemplo, Hilary Putnam, Realism with a Human Face (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1990) e "Pragmatism and Moral Objectivity",
  • 11 Ver John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1971);
  • Kantian Contructivism in Moral Theory: The Dewey Lectures 1980 (Journal of Philosophy 77, no.9, 1980, pp. 515-572);
  • Social Unity and Primary Goods, in Utilitarianism and Beyond, volume organizado por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge, Cambridge Universtiy Press, 1982);
  • "Justice as Fairness: Political not Metaphysical" (Philosophy and Public Affairs 14,1985, pp. 223-251;
  • publicado em Lua Nova 25,1992, com o título "Justiça como equidade: uma concepçăo política, năo metafísica"); "The Idea of an Overlapping Consensus" (Oxford Journal of Legal Studies 7,1987, pp. 1-25);
  • The Priority of Right and Ideas of the Good (Philosophy and Public Affairs 17,1988,251-276);
  • e "The Domain of the Political Overlapping Consensus" (New York University Law Review 64,1989,233-255).
  • 12 Rawls, Theory, p.62.
  • 15 Rawls, "The Priority of Right", p.257.
  • 16 Rawls, "Kantian Constructivism", p.526.
  • 18 Rawls, "The Priority of Right", p.257.
  • 23 Em justiça a Rawls, deve-se notar que há uma vertente de Uma teoria da justiça em que Rawls reconhece que poder e vantagens desiguais resultam no valor desigual de bens primários tais como a liberdade individual (ver Theory pp. 277-278). Ver também Alan Gilbert, "Equality and Social Theory in Rawl's A Theory of Justice" (Occasional Review 8/9, 1978, pp. 92-117).
  • Norman Daniels tenta robustecer a capacidade da teoria de Rawls de lidar tanto com a deficięncia física quanto com a desigualdade de poder social enfatizando, mais do que o próprio Rawls, o princípio de "igualdade equitativa de oportunidade". Ver Norman Daniels, "Equality of What: Welfare, Resources or Capabilities?" (Philosophy and Phenomenological Reserarch 50, Suplemement Fall 1990, pp. 173-96).
  • 25 Tanto Sen como Nussbau se dăo conta que certas formas de utilitarismo for exemplo, as que enfatizam preferęncias informadas ou esclarecidas afastaram-se significativamente da teoria pura das preferęncias do utilitarismo econômico e aproximam-se da "perspectiva das capacidades" (ver CC, 24; SL, 9-12; LK, cap. 2 e 3; HF, 41). Ver R. B. Brandt, Theory of lhe Good and lhe Right (Oxford, Clarendon, 1979);
  • e James Griffen, Well Being: Its Meaning, Measurement and Moral Importance (Oxford, Clarendon Press, 1986).
  • 27 Emerson, Ralph Waldo. The Complete Essays and Other Writings of Ralph Waldo Emerson. Volume organizado por Brooks Atkinson. Nova Iorque, Modern Library, 1940. p.351.
  • 29 Ver, por exemplo, Paul Streeten, com Shavid Javed Burki, Mabbub ul Haq, Noiman Hicks e Frances Steward, First Things First: Meeting Basic Needs in Developing Countries (Nova Iorque, Oxford University Press, 1981).
  • A melhor explanaçăo filosófica da VNB, analisada e avaliada como superior ŕs concepçőes tanto de desenvolvimento visto como "crescimento" quanto ŕs de "crescimento com equidade", é de Jerome M. Segal, "What is Development?" Working paper DN-1 (College Park, MD, Institute for Philosophy and Public Action, 1986).
  • 31 Sen năo se pergunta sobre a razăo disso. Uma explicaçăo óbvia, que me foi sugerida por Peter Penz, é a de que os economistas ou năo săo treinados em justificaçăo filosófica ou entăo estăo mais preocupados em justificar politicamente a VNB. Uma outra explicaçăo é a de que a ausęncia de discussăo acerca de fundamentos deve-se aos problemas que os economistas tęm com a "conversa sobre necessidades", como por exemplo a suposta falta de precisăo e de quantificaçăo das necessidades. Talvez o malogro em "fundamentar" as necessidades, e a tendęncia de defini-las em termos de mercadorias ou de utilidades, deva-se ŕ estrutura referencial ou ŕ "fórmula relacionai" de nosso conceito de necessidades: uma pessoa A necessita de X para Y. É fácil escorregar da necessidade de X tanto para X em si mesmo, aquilo que se necessita, quanto para Y, o objetivo para o qual isso é necessário. Ver a discussăo de David Braybrooke sobre "os ataques ao conceito de necessidades" em Meeting Needs (Princeton, Princeton Universitu Press, 1987),
  • 32 Streeten, P. "Basic Needs: Some Unsettled Questions". World Development 12, n.9, 1984,p.974.
  • 35 Um problema que a ética da capacidade precisa enfrentar é o de que até que ponto a visăo de cada um sobre o ęxito ou a desonra públicos deve ser determinada pelas avaliaçőes culturalmente relativas de outros membros da sociedade, ou pela manipulaçăo da propaganda comercial. O que pensar do adolescente que diz "papai, eu morreria de vergonha diante de meus amigos sem uma jaqueta de couro cravada de metal igual a que Madonna usou em Procura-se Susan Desesperadamente"? Devo este problema a Tracy Strong. Natalie Dandekar levanta uma questăo similar, com respeito a "jeans de grife" e a tęnis de basquete "Air Jordan", em "Who Decides and for Whom? Some Comments no Braybrooke's Meeting Needs" em Kenneth Aman (org.), Ethical Principles for Development: Needs, Capacities or Rights? (Upper Montclair, Institute for Critical Thinking, 1991).
  • 36 Ver, por exemplo, Van Weigel, "The Basic Needs Approach: Overcoming the Poverty of Homo Oeconomicus" (World Development 14,1986), pp. 1428-29.
  • *
    "Functioning and capability: the foundations of Sen's and Nussbaum's development ethics".
    Political Theory,20, 1992, 4. Tradução de Álvaro de Vita.
  • 1
    Grande parte do trabalho recente de Sen e Nussbaum, em conjunto ou separadamente, vinculou-se ao World Institute for Development Research (WIDER), Helsinqui, que é parte da Universidade das Nações Unidas. O WIDER patrocinou um projeto sobre qualidade de vida que resultou no volume, organizado por Nussbaum e Sen, entitulado
    The Quality of Life (Oxford, Claredon Press, 1993). Em agosto de 1991, o WIDER organizou uma conferência, denominada "Human Capabilities, Men and Equality", em que Sen e Nussbaum apresentaram trabalhos.
  • 2
    Ver "Toward Development Ethics"
    (World Development 19, no.5,1991, p.466).
  • 3
    Ibid. Ver também David A. Crocker, "La natureza y la práctica de una ética del desarollo"
    (Revista de Filosofia de la Universidad de Costa Rica 26, no.63-64, 1988), pp. 49-56.
  • 4
    "Titularidade", para Sen, não é um termo moral e sim descritivo e se refere ao conjunto dos distintos complexos de bens de que uma pessoa pode dispor em uma sociedade.
  • 5
    Human Development Report 1990. Oxford, Oxford University Press, 1990.
  • 6
    Ibid., p. 10.
  • 7
    Especialmente importante para Nussbaum foi o trabalho de Many Chen sobre o desenvolvimento. Ver Marty Chen.
    A Quiet Revolution: Women in Transition in Rural Bangladesh (Dhaca, BRAC, 1986), e "A Matter of Survival: Women's Right to Work in India and Bangladesh",
    paper apresentado na Conferência WIDER, "Human Capabilities: Women, Men and Equality", Helsinque, agosto de 1991.
  • 8
    Essa concepção "internalista" da investigação, verdade e objetividade éticas apóia-se na crítica a Platão e na interpretação de Aristóteles de Nussbaum e também na distinção de Hilary Putnam entre realismo externalista e internalista (IC, 324 n.26; HN, 28-29). Ver, por exemplo, Hilary Putnam,
    Realism with a Human Face (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1990) e "Pragmatism and Moral Objectivity",
    paper apresentado na Conferência WIDER antes mencionada.
  • 10
    O lutador Milo foi um atleta ateniense que se tornou famoso—talvez exageradamente—pelo destaque que recebeu nas discussões de Aristóteles (
    EN I 106b3) e de Nussbaum (ASD, 211).
  • 11
    Ver John Rawls,
    A Theory of Justice (Cambridge-MA, Harvard University Press, 1971); "Kantian Contructivism in Moral Theory: The Dewey Lectures 1980"
    (Journal of Philosophy 77, no.9, 1980, pp. 515-572); "Social Unity and Primary Goods",
    in Utilitarianism and Beyond, volume organizado por Amartya Sen e Bernard Williams (Cambridge, Cambridge Universtiy Press, 1982); "Justice as Fairness: Political not Metaphysical"
    (Philosophy and Public Affairs 14,1985, pp. 223-251; publicado em
    Lua Nova 25,1992, com o título "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica"); "The Idea of an Overlapping Consensus"
    (Oxford Journal of Legal Studies 7,1987, pp. 1-25); "The Priority of Right and Ideas of the Good"
    (Philosophy and Public Affairs 17,1988,251-276); e "The Domain of the Political Overlapping Consensus"
    (New York University Law Review 64,1989,233-255).
  • 12
    Rawls,
    Theory, p.62.
  • 13
    Ibid.,p.396.
  • 14
    Ibid., p.25,260,325-26,396.
  • 15
    Rawls, "The Priority of Right", p.257.
  • 16
    Rawls, "Kantian Constructivism", p.526.
  • 17
    Ibid.,p.535.
  • 18
    Rawls, "The Priority of Right", p.257. Neste ensaio de 1988, Rawls abre a porta para uma ampliação da lista que inclua itens tais como "tempo de lazer" e "ausência de dor física".
  • 19
    Ibid., p.257.
  • 20
    Ibid.,p.252.
  • 21
    Ibid.,p.251.
  • 22
    Rawls,
    Theory, pp. 195-201.
  • 23
    Em justiça a Rawls, deve-se notar que há uma vertente de
    Uma teoria da justiça em que Rawls reconhece que poder e vantagens desiguais resultam no valor desigual de bens primários tais como a liberdade individual (ver
    Theory pp. 277-278). Ver também Alan Gilbert, "Equality and Social Theory in Rawl's
    A Theory of Justice" (Occasional Review 8/9, 1978, pp. 92-117). Norman Daniels tenta robustecer a capacidade da teoria de Rawls de lidar tanto com a deficiência física quanto com a desigualdade de poder social enfatizando, mais do que o próprio Rawls, o princípio de "igualdade equitativa de oportunidade". Ver Norman Daniels, "Equality of What: Welfare, Resources or Capabilities?"
    (Philosophy and Phenomenological Reserarch 50, Suplemement Fall 1990, pp. 173-96).
  • 24
    Discussões com Lawrence Crocker ajudaram-me a entender a noção de liberdade positiva de Sen e crítica deste a Rawls.
  • 25
    Tanto Sen como Nussbau se dão conta que certas formas de utilitarismo — for exemplo, as que enfatizam preferências informadas ou esclarecidas — afastaram-se significativamente da teoria pura das preferências do utilitarismo econômico e aproximam-se da "perspectiva das capacidades" (ver CC, 24; SL, 9-12; LK, cap. 2 e 3; HF, 41). Ver R. B. Brandt,
    Theory of lhe Good and lhe Right (Oxford, Clarendon, 1979); e James Griffen,
    Well Being: Its Meaning, Measurement and Moral Importance (Oxford, Clarendon Press, 1986). Analisar e avaliar os afastamentos que ainda persistem entre o utilitarismo filosófico e a ética das capacidades está além do escopo deste ensaio.
  • 26
    Seguindo Aristóteles, Nussbaum considera o prazer como superveniente à atividade e não, como Sen inclina-se a pensar, como uma efetividade separada e especial.
  • 27
    Emerson, Ralph Waldo.
    The Complete Essays and Other Writings of Ralph Waldo Emerson. Volume organizado por Brooks Atkinson. Nova Iorque, Modern Library, 1940. p.351.
  • 28
    Comentando uma primeira versão deste artigo, Tracy Strong defendeu essa forma de interpretar Emerson.
  • 29
    Ver, por exemplo, Paul Streeten, com Shavid Javed Burki, Mabbub ul Haq, Noiman Hicks e Frances Steward,
    First Things First: Meeting Basic Needs in Developing Countries (Nova Iorque, Oxford University Press, 1981). A melhor explanação filosófica da VNB, analisada e avaliada como superior às concepções tanto de desenvolvimento visto como "crescimento" quanto às de "crescimento com equidade", é de Jerome M. Segal, "What is Development?"
    Working paper DN-1 (College Park, MD, Institute for Philosophy and Public Action, 1986). Já em 1973, o próprio Sen argumentou em favor da superioridade da perspectiva das necessidades sobre as outras opções então disponíveis: "a ênfase que adotei neste livro recaiu principalmente em necessidades, e a estrutura analítica aqui apresentada é inviesada nessa direção" (EI, 104). E em 1981, Sen ainda descreve sua própria visão emergente como "uma versão da visão baseada em necessidades" (RVD, 301).
  • 30
    Streeten
    et al., op. cit., p.33.
  • 31
    Sen não se pergunta sobre a razão disso. Uma explicação óbvia, que me foi sugerida por Peter Penz, é a de que os economistas ou não são treinados em justificação filosófica ou então estão mais preocupados em justificar politicamente a VNB. Uma outra explicação é a de que a ausência de discussão acerca de fundamentos deve-se aos problemas que os economistas têm com a "conversa sobre necessidades", como por exemplo a suposta falta de precisão e de quantificação das necessidades. Talvez o malogro em "fundamentar" as necessidades, e a tendência de defini-las em termos de mercadorias ou de utilidades, deva-se à estrutura referencial ou à "fórmula relacionai" de nosso conceito de necessidades: uma pessoa
    A necessita de
    X para
    Y. É fácil escorregar da
    necessidade de
    X tanto para
    X em si mesmo,
    aquilo que se necessita, quanto para
    Y, o
    objetivo para o qual isso é necessário. Ver a discussão de David Braybrooke sobre "os ataques ao conceito de necessidades" em
    Meeting Needs (Princeton, Princeton Universitu Press, 1987), cap. 1.
  • 32
    Streeten, P. "Basic Needs: Some Unsettled Questions".
    World Development 12, n.9, 1984,p.974.
  • 33
    Ibid.
  • 34
    Correspondência pessoal com Sen, 3 de fevereiro de 1991.
  • 35
    Um problema que a ética da capacidade precisa enfrentar é o de que até que ponto a visão de cada um sobre o êxito ou a desonra públicos deve ser determinada pelas avaliações culturalmente relativas de outros membros da sociedade, ou pela manipulação da propaganda comercial. O que pensar do adolescente que diz "papai, eu morreria de vergonha diante de meus amigos sem uma jaqueta de couro cravada de metal igual a que Madonna usou em
    Procura-se Susan Desesperadamente"? Devo este problema a Tracy Strong. Natalie Dandekar levanta uma questão similar, com respeito a "jeans de grife" e a tênis de basquete "Air Jordan", em "Who Decides and for Whom? Some Comments no Braybrooke's
    Meeting Needs" em Kenneth Aman (org.),
    Ethical Principles for Development: Needs, Capacities or Rights? (Upper Montclair, Institute for Critical Thinking, 1991).
  • 36
    Ver, por exemplo, Van Weigel, "The Basic Needs Approach: Overcoming the Poverty of
    Homo Oeconomicus" (World Development 14,1986), pp. 1428-29.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1993
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