Acessibilidade / Reportar erro

A literatura de testemunho e a violência de Estado

Literature of testimony and state violence

Resumos

Este artigo discute duas grandes concepções de literatura de testemunho. Uma delas desenvolve-se no âmbito dos estudos sobre a literatura latino-americana; outra é dominante no campo da reflexão sobre a shoah, termo amplamente utilizado para substituir a palavra holocausto. Ambas entendem ser a mimesis a natureza da literatura; no entanto, desenvolvem indagações bastante diversas sobre as possibilidades de a palavra representar a realidade, formulando, no limite, hipóteses antagônicas de interpretação da produção literária que tem sido designada pelo conceito de testemunho. Porém, aparte esse antagonismo, nos últimos anos a expressão tem remetido sempre a uma relação entre literatura e violência.

Literatura de Testemunho; Estado; Violência


This article discusses two great conceptions about literature of testimony. One of them grows up from the Latin American literature; the other, from the thought on shoah, a largely employed word for holocaust. Both see mimesis as the essence of literature, but have different understandings about whether literature can represent reality - they even elaborate antagonic interpretative hypothesis about the literary production related to the concept of testimony. Despite that antagonism, at late the concept has always addressed to the relation between literature and violence.

Literature of Testimony; State; Violence


A literatura de testemunho e a violência de Estado1 1 Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa que tem apoio do CNPq.

Literature of testimony and state violence

Valeria de Marco

Professora de teoria literária da FFLCH-USP

RESUMO

Este artigo discute duas grandes concepções de literatura de testemunho. Uma delas desenvolve-se no âmbito dos estudos sobre a literatura latino-americana; outra é dominante no campo da reflexão sobre a shoah, termo amplamente utilizado para substituir a palavra holocausto. Ambas entendem ser a mimesis a natureza da literatura; no entanto, desenvolvem indagações bastante diversas sobre as possibilidades de a palavra representar a realidade, formulando, no limite, hipóteses antagônicas de interpretação da produção literária que tem sido designada pelo conceito de testemunho. Porém, aparte esse antagonismo, nos últimos anos a expressão tem remetido sempre a uma relação entre literatura e violência.

Palavras-chave: Literatura de Testemunho; Estado; Violência.

ABSTRACT

This article discusses two great conceptions about literature of testimony. One of them grows up from the Latin American literature; the other, from the thought on shoah, a largely employed word for holocaust. Both see mimesis as the essence of literature, but have different understandings about whether literature can represent reality – they even elaborate antagonic interpretative hypothesis about the literary production related to the concept of testimony. Despite that antagonism, at late the concept has always addressed to the relation between literature and violence.

Keywords: Literature of Testimony; State; Violence.

A expressão literatura de testemunho tem circulado em livros, em revistas literárias e mesmo na grande imprensa com intensidade crescente desde 1990. Às vezes seu significado é impreciso, mas certamente o leitor comum não mais a associa à visão do texto literário como um testemunho de seu tempo, entendimento do senso comum que alude à sua capacidade de representar, com mediações formais, o processo social em que se inscreve sua produção. Nos últimos anos, a expressão remete sempre a uma relação entre literatura e violência.

Considerando a necessidade de rigor na atividade da crítica literária, cabe, em primeiro lugar, reconhecer e avaliar no âmbito estritamente teórico a existência de duas grandes concepções de literatura de testemunho bem como o fato de que elas não dialogam entre si até o momento. Uma delas desenvolve-se no âmbito dos estudos sobre a literatura latino-americana; outra é dominante no campo da reflexão sobre a shoah, termo amplamente utilizado para substituir a palavra holocausto. Ambas entendem ser a mimesis a natureza da literatura; no entanto, desenvolvem indagações bastante diversas sobre as possibilidades de a palavra representar a realidade, formulando, no limite, hipóteses antagônicas de interpretação da produção literária que tem sido designada pelo conceito de testemunho.

DUAS INTERPRETAÇÕES PARA O RESGATE DA HISTÓRIA

No campo da crítica voltada para a literatura de testemunho da América Latina, nota-se a existência de duas acepções do conceito que têm em comum a afirmação do vínculo entre a produção literária e o resgate da História contemporânea. E, apesar do fato de, às vezes, aparecerem as duas em um mesmo texto crítico, elas se sustentam sobre pressupostos distintos. Cabe marcar a diferença. Uma acepção orienta o exame de textos que, construídos a partir de múltiplas combinações de discursos literários, documentais ou jornalísticos, registram e interpretam a violência das ditaduras da América Latina durante o século XX; é ela, em parte, tributária da pauta sobre testemunho formulada pelos intelectuais reunidos no Júri do Prêmio Casa das Américas de 1969. Outra, quase absolutamente hegemônica, emerge na década de 1980, a partir do testemunho de Rigoberta Menchú, e volta-se exclusivamente para a literatura hispano-americana. Esta apresenta uma sólida sistematização, tem sido desenvolvida no espaço universitário norte-americano ou em áreas a ele vinculadas e faz fronteira com os estudos culturais.

Nesta última tendência, cujos trabalhos de referência são obrigatoriamente os de Sklodowska e os reunidos por Beverley2 2 Remeto o leitor a BEVERLEY, John; ACHUGAR, Hugo (ed.) La voz del otro: Testimonio, subalternidad y verdad narrativa. Número especial da Revista de crítica literária latinoamericana. Año XVIII, no 36, Lima, 2° semestre 1992. SKLODOWSKA, Elzbieta. Testimonio hispano-americano. Historia, teoria, poética. New York, Peter Lang, 1991. , há um consenso quanto a considerar que a reflexão sobre o testemunho inaugura-se com Miguel Barnet em 1966, com a obra Biografía de un cimarrón. O perfil do texto literário seria a constituição do objeto livro como resultado do encontro entre um narrador "de ofício" e um narrador que não integra os espaços de produção de conhecimento considerados legítimos, mas cuja experiência, ao ser contada e registrada, constitui um novo saber que modifica o conhecimento sobre a sociedade até então produzido. Desenha-se o testemunho com traços fortes de compromisso político: o letrado teria a função de recolher a voz do subalterno, do marginalizado, para viabilizar uma crítica e um contraponto à "história oficial", isto é, à versão hegemônica da História. O letrado – editor/organizador do texto – é solidário e deve reproduzir fielmente o discurso do outro; este se legitima por ser representativo de uma classe, uma comunidade ou um segmento social amplo e oprimido.

O conceito ganhou impulso para designar um "gênero" quando, em 1970, passou a ser uma categoria do Prêmio Casa das Américas. Os requisitos necessários para inscrição dos textos indicam critérios a serem considerados para avaliá-los: fontes de informação ou documentação fidedignas e qualidade literária. Apesar de, como veremos a seguir, esta interpretação contemplar apenas parcialmente os fatores determinantes da criação de "Testimonio" como nova modalidade do prêmio, uma considerável parcela da crítica entende ser esta um marco na institucionalização do gênero. Seria um projeto da Revolução Cubana, um estímulo à construção da verdadeira história de opressão da dominação burguesa na América Latina, feita a partir da experiência e da voz dos oprimidos. A literatura de testemunho praticada, teorizada e divulgada de forma militante por Barnet seria fomentada pelo poder institucional e teria, a partir de então, conquistado o estatuto de cânon.

Essa corrente propõe tópicos para construir uma definição de literatura de testemunho e para esboçar a caracterização de uma forma. Ela supõe o encontro de dois narradores e estrutura-se sobre um processo explícito de mediação que comporta os seguintes elementos: o editor/organizador elabora o discurso de um outro; este outro é um excluído das esferas de poder e saber na sociedade; este outro é representativo de um amplo segmento social ou de uma comunidade e, portanto, por sua história ser comum a muitos, ela é exemplar. Por serem estes seus pilares de estruturação, são considerados "pré-textos" os testemunhos imediatos – depoimentos, cartas, diários, memórias, autobiografias – bem como outros discursos não ficcionais – biografias, testemunhos etnográficos e historiográficos. Do convívio, no livro, de dois discursos – o do editor e o da testemunha – brotariam as tensões que configurariam o perfil literário do texto. Estas tensões se dariam entre o fictício e o factual, entre literariedade e literalidade, entre a linguagem poética e a prosa referencial. A partir dessas combinações, conformar-se-iam dois grandes tipos de testemunhos mediatizados. Um deles seria o testemunho romanceado – o jornalístico e o etnográfico ou sócio-histórico – que tem como textos paradigmáticos Biografía de un cimarrón (1966), de Miguel Barnet, Miguel Mármol. Los sucesos de 1932 en El Salvador (1972), de Roque Dalton, e Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia (1983), de Elizabeth Burgos-Debray. Aqui o autor edita o depoimento da testemunha e cerca-o de prólogo e/ou notas, marcando, ao menos aparentemente, a separação entre ambos discursos. O outro tipo seria o romance-testemunho ou o pseudo-testemunho cujos paradigmas são Operación masacre (1956), de Rodolfo Walsh, e La noche de Tlatelolco (1971), de Elena Poniatowska. Aqui, seguindo os passos do New Journalism norte-americano, o autor mobiliza elementos de composição da ficção para recriar eventos violentos a partir de relatos de testemunhas e de vários tipos de documentos.

Um balanço mostra ser relevante o fato de a atenção da crítica ter se concentrado de tal maneira no primeiro tipo que não só o exame do segundo foi quase sempre relegado ao campo de "estudos de autor" como também se criou uma vinculação direta e imediata entre aquele e o conceito de literatura de testemunho. Esse processo de restrição conceitual talvez justifique a necessidade de Rafael E. Saumell-Muñoz utilizar a expressão "o outro testemunho" para analisar em seu artigo a literatura de prisioneiros de algumas ditaduras da América Latina dos anos 70.3 3 Veja-se do referido autor "El otro testimonio" . Revista Iberoamericana, Vol. LIX, nº 164-5, jul-dic. 1993, pp. 497-507. Há tentativas de explicação dessa restrição. Ainda que não seja esta a questão central de Alberto Moreiras no seu ensaio "A aura do testemunho"4 4 O centro do ensaio está no exame das relações entre a dimensão estética da literatura e a pauta de problemas privilegiada pelos estudos culturais. Veja-se MOREIRAS, A. A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, pp.249-282. , pode-se encontrar ali uma hipótese: o testemunho que resgata a voz do excluído seria um campo extremamente fértil para o exercício da crítica ligada aos estudos culturais tão vigorosamente cultivados nos últimos anos. Márcio Ziligman-Silva5 5 SELIGMANN-SILVA, M. " "Zeugnis" e "Testimonio": um caso de intraduzibilidade entre conceitos." in Letras no 22-Literatura e autoritarismo, jan-jun/2001, pp.121-130. lança a hipótese de a inexistência do diálogo entre estas e a do âmbito da shoah derivar da intraduzibilidade do conceito de testemunho: Zeugnis em alemão, testimonio, em castelhano.

No entanto, nem a eventual filiação aos estudos culturais nem o contexto de tradução e significação da palavra "testemunho" parecem ser fatores que justifiquem a hegemonia de uma das acepções do conceito de literatura de testemunho no exame da produção literária da América Latina. Mais que procurar explicações caberia talvez identificar argumentos e analisar pressupostos que esse discurso crítico pôs em circulação. Nesse sentido, é possível constatar a recorrência, em quase todos os trabalhos, de duas formulações sobre a relevância dessas obras que resgatam para o mundo das letras a "voz do outro, do subalterno". Uma delas consiste na sustentação de que esses textos impõem a necessidade de repensar cânones literários e que, à diferença de muitos outros momentos semelhantes na história literária, agora o desafio é lançado pela periferia em relação ao centro e problematiza a história das importações literárias6 6 Leia-se o ensaio em que Fredric Jameson analisa uma sugestiva aproximação entre o Bildungsroman e o testemunho. JAMESON, F. "De la sustitución de importaciones literarias y culturales en el tercer mundo: el caso del testimonio". in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed) La voz del otro...pp. 117-133. . Outra tese recorrente é a referente ao caráter "democrático" desse modo de composição do testemunho, uma vez que ele viabiliza a entrada na cultura letrada das vozes de outras identidades, das vozes até então silenciadas, do texto produzido a partir de espaços externos ao poder constituído, da interpretação "não oficial" da História:

El espacio discursivo en la esfera pública se ha vuelto un espacio compartido donde se intenta construir o buscar una identidad nueva. No la identidad homogeneizadora impuesta por el monólogo del discurso imperial sino una identidad heterogénea, por diferenciada y plural, quizás más democrática y que respete las identidades otras.7 7 ACHUGAR, H. "Historias paralelas/historias ejemplares: la Historia y la voz del otro." in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed) La voz del otro...p. 53.

No meu entender, essa acepção do conceito de literatura de testemunho sustenta-se sobre pressupostos problemáticos. Um deles é a insistência em normatizar a literatura de testemunho que, como toda forma, e talvez esta de maneira mais radical, não se submete docilmente a moldes. Está aí a história de todos os gêneros literários para colocar-nos em posição de alerta. O segundo problema situa-se na esfera da interpretação ideológica dessa extensa e intensa produção de literatura de testemunho na América Latina. Ao estabelecer um vínculo de causa e efeito entre uma suposta "canonização" do gênero testemunho e a criação desta categoria no Prêmio Casa das Américas, essa corrente tende a simplificar a questão, pois atribui ao governo de Cuba um grande poder de intervenção na produção cultural de todo o continente e minimiza a força do acirrado embate ideológico que, com freqüência, expressa-se em ações de violência e extermínio no século XX, tão apropriadamente interpretado por Hobsbawm8 8 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991.Trad. Marcos Santarrita, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. como a "era da catástrofe": Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa, ascensão do nazismo, Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, guerras de independência colonial, Guerra Fria, Revolução Chinesa, Revolução Cubana, Guerra do Vietnã e as tantas guerras abertas pelas ditaduras militares na América Latina nos anos 60 e 70. Ao insistir de forma militante no caráter democratizante dessa literatura de testemunho que traz para o mundo letrado o saber do subalterno, essa tendência da crítica sugere sua concordância com as ações políticas que entendem a legislação sobre identidades e direitos das "minorias" como ampliação da democracia moderna. Assim, cabe enfatizar que a essa acepção do conceito de literatura de testemunho subjaz uma interpretação ideológica do século XX: um século marcado por um processo histórico de inclusão social. Essa perspectiva, ao não considerar a interlocução com a leitura deste século de tanta violência como processo histórico de exclusão social, dificulta a reflexão sobre a inserção particular da literatura de testemunho das últimas décadas da América Latina no mundo movente da literatura escrita por homens de diferentes línguas, utopias, etnias ou credos nesta nossa "era da catástrofe", em que a violência e a barbárie, tanto quanto o capital, não encontram fronteiras geográficas, políticas ou étnicas.

Bastante mais aberta é a proposta tanto de definição do testemunho como a de interpretação para sua relevância, feita por membros do Júri do Prêmio Casa das Américas de 1969 e que os levou a sugerirem a essa instituição a criação da categoria testimonio entre os gêneros do prêmio. A conversa, publicada somente em 1995, desenvolve-se em torno de certa perplexidade provocada pela leitura dos inéditos inscritos como romance naquele ano, tão cheio de convulsões políticas na América Latina. Participavam da discussão: Ángel Rama9 9 RAMA, A; AGUIRRE, I; ENZENSBERGER, H. M.;GALICH, M.; JITRIK,N. ; SANTAMARÍA, H. "Conversación en torno al testimonio" in Casa de las americas. Año XXXVI, no. 200, La Havana, julio-septiembre 1995, pp. 122-125. , Isadora Aguirre, Hans Enzensberger, Noé Jitrik, Haydée Santamaría e Manuel Galich. Considerando que boa parte dos textos escapavam ao padrão do romance, o grupo ponderou que era possível constatar a existência de uma ampla e vigorosa tendência de tomar a prosa para narrar a experiência de participação em ações revolucionárias. Havia ali uma forma nova que fazia um certo panorama do que acontecia no continente e que suscitava a necessidade de se pensar uma nova categoria para analisar aqueles textos. Propuseram a criação do testimonio.

Manuel Galich sistematizou a reflexão definindo o gênero pelo avesso: é diferente da reportagem, da narrativa ficcional, da pesquisa e da biografia. O testemunho difere da reportagem porque ele é mais extenso, trata com mais profundidade seu tema, deve apresentar uma qualidade literária superior e não é efêmero como a reportagem que se vincula à publicação em veículos periódicos. Distingue-se da narrativa ficcional, porque descarta a ficção em favor da manutenção da fidelidade aos fatos narrados. Afasta-se da prosa investigativa, na medida em que exige o contato direto do autor com o ambiente, fatos ou protagonistas que constituem sua narração. O testemunho é diferente da biografia porque, enquanto esta escolhe contar uma vida por seu interesse de caráter individual e singular, aquele reconstitui a história de um ou mais sujeitos escolhidos pela relevância que eles possam ter num determinado contexto social.

Nas considerações do Júri, pode-se novamente reconhecer a vinculação entre testemunho e compromisso político com as lutas sociais e até mesmo um discurso de contraponto a uma versão hegemônica da História. No entanto, neste campo de pensamento, a figura do "outro" não é essencial e, caso o testemunho assim se apresente, não se restringe a concepção de "outro" a subalternos, iletrados ou excluídos dos espaços considerados legítimos produtores do conhecimento; pode-se falar de oprimido, mas este se identifica a opositor político à ordem vigente. Ressalte-se ainda que os críticos do Júri insistem na qualidade literária.

No meu entender, esta acepção do conceito de literatura de testemunho, por considerar uma grande flexibilidade quanto à forma do texto associada a uma natureza de experiências de aberto embate ideológico, abre a possibilidade de analisar uma tendência da produção literária latino-americana do século XX em um contexto mais amplo, que ultrapassa os limites geográficos do continente e aproxima-a à geografia mundial da barbárie, impondo a necessidade de examinar as relações entre violência, representação e formas literárias. Nesse campo de estudos, é imprescindível a leitura do ensaio pioneiro e iluminador escrito por Alfredo Bosi sobre Memórias do cárcere de Graciliano Ramos.10 10 BOSI, A. "A escrita do testemunho em Memórias do cárcere." in Estudos Avançados, Vol. 9, no. 23, jan-abr/1993, pp.309-322. O ensaio foi publicado em livro: BOSI, A. Literatura e resistência. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

SHOAH: A REPRESENTAÇÃO DO HORROR

Se é verdade que os desastres da Segunda Guerra Mundial lançaram desafios para todas as áreas do conhecimento que tivessem compromisso com a preservação da vida e da "civilização", deve-se reconhecer que o horror dos campos nazistas impôs urgência na necessidade de compreender aquele acontecimento. Como resposta a ela, a reflexão sobre a shoah, não só consolidou um campo de pesquisa, como vem estendendo seu alcance. Ela atravessa várias disciplinas, como a psicanálise, a história, a sociologia, a filosofia e os estudos literários, sendo que nestes formula uma perspectiva teórica sobre literatura de testemunho. Para um primeiro conhecimento desse campo são de fundamental importância alguns textos de Theodor Adorno, Giorgio Agamben, Jean Améry, Hannah Arendt, Georges Bataille, Zygmunt Bauman, Maurice Blanchot, Shoshana Felman, Imre Kertész11 11 ADORNO, Theodor. Minima moralia. Trad. Luis Eduardo Bicca. São Paulo, Atica, 1993. ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade" in Prismas. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo, Atica, 1998, pp. 7-26. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2000. AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2001. AMÉRY, Jean. Más allá de la culpa y de la expiación. Tentativas de superación de una víctima de la violencia. Trad. Enrique Ocaña. Valencia, Pre-Textos, 2001. ARENDT, Hannah. Eichmann en Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. BATAILLE, Georges. La littérature et le mal. Paris, Gallimard, 1957. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998. BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre. Trad. Pierre de la Place. Caracas, Monte Avila, 1990. FELMAN, Shoshana. e LAUB, Dorie. Testimony: literature, psychoanalysis, history. Londres, Routledge, 1991. FELMAN, Shoshana. "Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino." in NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000, pp. 13-71. KERTÉSZ, Imre. Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura. Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999. e, considerando a discussão do tema no Brasil, os livros de ensaios organizados por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva12 12 NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org). Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000. SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura. O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, Editora da UNICAMP, 2003. .

Há algumas indagações que permeiam esse campo do pensamento: como manter no horizonte ideais do humanismo depois dos campos de concentração e extermínio construídos pelos alemães? Esses campos devem ser considerados um acidente na história da era moderna ou um elemento constitutivo da modernidade? Como pode a arte relacionar-se com o horror dessa experiência humana? É importante observar que, para enfrentar essas questões, pensadores das diferentes áreas recorrem a duas assertivas sobre o tema. Uma está no romance de Primo Levi, É isto um homem?, logo depois das filas de seleção e desinfecção, quando o homem está nu:

Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar essa ofensa, a aniquilação de um homem.13 13 LEVI, P. É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p.24.

A outra assertiva encontra-se no ensaio de Adorno, "Crítica cultural e sociedade":

A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever poemas.14 14 Op. cit. , p. 26

Ambas as frases propõem uma questão central para a literatura: a relação entre a literatura e o mal, tomando emprestado aqui a expressão de Georges Bataille. Coloca-se, assim, a necessidade de refletir sobre a tensão entre catástrofe e representação. E se ela é importante na construção do conhecimento em outras áreas do saber, nos estudos literários ela é essencial para esboçar o perfil da literatura de testemunho.

Para dimensionar o alcance da tensão é importante retomar o conceito de catástrofe. No âmbito da teoria literária, ele está vinculado estreitamente à descrição da tragédia, uma vez que é tomado como reviravolta, como virar de cima para baixo, apesar de essa palavra não aparecer na Poética de Aristóteles, que pauta o estudo dessa forma. Ali a descrição desse movimento do enredo é feita com o termo metabolé, transformação. Mas "catástrofe", com o sentido de reviravolta, é amplamente usada para descrever a trajetória do herói trágico cujo destino é a ruína que se presta a restabelecer a possibilidade de volta a um ponto de equilíbrio da comunidade que o herói espelhava. Portanto, com esse sentido e nesse contexto, "catástrofe" acena para um movimento de possível recomposição, de reconstrução. No entanto, desde Ésquilo até Plutarco, a palavra é usada com o significado de término e fim; em Heródoto, como verbo, significa aniquilar. Nessa medida ela aponta para o movimento de desaparecimento, de extinção, de aniquilamento, pois já não se abre qualquer possibilidade de recomposição, de ressurgimento.

É esta acepção da palavra catástrofe que se pode reconhecer de modo latente na frase de Adorno e claramente enunciada por Levi. O aniquilamento do homem ecoou no aniquilamento da utopia humanista, corroendo o poder explicativo da razão e a crença no conhecimento como força de civilização. E em ambas as frases está exposta a tensão entre catástrofe e representação, a quebra de confiança, da fluência na relação entre o homem e as formas familiares de expressão.

Apesar de até o momento não haver na bibliografia preocupação em examinar as diferentes acepções de "catástrofe", elas são fundamentais nos estudos literários, pois ajudam a descrever com mais rigor a relação entre a forma literária e a natureza da matéria que a compõe. A matéria da tragédia não se confunde com a do testemunho. Naquela, o universo ameaçado retorna à harmonia com a morte ou expulsão do herói, em última instância, a personagem sobre a qual incide a "responsabilidade" pelos transtornos; a matéria do testemunho trata exatamente das impossibilidades de reconstrução da harmonia perdida, da destruição de parâmetros de estruturação social, da perda de referenciais de identidade, da perda da confiança no mundo. Leia-se uma descrição da matéria escrita por Antelme em 1947, ao retornar dos campos alemães:

El horror ahí es oscuridad, falta absoluta de referencias, soledad, opresión incesante, lento aniquilamiento.[...]

No creemos que los héroes de la historia o de la literatura, aunque hayan clamado al amor, a la soledad, a la angustia del ser o del no ser, a la venganza, aunque se hayan rebelado contra la injusticia, contra la humillación, se hayan visto obligados a expresar, como única y última reivindicación, un último sentimiento de pertenencia a la especie.

Decir que entonces nos sentíamos impugnados como hombres, como miembros de la especie, puede parecer un sentimiento retrospectivo, una explicación posterior. Sin embargo, eso es lo que vivimos de forma más inmediata y percibimos constantemente. Y, por otra parte, eso es exactamente lo que desearon los otros. El hecho de cuestionarse la cualidad de hombre provoca una reivindicación casi biológica de pertenencia a la especie. 15 15 ANTELME, Robert. La especie humana. Trad. Trinidad Richelet. Madrid, Arena Libros, 2001, p. 11[ STANDARDIZEDENDPARAG]

Uma lúcida reflexão sobre a natureza dessa matéria foi elaborada pelo sobrevivente austríaco Hans Maier que adotou o nome Jean Améry para assinar seus textos:

Declaraciones de derechos humanos, constituciones democráticas, el mundo y la prensa libres. Nada puede adormecerme de nuevo en un sueño de seguridad como del que desperté en 1935.[...]

No me angustia ni el ser ni la nada ni dios ni la ausencia de dios, sólo la sociedad: pues ella y sólo ella, me ha infligido el desequilibrio existencial al que intento oponer un porte erguido. Ella y sólo ella me ha robado la confianza en el mundo. 16 16 Op. cit., p. 185 e pp. 192-193, respectivamente.

Relatos dos sobreviventes foram e são considerados fontes ou documentos para a reflexão em diferentes áreas do pensamento: na psicanálise, na filosofia, na história, na sociologia, na teoria literária, na lingüística e no direito. Nesses terrenos, com diferentes formulações encontram-se alguns paradoxos constantes. Como narrar o horror dos campos de concentração, se os que o viveram inteiramente não sobreviveram para contar? Os que sobreviveram enfrentam o dilaceramento entre a culpa por ter sobrevivido e o imperativo ético da necessidade de narrar sem trair a verdade. Perante a barbárie da shoah, que desafia as formas de pensar, como conciliar no discurso a atitude de não desistir do conhecimento e ser fiel à natureza do vivido? O testemunho tem que falar do que viu e do que se passou sem poder instalar-se no presente com a tranqüilidade de referir-se a um passado, pois sua vivência não cabe no campo do finito, do acabado; ela escapa à compreensão porque está irremediavelmente marcada pelo movimento do trauma: sucessivas aproximações de narração ou evocação que padecem do adiamento em encontrar uma expressão. Como inscrever esse testemunho do aniquilamento do homem nas páginas da modernidade confiante em sua vocação civilizadora?

Bauman alerta a sociologia para o perigo das duas interpretações opostas e dominantes sobre o Holocausto: seu caráter absolutamente específico e único ou um evento normal da modernidade. Considerá-lo apenas como único leva a colocá-lo como o episódio mais brutal da longa história do anti-semitismo, inserindo-o em um território histórico e socialmente demarcado, revelador de uma "patologia" daquela sociedade. Seria um acidente da modernidade. Por outro lado, considerá-lo como um evento normal, acaba colocando-o como um item, ainda que de grande importância, da longa série de genocídios raciais, étnicos ou culturais. No limite, ambas as posições obliteram o exame das relações entre Holocausto e modernidade. O autor propõe a necessidade de reconhecer linhas distintivas do processo civilizador e examinar o Holocausto como uma possibilidade que a modernidade contém:

Precisamos avaliar a evidência de que o processo civilizador é, entre outras coisas, um processo de despojar a avaliação moral do uso e exibição da violência e emancipar os anseios de racionalidade da interferência de normas éticas e inibições morais. Como a promoção da racionalidade à exclusão de critérios alternativos de ação, e em particular a tendência a subordinar o uso da violência a cálculos racionais, foi de há muito reconhecida como uma característica da civilização moderna, fenômenos como o Holocausto devem ser reconhecidos como resultados legítimos da tendência civilizadora e seu potencial constante. (grifo do autor)17 17 Op. cit., p. 48.

Mas é na esfera da filosofia política, na trilogia Homo sacer, de Giorgio Agamben, que se encontra uma interpretação consistente da vinculação necessária entre a era moderna e a violência do universo concentracionário. Para ele, o Estado moderno funda-se sobre um poder soberano de natureza distinta, pois sua própria existência se faz por um movimento aporético de inclusão exclusiva e de exclusão inclusiva. À diferença do ancien régime, ao soberano atribui-se não o poder de deixar viver, mas sim o de não deixar morrer. E como este mesmo poder, para constituir-se, define os homens portadores de vida qualificada (Bíos), os incluídos em sua esfera com direitos e deveres políticos, e os homens portadores da vida nua (Zoé), os excluídos, institui-se a existência de uma vida matável, aquela que pode ser aniquilada sem que se configure um crime. Mudam-se os homens portadores da vida nua que povoam a zona de exclusão, mas esta é constante e necessária para definir o lugar dos incluídos, o espaço político. Por isso, o campo de concentração é metáfora da modernidade, metáfora permanente que em Auschwitz veio à tona em forma concreta:

Ao invés de deduzir a definição do campo a partir dos eventos que aí se desenrolaram, nos perguntamos antes: o que é um campo, qual a sua estrutura jurídico-política, por que semelhantes eventos aí puderam ter lugar? Isto nos levará a olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo como matriz oculta, o nómos do espaço político em que vivemos. 18 18 A trilogia a que me refiro já foi citada acima. Esta citação está no primeiro livro, p. 173.

O testemunho, o que resta de Auschwitz, para usar um título de Agamben, vem da zona da vida nua e aponta para outra concepção da literatura de testemunho radicalmente antagônica àquela hegemônica na crítica da literatura hispano-americana, pois ela se sustenta sobre uma interpretação do século XX como um processo histórico e social de sistemática exclusão. Na bibliografia vinculada a essa concepção, alguns tópicos são constantes. Entende-se que escrever significa conviver com a mudez, o domínio da língua e seus limites; aponta-se a necessidade de criar um alinhamento entre a testemunha e o ouvinte, entre escritor e leitor para que o discurso seja forma de resistência ao recolhimento, ao silêncio e à morte. E aqui cabe lembrar a atitude de muitos sobreviventes dos campos que se negam a dar seu depoimento, como relatam historiadores, ou a de Jorge Semprún que, além de ter adiado até 1994 falar da fase de sua vida nos campos de concentração, ao escrever o livro, vacilou entre dois títulos: La escritura o la vida e o finalmente preterido –"la escritura y la muerte".

No plano literário, o escritor interroga-se sobre a possibilidade de encontrar a frase justa e a imagem adequada, sobre o poder de expressão da palavra e os impasses de traduzir o vivido, de dizer o indizível. Repõe-se a noção do antigo tópico estético do "sublime" mas este não está mais no plano elevado do belo; está nos subterrâneos do horror. E, na busca por representá-lo, é necessário reproduzir o paradoxo entre a dimensão do instante da matéria a ser tratada e a linguagem da permanência, a tensão entre passado e presente, a contradição entre a ambigüidade e a literalidade, os impasses entre a poesia da imediatez ou o estilo do excesso de realidade, o significado da repetição ou das reticências e a convivência com a escassez da sintaxe explicativa ou do espaço para o jogo da imaginação.

CORRENTES DA CRÍTICA LITERÁRIA DA SHOAH

Nessa concepção da literatura de testemunho é possível também reconhecer duas tendências. Uma, a hegemônica, reserva-a à produção dos sobreviventes, recusa-lhe qualquer aproximação à ficção, examina-a a partir de critérios éticos e nega-se a considerá-la à luz da estética. A outra tendência, ao contrário, privilegia em seu exercício crítico as questões de natureza literária, desdobrando-se assim no âmbito da estética; não restringe seu corpus à produção dos sobreviventes. Portanto, aqui também é necessária atenção para o rigor no uso de alguns conceitos e na hierarquização dos argumentos.

A primeira corrente crítica sustenta-se sobre a evocação de duas frases recorrentes, que fundamentariam a impossibilidade de vincular testemunho e ficção, em nome de uma postura ética em defesa da "verdade". Uma delas é de Primo Levi:

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas.19 19 LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 47.

Freqüentemente, a frase é extraída de seu contexto para criar uma hierarquia de autoridade entre testemunhos. No entanto, a afirmação de Levi não tem esse objetivo. Ela é uma constatação da existência de um limite intransponível de seu próprio relato, pois, no mesmo texto, observa o autor que as "testemunhas integrais", as que vivenciaram o processo inteiro do extermínio nazista, os que morreram nas câmaras de gás e fornos crematórios não voltaram para narrar. A frase demarca uma perspectiva da narração e ancora sua origem no vivido. E, reiteradamente, considera Levi que, além de responder a uma necessidade interior e a um movimento seu com o objetivo de evitar a repetição daquela barbárie, relatar sua vivência é uma forma de dar notícia dos que não puderam falar, caso do menino Hurbinek:

Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras.20 20 LEVI, P. A trégüa. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.31.

É inegável que Levi, quase sempre fonte primeira dos estudiosos do testemunho, explicita ser o vivido a matéria de seus textos. No entanto, talvez pela própria violência que a constitui, dá-se menos atenção à reflexão sobre a forma neles contida. Basta lê-los atentamente para encontrar um narrador consciente de que rememorar e testemunhar exigem escolhas, arranjos, artifícios e trabalho sobre linguagem e formas de narrar. Some-se a ênfase na natureza da matéria – o vivido – ao fato de o autor usar com freqüência a palavra "experiência" para a ele se referir e chega-se à base para que se atribua a Levi a concepção de que ninguém pode falar pela testemunha. Transforma-se ela em imperativo ético e dela deriva um perfil único de autor – o sobrevivente – e uma exigência em relação à obra – a de corresponder à "verdade dos fatos".

Na mesma linha de pensamento, a outra frase constantemente evocada é a de Adorno, citada anteriormente, sobre a relação entre a produção poética e o contexto histórico posterior a Auschwitz. E se, por vezes, ela chegou a ser usada para condenar a poesia contemporânea, nos estudos da shoah, a afirmação aparece como argumento poderoso em defesa da tese relativa à impossibilidade de representar a barbárie, à impossibilidade de associar testemunho e ficção. No entanto, a frase de Adorno está longe do sentido de proibição. Nesse ensaio de 1949, ela expressa uma das várias perplexidades que o autor entende desafiarem o exercício da crítica cultural na sociedade do pós-guerra. Ao longo de vários anos, Adorno volta a discutir a frase e esse percurso21 21 Uma análise esclarecedora desse percurso da reflexão de Adorno sobre a questão encontra-se em: GAGNEBIN, J. M. A(im)possibilidade da poesia . Cult, São Paulo, nº. 23, pp.48-51, jun.1999. interessa especialmente para o estudo da literatura de testemunho, pois chama a atenção para questões relativas à forma: considerando a necessidade de impedir o esquecimento e a repetição de Auschwitz, alerta para o perigo de torná-lo assimilável através da estilização artística; resistir à barbárie exigiria imprimir na própria forma marcas daquela violência concebida pelo homem, marcas do mal-estar que aquele evento inscreveu na nossa consciência.

Cabe ainda ponderar que o uso dessas duas frases na defesa do vínculo entre testemunho e "verdade", e portanto da impossibilidade de representar o horror, sustenta-se sobre uma interessada confusão entre dois conceitos: vivência e experiência. Postos lado a lado, já fica claro a dimensão individual do primeiro. Ele está na base da frase de Levi: refere-se ao vivido por um indivíduo, ao factual recuperado pela memória, à singularidade. Quanto ao segundo conceito, devemos lembrar aqui que os estudos da área da psicologia no século XX são responsáveis, em grande parte, pelo fato de que se estreite o conceito de experiência e se o identifique ao de vivência. Mas no campo da reflexão estética, que é o nosso, devemos ter em mente o conceito hegeliano que exige não apenas envolver-se em uma ação mas também a reflexão. A experiência não supõe apenas a reflexão sobre o vivido, mas sim o movimento de reflexão sobre o conhecimento já construído. E este é o pressuposto subjacente à frase de Adorno. Sem ter em conta a barbárie de Auschwitz não há conhecimento. Se a vivência dos campos coube a alguns milhões de pessoas, a experiência do aniquilamento do outro racionalmente administrado é herança para todos nós.

Já nos comentários às duas frases evocadas encontram-se os argumentos que sustentam a segunda corrente crítica, a que tem como foco central a natureza literária do texto. Mas cabe explicitar pressupostos que ajudam a precisar a contraposição entre as duas. A primeira corrente entende a shoah como evento único e como um acidente da era moderna; vincula o testemunho à fidelidade a uma suposta "verdade"; decreta a extinção dessa forma literária, na medida em que ela deixaria de existir com a morte do último sobrevivente, e põe em risco a existência da própria literatura, ao insistir na impossibilidade de representar o horror indizível. Esta postura crítica estava na base de um episódio recente que ocupou o debate literário em torno da obra Fragmentos, de Binjamin Wilkomirski. Em um primeiro momento, ela foi considerada como texto de excelente qualidade e, quando se comprovou que seu autor jamais havia estado em um campo de concentração, passou a ser péssima, pois era produto de uma "mentira". A fraude da identidade do autor é uma questão grave que pode ser julgada em muitas instâncias sociais, mas ela não pode ser determinante para a análise e interpretação do texto.

A segunda corrente entende a shoah como um evento que só se tornou possível pelo desenvolvimento das técnicas da racionalidade administrativa e pelo conhecimento científico patrocinados pela modernidade; reconhece no universo concentracionário o espaço subjacente permanente ao Estado moderno e, portanto, não restringe o testemunho aos campos nazistas. Ao contrário, toma a reflexão sobre eles para apurar a análise da sociedade contemporânea. Nesse sentido, Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal, traz duas expressões para descrever a violência das práticas nazistas que se aliam às interpretações do vínculo entre elas e a era moderna propostas por Agamben e Bauman: parte do subtítulo do livro – a banalidade do mal – e o "massacre administrativo"22 22 No livro, como correspondente da revista New Yorker, a autora narra o julgamento deste homem ocorrido em 1961 e partilha conosco sua perplexidade perante uma pessoa que fala da perseguição aos judeus, das deportações, dos campos de concentração e da solução final como se falasse de qualquer ação do Estado, como se falasse de políticas de abastecimento, de transporte, de educação. Essa banalização leva-a a observar que nos projetos e nas ações que promoveram a ascensão do Estado liderado por Hitler, a questão dos judeus, como tudo, era racionalmente administrada. Não só os fornos crematórios eram uma máquina da morte. A discriminação, a remoção, o confinamento, o confisco de bens e a execução de judeus, mas não só deles, parecem ser meros procedimentos administrativos programados com racionalidade, com complexos cronogramas. E, como estavam em pauta assassinatos, a produção da morte pode ser descrita com sintaxe expositiva, pode gerar arquivos de fichas, pode traduzir-se em tabelas de quantificação e, sobretudo, pode ter sua eficácia avaliada. A expressão "massacres administrativos" está na página 311. Tomei a liberdade de usá-lá no singular. . É dessa face da modernidade que nos fala a literatura de testemunho. E como a barbárie do século, essa literatura não tem fronteiras étnicas, geográficas ou lingüísticas. Para considerá-la a partir de critérios estéticos é preciso reconhecer que o horror nos chega em diferentes vozes e línguas: Primo Levi, Paul Celan, Jorge Semprún, Imre Kertész, Max Aub, Roque Dalton, Ferreira Gullar e tantos outros sobreviventes dos porões das ditaduras latino-americanas.

Assim, trata-se de descrever como as marcas da convivência com o horror inscrevem-se na forma literária, como os procedimentos de construção do texto aludem à catástrofe, entendida como aniquilamento.

LITERATURA DE TESTEMUNHO E HISTÓRIA LITERÁRIA

A eleição de critérios estéticos na análise da literatura de testemunho supõe a interlocução do exercício crítico com a história literária. E o diálogo com a historiografia da literatura exige a consideração de obstáculos decorrentes de alguns limites dos pressupostos metodológicos consolidados nesse terreno. Talvez a dificuldade mais evidente seja a relativa aos parâmetros que regem as práticas de periodização.

Na bibliografia sobre a literatura de testemunho, e nas obras da historiografia de diversas literaturas, nota-se a ausência da associação entre ela e a literatura moderna. Considere-se que nas histórias de diferentes tradições literárias há um consenso quanto a certos traços do perfil do texto moderno, nucleados em torno da exploração estética das propostas de várias vanguardas objetivada em alguns procedimentos: a fragmentação, a exposição da prevalência da forma, a pluralidade de vozes, a justaposição de imagens ou pontos de vista, a ruptura com a ilusão realista, os ensaios de representação dos movimentos psíquicos, o amálgama de diferentes linguagens etc. Nestes vários procedimentos pulsam uma aversão à linearidade ou à referencialidade e uma tendência a representar a crise da noção de sujeito no mundo da automação, da técnica e dos meios de comunicação de massas. No entanto, note-se que é subjacente a essa leitura dos textos uma certa interpretação da modernidade, quase nunca explicitada: se, por um lado, reconhece-se nela a ameaça ao indivíduo, mantém-se ainda a crença na razão iluminista, no progresso da ciência, na vocação civilizadora do Estado e no traço eufórico distintivo do artista, o possante criador. Dessa forma, nota-se nas interpretações ainda hegemônicas da modernidade uma resistência a reconhecer nela as marcas de um rosto prenhe de horror.

Os procedimentos de construção propostos pelas diferentes vanguardas que talham o perfil da literatura moderna estão na literatura de testemunho, certamente de modo singular em cada obra, e são importantes na constituição de sua eficácia estética. A título de exemplos: Max Aub arma o romance Campo francés através do diálogo de uma narrativa escrita à maneira de roteiro cinematográfico e peça teatral com outra narrativa montada com fotos de jornais e gravuras de um prisioneiro do campo de Vernet, compondo um livro visualmente semelhante ao da primeira edição de Ultimo round de Julio Cortazar. Jorge Semprún elabora o romance A escritura ou a vida a partir da sobreposição de desdobramentos do "eu" e do padrão espiralado da improvisação do jazz, cujo movimento desliza para a espiral em que se desenvolvem o compasso narrativo e a inflexão do ensaio. Ferreira Gullar combina a aparente leveza da frase no romance Rabo de foguete a um personagem-narrador cuja trajetória de herói trágico é forjada na violência dos porões das ditaduras do cone sul. Primo Levi, com sua frase descarnada, busca sinais de sua espécie para responder a pergunta É isto um homem? nos limites da língua, na paisagem que fica do outro lado da cerca eletrificada e nos retalhos que pode recordar ou glosar da Divina comédia. Como se vê os recursos literários da modernidade podem construir seu próprio inferno e explicitar a inadequada colocação de Primo Levi ao lado dos neo-realistas italianos, ou a desvincular Max Aub da experimentação estética da "geração da idade de prata" e acomodá-lo no guarda-chuva do "exílio".

Mas se algumas sistemáticas de periodização não contemplam a literatura de testemunho, parece que a maior dificuldade de sua inserção na história literária decorre da própria natureza dessa disciplina, pois esta se consolida no arco do historicismo romântico, apoiada na cadeia língua materna, nação (ou pátria) e tradição literária nacional. O lingüista e crítico literário George Steiner, comentando grandes autores do século XX, mostra-nos como a contigüidade criada entre esses três elementos é arranhada desde o começo do século. Considerando como bilíngües ou multilingües, escritores como Kafka, Oscar Wilde, Samuel Beckett, Ezra Pound, Nabokov ou Borges, o crítico aponta e interpreta ecos da(s) língua(s) subjacentes àquela escolhida para a composição do texto literário e ressalta como essas obras põem "em dúvida a equiparação de um eixo lingüístico, de profundo enraizamento nativo, à autoridade poética."23 23 STEINER, George. Extraterritorial. A literatura e a revolução da linguagem. Trad. Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 17. Para Steiner , a partir do contexto da Primeira Guerra marcado pelo "fracasso da formação humanística diante da barbárie"24 24 Op. cit, p.9. , à diferença da imagem do escritor como mestre especial da língua de uma nação, encontramo-nos com "um escritor lingüisticamente 'desabrigado', de um poeta, um romancista, dramaturgo não completamente em casa na língua de sua produção, mas deslocado ou em hesitação na fronteira". 25 25 Op. cit, p. 15.

A literatura de testemunho impõe à cadeia língua, nação e tradição literária nacional uma fratura irrecuperável, pois, talvez pelo fato de ser ela proveniente da zona de exclusão criada pela violência de Estado racionalmente administrada, expõe a radical ausência de qualquer abrigo. A tensão entre o escritor e sua língua manifesta-se de diferentes modos nessa literatura. Na conhecida, e já citada, frase de Primo Levi referente à dificuldade de encontrar palavras para relatar a aniquilação do homem, costuma-se ler apenas a alusão ao indizível. Mas nela pode-se também reconhecer que o narrador alude à perda da fluência entre vivência e palavra, à descoberta da fragilidade da linguagem. Antelme coloca o estranhamento da língua em relação a seu próprio corpo:

Sin embargo, desde los primeros días, nos parecía imposible colmar la distancia entre el lenguaje del que disponíamos y esta experiencia que, para la mayoría de nosotros, continuaba en nuestro cuerpo.26 26 Op;. cit, p. 9.

A personagem de Sin destino, ao retornar à sua cidade, registra que a língua não mais abriga a interlocução, denunciando que o natural foi deslocado. Leia-se o desencontro entre o protagonista e um jornalista:

"¿Por qué respondes a todo 'naturalmente', cuando te estás refiriendo a cosas que no lo son en absoluto?" Le contesté que en un campo de concentración sí eran cosas naturales. "Ya, ya... Allá sí... pero... – buscaba las palabras hasta que añadió –: Pero...¡un campo de concentración no es una cosa natural!" Encontró por fin sus palabras; no le respondí nada puesto que empezaba a darme cuenta de que había cosas de las que no se podían hablar con desconocidos, con gente que no sabía nada de nada, ...27 27 KERTÉSZ, Imre. Sin destino. Trad. Judith Xantus. Rev. Adan Kovacsics. Barcelona, Acantilado, 2001, p.247[ STANDARDIZEDENDPARAG]

Note-se que em se tratando de casos em que o prisioneiro tem a mesma língua do guardião, o estranhamento tem outros matizes. Améry registra dois deles: um relativo à sua vida de prisioneiro e outro referente à condição de exilado, pois não quis retornar à Austria:

En nuestro caso, el contenido semántico de cada palabra alemana se nos transformó, y finalmente quisiéramoslo o no, la lengua materna se nos manifestó tan hostil como aquellos que la hablaban a nuestro alrededor.[...]

Sin embargo el problema linguístico del exiliado no se agota, ni mucho menos, en ese punto. En vez de un "desmoronamiento" de la lengua materna, prefería hablar de una atrofia.28 28 Op. cit., p. 127 e 125, respectivamente

Deve-se considerar também que sobre o estranhamento incide uma "língua dos opressores". No caso alemão, os trabalhos de Steiner e Klemperer29 29 Veja-se STEINER, George . "O milagre vazio" in Linguagem e silêncio. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp.133-147. KLEMPERER, Victor. LTI La langue du III Reich. Trad. Élisabeth Guillot. Paris, Albin Michel, 1996. são imprescindíveis para a compreensão tanto de seu empobrecimento, como do novo alemão criado pelo Terceiro Reich. Na Argentina, Miguel Bonasso explica para seu leitor o espanhol usado na Escola de Mecânica.

Mas se essa babel das línguas criada pela violência vivida pela massa de refugiados constitui um dado concreto do plano extra-literário, a crítica deve estar atenta para ouvir seus ecos ao ser ela transformada em elemento de composição do texto. Um modo muito freqüente consiste na exploração da dicção própria da oralidade e da frase coloquial, talvez como escolha de um estilo precário. Há exemplos em muitos autores. Veja-se Gullar, Max Aub e Bonasso. Outro modo de composição alusivo a esse estranhamento da língua situa-se na esfera de processos de tradução. Eles podem ser encontrados de maneira explícita, caso, por exemplo, de Semprún quando, escrevendo em francês, recorre ao espanhol, comparando as línguas, porque não encontra na primeira uma palavra para dizer "vivência". Mas há textos, como "Manuscrito cuervo" de Max Aub, em que o procedimento da tradução é o eixo estruturador do conto, adensando o tópico da carência da língua e das formas literárias para narrar a barbárie.

Conviver com o desabrigo da língua é uma dimensão íntima de quebra da condição de pertença que freqüentemente, mas não sempre, está acompanhado da perda da pátria, do conforto cultural de estar em seu lugar, entre os seus. Os versos de Paul Celan ou a prosa de Jean Améry registram o conflito insuperável com a língua alemã; o fato de não terem querido retornar aos seus países indica que a pátria pode transformar-se em pesadelo. Kertész traz a ferida do mesmo desabrigo, apesar de continuar vivendo no território em que nasceu:

Después de sobrevivir al campo de concentración, esta persona volvió a aquel país ya no se sabe por qué; por el instinto del perro vagabundo tal vez, pero quizá porque en aquellas fechas – con su cabeza de dieciséis años – consideraba ese sitio su hogar; más tarde , durante la ocupación rusa titulada socialismo, pasó cuarenta años de exilio interior en el mismo lugar para reconocer por fin, después de la primera euforia por el vuelco de 1989, su inalterable extranjería, como si fuera la última estación de un larguísimo viaje, a la cual llegó, de hecho, sin haberse movido de su sitio, geográficamente hablando.30 30 KERTÉSZ, Imre. "Patria, hogar, país" in Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura. Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999,p. 13[ STANDARDIZEDENDPARAG]

E é importante observar que essa noção de exílio interior não tem aqui o apelo à angústia da solidão dos poetas românticos. Trata-se de enxergá-la dentro do espaço de violência dos Estados totalitários. Ainda Kertész:

... existe un país en que nací, cuyo ciudadano soy y, sobre todo, en cuya maravillosa lengua hablo, leo y escribo mis libros; sin embargo, este país jamás ha sido mío; más bien, yo he sido suyo, y durante cuatro décadas demostró ser mucho más cárcel que hogar. 31 31 Op. cit, p. 20

Outra dimensão fraturada na relação entre testemunho e história literária de uma nação, ainda decorrente desses deslocamentos forçados do século XX, é a desfiguração da própria conformação do texto e de sua recepção em relação ao padrão hegemônico do século XIX, do processo de constituição das identidades nacionais. A que leitor dirigem-se esses escritores? Uma análise da perplexidade desta situação do desabrigado pode ser encontrada no ensaio "¿Para quién escribimos nosotros?", de Francisco Ayala32 32 AYALA, Francisco. "¿Para quién escribimos nosotros?" in La estructura narrativa y otras experiencias literarias. Barcelona, Crítica, 1984, pp. 181-204. , outro habitante da Espanha peregrina. De modo mais dramático Max Aub indaga-se em muitos de seus textos sobre sua vida de tantos desabrigos. Nascido na França, pai alemão e mãe francesa, emigrou com a família para a Espanha por causa da perseguição na França aos alemães, no contexto da Primeira Guerra. Ao começar a escrever abandona as línguas da infância, o francês e o alemão, e adota o espanhol. Para apresentar-se como escritor espanhol encontrou com o tempo uma justificativa: "Uno es de donde hace el bachillerato". Terminada a Guerra Civil, sai pelos Pirineus. Vivendo em Paris, como cidadão francês, em 1940 é internado no campo de Vernet, na França, e depois em Djelfa, na Argélia, conseguindo sair para o México, em 1942, onde viveu até sua morte, em 1972. Sua trajetória e suas opções literárias revelam a superposição de deslocamentos. Ao desabrigo da língua soma-se a ausência de seu leitor desejado, pois suas obras não entravam na Espanha, e a localização de origem da matéria de muitos de seus romances, contos, peças de teatro. É do conflito local, da guerra da Espanha, que se revela ao autor o processo histórico de destruição de fronteiras, experiência que não pode partilhar com seus companheiros de sorte, aquela imensa massa de refugiados que se espalhou pelo mundo e pelos campos de concentração ao final da Guerra Civil. A mesma violência atravessa a obra de Semprún. Adotou o francês como língua literária e escreveu A grande viagem quando vivia na condição de clandestino na Espanha. Soube transformar essa ofensa em denúncia da censura franquista, colocando um livro em branco ao lado de várias traduções do texto, quando este ganhou o prêmio Fomentor. Seu primeiro texto escrito em espanhol é de setembro de 2003. Note-se também que a matéria de Rabo de foguete constitui-se da revelação das ditaduras do cone sul: personagens de diferentes nacionalidades coabitam em vários espaços que vão sendo ocupados por militares e serviços de segurança internacionais, ou protegem-se mobilizando organizações internacionais da esquerda. Bonasso também narra a sanha dos militares argentinos caçando montoneros pelas ruas do Paraguai, do México ou da Itália. São enredos de deslocamentos, sem qualquer parentesco com o cânon da literatura de viagem, que transmitem ao leitor a herança do século XX, marcado pelos "refugiados como fenômeno de massa", para Agamben, ou visto como a "era do refugiado", no caso de Said33 33 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. De Pedro Maia Soares. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 47. Agamben, em Medios sin fin. Notas sobre la política (edição já citada, p. 22), desenvolve uma reflexão inquietante sobre a necessidade de repensar os conceitos básicos de constituição do Estado-nação a partir dessa marca de massas de refugiados no século XX. .

Talvez o fato de essa violência de Estado estar na origem da escrita da literatura de testemunho, e na redefinição da identidade dos autores, provoque uma tensão no terceiro elemento da cadeia instituidora da historiografia literária. O estranhamento ou o desabrigo parece afetar, além da língua materna e seu solo, a nação, também o pilar da tradição literária nacional. O horror sem fronteiras parece ter criado uma tradição literária sem fronteiras. Nos textos da literatura de testemunho os autores dialogam entre si, incorporando em suas obras as produzidas por refugiados, banidos e deportados seus contemporâneos ou, no caso dos mais jovens, já se nota o reconhecimento aos que os antecederam, os fundadores. Assim procede, por exemplo, a catalã Montserrat Roig (1946-91), que transforma em personagens de suas obras sobreviventes dos campos franquistas e dos nazistas; ou ainda Juana Salabert (1962), francesa de nascimento que escreve em espanhol. Seu romance Velódromo de invierno estrutura-se em torno de uma menina, filha de espanhóis que conseguira fugir do velódromo, escapando da deportação feita em transporte francês para as câmaras de gás nazistas; em Arde lo que será a protagonista é uma jovem uruguaia, filha de desaparecidos, bebê adotado por um general.

Essa face da modernidade, como ocorreu em relação a outras áreas do conhecimento, propõe à historiografia literária a necessidade de repensar seu tripé fundador – língua, nação, tradição literária naciona– para que a disciplina não contribua com o silêncio sobre a literatura da catástrofe do século XX, diluindo sua especificidade em categorias que a isolem do diálogo com outras obras, outras vozes que elaboram a experiência humana. Basta pensar nos riscos da expressão "literatura do exílio" que pode ocultar a dimensão de violência originária de tantos deslocamentos. Brecht, na sua aguda percepção da barbárie do século, escreveu um poema -"Visita aos poetas banidos"34 34 BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção, tradução e posfácio de Paulo César Souza. 4ª. Ed. São Paulo, Brasiliense, 1990, pp.171-2. . Nos versos, construiu sua tradição literária, abolindo fronteiras de língua e de periodização, e deixou um conselho àqueles que se dispuserem a ouvi-lo.

Quando penetrou em sonho

Na cabana dos poetas banidos, vizinha

À cabana dos mestres banidos (de onde

Ouviu briga e gargalhada), veio-lhe ao encontro

Ovídio, e disse-lhe a meia voz:

"Melhor não sentares. Ainda não morreste. Quem sabe

Ainda não retornas? E sem que nada mude

Senão tu mesmo." Porém, consolo nos olhos

Aproximou-se Po Chu-yi e disse sorridente: "O rigor

Fez por merecer todo aquele que uma só vez deu nome à injustiça."

E seu amigo Tu-fu disse suave: "Compreendes, o desterro

Não é o lugar onde se desaprende o orgulho." Mas, mais terreno

Interpôs-se o maltrapilho Villon, e perguntou: "Quantas

Portas tem a casa onde moras?" E tomou-o Dante pelo braço

E levando-o para o lado murmurou: "Teus versos

Estão cheios de erros, amigo, considera

Quem está contra ti!" E Voltaire berrou de lá:

"Cuida dos tostões, senão te matam de fome!"

"E usa gracejos!", gritou Heine. "Não ajuda",

Esbravejou Shakespeare, "Quando veio Jacó

Também eu não pude mais escrever." – "Se houver processo

Toma um patife como advogado!" Aconselhou Eurípedes

"Pois ele conhece os furos nas malhas da lei." A gargalhada

Ainda soava, quando do canto mais escuro

Veio um grito: "Escuta, sabem eles também

Os teus versos de cor? E eles que sabem

Escaparão à perseguição?" – "Estes são

Os esquecidos", disse Dante em voz baixa

"Foram-lhes destruídos não só os corpos, mas também as obras."

A gargalhada cessou. Ninguém ousou olhar na direção. O recém-chegado

Empalideceu.

  • 2 Remeto o leitor a BEVERLEY, John; ACHUGAR, Hugo (ed.) La voz del otro: Testimonio, subalternidad y verdad narrativa. Número especial da Revista de crítica literária latinoamericana. Año XVIII, no 36, Lima, 2° semestre 1992.
  • SKLODOWSKA, Elzbieta. Testimonio hispano-americano. Historia, teoria, poética. New York, Peter Lang, 1991.
  • 3 Veja-se do referido autor "El otro testimonio" . Revista Iberoamericana, Vol. LIX, nş 164-5, jul-dic. 1993, pp. 497-507.
  • 4 O centro do ensaio está no exame das relações entre a dimensão estética da literatura e a pauta de problemas privilegiada pelos estudos culturais. Veja-se MOREIRAS, A. A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, pp.249-282.
  • 5 SELIGMANN-SILVA, M. " "Zeugnis" e "Testimonio": um caso de intraduzibilidade entre conceitos." in Letras no 22-Literatura e autoritarismo, jan-jun/2001, pp.121-130.
  • 6 Leia-se o ensaio em que Fredric Jameson analisa uma sugestiva aproximação entre o Bildungsroman e o testemunho. JAMESON, F. "De la sustitución de importaciones literarias y culturales en el tercer mundo: el caso del testimonio". in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed) La voz del otro...pp. 117-133.
  • 7 ACHUGAR, H. "Historias paralelas/historias ejemplares: la Historia y la voz del otro." in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed) La voz del otro...p. 53.
  • 8 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991.Trad. Marcos Santarrita, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
  • 9 RAMA, A; AGUIRRE, I; ENZENSBERGER, H. M.;GALICH, M.; JITRIK,N. ; SANTAMARÍA, H. "Conversación en torno al testimonio" in Casa de las americas. Año XXXVI, no. 200, La Havana, julio-septiembre 1995, pp. 122-125.
  • 10 BOSI, A. "A escrita do testemunho em Memórias do cárcere." in Estudos Avançados, Vol. 9, no. 23, jan-abr/1993, pp.309-322.
  • O ensaio foi publicado em livro: BOSI, A. Literatura e resistência São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
  • 11 ADORNO, Theodor. Minima moralia. Trad. Luis Eduardo Bicca. São Paulo, Atica, 1993.
  • ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade" in Prismas Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo, Atica, 1998, pp. 7-26.
  • AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002.
  • AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2000.
  • AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin. Notas sobre la política Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2001.
  • AMÉRY, Jean. Más allá de la culpa y de la expiación. Tentativas de superación de una víctima de la violencia. Trad. Enrique Ocaña. Valencia, Pre-Textos, 2001.
  • ARENDT, Hannah. Eichmann en Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
  • BATAILLE, Georges. La littérature et le mal Paris, Gallimard, 1957.
  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998.
  • BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre Trad. Pierre de la Place. Caracas, Monte Avila, 1990.
  • FELMAN, Shoshana. e LAUB, Dorie. Testimony: literature, psychoanalysis, history Londres, Routledge, 1991.
  • FELMAN, Shoshana. "Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino." in NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação São Paulo, Escuta, 2000, pp. 13-71.
  • KERTÉSZ, Imre. Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999.
  • 12 NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org). Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura. O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, Editora da UNICAMP, 2003.
  • 13 LEVI, P. É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p.24.
  • 15 ANTELME, Robert. La especie humana. Trad. Trinidad Richelet. Madrid, Arena Libros, 2001, p. 11[
  • 19 LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 47.
  • 20 LEVI, P. A trégüa. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.31.
  • 21 Uma análise esclarecedora desse percurso da reflexão de Adorno sobre a questão encontra-se em: GAGNEBIN, J. M. A(im)possibilidade da poesia . Cult, São Paulo, nş. 23, pp.48-51, jun.1999.
  • 23 STEINER, George. Extraterritorial. A literatura e a revolução da linguagem. Trad. Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 17.
  • 27 KERTÉSZ, Imre. Sin destino. Trad. Judith Xantus. Rev. Adan Kovacsics. Barcelona, Acantilado, 2001, p.247[
  • 29 Veja-se STEINER, George . "O milagre vazio" in Linguagem e silêncio. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp.133-147.
  • KLEMPERER, Victor. LTI La langue du III Reich Trad. Élisabeth Guillot. Paris, Albin Michel, 1996.
  • 30 KERTÉSZ, Imre. "Patria, hogar, país" in Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura. Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999,p. 13[
  • 32 AYALA, Francisco. "żPara quién escribimos nosotros?" in La estructura narrativa y otras experiencias literarias. Barcelona, Crítica, 1984, pp. 181-204.
  • 33 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. De Pedro Maia Soares. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 47.
  • 34 BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção, tradução e posfácio de Paulo César Souza. 4Ş. Ed. São Paulo, Brasiliense, 1990, pp.171-2.
  • 1
    Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa que tem apoio do CNPq.
  • 2
    Remeto o leitor a BEVERLEY, John; ACHUGAR, Hugo (ed.)
    La voz del otro: Testimonio, subalternidad y verdad narrativa. Número especial da
    Revista de crítica literária latinoamericana. Año XVIII, no 36, Lima, 2° semestre 1992. SKLODOWSKA, Elzbieta.
    Testimonio hispano-americano. Historia, teoria, poética. New York, Peter Lang, 1991.
  • 3
    Veja-se do referido autor "El otro testimonio" .
    Revista Iberoamericana, Vol. LIX, nº 164-5, jul-dic. 1993, pp. 497-507.
  • 4
    O centro do ensaio está no exame das relações entre a dimensão estética da literatura e a pauta de problemas privilegiada pelos estudos culturais. Veja-se MOREIRAS, A.
    A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, pp.249-282.
  • 5
    SELIGMANN-SILVA, M. " "Zeugnis" e "Testimonio": um caso de intraduzibilidade entre conceitos." in
    Letras no 22-Literatura e autoritarismo, jan-jun/2001, pp.121-130.
  • 6
    Leia-se o ensaio em que Fredric Jameson analisa uma sugestiva aproximação entre o
    Bildungsroman e o testemunho. JAMESON, F. "De la sustitución de importaciones literarias y culturales en el tercer mundo: el caso del testimonio". in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed)
    La voz del otro...pp. 117-133.
  • 7
    ACHUGAR, H. "Historias paralelas/historias ejemplares: la Historia y la voz del otro." in BEVERLEY, J. ACHUGAR, H. (ed)
    La voz del otro...p. 53.
  • 8
    HOBSBAWM, Eric.
    Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991.Trad. Marcos Santarrita, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
  • 9
    RAMA, A; AGUIRRE, I; ENZENSBERGER, H. M.;GALICH, M.; JITRIK,N. ; SANTAMARÍA, H. "Conversación en torno al testimonio" in
    Casa de las americas. Año XXXVI, no. 200, La Havana, julio-septiembre 1995, pp. 122-125.
  • 10
    BOSI, A. "A escrita do testemunho em
    Memórias do cárcere." in
    Estudos Avançados, Vol. 9, no. 23, jan-abr/1993, pp.309-322. O ensaio foi publicado em livro: BOSI, A.
    Literatura e resistência. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
  • 11
    ADORNO, Theodor.
    Minima moralia. Trad. Luis Eduardo Bicca. São Paulo, Atica, 1993. ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade" in
    Prismas. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo, Atica, 1998, pp. 7-26. AGAMBEN, Giorgio.
    Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio.
    Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2000. AGAMBEN, Giorgio.
    Medios sin fin. Notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2001. AMÉRY, Jean.
    Más allá de la culpa y de la expiación. Tentativas de superación de una víctima de la violencia. Trad. Enrique Ocaña. Valencia, Pre-Textos, 2001. ARENDT, Hannah.
    Eichmann en Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. BATAILLE, Georges.
    La littérature et le mal. Paris, Gallimard, 1957. BAUMAN, Zygmunt.
    Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998. BLANCHOT, Maurice.
    La escritura del desastre. Trad. Pierre de la Place. Caracas, Monte Avila, 1990. FELMAN, Shoshana. e LAUB, Dorie.
    Testimony: literature, psychoanalysis, history. Londres, Routledge, 1991. FELMAN, Shoshana. "Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino." in NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio.
    Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000, pp. 13-71. KERTÉSZ, Imre.
    Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura. Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999.
  • 12
    NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org).
    Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000. SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura. O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, Editora da UNICAMP, 2003.
  • 13
    LEVI, P.
    É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p.24.
  • 14
    Op. cit. , p. 26
  • 15
    ANTELME, Robert.
    La especie humana. Trad. Trinidad Richelet. Madrid, Arena Libros, 2001, p. 11[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • 16
    Op. cit., p. 185 e pp. 192-193, respectivamente.
  • 17
    Op. cit., p. 48.
  • 18
    A trilogia a que me refiro já foi citada acima. Esta citação está no primeiro livro, p. 173.
  • 19
    LEVI, P.
    Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 47.
  • 20
    LEVI, P.
    A trégüa. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.31.
  • 21
    Uma análise esclarecedora desse percurso da reflexão de Adorno sobre a questão encontra-se em: GAGNEBIN, J. M. A(im)possibilidade da poesia .
    Cult, São Paulo, nº. 23, pp.48-51, jun.1999.
  • 22
    No livro, como correspondente da revista
    New Yorker, a autora narra o julgamento deste homem ocorrido em 1961 e partilha conosco sua perplexidade perante uma pessoa que fala da perseguição aos judeus, das deportações, dos campos de concentração e da solução final como se falasse de qualquer ação do Estado, como se falasse de políticas de abastecimento, de transporte, de educação. Essa banalização leva-a a observar que nos projetos e nas ações que promoveram a ascensão do Estado liderado por Hitler, a questão dos judeus, como tudo, era racionalmente administrada. Não só os fornos crematórios eram uma máquina da morte. A discriminação, a remoção, o confinamento, o confisco de bens e a execução de judeus, mas não só deles, parecem ser meros procedimentos administrativos programados com racionalidade, com complexos cronogramas. E, como estavam em pauta assassinatos, a produção da morte pode ser descrita com sintaxe expositiva, pode gerar arquivos de fichas, pode traduzir-se em tabelas de quantificação e, sobretudo, pode ter sua eficácia avaliada. A expressão "massacres administrativos" está na página 311. Tomei a liberdade de usá-lá no singular.
  • 23
    STEINER, George.
    Extraterritorial. A literatura e a revolução da linguagem. Trad. Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 17.
  • 24
    Op. cit, p.9.
  • 25
    Op. cit, p. 15.
  • 26
    Op;. cit, p. 9.
  • 27
    KERTÉSZ, Imre.
    Sin destino. Trad. Judith Xantus. Rev. Adan Kovacsics. Barcelona, Acantilado, 2001, p.247[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • 28
    Op. cit., p. 127 e 125, respectivamente
  • 29
    Veja-se STEINER, George . "O milagre vazio" in
    Linguagem e silêncio. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp.133-147. KLEMPERER, Victor.
    LTI La langue du III Reich. Trad. Élisabeth Guillot. Paris, Albin Michel, 1996.
  • 30
    KERTÉSZ, Imre. "Patria, hogar, país" in
    Un instante de silencio en el paredón. El holocausto como cultura. Trad. Adan Kovacsics. Barcelona, Herder, 1999,p. 13[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • 31
    Op. cit, p. 20
  • 32
    AYALA, Francisco. "¿Para quién escribimos nosotros?" in
    La estructura narrativa y otras experiencias literarias. Barcelona, Crítica, 1984, pp. 181-204.
  • 33
    SAID, Edward.
    Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. De Pedro Maia Soares. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 47. Agamben, em
    Medios sin fin. Notas sobre la política (edição já citada, p. 22), desenvolve uma reflexão inquietante sobre a necessidade de repensar os conceitos básicos de constituição do Estado-nação a partir dessa marca de massas de refugiados no século XX.
  • 34
    BRECHT, Bertolt.
    Poemas 1913-1956. Seleção, tradução e posfácio de Paulo César Souza. 4ª. Ed. São Paulo, Brasiliense, 1990, pp.171-2.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2004
    • Data do Fascículo
      2004
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br