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Doação de órgãos para transplantes no Brasil: o que está faltando? O que pode ser feito?

EDITORIAL

Doação de órgãos para transplantes no Brasil: o que está faltando? O que pode ser feito?

Orlando de Castro e Silva; Fernanda Fernandes Souza; Priscila Nejo

Divisão de Cirurgia Digestiva do Departamento de Cirurgia e Anatomia e Grupo Integrado de Transplante de Fígado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

O problema fundamental na moderna prática de transplante de órgãos é a impressionante disparidade entre o número de pacientes potencialmente tratáveis com a doação de enxertos viáveis e a mesma impressionante escassez de órgãos, sobretudo em nosso país. O que está faltando para equacionar-se este problema de maneira a resolvê-lo de forma eficaz? É preciso tornar todo o processo de transplante efetivo, trazendo esperança a tantos enfermos à espera de terapêutica pretensamente curativa, pela substituição de um órgão para doenças terminais.

O transplante é indicação terapêutica eficaz nas alterações irreversíveis do rim, coração, fígado, pulmões e pâncreas. Os pacientes em estados terminais da função renal e endócrina do pâncreas têm alternativa terapêutica ao transplante: diálise e administração exógena de insulina, respectivamente. Já os em estados terminais da função cardíaca, hepática ou pulmonar têm como única opção a substituição do órgão doente. Como causa da falência estão doenças muito comuns na população brasileira como: diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, doença hepática alcoólica, e as hepatites virais 1,3,5.

Diante deste cenário constata-se no Brasil de um lado a grande demanda de pacientes à espera por um transplante, e de outro, as doações e o aproveitamento de órgãos aquém das necessidades das grandes filas de espera. Adicionalmente, é importante ressaltar que a efetivação do transplante de órgãos está diretamente relacionada com o processo de doação e em nosso país, nos casos de transplante de fígado, quase que totalmente dependente do doador de órgãos de falecidos. Vale ressaltar que até o final do terceiro trimestre de 2010, dos 1059 transplantes de fígado realizados no Brasil, apenas 7% ocorreram com doadores vivos (intervivos)4. Depreende-se, portanto, a fundamental importância do doador falecido para transplante de fígado em adultos, pois para a criança, pela escassez de doadores falecidos de baixa idade, o doador vivo relacionado surge como melhor opção alternativa3.

No Brasil, as duas modalidades de transplantes de órgãos sólidos que melhor evoluíram foram as de rim e fígado. Após difícil fase inicial de implantação - décadas de 60 e 80 respectivamente com estabelecimento e padronização de técnicas operatórias, novas drogas imunossupressores, aprendizado do manuseio clínico e adequação da logística de todo processo de transplante -, nos anos 90 o ritmo de crescimento dessas duas modalidades se deu bem. Outros também evoluíram como os do coração, pâncreas, pâncreas-rim, pulmões e intestino3,4.

O Brasil, com sua dimensão continental e apresentando causas externas como principal fator de mortalidade em adultos jovens2, durante os anos 2000 não apresentou aumento no número de transplantes, particularmente no de rins (18,2 por milhão de população - pmp - em 2005 para 24,4 pmp em 2010) e fígado (5,2 pmp em 2005 para 7,4 pmp em 2010). Atualmente, contando o país com 190 milhões de habitantes e possuindo alto potencial transplantador, mais da metade dos estados não fazem transplantes em geral, particularmente o de fígado. São estados do centro-oeste, norte e a maioria dos do nordeste4.

É interessante notar que os grupos de transplantadores foram se instalando em nosso país seguindo a mesma rota de sua colonização, do leste para o centro-oeste, interior. Mesmo assim, nos estados da federação que o fazem, sua realização não é distribuída de forma homogênea, havendo grande heterogeneidade de números, sobretudo quando se normaliza o número de procedimentos por milhão de população. Isto se deve à inexistência, ainda, de política nacional no que diz respeito tanto à doação de órgãos como também estímulo à formação de equipes transplantadoras, que na maioria das vezes vão se formando por esforço individual de pessoas.

O estado de São Paulo realiza mais da metade dos transplantes de fígado feitos no país (17,8 pmp) enquanto que o Brasil, como um todo, atinge em 2010 a marca de 7,4 pmp, com variação de 2,4 (Bahia) a 17,8 pmp (São Paulo) incluindo aí também os vários estados da federação que não realizam o procedimento. O estado de São Paulo atinge índices muito semelhantes aos da grande maioria dos estados americanos e da média dos Estados Unidos que é de 17,9 pmp. A Espanha, com política bem organizada de doação de órgãos e de transplantes, realiza mais de 35 transplantes de fígado pmp, ao ano, bem acima da marca registrada pela média brasileira1,3,4.

Em um país das dimensões do Brasil esse pequeno crescimento no número de transplantação tem como fatores limitantes desde a não concordância da família até as condições hospitalares de manutenção do doador. Ao analisar-se em separado o estado de São Paulo, o número de potenciais doadores é de 63 pmp, enquanto o número de doadores efetivos cai para 21,3 pmp. Os números, apesar de muito aquém dos da Espanha (34 a 37pmp) se aproximam dos apresentados por países da Europa e dos Estados Unidos. Entretanto, no Brasil como um todo, o número de potenciais doadores é de 36,4 pmp, enquanto o de efetivos cai para 10 pmp, uma realidade bem menos animadora que nos distancia dos países do primeiro mundo. As diferenças observadas no número de transplantes - que nada mais são que reflexo da doação de órgãos -, se devem menos às negativas das famílias (20 a 25%) do que a outros fatores, direta ou indiretamente ligados à problemas estruturais de hospitais que apresentam sérias dificuldades em manter doadores viáveis para terem seus órgãos transplantados3,4.

Depreende-se a necessidade da conjunção de fatores (Figura 1) para que o número efetivo de doações aumente, usando órgãos de boa qualidade. Dentre eles é necessário o bom funcionamento das comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos para transplante (CIHDOTT) em todos os hospitais com mais de 80 leitos em cumprimento ao que refere a Portaria 1752 de 23 de setembro de 2005, publicada no Diário Oficial da União Nº 186 – Seção I de 27/09/2005. Adicionalmente, é imperioso que haja melhora das estruturas hospitalares para manutenção dos doadores em hospitais de cidades de médio porte. Também, precisa existir: a) aumento de equipes especializadas e descentralizadas na procura de órgãos; b) capacitação de profissionais locais para realização de captações; c) incentivo na formação de equipes transplantadoras nas regiões do país atualmente não captadoras e transplantadoras, e d) descentralização das CNCDOs com criação de CNCDOs regionais em estados populosos atendendo a Portaria 2.660 de 21 de outubro de 2009 do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde.


Assim, deve haver efetivo envolvimento das instituições que formam os pilares de todo o processo do transplante: poder público, hospitais, profissionais de saúde e sociedade. Acredita-se que, desta forma, o objetivo de transformar as listas de espera na realidade do transplante, condizente com o potencial deste país, possa ocorrer já em 2011.

  • 1. Berenguer, J, Parrilla, P. Trasplante Hepático.Elsevier Espanã,Barcelona,2 Ed 2008.p.571
  • 2
    Informações de Saúde.Data SUS.disponível em:www://tabnet.datasus.gov.br Acesso em 27/12/2010.
  • 3. Killenberg PG, Clavian PA. Liver Transplant Patient.Total,intra and post-operative management.Blackwell Publishing,Massachusetts.3 Ed.2006,p.597
  • 4. Registro Brasileiro de Transplantes.XXI:2,jan/set,41-6.2010.disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 86502006000700003&lng=en&nrm=iso&tlng=em Acesso em 27/12/2010
  • 5. Teixeira AC, Souza FF, Mota GA, Martinelli ALC, Sankarankutty AK, Castro e Silva O. Liver transplantation: expectation with MELD score for liver allocation in Brazil. Acta Cir Bras. [serial on the Internet] 2006;21 Suppl 1. Available from URL: http://www.scielo.br/acb

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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