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Colite por Clostridium difficile e Citomegalovirus após cirurgia báriatrica: relato de caso

CARTA AO EDITOR

Colite por Clostridium difficile e Citomegalovirus após cirurgia báriatrica: relato de caso

Ana Carolina Peçanha Antonio; Juçara Gasparetto Maccari; Arthur Seabra; Tulio Frederico Tonietto

Trabalho realizado no Hospital Moinhos de Vento, Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência Correspondência: Ana Carolina Peçanha Antonio E-mail: ana.carolina.antonio@gmail.com

INTRODUÇÃO

Doença crítica crônica é melhor definida como dependência prolongada da unidade de terapia intensiva e/ou da ventilação mecânica, englobando processos fisiopatológicos não bem compreendidos que afetam a consciência, a respiração, a nutrição, a função neuromuscular e hormonal do paciente. Tornou-se problema crescente nos sistemas de saúde ao redor do mundo, devido aos custos excessivos e a sobrecarga que gera sobre os cuidadores e familiares15. Diarreia associada a Clostridium difficile tem sido considerada uma das infecções nosocomiais mais prevalentes4. Infecção por Citomegalovírus é causa importante de morbimortalidade entre pacientes imunocomprometidos em contextos como transplante de órgãos, doença hematológica maligna, SIDA e doença inflamatória intestinal complicada21. Da mesma maneira, co-infecção por Clostridium difficile e Citomegalovírus tem sido relatada particularmente nestes cenários. Descreve-se um caso único de infecção concomitante em paciente doente crítico crônico sem outras condições imunossupressoras prévias.

RELATO DE CASO

Paciente feminina, 37 anos, obesa mórbida, sem qualquer outra comorbidade de base, foi admitida à unidade de terapia intensiva no período pós-operatório imediato de bypass gástrico em Y-de-Roux por via laparoscópica. No 4º dia de pós-operatório, ela foi submetida à laparotomia exploradora de urgência devido à deiscência anastomótica de intestino delgado, resultando em choque séptico e disfunção de múltiplos órgãos, que foram brevemente revertidos. Traqueostomia foi realizada após duas falhas nos testes de ventilação espontânea e 10 dias de ventilação mecânica. A paciente evoluiu com longa permanência na unidade de terapia intensiva, requerendo nutrição parenteral prolongada, terapia de substituição renal, corticoterapia em doses de estresse e múltiplos esquemas antimicrobianos em decorrência de várias complicações infecciosas – abscessos intra-abdominais, pneumonia associada a ventilação mecânica e infecção de corrente sanguínea/relacionada a cateter -, além de curto curso de corticóide em altas doses para tratamento de DRESS (drug rash with eosinophilia and systemic symptoms syndrome).

Posteriormente, ela foi submetida ao tratamento com dispositivo de curativo a vácuo para fistula enterocutânea. Após dois meses da admissão, a paciente passou a apresentar diarreia líquida de grande volume – aproximadamente quatro litros por dia -, com piora marcada pela dieta enteral. Também havia queixa de dor abdominal constante. O quadro culminou com febre e instabilidade hemodinâmica. Exames laboratoriais evidenciaram leucocitose e níveis elevados de proteína C reativa. A pesquisa de leucócitos fecais e de toxinas A/B para Clostridium difficile foram positivas.

Dada a gravidade das manifestações clínicas, foi administrada vancomicina por via oral e metronidazol por via intravenosa. Não houve melhora após duas semanas de tratamento: houve persistência de diarreia líquida profusa bem como de sinais inflamatórios sistêmicos da doença. Nutrição parenteral total foi então instituída novamente. Os achados à tomografia computadorizada de abdome e pelve foram inexpressivos. Por conseguinte, a paciente foi submetida a colonoscopia, que revelou colite difusa e ileíte terminal, sem pseudomembranas. O exame anatomopatológico mostrou inúmeras úlceras e microabscessos crípticos, além de inclusões nucleares em células endoteliais e da mucosa sugestivas de efeito citopático viral (Figura 1). Antigenemia para Citomegalovírus foi positiva (57 células por 200 000 leucócitos) e títulos de anticorpos IgG para Citomegalovírus foram elevados (1:800). Sorologias para hepatites B, C e HIV foram repetidamente negativas. Foi iniciado ganciclovir, posteriormente substituído por foscarnet em função do desenvolvimento de agranulocitose pela primeira droga.


A condição clínica global da paciente melhorou progressivamente, havendo remissão completa após seis semanas de tratamento. Ela recebeu alta da unidade de terapia intensiva em uma semana e recuperou seu estado físico, respiratório e mental depois de dois meses de internação na enfermaria.

DISCUSSÃO

Foram realizadas estratégias de busca em inglês por outros relatos de caso descrevendo infecção simultânea por Clostridium difficile e Citomegalovírus nas bases de dados do PubMed/Medline, Lilacs e Embase como mostrado na Tabela 1.

Doença crítica crônica consome grande percentual dos recursos da unidade de terapia intensiva e seus custos sociais avultam com o aumento da incidência desta síndrome e de todos os gastos para com o tratamento intensivo. Esses pacientes representam um grupo muito singular constantemente exposto a quebras de barreiras, tais como implantes de catéteres intra-venosos e ulcerações de pele, e a patógenos virulentos e multirresistentes. Além disso, postula-se o desenvolvimento da "exaustão imune" como consequência da dependência funcional, desnutrição e múltiplas infecções15,20. Clostridium difficile é causa frequente de diarreia nosocomial e problema crescente particularmente em pacientes hospitalizados recebendo antibacterianos. Idade, presença de comorbidades e limitação funcional são fatores de risco bem conhecidos, e o fator de risco modificável mais importante é a exposição a agentes antimicrobianos, uma vez que suprimem a flora intestinal normal. Cirurgia do aparelho digestivo tem sido reconhecida como um insulto adicional4. Colite por Citomegalovírus não é entidade clínica comum e resulta da reativação do vírus e não de sua infecção primária e, portanto, anticorpos IgG estarão presentes9. O mecanismo preciso através do qual infecção por Citomegalovírus contribui para desfechos em doentes críticos não está completamente definido. Como temida ameaça em centros de transplante e clássico agente oportunista em portadores de HIV, o vírus também tem sido associado a piores desfechos em população criticamente doente não imunocomprometida3,8,10,21. Um estudo caso-controle demonstrou prevalência de antigenemia para Citomegalovírus de 17% entre 237 doentes críticos, e relacionou este dado com a insuficiência renal e uso de corticóides8. Outro estudo observacional detectou o DNA do vírus em 35% dos pacientes que permanecem na unidade de terapia intensiva por pelo menos 14 dias, e infecção ativa ocorreu em 56% do subgrupo de indivíduos soropositivos21. Existe correlação de infecção por Citomegalovírus e internação prolongada, maior duração de ventilação mecânica, altas taxas de infecções nosocomiais e maior mortalidade8,21. Duas revisões sistemáticas sobre o papel da infecção ativa por Citomegalovírus em pacientes críticos não puderam estabelecer relação de causa-efeito entre o vírus e mortalidade10,17. Não obstante, dados cumulativos sugerem sua frequente ocorrência neste contexto e, considerando o grande número de indivíduos necessitando de cuidados intensivos, o impacto desta infecção sobre estes pacientes pode ser igual ou potencialmente maior que em outros grupos de imunocomprometidos reconhecidamente com risco para tal. Infecção por Citomegalovírus também apresenta efeitos imunomodulatórios e tem sido descrita como fator de risco independente para o desenvolvimento de disordens linfoproliferativas pós-transplante, infecções fúngicas invasivas e bacteremia, contudo não particularmente diarréia associada a Clostridium difficile. Fatores de risco sobrepõem-se parcialmente para as duas infecções. Encontrou-se 11 relatos de casos sobre ocorrência simultânea de colite por Clostridium difficile e Cytomegalovirus, todos, à exceção de dois, em pacientes gravemente imunossupressos (Tabela 2)1,2,5,6,7,12,13,14,16,18,19. Os autores invariavelmente descrevem cenário de diarreia refratária e sepse persistente após o manejo apropriado. Entre os 12 pacientes incluídos nesta revisão, apenas dois eram previamente hígidos e nunca haviam sido admitidos à unidade de terapia intensiva até o diagnóstico. Três dos quatro indivíduos que faleceram eram receptores de órgãos transplantados. Todos os casos foram publicados após 2000, provavelmente refletindo maiores taxas de sucesso em transplantes de órgãos, a emergência de cepas mais virulentas de Clostridium difficile após 200111 e o crescente aumento da suspeição diagnóstica para ambas as infecções. Muitos médicos interrompem sua busca por patógenos quando o diagnóstico é feito, esquecendo que supressão imune é um fator de risco comum para ambas as entidades. Sugere-se a realização de biópsias colônicas em pacientes portadores de colite por Clostridium difficile refratária. Entre os dois agentes, Citomegalovírus é o mais frequentemente esquecido porque biópsia é necessária para confirmar a fonte intestinal de infecção6.

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há

Recebido para publicação: 30/04/2012

Aceito para publicação: 11/12/2012

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  • Correspondência:
    Ana Carolina Peçanha Antonio
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013
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