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Multiplicando os agentes do mundo: Gabriel Tarde e a sociologia infinitesimal

RESENHAS

Multiplicando os agentes do mundo: Gabriel Tarde e a sociologia infinitesimal

Eduardo Viana Vargas

Gabriel TARDE. Monadologia e sociologia. Tradução de T. S. Themudo. Petrópolis, Vozes, 2003. 110 páginas.

Que coisa bizarra ler Tarde hoje!

Afinal, a história canônica da disciplina narra que uma das clivagens decisivas para o advento da sociologia se processou em torno de um confronto desigual entre um ancião e um cadete: Gabriel Tarde (1843-1904), expoente maior da sociologia francesa do final do século XIX, professor do Collège de France e membro da Académie, autor de inúmeros livros e artigos publicados na França e em vários outros países, e Émile Durkheim (1858-1917), professor emergente de universidade de província (Bordeaux), que vira seus primeiros trabalhos serem objeto de fria acolhida. Já no início do século XX, no entanto, o quadro havia mudado completamente: o cadete bateu o ancião e venceu essa "batalha inaugural" (Balandier, 1999). A partir de então, Durkheim entrou para a historia como pai fundador da sociologia científica, enquanto Tarde foi neutralizado como mero precursor da disciplina.

Jurista de formação e profissão, Tarde foi, talvez, o mais filósofo dos sociólogos, ou o mais sociólogo dos filósofos, precisamente no momento em que a sociologia emergente procurava se livrar de vez das trevas da metafísica. Embora jamais tenha sido considerado um autor maldito, sua obra nunca se encaixou muito bem em nenhuma das correntes de pensamento em voga durante sua existência, nem parece ter fomentado, de modo inequívoco, quaisquer correntes de pensamento que surgiram após seu desaparecimento, um século atrás.

Valerá então a pena levar Tarde a sério?

Desde quando se inaugurou, com a epistemologia, a grande partilha entre ciência e ideologia, desde quando se replicou essa partilha, convencendo-nos, com as ciências humanas, da diversidade sociocultural e, com as outras ciências, da univocidade da natureza, enfim, desde quando se começou a levar a sério o desencantamento do mundo e seus avatares contemporâneos – a objetividade científica, a eficácia técnica e o cálculo econômico –, a resposta tem sido um inequívoco não. Seu pensamento já foi definitivamente ultrapassado. Dar-lhe atenção, portanto, é pura perda de tempo ou, numa palavra, é ridículo.

Temo, no entanto, que, ao desprezarmos sumariamente autores ou idéias tidos por "ultrapassados", tenhamos, de fato, reproduzido muito cândida e apressadamente uma autocomplacente e duvidosa hierarquia de autores e idéias "maiores" e "menores"; que, com o silêncio obtuso com que (nos) guardamos (de) autores e idéias "menores", não tenhamos feito mais do que reproduzir uma operação de denegação seletiva de pontos de vista que escapam ao mainstream da teoria social por se constituírem contra ou fora dele; enfim, que tenhamos feito da impossibilidade de se contrapor ao que se ganhou até o momento o que tem sido perdido pelo caminho um dos efeitos mais duradouros e daninhos da batalha pelo avanço do conhecimento. Em suma, talvez a renúncia em levar a sério autores e idéias "menores" só sirva de alento para quem tem medo do ridículo. Mas o medo do ridículo não é, como precisamente afirma Tarde (p. 58), "o mais antifilosófico dos sentimentos"? (Cf. Vargas, 1995 e 2001; Alliez, 2001; Latour, 2001; Martin, 2001).

O volume em questão, com uma tradução feita por Tiago Themudo do mais ousado ensaio de Tarde, atualiza essa discussão ao atenuar as dificuldades de acesso do público leitor de português à sua obra. Esse acesso permanece, não obstante, precário: nas livrarias do ramo é possível encontrar apenas mais um outro trabalho de Tarde traduzido para nossa língua, A opinião e as massas; mais do que isso, só mesmo em sebos ou bibliotecas, onde talvez se encontrem exemplares de uma antiga tradução brasileira de Criminalidade comparada e de uma precária tradução portuguesa de As leis da imitação. De fato, na ausência de esforços editorais suficientemente atrevidos para levar adiante a empreitada, um século depois do desaparecimento de Tarde praticamente todos os seus trabalhos restam por traduzir.

De todo modo, embora curto, se comparado aos trabalhos mais conhecidos de Tarde (Les lois de l'imitation, de 1890, La logique sociale, de 1895, e L'opposition universelle, de 1897), Monadologia e sociologia é um texto fundamental para se entender a perspectiva do autor. Originalmente publicado como "Les monades et la science sociale" na Revue Internationale de Sociologie, em 1893, "Monadologie et sociologie" foi publicado pela primeira vez com esse título pelas Éditions Sorck et Masson em 1895, na coletânea de artigos de Tarde intitulada Essais et mélanges sociologiques e, mais de um século depois, como um volume separado editado por Les mpecheurs de Penser en Rond, que serviu de base para a tradução em pauta. Retomando pontos anteriormente avançados em ensaios de juventude (notadamente em "La variation universelle" e em "Les possibles", ambos de 1874), Monadologia e sociologia avança de modo inequívoco os princípios filosóficos que sustentam a singular teoria sociológica proposta por Tarde.

Desde o início de Monadologia e sociologia, a surpresa é inevitável: em vez de fazer a sociologia surgir de uma ruptura radical com a filosofia, Tarde busca na filosofia os princípios ontológicos de um "ponto de vista sociológico universal" (p. 58). Para tanto, ele convoca uma intrincada noção: "as mônadas, filhas de Leibniz" (p. 19). Em Leibniz (1714), as mônadas são as partículas elementares, as substâncias simples de que os compostos são feitos. Elas são, portanto, diferenciadas (dotadas de qualidades que as singularizam umas em relação às outras) e diferenciantes (animadas por uma potência imanente de mudança contínua ou de diferenciação). Além disso, ou por isso mesmo, elas dizem respeito às nuances ao infinitamente pequeno, ao infinitesimal que constitui toda (a) diferença. A hipótese das mônadas implica, portanto, a afirmação da diferença como fundamento da existência e, conseqüentemente, a renúncia ao dualismo cartesiano entre matéria e espírito e àqueles que lhe são correlatos – particularmente o dualismo natureza/sociedade tão caro a Durkheim, que lhe confere proporções ontológicas no postulado do homo duplex.

O que Tarde propõe, no entanto, é uma "monadologia renovada" (p. 46), vale dizer, uma teoria social que retenha, de Leibniz, o princípio da continuidade (que fundamenta o cálculo infinitesimal) e o dos indiscerníveis (ou da diferença imanente), e que abra mão dos princípios da clausura e da razão suficiente (em suma, da hipótese de Deus) em que Leibniz havia encerrado as mônadas. Nem absolutamente espirituais, nem integralmente materiais, em Tarde as mônadas não são, como em Leibniz, as substâncias simples que entram nos compostos: "esses elementos últimos aos quais toda ciência chega – o indivíduo social, a célula viva, o átomo químico – somente são últimos ao olhar de sua ciência particular", afirma Tarde (p. 23), "eles mesmos são compostos", compostos até o infinitesimal. Tarde rompe a clausura das mônadas leibnizianas da mesma forma que os cientistas haviam quebrado o átomo: se os átomos são turbilhões, as entidades finitas não constituem totalidades sui generis, mas integrações de diferenças infinitesimais, no sentido emprestado ao termo pelo cálculo infinitesimal (pp. 23-24). As mônadas são composições elementares infinitesimais, o que faz de "todo fenômeno [...] uma nebulosa de ações emanadas de uma multiplicidade de agentes que são como pequenos deuses invisíveis e inumeráveis" (p. 55). Para Tarde, portanto, os "verdadeiros agentes seriam [...] esses pequenos seres que dizemos ser infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos ser infinitesimais" (p. 27, g.a.). Surpreendentemente, é em pleno desenvolvimento da ciência que Tarde vai encontrar esses pequenos deuses se atualizando, pois, para ele, o que a ciência tem feito, "a despeito dos próprios cientistas" (p. 19), não é exorcizar as mônadas, mas acolhê-las em seu âmago, procurando por toda parte no pequeno a resposta para o grande, vale dizer, pulverizando o universo e multiplicando indefinidamente os agentes infinitesimais do mundo (p. 31).

Mas, nesse passo, a ciência "termina necessariamente espiritualizando sua poeira" (p. 45) e unificando a dualidade cartesiana entre matéria e espírito num "psicomorfismo universal" (p. 32), ajuíza Tarde. É nesse sentido que o monismo preconizado por Tarde é vitalista e se define pela atribuição de um estatuto ontológico à crença e ao desejo, os quais ele concebe como potências imanentes às mônadas, e não como estados mentais dos sujeitos cognoscentes (pp. 33ss.). Não há nada de antropomórfico nessa hipótese, afirma Tarde, pois a crença e o desejo têm esse privilégio único de comportar estados inconscientes (p. 35), estando para as representações e as sensações como o espaço e o tempo estão para a matéria: eles conformam seu exterior (p. 33). Daí o equívoco em nossa tendência a desconsiderar os variados graus de crença e de desejo ao nos limitarmos a apreciar a crença em termos de crença ou descrença e o desejo em termos de desejo ou ausência de desejo (p. 33). As mônadas abertas por Tarde não são elementos substanciais extrínsecos uns aos outros, mas esferas de ação que se interpenetram; não são microcosmos, mas meios universais: a atividade é a essência da mônada, e cada mônada é integralmente lá onde ela age (p. 47). Para Tarde, as mônadas só não são integralmente materiais porque as crenças e os desejos lhes são imanentes, e o que nos impede de levar a sério a hipótese das mônadas é o preconceito antropocêntrico "que sempre nos faz crer [sermos] superiores a tudo" (p. 41), ou que nos faz julgar "os seres tanto menos inteligentes quanto menos os conhecemos" (p. 43).

Por isso mesmo esse preconceito é inseparável da "tendência inexplicável a imaginar homogêneo tudo aquilo que ignoramos" (p. 69) ou do preconceito que consiste em "crer que o desconhecido é indistinto, indiferenciado, homogêneo" (p. 43), "que o resultado é sempre mais complexo do que suas condições, a ação mais diferenciada do que os agentes", enfim, tal como na fórmula popularizada após Spencer, que "a evolução universal é necessariamente uma marcha que vai do homogêneo ao heterogêneo, uma diferenciação progressiva e constante" (p. 66). Contra essa tendência e esses preconceitos, a hipótese das mônadas é miriateísta (p. 45), pois elas são, por definição, multiplicidades (Lazzaratto, 1999, p. 128). É que Tarde concebe o real não como pleno, muito menos como marcado pelo signo da falta, mas em excesso. Como escreveu em "Les possibles", toda realidade envolve "um excesso de potência sobre o ato" (1874, pp. 14-15, grifos do autor), vale dizer, um conjunto de possíveis que é imanente ao real, embora não se confunda com ele.

É por conta disso que Tarde se recusa a tomar como dado aquilo é preciso explicar, a saber, a semelhança ou a identidade. Para ele, "partir da identidade primordial significa supor como origem uma singularidade prodigiosamente improvável, [...] o inexplicável mistério de um único ser simples, posteriormente dividido não se sabe porque" (p. 70). Se for assim, indaga Tarde, como é possível explicar a inovação? A produção do novo deixa de ser misteriosa, no entanto, se "tudo parte do infinitesimal e a ele tudo retorna" (p. 26), se "a diferença vai diferindo" (p. 66) e se "existir é diferir" (p. 70), assevera Tarde. Nesse caso, porém, uma outra questão se apresenta: se "a identidade é apenas um mínimo, não passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença" (p. 70, grifo do autor), como dar conta de sua ocorrência? Para Tarde, o que explica "a tendência das mônadas a juntarem-se" é que "sozinha [...] uma mônada não pode nada" (p. 58), sendo a similitude o resultado do triunfo de certas mônadas sobre outras.

De fato, o efetivo desafio levantado pela hipótese das mônadas é que ela "coloca, ou parece colocar, tanto ou mais complicação na base dos fenômenos do que em seu cume" (p. 65), já que, afirma Tarde, "no fundo de cada coisa, há toda coisa real ou possível" (p. 48). Isso quer dizer que nem a sociedade constitui uma ordem mais alta e complexa que a dos indivíduos, nem os indivíduos são o fundamento das sociedades: indivíduos e sociedades, como células e átomos, são todos compostos e, como tais, imediatamente relacionais. Mas isso supõe "que toda coisa seja uma sociedade" (p. 49) [no original: "que toute chose est une société, que tout phénomène est un fait social" – a última frase foi omitida na tradução], ou que social seja um termo aplicável a qualquer modalidade de associação (Latour, 2001). Quão longe estamos de Durkheim, que preconizava constituir a sociologia como ciência autônoma tratando os fatos sociais como coisas! Para Tarde e o "ponto de vista sociológico universal", os abismos entre natureza e sociedade e entre os seres vivos e os seres inorgânicos não são instransponíveis (p. 51), pois as "aptidões características são, ao mesmo tempo, o primeiro termo da série social e o último termo da série vital" (p. 75), enquanto o protoplasma, último termo da série vital, é o primeiro da série química, que, por sua vez, encontra no átomo seu termo final. Seu termo final? "Não", afirma Tarde, "pois o átomo mais simples é [...] um turbilhão [...], um ritmo vibratório de um determinado gênero, algo de infinitamente complicado" (p. 75).

Se for assim, em que consiste a diversidade, ou o que é a sociedade senão a "posse [possession] recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um" (p. 85)? Como notou Latour (2001), "ter ou não ter, esta é a questão" em Tarde, pois, se "existir é diferir", é a possessão que nos leva de uma existência à outra, de uma diferença à outra. De onde decorre talvez a mais audaciosa de suas proposições (pp. 86ss.), aquela que preconiza "abandonarmos o conceito irremediavelmente solipsista de Ser e recomeçarmos a metafísica a partir do Ter (ou Haver: Avoir), no que este implica de transitividade intrínseca, de abertura originária a uma exterioridade" (Viveiros de Castro, 2003, p. 17). A renúncia à metafísica do Ser – ou à ontologia – em favor de uma metafísica do Ter exige, portanto, uma mudança radical: em vez de buscar a essência identitária dos entes, cabe defini-los por suas propriedades diferenciais e por suas zonas de potência, pois, se "toda possibilidade tende a se realizar, [se] toda realidade tende a se universalizar", é porque toda mônada é ávida, todo infinitesimal ambiciona o infinito (pp. 97ss).

Enfim, o que Tarde propõe é que levemos a sério a noção de infinitesimal e o que ela implica: considerar a diferença como relação (e vice-versa) e não como termo (ou unidade discreta), como dinamismo de uma potência e não como atributo de uma essência. Trata-se, com Tarde, de cultivar a possibilidade de uma teoria social que ponha em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o contínuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estados permanentes como agenciamentos transitórios de processos em devir (e não o contrário), com bem notou Milet (1970, pp. 158-159).

De fato, tudo isso soa muito bizarro, mas será o medo do ridículo suficientemente forte para manter enterrados os fantasmas de idéias, ou ainda somos capazes de atualizar as potências da imaginação? No centenário da morte de Tarde, talvez esse tenha sido seu maior legado: Hypotheses fingo.

BIBLIOGRAFIA

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EDUARDO VIANA VARGAS é professor de Antropologia da UFMG, coordenador do LACS (Laboratório de Antropologia do Corpo e da Saúde) e editor da revista Teoria e Sociedade. E-mail: evvargas@fafich.ufmg.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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