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Facções prisionais em dois territórios fronteiriços

Prison factions in two border territories

Resumo

O texto analisa de um ponto de vista comparativo as dinâmicas criminais que ocorrem em fronteiras caracterizadas pela presença de grupos brasileiros de base prisional na operacionalização do comércio transnacional de cocaína. Trata-se dos resultados de investimentos de pesquisa qualitativa desenvolvidos entre 2013 e 2018, na região da fronteira entre Brasil e Paraguai e da fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. As áreas estudadas são espaços alcançados por mercados ilegais e dinâmicas criminais transfronteiriças que têm sofrido importantes transformações, sobretudo em decorrência do protagonismo assumido por grupos brasileiros que aprenderam maneiras de atuar para a movimentação de mercados ilegais transnacionais, preservando estratégias que marcam sua história de base prisional e atuação em periferias urbanas.

Palavras-chave:
Mercados ilícitos; Dinâmicas criminais; Fronteira; Prisão; Violência

Abstract

The text analyzes from a comparative point of view the criminal dynamics that occur at borders characterized by the presence of Brazilian prison-based groups in the operationalization of the transnational cocaine trade. These are the results of qualitative research investments developed between 2013 and 2018, in the region of the border between Brazil and Paraguay and the border between Brazil, Peru and Colombia. The areas studied are spaces reached by illegal markets and cross-border criminal dynamics that have undergone important transformations, especially as a result of the leading role assumed by Brazilian groups that have learned ways to act to move illegal transnational markets, preserving strategies that mark their base history prison and acting in urban peripheries.

Keywords:
Illicit markets; Criminal dynamics; Border; Prison; Violence

O artigo busca analisar as dinâmicas criminais que envolvem a atuação de grupos brasileiros de base prisional (conhecidos como “facções prisionais”) em territórios transfronteiriços, especialmente nos mercados de drogas ilícitas, como a cocaína. Interessa apresentar algumas reflexões sobre como os grupos originalmente oriundos de prisões brasileiras, e com atividades intensas de controle social nas periferias urbanas das principais cidades brasileiras, conseguiram chegar até as fronteiras do Brasil com outros países latino-americanos posicionando-se como agentes importantes - algumas vezes protagonistas - de esquemas criminais transnacionais através da articulação com atores que estão vinculados aos mercados internacionais de produtos ilícitos, geralmente atuando através de complexas redes sociais. A crescente participação de atores associados aos grupos brasileiros de base prisional nos esquemas transnacionais de tráfico de drogas evidenciou novos desafios para a compreensão das dinâmicas criminais no Brasil e a centralidade das prisões na conformação dessas dinâmicas. Desta maneira, este artigo contribui com essa análise valendo-se da experiência de duas realidades transnacionais latino-americanas que se situam em contextos geográficos e culturais diferentes e, ao mesmo tempo, apresentam similaridades entre si. Antes de adentrar na especificidade dessa experiência, é preciso tecer algumas considerações gerais sobre o fenômeno das drogas na América Latina, sobretudo em relação à cocaína.

Para a compreensão do fenômeno estudado, é importante destacar que a América Latina abriga os países responsáveis pelo cultivo de cocaína e múltiplas organizações envolvidas nas produções, trânsitos, distribuições, exportações e comércios desta que é uma das mercadorias mais rentáveis e lucrativas em circulação1 1 Arriagada e Hopenhayn (2000) traçaram um painel geral dos problemas sociais na América Latina e de como os governos se comportaram diante de situações de comércio e consumo de drogas, considerando cenários nacionais e internacionais . A realidade da produção de coca envolve situações socioambientais específicas, com cenários econômicos e políticos desconsiderados por governos que investem exclusivamente na repressão policial como meio de controle dos ilegalismos envolvidos pelo comércio de cocaína (Davalos, Berjarano e Correa, 2009 Davalos, Liliana M.; Bejarano, Adriana C. & Correa, H. Leonardo . (2009), “Disabusing cocaine: Pervasive myths and enduring realities of a globalised commodity”. International Journal of Drug Policy , 20 (5): 381-386.). O World Drug Report de 2019 do United Nations Office on Drugs and Crime demonstrou que a produção de cocaína ainda se concentra na Colômbia, no Peru e na Bolívia, enquanto o Brasil continua ocupando a posição de país de trânsito e destino da droga (Kenny, 2007Kenny, M. (2007), “The architecture of drug trafficking: network forms of organization in the Colombian Cocaine Trade”. Global Crime, 8 (3): 233-259. ). Essa situação contribuiu para cenários socioeconômicos complexos, com participação de pessoas que encontram na produção, distribuição e comércio da droga oportunidades de rendimentos substantivos. Em linhas gerais, essas pessoas participam de organizações estruturadas para atuar de maneira ilegal e movimentar mercados com repercussões econômicas que são objeto de conflitos sociais e propagadores de diferentes tipos de violência (Manso e Dias, 2018 Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. ; Geffray, Fabre e Schiray, 2002 Geffray, C.; Fabre, G. & Schiray, M. (ed.). (2002), Globalisation, drugs and criminalisation: final research report on Brazil, China, India and Mexico. Drug trafficking, criminal organisations and money laundering. Paris (FR)/Vienne: Unesco/UN ODCCP.).

Ao considerar esse cenário, este trabalho foi elaborado a partir dos resultados de pesquisas realizadas em contextos transfronteiriços afetados pelas movimentações dos mercados ilegais de cocaína e pela presença de grupos brasileiros de base prisional, reconhecidos socialmente como “facções criminosas”. As pesquisas foram feitas no período de 2013 a 2018, em duas regiões: a) a fronteira entre Brasil e Paraguai, especialmente entre as cidades de Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (PY); b) a fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, na região do Alto Solimões (AM).

As cidades-gêmeas Ponta Porã e Pedro Juan Caballero2 2 A partir daqui passaremos a nos referir a essa região através da abreviação PP/PJC. formam um denso conglomerado comercial, historicamente marcado por densas movimentações de mercadorias e negócios entre os os dois países. O município de Ponta Porã/ms fica a cerca de 326 km de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. A região tem assumido uma importância crescente, não apenas como rota do comércio de produtos provenientes do Paraguai, como a maconha, mas também como entreposto das rotas de distribuição dos derivados da coca, mercadorias provenientes do Peru e da Bolívia. Os produtos que entram no Brasil a partir dessa região, em geral, são destinados aos mercados consumidores nacionais localizados nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e, também, aqueles que têm como destino os mercados europeus e cuja porta de saída se dá através do porto de Santos (Manso e Dias, 2018 Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. ).

Na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia encontraram-se as cidades de Letícia, na Colômbia, Tabatinga, no Brasil, e o centro poplado de Santa Rosa no Peru. Trata-se de uma região situada na floresta Amazônica, com atuação de grupos de países produtores de cocaína e envolvidos na condução da droga dessa região até mercados do Nordeste e Sudeste do Brasil. Ademais, existem muitas conexões entre a droga que sai dessa região a caminho do Ceará para destinos na África, Europa e Oceania (Paiva, 2018Paiva, Luiz Fábio S. (2018), “As dinâmicas do mercado ilegal de cocaína na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34 (99).). A tríplice fronteira se transformou em uma área de influência e disputa entre diferentes grupos envolvidos na comercialização da cocaína e seus derivados. É uma área com intensa presença militar e de forças policiais dos três países em função da sua localização estratégica no trapézio Amazônico (Zárate Botia, 2008Zárate Botía, Carlos. (2008), Silvícolas, siringueros y agentes estatales: el surgimiento de una sociedad transfronteriza en la Amazonia de Brasil, Perú y Colombia 1880-1932. Letícia: Instituto Amazónico de Investigaciones (Imani).).

As duas fronteiras são espaços sociais mobilizados por mercados ilegais e dinâmicas criminais que envolvem grupos como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN). Essas regiões são áreas de trânsito de cocaína por meio de múltiplos mercados em que essas organizações se encontram buscando, entre outras coisas, exercer um papel de protagonismo em um cenário de disputas e conflitos de alta letalidade e através de um processo recente de desalojamento e de rupturas violentas com grupos locais que, historicamente, controlavam os mercados ilícitos nessas regiões.

A fronteira retrata uma complexidade de relações sociais, morais e políticas que ultrapassam os limites das demarcações territoriais, possibilitando questionamentos sobre as dimensões teóricas e metodológicas da própria sociologia (Cardin e Albuquerque, 2018 Cardin, Eric G. & Albuquerque, José L. C . (2018), “Fronteiras e deslocamentos”. Revista Brasileira de Sociologia, 6 (12): 114-131.). Como explica Grimson (2005 Grimson, Alejandro. (2005), Fronteras, estados e identificaciones en el Cono Sur. Buenos Aires: Clacso.), as fronteiras revelam tramas socioculturais constitutivas das experiências sociais em contatos transnacionais. Portanto, estudar as dinâmicas do crime em fronteiras é uma questão que impõe aos cientistas sociais pensar múltiplas dobras feitas na realidade social (Chin e Zhang, 2012 Chin, Ko-lin & Zhang, Sheldon X . (2012), Chinese connection: cross-border drug trafficking between Myanmar and China. Final report to the United States Department of Justice (unpublished), National Criminal Justice Reference Service.). As percepções dos deslocamentos transfronteiriços envolvem maneiras de ver e interagir com o outro para fazer o crime entre sujeitos estrangeiros e nativos, nacionais e transnacionais, locais e globais. Considera-se aqui que as ações para o tráfico de cocaína não são apenas uma atividade criminosa, mas uma prática que afeta as culturas locais, conforme observou Campbell (2005Campbell, Howard. (2005), “Drug trafficking stories: Everyday forms of Narco-folklore on the us-Mexico border”.International Journal of Drug Policy, 16 (5): 326-333.) em seus estudos na fronteira entre Estados Unidos e México. Agir na fronteira e depois em territórios internacionais, participando das atividades de produção e distribuição em outros territórios internacionais, transformou organizações como o PCC, o CV e a FDN em grupos transfronteiriços (Dias e Ribeiro, 2019Dias, Camila N. & Ribeiro, Natália C. T. (2019), “O deslocamento da prisão em três Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIS) e sua centralidade na conformação de redes criminais transnacionais”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 98-124.; Siqueira e Paiva, 2019Siqueira, Ítalo B. L. & Paiva, Luiz Fábio S. (2019). “‘No Norte, tem Comando’: as maneiras de fazer o crime, a guerra e o domínio das prisões do Amazonas”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 125-154.). Suas ações passaram a mobilizar governos de diversos países que retratam suas preocupações na reprodução de mercados que, desde sua origem, funcionam para além das fronteiras nacionais, burlando estratégias e inovações tecnológicas para o controle policial dos limites territoriais entre os países3 3 Sobre o aparato policial de fronteira e suas inovações tecnológicas para o controle territorial dos limites nacionais de determinados países, ver Loftus, 2015, pp. 115-125. . Neste trabalho, o objetivo é compreender como as facções encontraram nas fronteiras brasileiras maneiras de fazer o crime e condições objetivas com as quais aprenderam a trabalhar, aumentando seu raio de influência e transformando as dinâmicas conhecidas desde as prisões e periferias brasileiras.

Em suma, ao considerar a passagem da cocaína entre diferentes territórios fronteiriços do Brasil, este trabalho procura entender como as facções brasileiras que se originaram nas prisões do país se movimentaram em direção às fronteiras e se transformaram para se tornarem atores centrais ou protagonistas nas redes nacionais e internacionais de tráfico de drogas ilícitas, sobretudo, nos esquemas criminais que se apoiam no território brasileiro como rota de passagem para os produtos. Discute-se o pressuposto de que as facções prisionais brasileiras assumiram um papel importante nas decisões de quem deseja usufruir dos rendimentos desse mercado ilegal, articulando o cárcere, a periferia das grandes cidades (varejo) e as fronteiras internacionais (atacado). Neste sentido, trata-se de uma mudança importante em seu status de agentes do crime, reconfigurando o lugar da prisão como lócus de reprodução das organizações criminais que atuam nos mercados ilícitos transnacionais que têm o Brasil como ponto de passagem. As realidades nacionais foram tensionadas na medida que grupos brasileiros assumiram um lugar de prestígio ao comandarem rotas internacionais de distribuição de cocaína em escala mundial. Não obstante, esse protagonismo também afetou as relações internacionais entre traficantes e, consequentemente, criou outros conflitos entre e no interior de uma mesma facção.

Questões metodológicas da pesquisa sobre dinâmicas criminais de grupos em ação nas fronteiras brasileiras

Um dos pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa é analisar o crime como uma experiência transfronteiriça e uma prática constituída por múltiplos sentidos possíveis de alcance e compreensão sociológica. Para isso, ao considerar os aportes da sociologia compreensiva de Weber (2000Weber, Max. (2000), Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da UNB.), o trabalho investiga o sentido das dinâmicas criminais, seus efeitos morais e a constituição simbólica na formação de uma experiência social singular em territórios transfronteiriços (Lo, 2020Lo, Sonny S. H. (2020), The politics of cross-border crime in greater China: Case studies of mainland China, Hong Kong, and Macao. Nova York: Routledge.).

As investigações desenvolvidas são qualitativas, com realização de trabalho de campo, análise de documentos, conversações e entrevistas. Como o crime é uma experiência social moralmente desonrosa, foram necessários cuidados em relação à integridade dos pesquisadores e informantes. Como destaca Barreira (1998 Barreira, César. (1998), Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política.), em suas entrevistas com pistoleiros, é sempre preciso refletir sobre falas atravessadas por moralidades e busca de preservação da dignidade de quem está envolvido com dinâmicas criminais. Este elemento percorreu nossas aproximações de envolvidos com as práticas de crime, mas também as falas de quem trata de crimes na fronteira. É sempre preciso considerar as práticas locais que, como demonstrou Rabossi (2015Rabossi, Fernando. (2015), “Tempo e movimento em um mercado de fronteira: Ciudad del Este, Paraguai”. Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, 5: 405-434.), envolvem tempos, espaços e movimentos transnacionais de um cenário transfronteiriço. Os limites internacionais criam relações próprias entre os limites nacionais, os negócios e os trânsitos de mercadoria, atuantes entre as fronteiras da legalidade e da ilegalidade (Almeida, 2015Almeida, Letícia N. (2015), O Estado e os ilegalismos nas margens do Brasil e do Uruguai: um estudo de caso sobre a fronteira de Santana do Livramento (BR) e Rivera (UY). São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo, 2015.).

Os trabalhos de campo realizados também possibilitaram que se observasse como o sucesso de grupos brasileiros permitiu que eles conseguissem posições de prestígio, disputando com outros grupos internacionais e locais a apropriação de grandes quantidades de cocaína para distribuição em mercados nacionais e internacionais4 4 Para melhores informações sobre o trabalho de campo, ver Albuquerque e Paiva, 2015 . Embora oriundas de projetos desenvolvidos com objetivos diferentes, as pesquisas conseguiram captar elementos de como PCC, CV e FDN atuaram em dois cenários importantes para o mercado internacional para o trânsito seguro da droga pelas fronteiras e territórios transnacionais. Ademais, a partir de experiências de pesquisa sobre as dinâmicas faccionais em territórios urbanos e prisões5 5 Os trabalhos de Dias (2013) sobre o trabalho do PCC, nas prisões de São Paulo, e de Paiva (2019), na periferia de Fortaleza, ilustram a maneira como esses grupos atuaram em territórios nacionais de diferentes maneiras na prática de crimes e coordenação de mercados ilegais. , foi possível perceber especificidades e diferenças da atuação desses grupos na fronteira, observando como eles adaptaram dinâmicas criminais a estilos necessários ao tráfico internacional e aos esquemas dos fluxos transnacionais e provocando tensionamentos e conflitos.

As duas regiões abordadas foram historicamente afetadas pelas dinâmicas criminais que movimentam os mercados ilegais de drogas e armas. A comparação entre essas dinâmicas permite adensar o entendimento de como esses grupos atuam nas regiões de fronteira. A partir de uma perspectiva comparativa apresentam-se peculiaridades e especificidades de dinâmicas criminais produzidas em configurações sociais distintas em termos geográficos, culturais, históricos e políticos. As diferenças e similaridades possibilitaram um olhar sociológico sobre experiências sociais de pessoas que praticam crimes e movimentam mercados permeados por múltiplos envolvimentos, estudados a partir de um ponto de vista multissituado e relacional (Marcus, 1995Marcus, George E. (1995), “Ethnography in/of the world system: The emergence of multi-sited ethnography”. Annual Review of Anthropology, 24 (1): 95-117.; Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 2004Bourdieu, Pierre; Chamboredon, Jean-Claude & Passeron, Jean-Claude . (2004), O ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes.).

Na fronteira Brasil/Paraguai: as dinâmicas criminais nas cidades-gêmeas Ponta Porã e Pedro Juan Caballero

As áreas de fronteira do Brasil com o Paraguai tornaram-se, nas últimas décadas, focos de conflitos diversos. Os conflitos sociais aumentaram com o avanço da frente econômica produtora de soja, que se estendeu do sul do Brasil para o interior do Paraguai, provocando a formação de grupos políticos, do lado paraguaio, de resistência ao avanço do agronegócio, ao uso de agrotóxicos e também à destruição florestal (Albuquerque, 2010Albuquerque, José L. (2010), “As fronteiras ibero-americanas na obra de Sérgio Buarque de Holanda”.Análise Social, 195: 329-351.). O aumento da criminalidade naquelas áreas de fronteira deriva do desenvolvimento de economias ilegais associadas ao contrabando, ao tráfico de armas e drogas, sendo a região bastante utilizada para o plantio de maconha (Salla e Alvarez, 2011Salla, Fernando & Alvarez, Marcos C. (2011), “Estado-Nação, fronteiras, margens: redesenhando os espaços fronteiriços no Brasil contemporâneo”. Anais do XV Congresso Brasileiro de Sociologia, Curitiba, 2011, GT 32 - Violência e Sociedade.).

A importância do Paraguai para as dinâmicas criminais brasileiras tem uma longa história e está relacionada tanto com sua centralidade na produção da cannabis quanto com sua localização geográfica estratégica no continente, notadamente para o Brasil. As fronteiras do Brasil com o Paraguai se estendem desde a região central, passando pelos estados do Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS), até a região Sul, no estado do Paraná (PR). Ou seja, o Paraguai é o principal entreposto entre as áreas de produção da coca e o maior mercado consumidor nacional - localizado nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro - e uma das mais importantes portas de saída para o além-mar, via portos ou aeroportos.

As cidades-gêmeas apresentam, de forma mais explícita, as dinâmicas que conformam as peculiaridades das regiões fronteiriças (Silva e Oliveira, 2008Silva, Ricardo M. & Oliveira, Tito C. M. de. (2008), “O mérito das cidades-gêmeas nos espaços fronteiriços”. Observatorio Iberoamericano del Desarrollo Local y la Eco nomía Social, 2 (5): 22-30.). No que concerne às cidades-gêmeas PP/PJC, a atuação de pistoleiros e de grupos de criminosos vinculados a políticos locais e nacionais para viabilizar o funcionamento de suas atividades ilegais, associada ao envolvimento de policiais de ambos os países nas diversas atividades ilícitas da região, e, ainda, os conflitos envolvendo outras variáveis, como a disputa por terras e a luta pelos direitos dos povos indígenas, fazem com que essa região esteja imersa numa complexa trama de múltiplas tensões e conflitualidades, conformando-se em hub de redes múltiplas e complexas.

Em PP/PJC, a conformação dos mercados ilícitos, historicamente, esteve relacionada com os atores vinculados aos grupos de base familiar-étnica, que tradicionalmente se constituíram como figuras importantes nas dinâmicas políticas, sociais e econômicas, lícitas ou não, dessa área fronteiriça (Oliveira, 2013Oliveira, Giovanni F. (2013), Nas bocas da Cidade de Corumbá - MS: O comércio de drogas na fronteira Brasil/Bolívia. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Estudos Fronteiriços, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 2013.; Jara, 2003Jara, Vladimir. (2003), Beira-Mar en Paraguay: Mafia, traición y muertes en la frontera; cruenta guerra de narcos en Amambay; el dinero de las drogas en las bases del poder. Asunción, Paraguay: Salpa. ). Ao observar o processo histórico de povoamento da região, dos processos migratórios e a conformação de poder estabelecida por algumas famílias tradicionais dessas localidades, é possível compreender o processo histórico em que acumularam poder econômico, social e político, as formas pelas quais atuaram nos mercados ilícitos, e exerceram controles sociais nos territórios através da regulação de conflitos que emergiram a partir daí. A paulatina aproximação e, na última década, a presença mais espessa dos grupos de base prisional provenientes do Rio de Janeiro e de São Paulo, especialmente CV e PCC, produziram efeitos sobre a ordem social que se constituiu nessas áreas, reconfigurando as relações sociais locais e redefinindo a dinâmica criminal e as formas de violência predominantes na região.

O Sumário Executivo da pesquisa Segurança Pública nas Fronteiras aponta que o deslocamento do PCC e CV para regiões da fronteira de estados como mt e ms teria contribuído para desestruturar os controles locais outrora exercidos por grupos de traficantes e contrabandistas ligados às elites locais (Ministério da Justiça, 2016Ministério da Justiça. (2016), Segurança pública nas fronteiras - Sumário executivo. Relatório MP. Brasília. , p. 64). O relatório indica que esse desarranjo estaria ligado a uma fragmentação das redes cuja consequência imediata seria o aumento da violência nos conflitos entre esses atores. Porém, através das observações realizadas ao longo dos últimos anos, consideramos que tais transformações estão atreladas às conexões estabelecidas entre esses atores criminais e as redes prisionais, aos mercados consumidores extralocais e à pretensão de hegemonia apresentada especialmente pelo PCC, que acabou por tensionar demasiadamente um contexto marcado pela competitividade e, também, pela convivência entre os diferentes atores criminais atuantes na região e que em regra estabeleciam formas de cooperação (Manso e Dias, 2018 Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. ). Nesse sentido, tem-se um cenário anterior de fragmentação, mas com um padrão de convivência relativamente pacífica entre as elites das diferentes redes criminais, apesar de desequilíbrios violentos recorrentes nas suas bases.

Além disso, essas redes “tradicionais”, baseadas em laços étnicos ou familiares, estavam atreladas aos mercados comerciais legais e aos mercados ilícitos de contrabando e de drogas (Ministério da Justiça, 2014Ministério da Justiça. (2014), Projeto Gestão da Política de Segurança Pública nas Regiões de Fronteira - Relatório Final. Brasília. ); e, em geral, se mantinham apartadas da criminalidade “comum”, vinculada aos roubos e furtos, e também não se confundiam com os atores do pequeno mercado varejista de drogas ilícitas que se constituiu naquelas cidades. Com a intensificação de conformação de redes criminais constituídas a partir das prisões, ocorre um imbricamento entre as atividades relacionadas com essas distintas dinâmicas criminais, entre o mercado de drogas e o mercado de objetos roubados e furtados (Feltran, 2018 Feltran, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras. ). Ou seja, os negócios das drogas se conectam nas diversas escalas a partir das quais ele se estrutura na região e também se articula com o universo criminal local dos roubos e dos furtos e acentua a conexão com o mercado das armas. A configuração local, tanto social como política e econômica, se transforma de maneira profunda. A pretensão de hegemonia do PCC tensiona ainda mais as conformações locais e rompe o frágil equilíbrio que garantia a permanência de uma multiplicidade de redes dos mais diversos tamanhos e que atuavam em diversas escalas.

Desde o final dos anos 1990 a presença de grupos brasileiros na fronteira Brasil/Paraguai tensiona as dinâmicas locais e o domínio de famílias tradicionais associadas ao crime. Nos últimos anos, ocorreu uma intensificação dessas tensões na região de PP/PJC, especialmente nas relações entre PCC e Jorge Toumani Rafaat, último capo das famílias tradicionais a regular essa região.

O ano de 2016 representa um marco em termos dos processos que integram a análise proposta nesta pesquisa em razão da ocorrência de dois fatos que, juntos, produziram profunda reconfiguração de poder na região e nas dinâmicas criminais brasileiras: em primeiro lugar, o processo de intensificação dos conflitos entre os atores criminais em PP/PJC, que envolviam vários capos do narcotráfico Brasiguaio e os grupos oriundos das prisões brasileiras, culminou com a execução cinematográfica de Rafaat em junho de 2016; em segundo lugar, ocorreu uma ruptura das relações entre o PCC e o CV, colocando fim a uma relação de colaboração nos mercados ilícitos que vigorava havia mais de vinte anos.

Os dois eventos acontecem quase simultaneamente e se constituem como divisores de águas, tanto pelas suas características quanto pelo seu significado, na região e fora dela.

As transformações que ocorreram na região de PP/PJC indicam um processo de reconfiguração local caracterizado pela passagem entre duas formas de exercício do poder e a contraposição de conformações sociais diferentes, associadas às diferenças entre os atores centrais nas dinâmicas criminais da região: empresário x bandido, famílias locais × facções “estrangeiras”, o conhecido × desconhecido. Talvez pudéssemos compreender também como uma mudança que opõe tradição × modernidade ou local × transnacional. No último ponto, vale ressalvar que a economia ilícita, na forma como era gerida por Rafaat, também apresentava caráter transnacional. Contudo, as reconfigurações mencionadas aqui parecem atrelar mais fortemente as dinâmicas locais às redes internacionais dos mercados ilícitos.

Nesta nova configuração fronteiriça, há uma importante alteração nas relações estabelecidas entre os atores dos mercados ilícitos e os agentes estatais e a população local: a ausência de ligações culturais ou sociais com o território, a origem predominantemente urbana (paulista), o forte vínculo identitário com o crime e as diversas formas de atuação nos mercados ilícitos - além do tráfico de drogas propriamente dito, os roubos e furtos - aprofundaram as tensões e as conflitualidades violentas na região.

A diferença na conformação das redes criminais “tradicionais” da fronteira com as redes criminais constituídas pelas facções pode ser exemplificada através da fala de um interlocutor, o qual era integrante da Sintonia dos Estados e Países do PCC e que cumpria pena numa unidade prisional. Para ele, “a fronteira é um lugar perigoso porque é dominada por narcotraficantes”. A compreensão dessa fala só é possível considerando-se as diferenças das dinâmicas sociais que se apresentam a partir da conformação das distintas redes que atuam nos mercados ilícitos, constituídas por atores com trajetórias, comportamentos, posições sociais e econômicas, identidades e identificações bastante diferentes entre si.

Nesta chave de análise, o “narcotraficante” representa as figuras dos fornecedores e que transacionam drogas, especialmente cocaína em larga escala e volume, para diferentes atores, enquanto os indivíduos que integram as redes criminais vinculadas ao PCC seriam portadores de uma moralidade própria, que se conectam uns aos outros por interesses econômicos, mas principalmente através de outros tipos de vínculos, de relações de pertencimento, membresia e identificação e de práticas sociais, de valores e de uma ética do crime, coletivamente compartilhados. Neste sentido e, por estas razões, o interlocutor afirmava que a fronteira “não tem disciplina porque quem cuida [da região] são os narcotraficantes, que são milionários e não aceitam PCC. Não são justos porque matam alguém por interesse deles e não da população e muitas vezes tomam as coisas das pessoas, e o PCC não faz e não aceita isso”.

Ainda de acordo com ele, contudo, “a fronteira um dia vai evoluir”, uma vez que se trata de um território em guerra permanente. “Se a fronteira é assim, a gente tem de agir de acordo”, disse ele. O PCC, portanto, está na guerra para promover a evolução das relações criminais no âmbito da fronteira, o que significa, em linhas gerais, construir uma configuração marcada por práticas e valores similares àqueles que são vigentes nos demais territórios onde o PCC exerce controle ou forte influência. Essa percepção da fronteira permite compreender a diferença entre esses territórios e os territórios urbanos, especialmente do estado de São Paulo, de onde provém a maioria dos integrantes do PCC.

Entre os aspectos importantes que essa percepção ‘nativa’ nos traz, sublinhamos a relação desses indivíduos com o território. As “quebradas” de São Paulo constituem seus territórios de origem e/ou fixação, isto é, o local onde eles nasceram, vivem, mantêm laços fortes com a família, os vizinhos e a comunidade local e, neste sentido, emergem como figuras relevantes no ordenamento social local, angariando e reivindicando legitimidade social (Ruotti, 2016Ruotti, Caren. (2016), Pretensão de legitimidade no PCC: justificação e reconhecimento de suas práticas nas periferias da cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.). A região da fronteira para a grande maioria desses indivíduos constitui território estranho em termos sociais e culturais, para o qual eles se dirigem para cumprir missão “profissional” ou manter-se fora do radar das autoridades estatais. Em geral, não estabelecem vínculos sociais mais sólidos, predominando os laços econômicos que apresentam certas fragilidades e precariedade que os tornam mais voláteis. Nesse sentido, constitui-se como território de passagem, marcado pelos fluxos de mercadorias e de pessoas.

Tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia

No ano de 2015, a operação La Muralla retratou determinadas ações que a justiça atribuiu ao trabalho da FDN (Polícia Federal, 2016Polícia Federal. (2016), Operação La Muralla, Relatório final. Superintendência Regional do Amazonas, DRE - Delegacia de Repressão a Entorpecentes.). No relatório final da operação, um dos acusados narra a travessia de lancha com quantidades que variavam de 100 a 300 quilos de cocaína. Ele levava também quantidades de até 400 quilos de maconha e armas no mesmo transporte. O mesmo acusado revela, nas escutas do relatório, que perdeu em menos de um ano três carregamentos de 300 quilos, sendo um para piratas do rio6 6 Sobre as formas de governo na tríplice fronteira e a ação de “piratas dos Solimões” na região, ver Melo, 2018 , outro para policiais civis e mais uma para a polícia federal. A situação o obrigou a trabalhar com quantidades menores, inclusive para evitar maiores prejuízos. Essa ação refletiu uma forma de lidar com dificuldades que se impõem e precisavam ser ultrapassadas. A droga transportada vinha desde o Peru, em virtude de conexões conquistadas e bem estabelecidas por membros da FDN em sua gestão transnacional de um negócio extremamente rentável, pois mesmo com as perdas de grandes carregamentos ainda era possível lucrar com cada quilo de pasta base da fronteira que efetivamente chegou aos seus destinos. No âmbito da operação referida, as apreensões de drogas, entre maconha e cocaína, foram estimadas em 18 milhões de reais, equivalentes a aproximadamente 2,2 toneladas de drogas.

É importante ressaltar que a tríplice fronteira amazônica abriga práticas relacionadas com o mercado internacional de cocaína desde meados da década de 1970, quando o Cartel Letícia foi um dos braços no fornecimento de cocaína para o Cartel de Medellín (Paiva, 2018Paiva, Luiz Fábio S. (2018), “As dinâmicas do mercado ilegal de cocaína na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34 (99).). A ideia de que os colombianos dominam os grandes esquemas de tráfico perdurou até o início dos anos de 2010, quando a FDN se consolidou com esquemas que movimentaram toneladas de cocaína, além de uma série de ações que envolvem pessoas implicadas na missão de deslocar essas grandes quantidades pela fronteira, alcançando mercados nacionais e internacionais (Siqueira e Paiva, 2019Siqueira, Ítalo B. L. & Paiva, Luiz Fábio S. (2019). “‘No Norte, tem Comando’: as maneiras de fazer o crime, a guerra e o domínio das prisões do Amazonas”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 125-154.). A tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia se transformou em território de múltiplos conflitos, envolvendo organizações nacionais e internacionais. Mesmo com seu domínio na região, os esquemas de grande escala da FDN conviveram ainda com movimentos de pequenos empreendedores do tráfico e ações circunstanciais em virtude dos rendimentos simbólicos e econômicos que constituem a prática de crimes. Ademais, a pressão de organizações como PCC e CV mobilizou a FDN para um controle social silencioso e preciso da região, com agenciamento de pistoleiros para eliminação de alvos determinados e suspeitos de colaboração com as outras facções.

Na fronteira, a FDN precisou aprender a se relacionar com todo o aparato policial constituído para o controle social da produção e comércio de cocaína. Hirata (2015Hirata, Daniel. (2015), “Segurança pública e fronteiras: apontamentos a partir do Arco Norte”. Ciência e Cultura, 67 (2): 30-34.) demonstrou que esse aparato, entre outras coisas, dispõe das estruturas das Forças Armadas que atuam nas regiões de fronteira como forças policiais. Isso cria uma série de nuances para a atuação da facção amazonense na fronteira, pois enquanto ela enfrenta nas periferias de Manaus a Polícia Civil (PC), a Polícia Militar (PM) e eventualmente a Polícia Federal, na fronteira as Forças Armadas são mais um elemento fixo de enfrentamento às suas movimentações. Ademais, a PF é uma presença mais aguda no enfrentamento em relação ao que acontece em Manaus, por exemplo. Por isso, muitas adaptações precisaram ser feitas, considerando a logística das forças de segurança pública presentes na região fronteiriça.

Outro problema é o contato com os produtores de cocaína que não são brasileiros. Embora não seja um país produtor da planta que origina o alcaloide de coca, o Brasil faz fronteira com todos os países produtores. Isso significava que toda cocaína que entra no país é oriunda de territórios estrangeiros e organizações transfronteriças. No processo de deslocamento e comercialização da cocaína, pessoas e grupos que operam os mercados ilegais brasileiros têm participado de esquemas complexos entre países latino-americanos, inclusive disputando posições de poder nos circuitos de produção e distribuição de drogas. No Amazonas, a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia é um desses espaços únicos em que múltiplos sujeitos se encontram para articular como a droga produzida irá subsidiar centenas de esquemas que funcionam em escalas e atendem a demandas muito diferentes. Para isso é preciso muito mais organização do que força, considerando as maneiras pelas quais a droga precisa sair da fronteira para abastecer mercados importantes no Brasil e em outras partes do mundo.

“O segredo é a alma do negócio”, e passar diversas quantidades de drogas foi o grande desafio das movimentações da FDN na tríplice fronteira amazônica. Pessoas trabalham discretamente, e a comunidade só tem ideia de quem pratica esse crime em ocasiões de prisão. Existe a compreensão nas facções de que não é possível movimentar diferentes quantidades de cocaína com sujeitos envolvidos e conhecidos por policiais. Existe, portanto, um trabalho que acontece nas prisões e comunidades para consórcios e movimentações entre traficantes envolvendo pessoas que vão ter a incumbência de levar a droga para além da fronteira. Aconteceu de ouvir depoimentos de pessoas não envolvidas na facção que receberam propostas para transportar uma quantidade determinada de droga. Esse fato colabora com a ideia de que, na tríplice fronteira, “o tráfico é de formiguinha”. Uma das implicações desse tipo de esquema é que pessoas não envolvidas terminam presas e efetivamente se tornam responsáveis por aquela quantidade de droga que, em diversos casos, pertence à FDN e integra um grande esquema de transporte em pequenas proporções.

Nesta região as ações da FDN são consideradas discretas e divergem da maneira violenta como a facção atua em outros espaços sociais. Apesar de não abrir mão da violência como meio de exercer seu poder de mando na tríplice fronteira, a FDN recorria quando possível a pistoleiros para matar alvos determinados e apontados como suspeitos de trair a confiança ou cooperar com o PCC, por exemplo. A FDN procurou seguir uma prática comum de outros grupos que atuavam naquela região, que está presente na ideia de que na tríplice fronteira “a bala tem nome e endereço certo”. Isso significa que o crime seguia uma lógica e as pessoas que morriam tinham uma responsabilidade pelos eventos que causaram o seu óbito. Em seu trabalho na fronteira, a FDN não mudou radicalmente uma realidade referente a dinâmicas locais de tráfico, mas buscou se adaptar e agenciar traficantes de múltiplos esquemas em um sistema colaborativo entre pessoas que trabalham na produção, fornecimento e distribuição de cocaína.

A tríplice fronteira amazônica, também, foi marcada por eventos sistemáticos de conflito entre facções brasileiras. Aqui o PCC cumpriu importante papel como grupo que almejava ter maior participação em esquemas que alcançassem a cocaína oriunda dessa fronteira. Ao longo do trabalho de campo foi possível escutar histórias de pessoas assassinadas em virtude de acusações de colaboração com o PCC. Não obstante, o principal acontecimento ligado a esse conflito se deu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), quando 56 foram assassinadas por integrantes da FDN que as acusavam de serem integrantes ou colaboradoras do PCC no Amazonas (Candotti, Melo e Siqueira, 2017 Candotti, F. M., Melo Da Cunha, F. & Siqueira, Í. L. (2017), “A grande narrativa do Norte: considerações na fronteira entre crime e Estado”. BR, 111 (21).). Essa situação está conectada ao trabalho intenso da FDN para ter o controle dos esquemas criminosos que, em toda sua extensão, atravessam o Amazonas e têm na tríplice fronteira a sua principal fonte de rendimentos.

Apesar do controle da tríplice fronteira, a FDN precisou não apenas vincular-se a pessoas envolvidas no tráfico na Colômbia e no Peru, foi necessária uma rede para circulação e distribuição da cocaína em outras cidades brasileiras e delas para destinos internacionais, sobretudo na Europa. Assim, a FDN desenvolveu uma aliança estratégica com o CV, articulando esquemas lucrativos em praticamente toda a região Nordeste e outras áreas controladas pela facção oriunda dos presídios cariocas. Essa aliança repercutiu ainda em outros estados, como no caso do Ceará, em que ambas as facções atuaram juntas para o controle de prisões e territórios locais importantes para seus negócios. A cooperação entre os dois grupos começou a ruir a partir de brigas internas entre os próprios líderes da FDN, e um acerto de contas importante se deu, novamente, dentro do sistema penitenciário do Amazonas. Dessa vez foram 55 mortes espalhadas em quatro unidades: Instituto Penal Antônio Trindade (25), Centro de Detenção Provisória (5), Compaj (19) e Unidade Prisional do Puraquequara (6). Neste caso as mortes foram consideradas parte de uma disputa interna envolvendo a divisão da FDN e a associação de parte de seus integrantes ao CV.

Conforme é possível perceber, os principais acertos de contas entre os grupos que atuam na fronteira aconteceram dentro do sistema prisional. Contudo, é importante destacar que os eventos nas prisões concentram a tensão, enquanto na fronteira ela segue ritmos mais cadenciados, com assassinatos sistemáticos distribuídos ao longo do ano e alvos mais específicos. Esses esquemas também precisam considerar os riscos de uma área densamente povoada por agentes de segurança pública, em que o exército tem atribuições policiais. A fragilização decorrente da guerra entre grupos brasileiros proporciona a maior participação de grupos estrangeiros, interessados nos lucros que podem ser alcançados pelo trânsito da droga no Brasil. Por isso, rumores de organizações colombianas e mexicanas atuando na região da tríplice fronteira e embaralhando as disputas locais fazem parte do contexto local, embora existam limites importantes, sobretudo pelo forte controle exercido nas prisões do Amazonas e nas áreas de periferia de Manaus, dificultando uma escalada mais vigorosa de grupos estrangeiros no território brasileiro. Essa conjunção entre prisão, periferia e fronteira se tornou um elemento central para as movimentações das facções e seu controle dos esquemas de tráfico nacional e internacional de drogas que circulam pelo Brasil.

Da prisão às fronteiras: os aprendizados transfronteiriços das facções

A América Latina experimentou transformações importantes em suas dinâmicas criminais, sobretudo em função da atuação significativa de grupos brasileiros na constituição e integração de mercados mundiais de drogas. Várias regiões do país são partes de rotas internacionais de comercialização de cocaína, desde os países produtores (Bolívia, Colômbia, Peru) até os principais mercados consumidores (Estados Unidos, Europa e também África, como rota ou destino final). Ademais, o desenvolvimento econômico experimentado pelo Brasil, sobretudo na década de 2000, consolidou um grande e lucrativo mercado consumidor interno que envolveu a inserção de localidades fora dos eixos urbanos mais tradicionais e a incorporação de médias e pequenas cidades, em todas as regiões do país, à lógica do mercado de drogas ilícitas, com demanda intensiva e a conformação de grupos dispostos a suprir essa demanda, através da conexão em rede com outros atores (Manso e Dias, 2018 Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. ).

Nesse mesmo período, em processos que ocorreram simultaneamente, o aumento da população carcerária produziu novas configurações dentro das prisões brasileiras, e isso acabou por reverberar no deslocamento da própria centralidade do cárcere nas dinâmicas sociais e criminais brasileiras (Dias e Ribeiro, 2019Dias, Camila N. & Ribeiro, Natália C. T. (2019), “O deslocamento da prisão em três Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIS) e sua centralidade na conformação de redes criminais transnacionais”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 98-124.). Ou seja, no bojo em que o Brasil se consolida como rota dos mercados internacionais de cocaína e como um dos principais mercados consumidores mundiais de drogas ilícitas, há uma drástica ampliação de sua população encarcerada e a proliferação de grupos de presos - que até a década de 1990 era um fenômeno do Rio de Janeiro e de São Paulo - por todo o país.

Conforme foi analisado em vários outros trabalhos (por exemplo, Dias, 2013 Dias, Camila N. (2013), PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Ed. Saraiva.; Manso e Dias, 2018 Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. )7 7 Embora não seja possível afirmar objetivamente a relação de causalidade entre o aumento de circulação de armas de fogo e a expansão do crime por facções, no Brasil, estudos como de Cerqueira e Melo (2012) evidenciam a presença de armas de fogo nas principais ocorrências de homicídios registradas no Brasil. Os estudos de Silva (2010) sobre a violência urbana no Rio de Janeiro mostraram, também, como a relação com as armas foi fundamental para a criação de relações entre e com pessoas armadas nas periferias urbanas brasileiras. , a consolidação dos grupos de base prisional - isto é, a faccionalização das prisões brasileiras - posicionou a prisão como lócus de fortalecimento e de reprodução dessas redes criminais e permitiu não apenas a continuidade das atividades ilícitas dentro dos espaços prisionais, como conectou de maneira mais dinâmica - através dos aparelhos de telefone celular e smartphones - as dinâmicas prisionais com as dinâmicas criminais. Em consequência do caráter ilícito de seus empreendimentos e, portanto, da impossibilidade de recorrer às instituições estatais formais para arbitrar a competição, as disputas e os conflitos, os vários grupos criminais em competição nesta economia ilícita deram início a uma espécie de “corrida armamentista” para garantir a sua posição de mercado e, em alguns casos, o controle dos territórios. Como foi possível observar em declaração de um promotor público do Rio de Janeiro, em matéria publicada pelo jornal El País, a expansão do PCC no estado impulsionou a aquisição de fuzis entre traficantes locais para controle de territórios e enfrentamento de grupos rivais (Martín, 2017 Martín, Maria. (2017), “Maior facção criminosa do Brasil lança ofensiva empresarial no Rio”. El Pais. Rio de Janeiro, 16 jun. https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/22/politica/1482434757_533449.html, consultado em 20/03/2022.
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12...
). Essa situação também foi verificada nos estudos realizados nos dois territórios fronteiriços analisados aqui. A relação entre os grupos de base prisional e o controle armado de territórios, também, é uma característica notada por pesquisadores desde os primeiros textos de Zaluar (2004Zaluar, Alba. (2004), Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV Editora.) a respeito do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. O conflito entre esses grupos gerou formas de sociabilidade e conflitos armados que caracterizam diversas formas de enfrentamento em territórios urbanos de diferentes cidades brasileiras (Sá, 2011Sá, L. D. de. (2011), “A condição de ‘bichão da favela’ e a busca por ‘consideração’: uma etnografia de jovens armados em favelas à beira-mar”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , Rio de Janeiro, 4 (2): 339-355.; Grillo, 2019 Grillo, Carolina Christoph. (2019), “Da violência urbana à guerra: Repensando a sociabilidade violenta”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 12 (1): 62-92.).

Em decorrência desses processos sociais e por serem consideradas importantes portas de entrada dos produtos e mercadorias - droga e armas - comumente associadas à violência urbana nos grandes centros do país, as regiões de fronteira têm merecido atenção destacada nas discussões sobre segurança pública. A constituição de algumas dessas localidades como rotas de escoamento desses produtos para o Brasil produz a intensa movimentação e circulação das diversas redes que atuam nesses segmentos e transforma esses territórios em palcos privilegiados dos conflitos entre esses grupos, configurando-se, assim, territórios da violência, marcados por altas taxas de homicídios e outros crimes violentos (Dias e Bordin, 2011Dias, Camila. C. N. & Bordin, Marcelo. (2011), “Territórios da violência no Paraná: a porosidade da fronteira e sua influência na criminalidade”. In: Fraga, Nilson César (ed.). Territórios paranaenses. Florianópolis: Insular, pp. 255-274.).

Simultaneamente a esses processos, assistimos a um incremento avassalador do uso da prisão como forma de controle social, de segregação e de incapacitação de indivíduos que estão fora dos fluxos econômicos contemporâneos8 8 Conforme Sinhoretto, Silvestre e Melo (2013) demonstraram, as prisões, apenas no Estado de São Paulo, sofreram um incremento importante entre os anos de 1992 e 2012, saltando de uma população de 30.670 pessoas para cerca de 190 mil. O estudo ressalta que “esse incremento do poder estatal ocorreu simultaneamente a uma reorganização da gestão da vida por parte dos coletivos de presos” (p. 102). . A intensificação do encarceramento como opção política reconfigurou o lugar assumido pela prisão no Brasil, deslocando-a para uma posição de centralidade na dinâmica criminal, produzindo o transbordamento de seus limites e o embaralhamento dos limiares entre o dentro e o fora, o interno e o externo9 9 Estudo de Godói (2019) demonstrou o transbordamento da prisão para a vida e as experiências dos familiares de presos, especialmente as mulheres. Ademais, trabalho de Lourenço (2018) evidencia os problemas do dispositivo prisional cuja ação em si funciona fora dos limites legais estabelecidos. Cipriani (2021) apresenta as dinâmicas prisionais-criminais em Porto Alegre. Como mostraram estudos de Manso e Dias (2018) e Feltran (2018), as facções prisionais intensificaram as articulações entre as práticas prisionais e as atividades ilícitas, sobretudo o tráfico de drogas e outras redes criminais que podem ser a ele acopladas, como o comércio de veículos roubados. . Dessa forma, nas últimas décadas e cada vez de forma mais explícita, envolvendo localidades diferentes e extensão cada vez mais ampla, bem como articulação e conexão de múltiplas redes e atores, a prisão se situa como epicentro das mais graves crises na segurança pública brasileira (Dias, 2013 Dias, Camila N. (2013), PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Ed. Saraiva.). O surgimento, a expansão e a consolidação de grupos de presos dentro (e, depois, fora) das prisões são o produto mais imediato da intensificação do encarceramento e, ao mesmo tempo, fazem parte dos processos que colocam a prisão numa posição central nas dinâmicas contemporâneas (Dias e Ribeiro, 2019Dias, Camila N. & Ribeiro, Natália C. T. (2019), “O deslocamento da prisão em três Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIS) e sua centralidade na conformação de redes criminais transnacionais”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 98-124.).

Com o processo de intensificação do encarceramento em todo o país, foram criadas as condições para que essas redes se fortalecessem em sua densidade e em sua extensão, conformando uma dinâmica de autorreprodução através da inserção compulsória de novos indivíduos nas malhas tecidas dentro das prisões. Por outro lado, a saída dos indivíduos já então conectados através das redes tecidas dentro das prisões teria permitido a ampliação da sua extensão e da conectividade, abarcando outros indivíduos, ampliando os nós e permitindo que fluxos de múltiplos recursos passassem a circular na rede, independentemente dos muros das instituições.

Conforme o processo foi ganhando corpo e assumindo condições para autorreprodução, a rede se estendeu para outros estados da federação e conformou uma conexão com algumas regiões da fronteira com países vizinhos ao Brasil, especialmente Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia. Ou seja, constituiu-se uma conectividade central para a circulação dos fluxos que perpassam essa rede: prisão-fronteiras-centros urbanos. Nesse sentido, as dinâmicas que envolvem esses pontos nodais da rede estão diretamente interconectadas, de forma que, por exemplo, conflitos desencadeados dentro das prisões se refletem nos centros urbanos e em regiões de fronteira e vice-versa (Dias e Ribeiro, 2019Dias, Camila N. & Ribeiro, Natália C. T. (2019), “O deslocamento da prisão em três Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIS) e sua centralidade na conformação de redes criminais transnacionais”. Revista Brasileira de Sociologia , 7 (17): 98-124.). São dinâmicas que alimentam circuitos e contatos dos grupos brasileiros em territórios e nas prisões de outros países, articulando trocas entre as diferentes escalas de crimes praticados para a consolidação de redes internacionais de tráfico de drogas e saberes entre pessoas envolvidas na prática de crimes.

Ao longo de sua existência, as facções desenvolveram saberes e métodos constitutivos de maneiras de fazer o crime em prisões e periferias urbanas, com enfrentamentos recorrentes de forças de segurança pública. Nas fronteiras, as facções encontraram outras realidades que as colocaram diante de novos desafios. Enquanto práticas foram replicadas para o domínio de prisões e territórios, outras foram adaptadas aos movimentos necessários para a sua sobrevivência e sucesso em territórios transnacionais. Outras relações tiveram que ser inventadas no contato com traficantes, produtores e transportadores de coca em regiões repletas de singularidades. A transformação do Brasil em mercado consumidor e de trânsito para outros lugares do mundo possibilitou aos grupos brasileiros um status inédito. A história dos grandes cartéis de drogas é contada por grupos colombianos e mexicanos, mas no mundo contemporâneo PCC e FDN ocuparam um lugar de destaque, e sobretudo a organização paulista tem demonstrado grande capacidade de resiliência e longevidade na sua atuação nacional e internacional.

Embora sejam grupos originários das prisões brasileiras, CV, PCC e FDN extrapolaram, e suas maneiras de fazer o crime transbordaram como experiências sociais replicadas em escala internacional. São grupos que criaram modelos e coordenaram operações complexas, atuando em articulações políticas transnacionais e conectando o mercado brasileiro aos países produtores e principais consumidores de drogas de alto custo. Esses grupos funcionam por meio de um sistema de cooperações entre diferentes segmentos e escalas de traficantes. São fenômenos de massa que atualizam maneiras de fazer o crime nos territórios de fronteira. Assim, é possível afirmar que esses grupos afetam a fronteira e aprendem a manejar relações internacionais necessárias para o trânsito de um mercado transfronteiriço. Observa-se que PCC e FDN atuam de maneira diferente em fronteiras, mobilizando negociações e, somente em situações determinadas, utilizando da sua força como meio de garantir os seus interesses em negociações com múltiplas pessoas que fazem o mercado ilegal de cocaína. As dinâmicas de segurança pública, também, impõem que os envolvidos no trânsito da cocaína ativem suas redes e seus recursos para não apenas disputarem espaço, mas fazerem com que o problema central do tráfico seja resolvido: a passagem da cocaína das zonas de produção para as de comércio. Nesse aspecto, os grupos brasileiros parecem ganhar força na medida em que o mercado brasileiro se tornou importante e grupos como PCC, CV e FDN conseguiram garantir a constituição e a manutenção de redes internacionais que asseguram a chegada e a comercialização de cocaína em mercados internacionais altamente rentáveis.

Considerações finais

As reflexões apresentadas trazem elementos preliminares que podem contribuir para outros estudos sobre as dinâmicas das economias ilegais nas áreas de fronteira da América do Sul. Algumas questões são fundamentais para entender os efeitos sociais, na América Latina (Arriagada e Hopenhayn, 2000 Arriagada, Irma & Hopenhayn, Martín. (2000), Producción, tráfico y consumo de drogas en América Latina. Santiago: Cepal.), da articulação das diferentes economias ilegais entre si; a dimensão de composição dessas economias ilegais com as atividades empresariais “legais”; o envolvimento de personagens políticos locais e nacionais com a proteção das atividades ilegais; a participação direta e indireta de autoridades do sistema de justiça (policiais, promotores de justiça, juízes) nas redes de sustentação de tais atividades; o perfil dos principais grupos criminosos que operam essas economias ilegais e seu papel na violência que se estabeleceu nessas áreas.

Conforme foi possível evidenciar, as fronteiras internacionais representam desafios, e as facções brasileiras precisaram usar sua expertise considerando dificuldades e possibilidades presentes nas regiões transfronteiriças. Entre as dificuldades, destacam-se o desmantelamento das relações tradicionais estabelecidas em cada região, os conflitos com outros grupos e o aparato de segurança pública articulado ao trabalho de forças armadas que se encontram nas fronteiras. Em todos os casos, a equação a ser resolvida envolve o transporte de drogas e armas das regiões transfronteiriças para mercados rentáveis e com outras fronteiras a serem atravessadas.

A compreensão das dinâmicas criminais a partir das duas realidades empíricas aqui apresentadas oferece perspectivas analíticas de contextos distintos, mas presentes na realidade brasileira como partes integrantes de um fenômeno social que envolve a maneira como grupos brasileiros de base prisional e urbana alcançaram as fronteiras e se consolidaram como protagonistas de redes internacionais de esquemas criminosos, envolvendo a comercialização de drogas ilegais. Nas atividades de pesquisas realizadas tanto na fronteira entre Brasil e Paraguai quanto na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, foi possível observar as transformações que a estruturação da dinâmica criminal a partir das prisões tem provocado nas duas localidades, com arranjos e desarranjos fortemente marcados por conflitos violentos armados entre os grupos tradicionais da região e os grupos de base prisional. Ao mesmo tempo, a comparação entre as duas regiões aponta para especificidades culturais e geográficas que conformam peculiaridades locais e que estão profundamente implicadas nas conformações territoriais dos mercados ilícitos, de seus atores e suas dinâmicas, tal como eles se constituem nestas áreas de fronteira. Em suma, as facções de base prisional conseguiram encontrar meios para lidar com problemas, consolidar redes, imprimir determinados controles e limites para atuação de grupos de outros países interessados nos rendimentos do crime em territórios brasileiros e para além deles. A extensão desses efeitos sociais pode ser observada a partir da presença desses atores nas prisões e territórios latino-americanos negociando e, também, realizando acertos de contas próprios das necessidades de domínio dos territórios transfronteiriços.

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  • 1
    Arriagada e Hopenhayn (2000) Arriagada, Irma & Hopenhayn, Martín. (2000), Producción, tráfico y consumo de drogas en América Latina. Santiago: Cepal. traçaram um painel geral dos problemas sociais na América Latina e de como os governos se comportaram diante de situações de comércio e consumo de drogas, considerando cenários nacionais e internacionais
  • 2
    A partir daqui passaremos a nos referir a essa região através da abreviação PP/PJC.
  • 3
    Sobre o aparato policial de fronteira e suas inovações tecnológicas para o controle territorial dos limites nacionais de determinados países, ver Loftus, 2015Loftus, Bethan. (2015), “Border regimes and the sociology of policing”. Policing and Society, 25 (1): 115-125., pp. 115-125.
  • 4
    Para melhores informações sobre o trabalho de campo, ver Albuquerque e Paiva, 2015Albuquerque, J. L. & Paiva, L. F. S. (2015). “Entre nações e legislações: algumas práticas de ‘legalidade’ e ‘ilegalidade’ na tríplice fronteira amazônica (Brasil, Colômbia, Peru)”. Revista Ambivalências, 3 (5), 115-148.
  • 5
    Os trabalhos de Dias (2013) Dias, Camila N. (2013), PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Ed. Saraiva. sobre o trabalho do PCC, nas prisões de São Paulo, e de Paiva (2019)Paiva, Luiz Fábio S. (2019), “‘Aqui não tem gangue, tem facção’: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”. Caderno CRH, 32: 165-184., na periferia de Fortaleza, ilustram a maneira como esses grupos atuaram em territórios nacionais de diferentes maneiras na prática de crimes e coordenação de mercados ilegais.
  • 6
    Sobre as formas de governo na tríplice fronteira e a ação de “piratas dos Solimões” na região, ver Melo, 2018Melo, Flávia. (2018), “Pena e perigo no governo da fronteira: considerações para uma análise generificada da fronteira amazônica de Brasil, Peru e Colômbia”. Revista de Ciências Sociais: RCS, 49 (3): 201-242.
  • 7
    Embora não seja possível afirmar objetivamente a relação de causalidade entre o aumento de circulação de armas de fogo e a expansão do crime por facções, no Brasil, estudos como de Cerqueira e Melo (2012) Cerqueira, Daniel R. de C. & Mello, João M. P. de. (2012), Texto para discussão 1721: menos armas, menos crimes. Brasília: Ipea. evidenciam a presença de armas de fogo nas principais ocorrências de homicídios registradas no Brasil. Os estudos de Silva (2010)Silva, Luiz Antonio M. da. (2010), “Violência urbana, segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual”. Caderno CRH , 23 (59): 283-300. sobre a violência urbana no Rio de Janeiro mostraram, também, como a relação com as armas foi fundamental para a criação de relações entre e com pessoas armadas nas periferias urbanas brasileiras.
  • 8
    Conforme Sinhoretto, Silvestre e Melo (2013) Sinhoretto, Jacqueline; Silvestre, Giane & Melo, Felipe Athayde Lins de. (2013), “O encarceramento em massa em São Paulo”. Tempo Social, 25 (1): 83-106. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100005.
    https://doi.org/10.1590/S0103-2070201300...
    demonstraram, as prisões, apenas no Estado de São Paulo, sofreram um incremento importante entre os anos de 1992 e 2012, saltando de uma população de 30.670 pessoas para cerca de 190 mil. O estudo ressalta que “esse incremento do poder estatal ocorreu simultaneamente a uma reorganização da gestão da vida por parte dos coletivos de presos” (p. 102).
  • 9
    Estudo de Godói (2019) demonstrou o transbordamento da prisão para a vida e as experiências dos familiares de presos, especialmente as mulheres. Ademais, trabalho de Lourenço (2018)Lourenço, Luiz Claudio. (2018), “Prisões fora da lei: notas de um dispositivo punitivo marginal”. In: Marques, V.; Sposato, K. & Lourenço, L. C. (orgs.). Direitos humanos na democracia contemporânea: velhos e novos embates. Rio de Janeiro: Bonecker, v. 3, pp. 84-96. evidencia os problemas do dispositivo prisional cuja ação em si funciona fora dos limites legais estabelecidos. Cipriani (2021)Cipriani, Marcelli. (2021), Os coletivos criminais de Porto Alegre: Entre a “paz” na prisão e a guerra na rua. São Paulo: Hucitec. apresenta as dinâmicas prisionais-criminais em Porto Alegre. Como mostraram estudos de Manso e Dias (2018) Manso, Bruno P. & Dias, Camila Nunes. (2018), A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia. e Feltran (2018) Feltran, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras. , as facções prisionais intensificaram as articulações entre as práticas prisionais e as atividades ilícitas, sobretudo o tráfico de drogas e outras redes criminais que podem ser a ele acopladas, como o comércio de veículos roubados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2021
  • Aceito
    11 Abr 2022
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