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Parlamentarismo x presidencialismo no mundo moderno: revisão de um debate atual

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Parlamentarismo x presidencialismo no mundo moderno: revisão de um debate atual* * Conferência magna do mês de novembro proferida pelo Prof. Alfred Stepan, decano da School of International and Public Affairs da Columbia University — New York. (

Alfred Stepan

O presente trabalho1 1 ) Na transcrição, conservamos o tom coloquial da apresentação do dia 23 de novembro de 1989. trata de quatro temas centrais:

— relações cívico-militares;

— a queda da democracia;

— a dimensão institucional na política;

— e a problemática da consolidação democrática.

Vou continuar tratando desses quatro temas, mas o foco específico de minha pesquisa atual é uma análise comparativa entre o presidencialismo e o parlamentarismo.

Nesta sala, há gente que tem interesse neste tema e, no mundo, meus colegas acadêmicos — como o professor espanhol Juan Linz, o professor alemão Dieter Nohlen, o professor brasileiro Bolívar Lamounier, o professor chileno-americano Arturo Valenzuela e quase vinte outros — também estão trabalhando nele.

No mundo político há igualmente muito interesse. Por exemplo, no Chile, a consideração do parlamentarismo é um ponto importante do programa do PPD de Ricardo Lagos.

Eu ainda tenho oito meses de meu sabático para fazer pesquisas para o livro em tempo integral. Portanto, para mim é uma honra e uma oportunidade valiosa passar essa tarde com vocês no Instituto de Estudos Avançados, para explorar o meu próximo livro em sua forma preliminar.

Por enquanto, na minha cabeça, o livro terá seis capítulos e um apêndice, mas, obviamente, se eu for um pesquisador sério, esse esquema ainda vai mudar. Comecei, entretanto, com o seguinte plano de pesquisa.

Capítulo I

Tratará do problema da consolidação democrática, decision rules (regras de decisão) é os incentivos à cooperação no parlamentarismo e no presidencialismo.

Neste capítulo, não vou analisar casos concretos. Simplesmente vou desenvolver argumentos baseados no modelo formal, na teoria de jogos e, especialmente, num tipo de incentivo chamado, em inglês, de rational choice.

Capítulo II

Tratará de uma análise quantitativa do universo completo dos cerca de cem países que se tornaram independentes depois da Segunda Guerra Mundial.

Capítulo III

Fará uma reinterpretação do peso das instituições políticas nas quedas de democracia no Brasil em 64, no Chile em 73, no Uruguai em 73 e na Argentina em 76.

Capítulo IV

Fará a análise do peso das instituições presidenciais e parlamentares na tarefa da consolidação democrática em dois sistemas parlamentaristas — Espanha e Itália — e em quatro sistemas presidencialistas — Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.

Capítulo V

Fará uma reanálise da questão do "excepcionalismo dos Estados Unidos" e uma comparação histórica do presidencialismo nos Estados Unidos e na América Latina.

Capítulo VI

Incluirá a análise do discurso e a análise empírica das razões para mudar — ou não mudar — o sistema presidencialista no Chile, no Brasil, na Argentina e no Uruguai.

Apêndice

O primeiro-ministro Andreotti, da Itália, e o ex-primeiro-ministro Suarez, da Espanha, parecem ter interesse em me dar uma série de entrevistas sobre as suas quatro crises mais importantes como primeiros-ministros, como empregaram o sistema parlamentar para atravessá-las e também para reanalisar todas essas crises supondo que todas as variáveis do contexto econômico, geopolítico e político-cultural sejam as mesmas, mas mudando uma macrovariável: que o sistema político não fosse o parlamentarismo mas sim o presidencialismo.

Se possível, vou gravar essas entrevistas e incluí-las no apêndice. Este é o meu propósito geral. Obviamente, será muito útil para mim receber suas dúvidas e recomendações, hoje mesmo ou depois, em nossos contatos pessoais.

Por hoje, vou me limitar a cinco questões esquemáticas para abrir essa palestra.

1º) Quais são as três capacidades políticas mais importantes, em nível teórico, para a consolidação democrática?

2º) Em que sentido podemos dizer que, grosso modo, as instituições do parlamentarismo e do presidencialismo (especialmente os incentivos, que são parte de ambos os sistemas) ajudam, ou impedem, o desenvolvimento dessas três capacidades?

3º) Que evidência quantitativa nos fornece o universo de países que se tornaram independentes depois da Segunda Guerra Mundial, para ilustrar a questão?

4º) Qual foi e qual é o impacto do sistema presidencialista no Chile quando analisamos a crise de 68/73 e as tarefas de consolidação atuais?

5º) Qual é a flexibilidade comparativa entre regimes parlamentares e presidencialistas ?

Vamos incialmente pensar sobre capacidades.

É possível que sejam outras as capacidades políticas mais importantes para a consolidação democrática, mas a essa altura me parece que as três capacidades mais importantes são:

1 — A eficácia. Quer dizer, a capacidade do sistema político de produzir maiorias no Poder Legislativo e no Poder Executivo, para formular e implantar as mudanças necessárias.

2 — A legitimidade. Quer dizer, a capacidade de manter uma vinculação com as opiniões majoritárias no país e de praticar uma maneira de governo que seja fiel ao espírito e à letra da carta magna.

3 — A flexibilidade para controlar uma crise. Quer dizer, a capacidade do sistema político de prevenir e resolver crises do governo antes que a crise do governo se converta numa crise do regime.

Então, como eu defino o sistema parlamentarista e o sistema presidencialista?

Na minha opinião, se estivermos falando sobre características que são necessárias e suficientes, ambos os sistemas têm apenas duas características primárias.

O sistema parlamentarista é um sistema de dependência mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem a capacidade de dar um voto de não-confiança ao governo e, ainda, o Poder Executivo tem a capacidade de dissolver o Congresso e convocar eleições.

O sistema presidencialista é um sistema de independência mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem um mandato fixo e próprio, e o Poder Executivo tem seu mandato fixo e próprio.

Isso implica que ambos os poderes têm sua própria fonte de legitimidade e independência.

Uma análise ampla tem que estudar a fundo as tendências relativas aos incentivos institucionais e individuais de cada sistema de criar essas três capacidades.

Parece-me que a teoria de jogos e a análise de rational choice podem ser uma ferramenta útil neste estudo.

Esse ano, vou trabalhar muito sobre a questão de incentivos. Mas podemos fazer algumas observações preliminares sobre a capacidade relativa do sistema parlamentarista e o sistema presidencialista de criarem as três capacidades mais importantes para a consolidação democrática: a eficácia, a legitimidade e a flexibilidade para controlar uma crise.

Com respeito à eficácia

O sistema parlamentarista, por definição, é um sistema que depende da maioria de um partido ou normalmente da coalizão de partidos para sua existência no dia-a-dia. Há grandes incentivos para o governo negociar com o Congresso, porque a existência do governo depende da conservação de uma maioria. Além disso, para os membros do Congresso em coalizão, a sua participação no governo é real — e pode terminar se o governo cair.

Ainda não tenho a proporção exata, mas provavelmente os governos em sistemas parlamentaristas têm, durante 90% do tempo, maioria no Congresso.

Pelo contrário, num sistema presidencialista a existência do governo não depende do Congresso, e se estivermos falando de políticas necessárias, mas impopulares, o cálculo de incentivos para os membros do Congresso é a favor de um distanciamento do presidente.

Esse cálculo é ainda mais difícil com relação à eficiência, nos últimos dois anos do governo, quando não apenas a oposição, mas também os pré-candidatos presidenciais do partido do presidente quase sempre fazem sua própria política.

Eu tenho aqui uma lista sobre incentivos que existem, ou não existem, para que os membros do Congresso apóiem, ou deixem de apoiar, o governo que é de seu partido, ou de uma coalizão governante à qual pertencem.

Parece-me que, ao tratar este assunto através de uma análise sobre incentivos, parlamentarismo é um sistema que constrói partidos e governos, enquanto o presidencialismo os destrói. Em inglês, eu diria que presidencialism has party smashing tendencies, parlamentarianism has party building tendencies.

Enquanto a norma no regime parlamentarista é que o Executivo governe com maioria, a norma no regime presidencialista é que o Executivo raramente tenha maioria no Congresso.

Acho que ao final de muitas pesquisas poderei demonstrar que presidentes só têm maioria em ambas as casas menos de um terço do tempo. Isto obviamente tem impacto sobre a questão da eficácia, mas também sobre a questão da legitimidade.

Com respeito à legitimidade

E impossível que um governo parlamentarista governe contra a vontade da maioria da Câmara. Isso implica dizer que o uso de medidas excepcionais, como decretos e poderes especiais, é raro.

Dentre os sistemas presidencialistas, há muito, em meu universo de pesquisa, que nunca tiveram uma maioria legislativa nos últimos trinta anos. Nesses sistemas, ocorrem bloqueios ou impasses, ou ocorre a utilização de medidas excepcionais. Ambos são fatores negativos para a legitimidade.

Com respeito à flexibilidade institucional do controle de uma crise

Sim, há crise nos sistemas parlamentaristas, mas para o voto de não-confiança bastam 51% da câmara mais significativa, que quase sempre é a câmara baixa. Assim sendo, normalmente uma crise do governo não se torna uma crise do regime.

Ao contrário, nos sistemas presidencialistas a possibilidade de baixa eficácia e baixa legitimidade é mais alta. Entretanto, se estivermos falando da capacidade de reequilibrar o sistema político, um impeachments muito mais difícil, perigoso e virtualmente não ocorre. Se há mudanças no governo, normalmente não se devem a votos de não-confiança no Congresso e, sim, a ações político-militares.

Poderíamos falar muito mais sobre todas essas afirmações, mas vou passar aos dados quantitativos em nível mundial.

Meus dados ainda são preliminares, mas, com a ajuda dos oito institutos regionais de nossa Escola de Assuntos Internacionais da Universidade de Columbia, tenho alguma informação sobre todos os cento e poucos países que se tornaram independentes desde 1945.

Ainda estou classificando esses dados. Só os tenho na memória, e de forma muito preliminar.

Classifiquei os cento e poucos países em cinco categorias que são quase, para usar uma expressão da sociologia, mutually exclusive and collectively exhaustive. São elas:

1º) Sistemas que começaram sob o controle real de um monarca;

2º) Sistemas que começaram como regimes monopartidários revolucionários;

3º) Sistemas que começaram como regimes unipartidários não-revolucionários (Tanzânia);

4º) Sistemas que começaram como regimes presidencialistas;

5º) Sistemas que começaram como regimes parlamentaristas.

Os dados indicam — mas eu insisto que são preliminares — que os regimes presidencialistas são aproximadamente duas vezes mais sujeitos a sofrer golpes militares que qualquer das outras quatro categorias.

Os dados indicam ainda que 100% dos países de meu universo de pesquisa que tiveram sistemas democráticos de governo, por nove anos sem interrupção, entre 1979 e 1987, começaram sua vida independente como regimes parlamentaristas.

Ainda não tenho total certeza quanto a esses dados. Um problema é a importância quantitativa dos pequenos países da Micronésia e do Caribe. Mas trata-se de um indício interessante, e tenho que pensar mais sobre as evidências.

Gostaria agora de falar sobre o Chile, um de meus seis casos de estudo.

Por falta de tempo, farei apenas nove rápidos comentários:

1 — No mundo dos países democráticos, o Chile está numa posição muito singular, pois adota um sistema presidencialista, multipartidário. Vejam só o quadro. Se incluirmos todos os países, independentemente do tamanho, haverá no máximo 41 democracias sem interrupção no mundo entre 79-88. Dentro desse universo, (dependendo do critério de tamanho) os resultados são:

2 — Principalmente devido a essa posição, entre 1946 e 1973, só por dois anos o Chile teve um presidente com maioria em ambas as casas.

3 — Dado o medo de impasse ou bloqueio, e problemas com a eficácia, em 1943 e especialmente em 1970, houve reformas constitucionais (muito semelhantes à reforma havida no Uruguai em 1966) para aumentar os poderes de exceção de iniciativa do presidente.

4 — Se estivermos falando de eficácia, devemos falar não apenas da capacidade do sistema político de produzir maiorias, mas também da capacidade do governo de formular políticas e de negociar com corporações nacionais e transnacionais. Essa dimensão de eficácia está relacionada com a memória institucional do governo.

Esse ponto será importante no próximo livro do sociólogo argentino Juan Carlos Torres, que foi membro do governo Alfonsín.

Um possível índice de eficácia comparativa da memória institucional (IMI) poderia ser a duração do mandato ministerial por país.

Em nível intuitivo, vocês podem estimar que o México provavelmente terá a média mais alta, e a Bolívia, a média mais baixa de IMI, e segundo a obra, muito importante, de Waldino Suarez, sociólogo argentino, o México teve entre 1945 e 1980 uma média de duração ministerial de 47,9 meses, e a Bolívia teve uma média de 10,8 meses.

Qual seria a média no Chile?

Pois bem, só a Bolívia teve média mais baixa. O Chile teve uma média de 12,1 meses, sendo que no período Salvador Allende esta média caiu para 7 meses.

Gostaria de fazer duas observações mais genéricas sobre este ponto:a vida média de um ministro nos sistemas parlamentaristas é duas vezes mais alta do que nos sistemas presidencialistas; o sistema parlamentar tem uma taxa de retorno de ministros muito maior.

Entre 1945 e 1980, mais de 65% dos ministros no sistema parlamentarista serviram mais de um governo na sua vida pública, e menos de 25% dos ministros de governos presidencialistas voltaram a ocupar postos .ministeriais em outros governos.

5 — Obviamente, vocês podem fazer seus próprios cálculos sobre as possibilidades hipotéticas de um sistema de um simples voto de não-confiança no Chile em comparação com um impeachment.

6 — Com exceção da questão de Pinochet e os militares, a oposição chilena está segura de que terá a melhor transição na América Latina. A ausência de uma crise econômica é muito importante, mas a oposição dá ainda mais importância à sua capacidade de criar coalizões.

7 — Em conversas particulares, quase todos os dirigentes da transição, como Edgardo Bennenger, Ricardo Lagos, Sérgio Bitar, Andrés Zaldíver, reconhecem que a capacidade de fazer esta coalizão vem de dois fatores externos à própria coalizão: o medo da esquerda com relação a Pinochet; e a necessidade de ambos os partidos, PPD e PDC, de usarem votos da direita democrática para modificar a Constituição.

8 — Esses líderes .consideram que, quando começar a campanha presidencial de 1992, esses fatores extrínsecos à coalizão vão desaparecer.

9 — Publicamente, o presidente do PPD, Ricardo Lagos, o presidente do PDC, Andrés Zaldíver, o secretário-geral da Renovação Nacional (direita democrática), Andrés Allemand, afirmaram em agosto em Santiago, depois de nossa conferência de três dias, que o sistema presidencialista chileno deverá ser mudado por um sistema mais parlamentarista.

Gostaria de terminar com algumas reflexões sobre consolidação democrática e as implicações da flexibilidade e inflexibilidade dos mandatos.

O sistema parlamentar europeu deu flexibilidade a uma série de primeiros-ministros para poderem enfrentar diferentes problemas. Por exemplo: entre 1980 e 1981, Suarez na Espanha teve uma série de problemas com a direita e com os militares, mas avançou. Ele sabia que não teria mais força política e ia renunciar no dia em que houve a tentativa de golpe em 23 de fevereiro de 81. Em março de 81, seu sucessor levou a cabo a condenação dos rebeldes militares e findou-se esta fase. Quando este perdeu o apoio parlamentar, as eleições foram antecipadas e Felipe Gonzales venceu. Isto significa que graças ao sistema parlamentarista, em curto prazo de tempo, três primeiros-ministros levaram a cabo três tarefas distintas, com três mandatos distintos. Esta flexibilidade ajudou muito a consolidação da democracia espanhola.

Por outro lado, a inflexibilidade do calendário eleitoral presidencial na América do. Sul trouxe complicações para a consolidação.

Para concluir, gostaria que os senhores refletissem sobre as seguintes proposições e medissem a sua insensatez:

— Na Argentina, Alfonsín foi completamente derrotado nas eleições de 87, mas tendo que continuar no governo até 89, os militares recapturaram a sua força e a inflação fugiu de controle.

— No Chile, Patrício Aylwin, que apoiou o golpe de 73, poderia possivelmente ter sido primeiro-ministro numa fase de transição de-um ano com o apoio dos socialistas num sistema parlamentarista, mas é difícil para os socialistas aceitar que, dada a inflexibilidade do calendário presidencial, Patrício Aylwin vá ser presidente por quatro anos.

— O "Primeiro-ministro Sarney governou o Brasil entre 1985 e 1990".

Pensem nisso.

Obrigado por sua atenção.

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    Conferência magna do mês de novembro proferida pelo Prof. Alfred Stepan, decano da School of International and Public Affairs da Columbia University — New York.
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    ) Na transcrição, conservamos o tom coloquial da apresentação do dia 23 de novembro de 1989.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1990
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