Resumos
A Área Amazônica (AA) é compartilhada por oito países sul-americanos independentes. Desde os tempos coloniais sentiu-se a necessidade da construção de uma via de união da AA com o Oceano Pacífico. Mas os Andes, em termos técnicos e econômicos, foram barreira insuperável até as últimas décadas do século XIX. Nos últimos anos, para o Brasil - país que tem perto de 60% da AA -, esta via vem se tornando cada vez mais importante em termos de exportação, especialmente para o mercado japonês, de grãos, madeira, polpa de madeira etc., ao mesmo tempo em que o Japão também deseja acesso direto à AA. Brasil e Peru, segundo país da AA, com a maior e mais ocidental costa no Pacífico, têm desenvolvido projetos para a construção de uma estrada, contando para isso com apoio financeiro oferecido pelo Japão em diversas oportunidades. Tais projetos tentam conciliar não apenas os interesses de Brasil e Peru, mas também os da Bolívia, país mediterrâneo que poderia finalmente ter acesso livre à costa do Pacífico. Os Estados Unidos, porém, opõem-se a construção da mencionada via e, o projeto está a espera de que o financiamento anteriormente aventado permita sua concretização. Parece que, na construção da projetada estrada, interesses estratégicos das grandes potências mundiais estão envolvidos.
The Amazon Area (AA) is shared by 8 independent south american countries. Since colonial times it was felt the need of a road linking the AA to the Pacific Ocean. Up to the last decades of the 19th Century the Andes were, in technical and economical terms, almost an insuperable challenge. In the last years for Brazil, the country that has about 60% of the AA, that road has become almost a need for exporting grains, timber, woodpulp etc. (mainly to Japan). And Japan also wants an acess to that area. So, Brasil, together with Peru - the second, after Brazil, AA country that has the largest and westernmost coast in the Pacific - have developed projects for building that highway counting with the financial support of Japan, who offered it in several occasions. Those projects are trying to conciliate mainly (not only) the interests of Brazil, Peru and also of Bolivia, a mediterranean country that, with the highway, could finally have a free access to the Pacific coast. But USA is oppossed to building this road because the financing of Japan. Then, all the projects are again in stand-still. It seems that in the construction of the mentioned road are directly involved strategic interests of the big world powers.
ARTIGOS
Da Amazônia ao Pacífico cruzando os Andes1
Enrique Amayo Zevallos
RESUMO
A Área Amazônica (AA) é compartilhada por oito países sul-americanos independentes. Desde os tempos coloniais sentiu-se a necessidade da construção de uma via de união da AA com o Oceano Pacífico. Mas os Andes, em termos técnicos e econômicos, foram barreira insuperável até as últimas décadas do século XIX. Nos últimos anos, para o Brasil país que tem perto de 60% da AA , esta via vem se tornando cada vez mais importante em termos de exportação, especialmente para o mercado japonês, de grãos, madeira, polpa de madeira etc., ao mesmo tempo em que o Japão também deseja acesso direto à AA. Brasil e Peru, segundo país da AA, com a maior e mais ocidental costa no Pacífico, têm desenvolvido projetos para a construção de uma estrada, contando para isso com apoio financeiro oferecido pelo Japão em diversas oportunidades. Tais projetos tentam conciliar não apenas os interesses de Brasil e Peru, mas também os da Bolívia, país mediterrâneo que poderia finalmente ter acesso livre à costa do Pacífico. Os Estados Unidos, porém, opõem-se a construção da mencionada via e, o projeto está a espera de que o financiamento anteriormente aventado permita sua concretização. Parece que, na construção da projetada estrada, interesses estratégicos das grandes potências mundiais estão envolvidos.
ABSTRACT
The Amazon Area (AA) is shared by 8 independent south american countries. Since colonial times it was felt the need of a road linking the AA to the Pacific Ocean. Up to the last decades of the 19th Century the Andes were, in technical and economical terms, almost an insuperable challenge. In the last years for Brazil, the country that has about 60% of the AA, that road has become almost a need for exporting grains, timber, woodpulp etc. (mainly to Japan). And Japan also wants an acess to that area. So, Brasil, together with Peru the second, after Brazil, AA country that has the largest and westernmost coast in the Pacific have developed projects for building that highway counting with the financial support of Japan, who offered it in several occasions. Those projects are trying to conciliate mainly (not only) the interests of Brazil, Peru and also of Bolivia, a mediterranean country that, with the highway, could finally have a free access to the Pacific coast. But USA is oppossed to building this road because the financing of Japan. Then, all the projects are again in stand-still. It seems that in the construction of the mentioned road are directly involved strategic interests of the big world powers.
O Oceano Pacífico desempenhará então o
mesmo papel que atualmente desempenha
o Atlântico e que teve o Mediterrâneo na
antigüidade clássica... e o Atlântico descerá
ao nível de um grande lago como é o
Mediterrâneo hoje em dia.
Karl Marx (2)
Paz e Concórdia (3) são as palavras de ordem que sintetizam o espírito do que quer ser a era Heisei do imperador atual do Japão, Akihito. A escolha destas palavras pode ter sido o resultado de prudência e reflexão por parte da classe dirigente japonesa com relação a uma opção de longo prazo, pois na nossa opinião, sintetizam o essencial da doutrina de Segurança Nacional Compreensiva (SNC). A sucinta descrição dessa doutrina foi fundamentada essencialmente no trabalho do pesquisador Victor Kerber (4). E oportuno dizer que, com este artigo, não é nossa intenção aprofundar a discussão da SNC, do Japão, das Bacias Amazônica e do Pacífico ou dos Andes. Faremos referência a esses tópicos, e às suas inter-relações, somente quando ajudem a esclarecer a complexa problemática e os múltiplos interesses, principalmente de corporações multinacionais e de Estados, envolvidos na construção da grande via que unirá diretamente tais bacias. Assim, nos referiremos brevemente tanto à SNC como à crescente importância do Japão no cenário mundial e à Bacia do Pacífico como área com peso cada vez maior na economia mundial; da mesma maneira, veremos também as razões da crescente importância da Amazônia no cenário mundial. E, neste contexto não poderíamos deixar de nos referir ao papel dos Estados Unidos (EUA).
Por outro lado, como veremos posteriormente, a maior parte da Amazônia (que é do Brasil) poderá unir-se ao Pacífico através de uma estrada, pelo Peru. Nossa posição é que, para concretizar-se, esse projeto deverá preencher certos requisitos como os seguintes: uma comissão formada por integrantes do Brasil e Peru, considerados partícipes diretos, como veremos adiante, assessorada por cientistas conhecedores da região, determinará seu traçado final, de forma que a tecnologia a ser utilizada para a construção da estrada seja a menos destrutiva possível.
Além disso, tal projeto deverá contribuir ao desenvolvimento auto-sustentável, especialmente das áreas cruzadas pela estrada. Terá de contar com o apoio da sociedade civil e cooperar com a dinamização de um verdadeiro e independente processo de integração na América do Sul. Se a estrada contribuir para a integração sul-americana, estará contribuindo para o melhor relacionamento entre os países deste subcontinente e para a manutenção do clima de paz que tornará possíveis empresas cada vez maiores. Manter esse clima somente será possível com base em relações igualitárias e não-hegemônicas.
Como um dos propósitos deste artigo é contribuir para a manutenção da paz, assinalaremos áreas de prováveis conflitos porque a superação dos mesmos tornará possível mantê-la, viabilizando não só a estrada mas empreendimentos ainda maiores.
A Amazônia e o Pacífico
A Bacia Amazônica não tem limites comuns com a Bacia do Pacífico; mas sim com a do Atlântico. Nossa hipótese é que a dinâmica global da economia capitalista atual tornará obrigatório o estabelecimento de novos limites, ou seja, a realização de vinculação direta entre essas bacias. Em nossa opinião não somos economistas, geógrafos, biólogos ou ecólogos; somos historiadores interessados nas relações internacionais a Amazônia é importante basicamente como fonte de vida, por sua biodiversidade e seus recursos genéticos (respectivamente, possui os mais variados e maiores do mundo). Por essa razão, poderia servir como base de grande e diversificada indústria farmacêutica e de outras atividades econômicas compatíveis com a manutenção e o aproveitamento (manejo racional) das múltiplas formas de vida (vegetal e animal).
A Amazônia, além disso, é fundamental para o mundo por seus recursos hídricos, madeireiros e pela possibilidade de produzir quantidades substanciais de produtos tropicais e típicos da região (polpas, frutas cascas, resinas, óleos, essências, entre outros), não esquecendo que a região é, também, importante depósito de grande quantidade de minerais, gás, petróleo etc. Volumes expressivos de toda essa riqueza poderiam ser obtidos na Amazônia, desde que fosse adotada como condição sine qua non o desenvolvimento integral auto-sustentado. Esse tipo de desenvolvimento implica tanto na preservação (significando uso econômico não-destrutivo) quanto nos beneficiários que devem ser, em primeiro lugar, os habitantes da região e, depois, outros grupos sociais e regiões necessitadas (como parte de um processo de redistribuição).
Do nosso ponto de vista, a Amazônia não ficará à margem do Pacífico. Os vínculos, cedo ou tarde, serão estabelecidos através da sua saída natural, localizada no Peru; nós a chamamos natural porque é a distância mais curta e menos problemática entre a parte principal da massa territorial amazônica, localizada no Brasil, e o Pacífico. Observando o mapa 1 pode-se fazer tal constatação.
A costa peruana contem a parte mais ocidental da América do Sul; assim, relativamente, o Peru é o país sul-americano mais próximo do nordeste asiático, cujo eixo é o Japão, sub-região mais importante da Bacia do Pacífico. O investigador mexicano Kerber mostra que, das diferentes sub-regiões do Pacífico, a do nordeste asiático pode ser considerada como a mais crítica para a determinação da tendência internacional de hoje. O Japão é o centro desse nordeste onde coincidem os interesses dos Estados Unidos, da China e da ex-União Soviética (5). Portanto, na América do Sul, vincular-se à costa peruana significa aproximar-se do nordeste asiático.
Na verdade existem, além do mencionado, outros projetos de vinculação da Amazônia ao Pacífico através de diferentes países da América do Sul; pelas razoes já citadas, acreditamos que o mais vantajoso seria através do Peru. Existem vários projetos chamados corredores que a Comissão Técnica (CT) do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) (6) está considerando. Por exemplo: existe o projeto denominado pela CT de Corredor Belém-Iquitos. Também o chamado corredor inter-oceânico que uniria Belém com Manaus, seguiria pelo rio Putumayo, fronteira entre a Colômbia e o Peru, até chegar ao Equador, passando por Quito e terminando em Puerto de Esmeraldas no Pacífico equatoriano. Outro desses projetos é o conhecido como Corredor Rio Negro,, o qual conectada o Brasil com a Colômbia e a Venezuela. Outro ainda é o Corredor Trans-Oceânico de Rio Branco até Iñapari (no Peru) e, daí, a portos do Pacífico também no Peru, ao sul. O corredor chamado Cáceres-Santa Cruz iria de Mato Grosso (no Brasil) até a Bolívia.
De um total de 14 corredores do TCA, mencionamos apenas cinco por considerá-los os mais importantes para chegar ao Pacífico (7). Portanto, reafirmamos nossa opinião: fica evidente, ao observarmos qualquer mapa da América do Sul, que a saída natural da Amazônia ao Pacífico é pelo Peru. Além de mais curta, seria também a menos problemática, por envolver em possíveis tratados somente dois países Brasil e Peru; nos demais casos, participariam pelo menos três, à exceção da saída do Brasil através da Colômbia, a qual envolveria também apenas esses países. Mas, nesse caso, a distância percorrida do Brasil ao Pacífico seria maior e o ponto colombiano de chegada estaria mais longe do nordeste asiático. Se a opção fosse pela saída, através da Bolívia, seria conveniente lembrar que este país não tem mar, o que tornaria necessário conseguir-se um porto no Chile ou no Peru. A Bolívia, por sua vez, somente poderia aceitar uma estrada até o Chile se conseguisse resolver o seu próprio problema, um dos mais complexos da América do Sul, porque tem que fazer com sua mediterraneidade. No final da Guerra do Pacífico, Bolívia, que lutou junto com o Peru contra o Chile (1879-1883), por um tratado teve que ceder sua saída para o mar ao vencedor o Chile. Desde então, a Bolívia pede novo acordo para ter acesso ao Pacífico por alguma de suas antigas costas; o Chile responde, normalmente, não ser possível outro tratado por não considerar qualquer problema pendente com a Bolívia.
Por essas razões, a estrada através do Peru (8) seria a mais real possibilidade de união, até pelo fato deste país já ter dado à Bolívia acesso direto ao Pacífico no início de 1992. Portanto, a rodovia que uniria a maior parte da Amazônia (a brasileira) com o Pacífico (9) poderia também, desde que tomados os devidos cuidados, servir naturalmente ao processo de integração sul-americano. Para que possa realizar-se, em nossa opinião, deve ser conseqüência do proposto a seguir:
Um processo de discussão aberto entre Brasil e Peru, incluindo não apenas o governos, como até agora tem sido feito, mas a opinião e o debate pelo menos dos grupos organizados da sociedade civil. Principalmente, levando-se em conta as posições dos grupos que poderiam ser diretamente afetados. Por parte do Peru, especialmente, a discussão deve ser levada ao interior dos países formadores do Pacto Andino. A estrada em questão deverá atender aos interesses mútuos do Brasil e do Peru como é óbvio mas, também, considerar os interesses dos demais quatro países do Pacto (em conjunto, esses seis países detêm aproximadamente 98% da Amazônia). Parte dessas idéias já foram adiantadas por mim em declarações a uma revista editada em Lima (10). A discussão, nos termos sugeridos, poderia parecer perda de tempo, mas eliminaria múltiplos problemas, reduzindo a possibilidade de ressentimentos e desacordos entre os países amazônicos.
Essa estrada diminuiria ainda mais a importância do canal do Panamá (11). E necessário ter consciência desse fato e de suas possíveis conseqüências, tendo em vista que afetaria os interesses, principalmente geopolíticos, dos Estados Unidos. Acreditamos que ela poderia contribuir para tornar obsoleto qualquer plano de remodelação ou de construção de um novo canal (12). O Canal do Panamá controla a travessia de grande parte do comércio do Atlântico ao Pacífico e vice-versa, o que foi fundamental para a construção da hegemonia dos Estados Unidos em nível mundial e, especificamente, para o seu domínio sobre a América Latina e projeção na Bacia do Pacífico em direção à Ásia (através da grande base que é o Hawai) (13). Por essa razão, os Estados Unidos tratarão de encontrar quaisquer justificativas para opor-se à construção dessa estrada. E já o fez, envolvendo tudo com argumentos morais (14). Durante as cerimônias fúnebres do Imperador Hiroito, em fevereiro de 1988, o Presidente George Bush manifestou ao Primeiro Ministro Noburo Takeshita a sua oposição a que o Japão financiasse essa estrada caso não fossem realizados estudos prévios de impacto ambiental. Como era de se esperar, tal financiamento nunca se efetivou (15). O Japão, que parecia muito interessado em iniciar o financiamento da construção dessa estrada, passou, desde então, a declarar oficialmente que nunca havia tido tal interesse (16).
Os fatos até aqui expostos levam-nos a sustentar que, por sua enorme importância, quando a estrada em questão for finalmente construída, deverá sê-lo com fundos obtidos diretamente pelos países sul-americanos interessados, especialmente o Brasil e o Peru. Dessa forma, serviria a um processo real de integração, porque pela primeira vez na história, uma obra gestada por sul-americanos uniria diretamente a massa atlântica mais importante do subcontinente com o Pacífico. Ao mesmo tempo, tal empreendimento serviria como instrumento de negociação frente aos Estados Unidos e ao Japão, buscando ampliação da margem de benefícios mútuos e, portanto, de independência da América do Sul.
A estrada, em seu traçado final (17), deverá ser conseqüência de sérios estudos elaborados por comissões do Brasil e do Peru; especialmente este último, deverá tornar sua posição conhecida por todos os outros países-membros do Pacto Andino. Essas comissões deverão reunir-se em cada etapa, até conseguir a posição final que seja consensual. Deverão ser assessoradas por pessoas que, independentemente de sua nacionalidade, conheçam efetivamente a área, principalmente do ponto de vista científico. Conforme dissemos anteriormente, o traçado final da estrada terá de ser resultado tanto das consultas aos setores organizados da sociedade civil, sobretudo aos que habitam as zonas diretamente afetadas, o que significa incluir a importantíssima opinião indígena, como dos debates de âmbito nacional sobre o caso.
A multinacional Odebrecht e o Pacífico
Apesar de não haver ainda consenso (18) sobre o lugar por onde passaria a estrada e qual seria o porto peruano de saída, a opção que ultimamente parece estar se destacando é pelo sul, terminando em Ilo. Esta preferência poderia ser o resultado da persuasão e do investimento efetivo de uma multinacional brasileira a Odebrecht. Nesse sentido um assessor da Câmara de Deputados no Peru afirmou: "... a Odebrecht, célebre empresa construtora, recomenda [como porto de chegada] no Pacífico, a Ilo..." (19). Como se sabe, a Odebrechr é uma das maiores corporações do Brasil (20) e parece estar, no ramo da construção, entre as grandes empresas do mundo. Há algum tempo, a imprensa brasileira trouxe à luz elementos que fazem supor estar a empresa envolvida em caso de corrupção do ex-Ministro do Trabalho do Brasil, Antonio Rogério Magri. A Odebrecht teria presenteado o ministro com 30 mil dólares para colher frutos no valor de 223 milhões de dólares por obras de saneamento nos estados do Acre e do Amapá (21).
Ao que parece, para a Odebrecht, presentear indivíduos ou coletividades constitui maneira de plantar sementes de simpatia, para depois colher em abundância; por isso deve-se levar em conta informações como a seguinte: "A Construtora Norberto Odebrecht é citada em nove de cada dez escândalos do governo Collor" (22). Talvez presentear seja uma prática fundamental na estrutura dessa empresa. A revista Veja afirma ter a Odebrecht, em 1991, feito negócios por 2 bilhões de dólares, empregando 44 mil pessoas no Brasil e nos 14 países em que opera (23).
O observado ajuda a tornar compreensível a razão pela qual, no Peru, tem peso cada vez maior a idéia de que a saída pelo sul, especificamente por Ilo, seria a melhor. Costuma-se dizer isso sem saber explicar exatamente o porquê da afirmação. O certo é que, neste momento, não estamos em condições de dar tal explicação; em compensação, pode-se afirmar não haver argumentos definitivos para essa assertiva (24). Não há ainda consenso sobre qual seria a melhor saída para o Pacífico. Talvez, não o sabemos, Ilo seja de grande importância para a estratégia multinacional da Odebrecht. Essa empresa, além dos vultosos negócios que mantém no Peru e no Acre (25), tem também interesses no Chile (26). Talvez esses interesses últimos estejam em território chileno, quase no limite com o Peru, para os quais o porto de Ilo resultaria muito útil e estratégico (27).
O Japão e a doutrina de Segurança Nacional Compreensiva
A era Heisei do Imperador Akihito, iniciada quando ascendeu ao trono em 7 de janeiro de 1989, como dissemos tem como lema Paz e Concórdia. Em nossa opinião, não é por casualidade que essas palavras inaugurais coincidem com documentos essenciais para definir (e entender) a política externa e o papel do Japão no mundo. Estamos nos referindo a documentos como: O informe Nomura, o informa Inobi e o informe Okita (28). Esses documentos são essenciais para a definição político-estratégica de Segurança Nacional Compreensiva, sem a qual é difícil apreender as ações atuais do Japão.
Na apresentação do trabalho de Kerber lê-se: O Japão sabe que sua sobrevivência depende pura e simplesmente dos energéticos e do comércio. Sabe também que necessita de segurança compreensiva, o que significa o manejo simultâneo das capacidades de defesa, de driblar e administrar a crise, de acesso aos energéticos e aos recursos vitais, de maximização do seu comércio e de uma diretriz para conduzir as etapas de transição do modelo de produção de bens industriais para o de produção de bens e serviços. Para que se confirme o que foi dito, o Japão necessita de permanente interdependência ou osmose (cooperação funcional) com o seu ambiente geopolítico primário: a Bacia do Pacífico. Em escala mundial, este tipo de segurança produziria, no século XXI, a capacidade de impor um modelo alternativo e diferente dos conhecidos ate hoje, como modo de articular o poder: A liderança compartilhada do sistema global (29).
O elemento fundamental da SNC é a cooperação, aqui entendida como busca de acordos seguros com outros Estados, como conseqüência do ajuste mútuo de interesses. Portanto, o intercâmbio é assegurado porque serve a interesses mútuos.
Para o Japão, participar do comércio internacional é um imperativo vital e para que isto seja possível é essencial a manutenção da paz (30). Essa busca da paz é apoiada por grandes setores populares. O Japão é o único país da Terra vítima de explosões atômicas. O trauma gerado pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki é fundamental para explicar essa mobilização pela paz. Recordemos, por exemplo, que o Tratado de Segurança com os Estados Unidos, modificado em 1960, desencadeou movimento popular sem precedentes na história do país. Nos anos anteriores a 60, a população japonesa começou a mobilizar-se para erradicar esse Tratado. O temor de mantê-lo, modificado ou não, aumentaria o perigo de uma guerra (especificamente com a ex-União Soviética que poderia ver como nociva aos seus interesses a aliança Japão-EUA).
O pesquisador Matsushita diz que a mobilização popular no Japão não tem precedentes na história desse país. Afirma também que o partido governante, o Liberal Democrata, conseguiu com muitos esforços ratificar o tratado, ao custo de uma aguda polarização do país. Ainda segundo esse autor, o governo lançou um ambicioso plano de desenvolvimento econômico, cuja meta era duplicar o ingresso per capita em dez anos; a intenção verdadeira era distrair a atenção do povo do problema político. Esse plano triplicou o ingresso per capita e tornou-se parte das bases do Japão de hoje (31). Então, para esse país a paz não é importante somente por determinantes internacionais; tem profundas raízes dentro do próprio Japão (32). Além disso, é caso único no mundo porque na Constituição que adotou após a II Guerra, no artigo 9, o Japão estabeleceu que "... renuncia à guerra como direito soberano da nação e à ameaça do uso da força como meio para solucionar as disputas internacionais..." (33).
Para que se compreenda isto melhor, é importante considerar ser o Japão paupérrimo em recursos naturais, sendo vital para sua existência que o mercado mundial funcione sem interferências. Para exemplificar: o Japão importa 99% de seu petróleo, 86,85% de seu carvão, 94,40% de seu gás natural, 99,70% de seu ferro, 96,80% de seu cobre, 80,80% de seu chumbo, 61,70% de seu zinco e 100% de seu alumínio (34). Nesse contexto, torna-se extraordinariamente perspicaz a frase de Isaac Asimov: "pelos recursos naturais o Japão é como o escaravelho: não pode voar" (35). Mas, como todos sabemos, o escaravelho voa e voa bem.
Para que o Japão possa voar, ou seja, para que os recursos naturais possam chegar ao país ininterruptamente, é necessário ter um mercado mundial totalmente aberto e, para isso, a condição sine qua non é manter ótimas relações com os EUA. Esse procedimento é muito importante para o Japão, que adotou uma Constituição em grande parte delineada pelos Estados Unidos. Porém, essas relações, à medida que aumenta o peso do Japão na economia mundial, tendem a evoluir no sentido da partilha do poder. A maneira como se dará essa partilha é esquematizada pelos gansos voadores (36). Os gansos, ao voar, desenham um "V": todos são iguais mas têm um líder, que é o vértice e está à frente, traçando a rota. Voam juntos, aceitando ao mesmo tempo a hierarquia c a cooperação. O Japão aceita que em nível mundial o ganso líder seja os Estados Unidos mas, no nordeste asiático, na sub-região mais importante da Bacia do Pacífico, é ele o líder. Este fato se dá também por força dos indicadores econômicos mundiais que mostram o Japão ainda longe dos Estados Unidos como formador do Produto Bruto Mundial. Nos anos 1984-85, do Produto Nacional Bruto (PNB) mundial, o Japão e os EUA geraram 12,5 e 36%, respectivamente (37). Para o ano 2000 há previsão de que o Japão contribuirá com 13,5% e os EUA com 27,6% (38) do PDB mundial. Isso demonstra mudança significativa: o Japão aumenta permanentemente o seu peso na economia mundial enquanto os EUA tendem a diminuí-lo (39).
A cabeça mundial dos gansos continua sendo os EUA mas, na sua subárea-chave, que é a Bacia do Pacífico, o Japão lidera. Essa Bacia tem peso cada vez maior na economia mundial. Portanto, compartilhar o poder (o que implica a aceitação tanto da hierarquia como da cooperação) seria o objetivo básico da SNC. Está implícito também que a ordem hierárquica pode mudar com o tempo, assim como, por diversas circunstâncias, pode mudar o cabeça dos gansos voadores.
A importância do Pacífico
A informação a seguir tornará evidente essa importância dentro do cenário mundial.
A Bacia do Pacífico é composta por subáreas. Como já observado, a mais importante é a que se forma no nordeste asiático, pois nela convergem interesses dos EUA, China, ex-União Soviética e Japão. Quer dizer, grandes potências do mundo, à exceção do Mercado Comum Europeu, chegam diretamente a essa região. Nessa área estão localizados também alguns dos tigres asiáticos: Coréia do Sul, Hong Kong e Taiwan. Concentra aproximadamente 30% da população mundial. Essas características fazem da subárea o eixo da Bacia do Pacífico. O sudeste asiático, porém, com Indochina, Birmânia e Filipinas, entre outros países, é também considerado importante. Densamente povoado, possui territórios ricos em matérias-primas, aptos à agricultura intensiva.
Com relação a essas duas subáreas nordeste e sudeste asiáticos o Pacífico Sul (Austrália, Nova Zelândia etc.), com pequena população e territórios e recursos fartos, adquire importância pelo menos similar ao sudeste asiático. Diante disso, os sul-americanos do Pacífica, aparecem quase como marginais, a despeito de ter imensos territórios e recursos (pesca, cobre, chumbo, zinco, ferro, gás, carvão, petróleo). Além de riquíssima biodiversidade, recursos genéticos, grandes extensões para agricultura intensiva e regular população. À distância, poderia parecer que o acesso limitado ao rico interior sul-americano pelo Pacífico contribue para essa marginalidade; em nossa opinião, o acesso direto poderia mudar a situação.
A Bacia do Pacífico não é importante apenas pelo que acabamos de mencionar. Vista em conjunto, é a maior produtora de tecnologia, com mais de 50% da população mundial, ou seja, do maior mercado consumidor potencial da Terra. Assim, torna-se cada vez mais evidente que é com relação à Bacia do Pacífico que a Bacia Amazônica vai adquirindo importância crescente.
A Bacia Amazônica: área sul-americana compartilhada
É importante dizer que a Bacia Amazônica (BA) pertence a oito países amazônicos independentes: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Em todos os casos, especialmente na Bolívia, no Peru e no Brasil, a parte desses países correspondente à BA é componente significativo na totalidade de seus respectivos territórios (40). Considerando o dado mencionado sobre a BA como um todo, ao Brasil correspondem 3.872.000 km2 e ao Peru 968.000 km2 (41).
Portanto, a Amazônia é uma região compartilhada por vários países sul-americanos, existindo inclusive o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), firmado por esses oito países em Brasília, em 3 de julho de 1978. E surpreendente que, no Brasil, onde se fala tanto da Amazônia principalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) do Rio de Janeiro atribua-se tão pouca importância a esse tratado. Saber de sua existência chega a ser assunto de superespecialistas. Os países do TCA ainda não decidiram onde será estabelecida sua sede permanente e por esse motivo sua Secretaria Pro-tempore é transferida a cada período; atualmente está em Quito. No entanto, o TCA, dada sua importância, de vez em quando é reconhecido até pelo Brasil. Em 1989, repentinamente reviveu, quando novamente foi levantado o fantasma da internacionalização da Amazônia, sobretudo por obra do Presidente François Mitterrand. Na Conferência do Meio Ambiente de Haya, ele propôs a criação de uma alta autoridade mundial para questões ambientais com capacidade de ingerência, o que poderia vir a limitar as soberanias nacionais sobre bens considerados de interesse para a humanidade, como a Amazônia. Diante de tal situação, o Brasil solicitou (e logicamente conseguiu) o apoio dos países signatários do TCA. Isso ocorreu em Manaus, a 6 de maio de 1989, na chamada Declaração da Amazônia, emitida por todos os chefes de Estado dos países signatários; o anfitrião foi o Presidente José Sarney. Nessa ocasião foi rechaçada a internacionalização e aprovada a cooperação externa, desde que não questionasse a soberania dos países membros do Tratado (42). Posteriormente, o TCA praticamente desapareceu dos noticiários brasileiros, até a reunião de fevereiro de 1992 quando, na Declaração de Manaus, os Chefes de Estado do Tratado adotaram posição comum a ser levada à CNUMAD (Rio-92 ou ECO-92) (43). Elemento fundamental desse documento foi a vinculação da preservação da natureza com a eliminação da pobreza. Os Chefes de Estado iniciaram a Declaração afirmando: "Estamos convencidos de que a um planeta ambientalmente saudável deve corresponder um mundo social e economicamente justo" (44).
A importância do TCA reside no reconhecimento da soberania de cada um dos países signatários sobre a parte que lhe corresponde da Amazônia a isto se chama regionalização, como conceito oposto a internacionalização permitindo também discussão e tomada de posição sobre a problemática do conjunto. Trata-se de um importante germen de integração sul-americana, mais ainda se considerarmos ser esse o único pacto que reúne países do Pacífico e do Atlântico deste subcontinente.
O território a cruzar para chegar ao Pacífico
Características
O Peru tem 1.286.000 km2, sendo o terceiro país da América do Sul e o sexto do continente em extensão territorial; além disso é classificado como o segundo país amazônico e o primeiro andino-amazônico. O rio Amazonas nasce no Peru, no Nevado Mismi, a 5.597 m acima do nível do mar (a.n.m.) (45). São fatos geográficos reconhecidos internacionalmente.
O nome Amazonas foi dado por acaso por Francisco Orellana, que o chamou de Gran Rio de las Amazonas, por ocasião de uma viagem de exploração feita em 1541, a mando do primeiro governante europeu do Peru, Francisco Pizarro. O empreendimento dos espanhóis, auxiliados por índios andinos, começou em Cusco e chegou a Quito. Depois de parar nesta última cidade, os exploradores retomaram o caminho até a que seria a parte definitiva da viagem, já sob o comando de Orellana. Em termos do descobrimento do rio por parte da história ocidental, foi Orellana quem conseguiu navegá-lo, até o Atlântico, e o chamou de Amazonas (46). Portanto, a viagem que deu origem ao nome com o qual esse rio (e toda a Bacia) é conhecido no mundo foi, historicamente, resultado de uma delegação do governo do Peru, iniciada no seu território.
A cartografia internacional geralmente reconhece que o rio Amazonas, com esse nome, nasce no Peru, da confluência dos rios Marañon e Ucayali, em Puerto de Nauta (47). Um atlas nórdico de grande prestígio internacional reconhece esse fato; nele, o Amazonas transforma seu nome em Solimões ao entrar no Brasil (48). A Enciclopédia Britânica faz o mesmo reconhecimento (49). No entanto, a cartografia brasileira não reconhece a existência do rio Amazonas fora do Brasil. Exemplo é o Mapa de vegetação do Brasil que chama a esse rio, no seu percurso fora do território brasileiro de Marañon (50) e o mapa do Projeto Radambrasil, da mesma forma, muda para Solimões, a denominação do rio ao entrar no Brasil (51). Torna-se ainda mais evidente esse não reconhecimento quando observamos que no Britannica Atlas o rio Amazonas é assim chamado desde a sua nascente no Peru, enquanto na Geopedia, versão brasileira desse Atlas, é mencionado: "Amazonas (Marañon)" (52). No Mapa 1, que é brasileiro e vem anexo a uma agenda, o rio que se origina no Peru, da união do Marañon com o Ucayali não tem nome; já no Brasil, depois de determinado trecho, é chamado Solimões e, finalmente, Amazonas.
Por que essa diferença entre a cartografia brasileira e a internacional? Por que essa diversidade entre a geografía e a história? Sabemos que os nomes não são gratuitos: têm significado, sentido e propósito. Se nem a geografia nem a história justificam a recusa do Brasil em reconhecer o uso do nome do rio Amazonas fora do seu território, então, a resposta ao porquê desse procedimento talvez não esteja, nestas disciplinas e sim na geopolítica. O tema, que merece tratamento especial, escapa ao alcance deste estudo e não tentaremos fazê-lo aqui.
Com o nome de Amazonas, esse rio (batizado em Quechua, a língua dos Incas, desde tempos imemoriais com uma palavra que significa pai dos rios) corre no Peru por quase 700 km, sendo os últimos 150 km compartilhados com a Colômbia, antes de entrar no Brasil.
Finalmente, como dado importante desta parte do estudo, vale dizer que o Peru tem 2.823 km de fronteiras com o Brasil e, entre os dez países que se limitam com o território brasileiro, apenas a Bolívia possui maior extensão de fronteira comum.
As estradas existentes
E importante dizer aqui não ser correta a idéia difundida em alguns círculos brasileiros de que não existem estradas que unam a Amazônia com o Pacífico; no Peru existem três vias chamadas de penetração (53). Uma ao Sul, desde Iñapari (em Madre de Dios) até Inambari, continuando de maneira complicada e difícil, até vincular-se finalmente com os portos de Ilo, Matarani, San Juan e Pisco. Outra, ao Centro do país, desde Pucallpa termina em Lima, no porto El Callao; tal estrada, em Tingo Maria, abre um ramal que se vincula com a via de penetração do Norte. E esta última vai desde Tarapoto até os portos de Pimentel, Bayovar e Paita.
Deve ser considerado que nenhuma dessas estradas é asfaltada em todo o seu percurso; apenas pequena parte delas recebeu asfaltamento, sendo o restante de terra batida, sem bater e apenas transitáveis (54). São estradas muito estreitas (geralmente para um só carro, trafegando num único sentido), em péssimo estado de conservação (semelhantes à BR-364 quando passa pelo Acre), utilizáveis em sua parte amazônica apenas por dois ou três meses ao ano, porém existem (55). Como visto anteriormente, entre o Brasil e o Peru existem acordos bilaterais para a construção de estradas. Dentro do TCA, na reunião de Manaus com Ministros de Transportes dos países do Tratado (realizada em 26 e 27 de outubro de 1989 a pedido do Brasil), foi sugerida a criação de 14 corredores de transportes prioritários. Esses corredores, que adotam o sistema intermodal, cruzarão a Bacia amazônica em vários sentidos. Como foi observado, um desses corredores (já aprovado) é o Assis Brasil-Iñapari, com provável extensão que vincularia Cruzeiro do Sul a Pucallpa. Assim, o que não existe são as estradas que unam definitivamente o Brasil e o Peru, ou seja, faltam os trechos de Assis Brasil a Iñapari ou de Cruzeiro do Sul a Pucallpa (56). A BR-364, que permite finalmente a união com o Porto de Santos (57), é asfaltada somente até Porto Velho (Estado de Rondônia) (58).
Alguns problemas específicos a enfrentar. A estrada no Peru
Partimos do pressuposto de que na parte peruana existem estradas que ligam a Amazônia ao Pacífico. Mas, como vimos, são limitadas, especialmente quando se trata de transporte massivo (principalmente desde o Brasil) (59). As pequenas estradas peruanas teriam de ser totalmente refeitas e o porto (ou portos) de chegada, ampliados substancialmente. Refazê-las, na Amazônia peruana traria como conseqüência os problemas já conhecidos, especialmente pelo Brasil: destruição de comunidades nativas, devastação de florestas e solos, destruição de nichos ecológicos. Isto significaria a destruição de diversas formas de vida, além da mobilização incontrolável de garimpeiros que se deslocariam utilizando essa estrada etc. São problemas conhecidos e não vamos nos deter neles. Mas ainda teríamos de enfrentar outros, relacionados com algumas características quase específicas do Peru.
Problema eco-geográfico
A estrada para o Pacífico (sentido Leste-oste), teria de cortar todo o maciço dos Andes, que atravessam o Peru de Sul a Norte. São três cordilheiras gigantescas, com largura média aproximada de 450 km e mais de 3.000 m a.n.m. (60). Os Andes contribuem de maneira determinante para a enorme diversidade natural do Peru; daremos a descrição dessa diversidade, feita por Antônio Brack, reconhecido ecólogo peruano. Ele diz que o Peru é um país marcado pela diversidade e pela heterogeneidade. A heterogeneidade expressa-se pelo geográfico, pelo biológico e pelo ecológico. A heterogeneidade geográfica refere-se aos quatro grandes espaços (mar, Costa ou chala, Sierra ou Andes e Amazônia ou selva) entre 8 e 16 províncias bio-geográficas, 84 zonas de vida das 103 existentes no mundo, três bacias hidrográficas etc. A heterogeneidade climática compreende 28 climas com grande variação local. A heterogeneidade edáfica é referida às sete regiões geoedáficas e à grande variedade local de solos. No hidrológico dá-se grande variação nas propriedades físicas e químicas das águas, por bacias, altitude e latitude. Na Serra existem mais de 12.700 lagos e lagoas e, na Selva, milhares de cochas (grandes poços d'água). Diz ainda o ecólogo que a diversidade biológica de ecossistemas, espécies e germoplasmas é extraordinária pois o Peru possui entre 40.000 e 50.000 espécies de plantas, das quais estão descritas apenas cerca de 20.000. São conhecidas aproximadamente 1.200 espécies de plantas úteis como madeiras, plantas ornamentais, alimentícias, produtoras de borracha, corantes, fibras, essências aromáticas, óleos, alucinógenos, medicinais etc. A diversidade de espécies da fauna é também muito grande: 362 espécies de mamíferos, 9% das espécies existentes no mundo; 1.703 espécies de aves, 18,6% das existentes; 296 espécies de répteis, 5% do mundo; 235 espécies de anfíbios, 7% do mundo; e 1.500 espécies de peixes. Na copa de uma só árvore, em Madre de Dios, foram encontradas 5.000 espécies de insetos, 80% deles novos para a ciência. Brack continua dizendo que este país é o maior centro de espécies nativas domésticas. Refere-se às plantas nativas, que chegam a 155 espécies e aos tipos domésticos de animais (llama, alpaca, cuy ou coelhinho-da-Índia e o pato crioulo ou do Peru). De algumas plantas domésticas conhecem-se milhares de variedades: as batatas são classificadas em oito espécies, com variedades cultivadas desde o nível do mar até os 4.750 m de altitude, façanha quase inacreditável das culturas peruanas pré-hispânicas. O pesquisador continua, dizendo que a diversidade biológica da floresta amazônica peruana talvez seja a mais eminente, possuindo até 300 espécies de árvores com mais de 800 unidades por hectare. Somente no entorno de Iquitos são conhecidas 182 espécies de plantas nativas que produzem frutos comestíveis. Na Zona Reservada de Tambopata (Madre de Dios), em 550 hectares foram registradas 91 espécies de mamíferos, 570 de aves (tantas como nos Estados Unidos), 127 de répteis e anfíbios, 94 de peixes, 40 de termitas, 29 de libélulas, 600 de coleópteros, 73 de tabanídeos e 39 espécies de abelhas. Afirma ainda o ecólogo que a diversidade ecológica caracteriza-se pela sucessão de diversos pisos ecológicos, em um pequeno espaço, em forma transversal e longitudinal: mar frio, mar tropical, desertos, vales quentes, quechua, suni, puna, jalea, janka, yunka fluvial, rupa-rupa, omagua etc (61). Cada um desses pisos possui condições ambientais e espécies próprias. Tal heterogeneidade eco-geográfica permitiu o desenvolvimento de inúmeras culturas aborígenes, hoje características de um Peru unitário, porém pluricultural. E continua dizendo que as diversidades geográfica, ecológica, biológica e cultural oferecem verdadeiras possibilidades para o desenvolvimento sustentável, mediante a utilização dos recursos naturais disponíveis.
Além disso, o domínio marítimo peruano compreende quase 3.000 km de costas. A superfície marítima de 863.000 km2 com abundantes e variados recursos hidrobiológicos e alta produtividade, devidos a seu complexo sistema de correntes marinhas. A produtividade na zona de influência da Corrente Peruana de Humboldt (cerca de 300.000 km2) é uma das maiores do mundo, atingindo até 11,7gC/m2/dia nas áreas de afloramento e uma média de 3,lgC/m2/dia no restante. O potencial pesqueiro é extraordinário com biomassa calculada em 30.000.000 t de peixes, o que seria suficiente para suprir com as proteínas necessárias sua população, gerando consideráveis excedentes para exportação. No entanto, observa o autor, quanto às terras evidencia-se a escassez daquelas adequadas à agricultura, que chegam apenas a 7.609.000 ha, o que quer dizer, 5,9% da extensão territorial peruana. Predominam as terras próprias para pastagens (13,94%), as de aptidão florestal (37,90%) e as de proteção (42,25%). Na Sierra, zona de de pobreza crítica, estão localizados 2,5 milhões de ha apropriadas a reflorestamento. Na região existe também cerca de 18 milhões de ha de pastos naturais alto-andinos adequados à criação e ao manejo dos camélidos sul-americanos domésticos (lhama e alpaca) e selvagens (vicunha e guanaco). O Peru possui 90% da população mundial de alpacas, 82% de vicunhas, 26% de llamas e apenas 1% dos ovinos.
O recurso água é abundante, porém mal distribuído. A água é escassa na Costa, onde vive a maioria da população, nas vertentes ocidentais andinas e em grande parte da Sierra. É de disponibilidade sazonal, sendo mais abundante no verão. Por sua complexa orografia e pronunciado desnível das vertentes, a capacidade hidroenergética é muito grande.
Brack nos informa que o país possui 74 milhões de ha de florestas, especialmente na Amazônia, onde a possibilidade de utilização de recursos diversos é significativa. Essas florestas contêm 3 bilhões de metros cúbicos de madeiras nobres, além de grande variedade de plantas úteis, fauna silvestre, etc. Portanto, as possibilidades do manejo de recursos hidrobiológicos continentais são consideráveis na Sierra e na Amazônia. A Sierra possui 12,700 lagos e lagoas próprios para o desenvolvimento da piscicultura com auxílio da tecnologia. Na selva, os recursos hidrobiológicos contribuem para a alimentação com cerca de 31.000 t anuais, isso representando apenas 10% do que poderia ser explorado. Brack chama a atenção para o fato de a diversidade de pisos ecológicos ser um importante recurso, principalmente quando vinculado à diversidade de espécies, de germoplasma e de ecossistemas. As jazidas minerais metálicas e não-metálicas são importantes e pouco exploradas de forma adequada. A mineração representa enorme potencial, pois as reservas minerais e de gases do Peru estão entre as mais importantes do continente. Para explorá-las, porém, torna-se necessário eliminar seu impacto negativo sobre outros recursos naturais como água, solo, atmosfera e sobre o ambiente humano.
Finalmente, diz o ecólogo, a biodiversidade e as espetaculares paisagens que ambientam grandes monumentos arqueológicos e manifestações culturais originais, constituem notáveis recursos turísticos. Nesse país podem ser encontradas quase todas as paisagens existentes no mundo, entre as quais mares frios e tropicais, bosques secos, tundras, montes nevados, bosques nebulosos e selvas emaranhadas.
Conclui, afirmando que as potencialidades do Peru estão especialmente em seus recursos hidrobiológicos marinhos e continentais, agricultura diversificada na Costa e na Sierra, gado camelídeo e transformação de seus produtos, manejo integrado de sua floresta amazônica, reflorestamento da Sierra, mineração, hidroenergia, eco-turismo, aproveitamento da diversidade genética e agroindústria. Até o momento, porém, o modelo de desenvolvimento adotado pelo Peru não integra adequadamente aspectos relativos aos recursos naturais com crescimento econômico, distribuição equitativa da riqueza gerada e eliminação do impacto ambiental negativo (62).
Os Andes são a coluna vertebral do país e podem explicar essa grande diversidade do Peru, um território de média extensão.
Dos onze principais tipos de clima classificados por W. Koppen relativamente ao mundo, o Peru detém oito: selva tropical, savana, estepe, desértico, úmido temperado, frio boreal, tundra seca de grandes alturas e neve perpétua de alta montanha (63). Segundo o sistema de Holdridge, na Terra há sete regiões latitudinais (três delas existentes no Peru) e sete pisos altitudinais (o Peru possui todos eles); ainda, segundo Holdridge, no nosso planeta existem doze Províncias de umidade (dez são encontradas no Peru) e 103 zonas de vida (84 delas possuídas pelo país) (64).
Poucos países no mundo tem natureza tão variada como o Peru; nele evidencia-se a extraordinária diversidade eco-geográfica. Portanto, a estrada da Amazônia ao Pacífico percorrerá quase toda essa diversidade e, especificamente nos Andes, terá de atravessar grandes altitudes.
Megadiversidade geográfica e problemática tecnológica
Essa diversidade é problemática para a adaptação humana sobretudo em se tratando de brasileiros ou de outras nacionalidades não andinas às mudanças regionais e climáticas muito intensas e ao trabalho por longos períodos em grandes altitudes. Isso implica também problemas técnicos, pois, em geral, máquinas não são projetadas para trabalharem em condições tão extremamente variadas. Os peruanos já superaram obstáculos tanto no processo de adaptação humana (65) quanto de máquinas ao construírem suas pequenas estradas. Os trabalhadores andinos, com tecnologia adaptada, repetida em escala maior e em melhores condições, serão fundamentais para o êxito do projeto.
Atualmente, em nossa opinião, nada há que esteja sendo feito, mesmo em dimensões gigantescas, com possibilidade de servir como referência para os trabalhos necessários à construção dessa estrada; poderia ser comparável ao processo das ferrovias peruanas, mas estas foram feitas no século XIX. De qualquer modo, para se ter alguma referência, vale a pena recordar brevemente essas construções ferroviárias.
Para se ter idéia da enormidade e do custo desses trabalhos, tanto em termos de vidas humanas quanto financeiros, consideremos o seguinte exemplo. No auge das construções ferroviárias no país (1872) operavam simultaneamente entre 20 e 25 mil trabalhadores, em escala até então desconhecida na América Latina (66). Afirma-se que só a construção da Ferrovia Central custou dez mil vidas (67). No projeto original, que nunca chegou a ser concluído, a Central deveria chegar ao ponto fundamental da Amazônia peruana, ou seja, Iquitos. Com a construção de um ramal, chegou apenas ao começo da Selva Central, em Concepción, Departamento de Junin. Essa ferrovia é considerada pela Real Sociedade Ferroviária Britânica como a obra-prima da engenharia ferroviária mundial. Em nosso estudo, porém, consideramos como mais importante a Ferrovia do Sul. Isso porque há grande probabilidade de que a rodovia rumo ao Pacífico seja pelo Sul. Se realmente for construída, muitos dos seus segmentos correrão paralelamente à chamada Ferrovia do Sul (68).
Essa Ferrovia também chega à entrada da Amazônia, através do ramal que vai até Quilhabamba, no Departamento de Cusco. As ferrovias peruanas não só estão entre as mais admiráveis obras de engenharia ferroviária mundial como também entre as mais dispendiosas. Quando foram construídas, dizia-se que cruzavam os Andes por cima das nuvens. Muitos críticos contemporâneos da sua construção comentavam que o verdadeiro êxito desse empreendimento não era cruzar os Andes a mais de cinco mil metros de altitude, mas obter contratos que pagassem 40 mil libras esterlinas por milha construída (69).
Os comentários anteriores possibilitam que estejamos conscientes dos enormes problemas a serem enfrentados para construir uma estrada que resista ao tráfego intenso e de carga pesada, ou seja, suporte o trânsito de 100 mil caminhões, carregando 30 t cada um. Uma obra dessa natureza, a exemplo do ocorrido durante a construção das ferrovias peruanas, poderia significar contribuição expressiva à engenharia mundial. Assim como a adaptação do maquinário para funcionar em grandes altitudes seria significativa à evolução da mecânica. Neste caso, seria importante, tanto para o Brasil como para o Peru, contar com a colaboração e a transferência de tecnologia do Japão e dos EUA.
Finalmente, acreditamos que o custo por quilômetro de construção da estrada projetada será umas três vezes maior no território peruano comparado ao brasileiro.
Problema arqueológico
A estrada poderia destruir locais de valor incalculável para a humanidade. O Peru, especialmente ao Sul, é o coração da cultura andina incaica e pré-incaica; seu território foi assentamento da maioria das grandes culturas pré-colombianas sul-americanas. Com aproximadamente 80 séculos de história agrícola e 40 séculos de história urbana, o país ainda não descobriu todos os lugares importantes das numerosas culturas pré-hispânicas que o habitaram. Os restos arqueológicos jazem quase literalmente na totalidade do seu território, ocorrendo freqüentemente importantes achados arqueológicos. Dessa forma, uma obra gigantesca como a projetada estrada, poderia arrasar sítios arqueológicos ainda não conhecidos e que poderiam ser únicos para a cultura da América e do mundo. Nos últimos anos o Peru tem vivido um boom sem precedentes em termos de descobertas arqueológicas: em 1987, na Costa Norte, foi descoberta a tumba não-saqueada mais rica do Novo Mundo, a do Señor de Sipan (70). Dois anos depois, no mesmo local, encontrada outra tumba, ainda mais opulenta, a do Viejo Señor de Sipan (71). Os achados continuam, o que nos leva a crer que em termos arqueológicos talvez estejamos vendo apenas a ponta do iceberg. A ninguém deveriam surpreender descobertas ainda mais extraordinárias em um ponto qualquer do território, a qualquer momento.
Além das possibilidades já mencionadas, é importante considerar outros bens tanto ou mais valiosos. Em Madre de Dios, por exemplo, onde passaria a estrada, encontra-se a Reserva de Biosfera do Manu, com 18.812 km2, tombada pela Unesco e reconhecida como patrimônio mundial (72) por sua importância arqueológica, antropológica e especialmente ecológica.
Pelas razões expostas, não se pode aceitar a construção da estrada sem a prévia realização de rigorosos estudos, visando evitar a destruição de bens insubstituíveis.
Movimentos guerrilheiros como o Sendero Luminoso
Desde o início dos anos 80, no Peru, atuam dois movimentos guerrilheiros: O Partido Comunista do Peru Sendero Luminoso (SL) e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru. O mais atuante, violento e sanguinário é o Sendero Luminoso (73). Seu objetivo final, a longo prazo, é tomar o poder através da guerra popular revolucionária que destruirá a velha ordem, substituindo-a pela nova ordem da nova democracia, como eles dizem.
Liquidar a velha ordem exige um banho de sangue (74) e a destruição de sua infra-estrutura: luz, vias férreas, pontes, estradas etc. (75) Tal destruição teria por objetivo acelerar a desarticulação do país, debilitando ainda mais o seu Estado, que desde a colonização foi frágil. Desse modo, as torres que conduzem eletricidade e as ferrovias especialmente a Central são constantes alvos de sabotagem, dinamitadas, a ponto de, com o tempo, comprometer seu funcionamento, tornando-as inúteis. A complexa geografia peruana, já descrita e a dificuldade de proteção permanente e adequada, facilitam a sabotagem. A estrada para o Pacífico, se construída, terá também que enfrentar o problema de sua segurança.
A ação do SL desencadeou, no Peru, processos de militarização e violência desconhecidos na sua história recente. O SL e o narcotráfico propiciaram aos EUA oportunidades para exercerem pressões cada vez maiores no sentido de ampliar a sua margem de intervenção policial e militar no território peruano. Acreditamos que se esta presença chegar a tornar-se maciça, os EUA terão de fato grande poder de decisão sobre a Bacia Amazônica, o que distanciaria ainda mais a possibilidade da construção da estrada. E óbvio que os EUA, não podendo financiá-la para assim controlá-la, não querem que ninguém a construa. Sob o pretexto de combater a guerrilha e o narcotráfico, os EUA poderiam aumentar o controle sobre pontos-chave do território latino-americano; isto é parte de sua estratégia permanente para manter sua hegemonia sobre toda a região.
Narcotráfico
O Peru é o primeiro produtor mundial de folhas de coca, matéria-prima mas não seu derivado, a droga (76). O país tem também os maiores territórios que constituem o habitat natural dessa planta, localizados, em sua maioria, na Amazônia. Ou seja, a coca é um produto fundamentalmente amazônico, da Selva Alta, parte da Bacia Amazônica, fora do território brasileiro. Sem entrar em detalhes, dizemos que na crise econômica atual vivenciada pelo Peru, uma das poucas atividades em expansão é o plantio da coca. Isso porque a cocaína infelizmente tem mercado seguro e crescente, principalmente nos EUA.
Atualmente há dezenas de milhares de famílias camponesas envolvidas no cultivo da coca em centenas de milhares de hectares das melhores terras do Peru; é quase o único que essas famílias podem fazer. Sabe-se que a máfia, fundamentalmente colombiana, controla a compra da produção da coca e impõe os preços na negociação. Para combater essa máfia dentro de um quadro crescente de guerra civil, as forças armadas (FA) e as forças policiais peruanas (PP) tendem à militarização brutal, colocando no mesmo nível tanto mafiosos quanto camponeses que plantam a coca. Por esse motivo, o SL, e também o MRTA, começou a proteger os camponeses, obtendo seu apoio e passando a controlar parte desses territórios, depois de derrotar militarmente o MRTA e de enfrentar a FA e a PP. Nos territórios sob seu controle, o SL principalmente no Vale de Huallaga, maior área produtora de coca do mundo passou a eliminar os homens e as atividades vinculadas diretamente ao consumo da cocaína e a vender caro o direito de passagem (cupo) para a máfia. Tornou-se evidente para setores importantes das FA e PP que combater camponeses e mafiosos como se fossem o mesmo, poderia ser um erro que reforçaria a ação do SL. Além disso, esses setores perceberam que a militarização crescente favoreceria ainda mais os senderistas ao ponto que poderiam terminar vitoriosos. Em vista disso, esses setores foram aos poucos mudando sua postura, passando a sustentar que somente cultivos alternativos à coca com mercados seguros nos EUA, e investimentos num programa integral de desenvolvimento, propiciariam a vitória nessa guerra. Tal solução, no fundo, coincidiu com a posição há muito sustentada pelos grupos mais lúcidos do Peru. Em traços gerais, há alguns meses, passou a ser a posição oficial do poder executivo peruano.
Acontece, todavia, que não coincidiu com as intenções do principal aliado do Peru, os EUA. Para forças importantes desse governo o fundamental é a militarização, não o desenvolvimento. E tão firme essa determinação do governo dos EUA, especialmente sob Bush, que existem até planos de montar um exército interamericano, que, com a justificativa de combater guerrilheiros e narcotraficantes, poderá intervir em qualquer país da América Latina (77). Os planos desse governo estão, no momento, postergados desde a reunião realizada em Houston (Texas, fevereiro 1991) entre George Bush e os presidentes de países latino-americanos envolvidos com produção e comercialização de drogas (Bolívia, Colombia, México, Peru e Venezuela). O Peru denunciou como inútil a política de combate ao narcotráfico dos EUA; isto deteve esses planos.
Por que forças importantes do governo põem tanto empenho nesses planos? Em nossa opinião, porque o combate às guerrilhas e ao narcotráfico é funcional à política de expansão hegemônica e de controle sobre a América Latina. Por essa razão não levam a sério os projetos de desenvolvimento como forma efetiva de combate ao narcotráfico e às guerrilhas. Se tais projetos fossem concretizados, acabar-se-iam as justificativas para a intervenção dos EUA na América Latina, e seu êxito diminuiria a atual margem de dependência. Para executar esses projetos é necessário dinheiro vivo além de mercados seguros, sobretudo dos EUA. A atitude dos norte-americanos frente à construção da estrada projetada demonstra que, se eles não tiverem condições de financiá-la, envidarão esforços para evitar que outros, como o Japão, por exemplo, invistam em setores considerados chave para sua hegemonia (78).
Manter a hegemonia faz lógicos o exército interamericano e a militarização do combate ao narcotráfico. E lógica também a pressão exercida pelos EUA sobre o Peru e demais países da América Latina, incluindo o Brasil, para que aceitem agentes da Drug Enforcement Agency (DEA). E sabido que a DEA é o braço direito dos serviços de inteligência dos EUA para combater o narcotráfico; assim, tem a possibilidade de abertamente plantar seus agentes em quase todo o nosso subcontinente, impondo-lhos como modelos de eficiência e incorruptibilidade. Com relação à sua eficiência, podemos afirmar que o volume de drogas vendidas nas ruas dos EUA só tem aumentado com o passar dos anos. Com relação à sua incorruptibilidade, temos nossas dúvidas (79). Se a DEA fracassa em seu próprio país, por que terá êxito na América Latina? Parece pouco provável. A DEA, coordenada com outros serviços de inteligência dos EUA, serve para defender o que os norte-americanos consideram como seus verdadeiros interesses. A DEA é funcional a uma política hegemônica e de controle.
Essa questão não se restringe à esfera policial dos agentes da DEA, vai além. Os Estados Unidos mantêm entendimentos com o Peru para fazê-lo receber assessores militares. Mais que isso, para combater o narcotráfico e a guerrilha, estimulam o Peru a aceitar a construção de fortes militares, onde também seria feito o treinamento policial, como o de Santa Lúcia na Selva Amazônica. Isso significa que, através do Peru e da Bolívia, onde esses assessores já são uma abominável realidade os EUA estão marcando presença direta na Amazônia. Serão úteis ao propósito que dizem servir? Pelo menos a história diz que não. Pelo que se sabe, tal procedimento não deu certo no Vietnã ou na América Central. Também não está dando resultados na Bolívia ou em qualquer outro lugar do Terceiro Mundo onde intervieram. Provavelmente, o importante seja a justificativa para entrar diretamente na Amazônia. Supondo que tivessem que aceitar a construção da estrada projetada, assegurariam uma presença determinante no destino dessa via.
A estrada: problemas de saída pelo Sul, Centro ou Norte do Peru
O mapa 3 mostra as estradas existentes da Amazônia peruana aos seus portos no Pacífico. A ligação da Amazônia brasileira, supondo que a BR-364 estivesse pronta e asfaltada em todo o seu percurso, exigiria apenas a construção do trecho entre Brasil e Peru c a reconstrução quase total de algumasdas estradas do mapa referido. Se a opção fosse sair pelo Sul, por Ilo ou Maratani, a estrada partiria de Iñapari, seguindo o primeiro perfil (figura 4, perfil 1), o que significaria centenas de quilômetros trabalhados em grandes altitudes, ficando em alguns locais perto dos cinco mil metros a.n.m. Como exemplo, pode-se citar a Ferrovia do Sul que, em alguns trechos correrá paralela à estrada projetada, chegando a atingir 4.820 m de altitude em parte do seu percurso. A vantagem dessas saídas é a relativamente baixa atividade guerrilheira no território a ser atravessado que também é, felizmente até agora, de pouco interesse para os narcotraficantes.
Se a saída fosse sempre pelo sul, alcançando San Juan ou Pisco, a estrada partiria de Iñapari, seguindo o segundo perfil (figura 4 perfil 2). Também neste caso, centenas de quilômetros estariam em elevadas altitudes, porém, em média, menores que no traçado anterior, apesar de contar com alguns pontos superiores a 5.000 m a.n.m. Trata-se de regiões de atividade guerrilheira. No caso de a saída ser feita por Pisco, passaria por Ayacucho, zona de origem do SL. Todavia, como no caso anterior, essa parte do país não interessa ao narcotráfico, pelo menos no momento.
Se a estrada fosse projetada pelo Centro, finalizando em Lima (puerto de Callao), deveria partir de Pucallpa, seguindo aproximadamente o perfil 3 da figura 4. Também neste caso existe o problema da altitude, já que correrá paralela à Ferrovia Central, que chega até 5.185 m a.n.m.. Na parte amazônica deverá atravessar o começo do Vale de Huallaga, grande produtor de coca e por isso, zona de intensa atividade guerrilheira e de narcotraficantes.
Na hipótese de a estrada ser construída ao norte, finalizando em Pimentel, Bayovar ou Paita, partiria de Pucallpa (80), seguindo o perfil 4 da figura 4. Por esse percurso, quando chegar ao rio Huallaga, a estrada deverá desviar o seu curso e correr quase paralela ao rio, evitando atravessar uma das orografias mais difíceis e belas do continente e do mundo (81), subindo até o perfil 5 (figura 4) para finalmente chegar aos portos de destino. A desvantagem deste trajeto é cruzar o coração do Vale do Huallaga, atualmente a zona mais violenta de ação da guerrilha e do narcotráfico. A intervenção norte-americana concentra-se principalmente nessa região e também a do exército e polícia peruanos. Como vantagem dessa opção pode ser levada cm conta a travessia pelo rio, com barcos de porte relativamente grandes, dispensando a reconstrução de trechos da estrada. Esta parte do projeto terminaria em um estratégico porto fluvial, de onde se prosseguiria, atravessando os Andes mais baixos do Peru, pela estrada reconstruída, conforme figura 4, perfil 5. O porto final seria no Pacífico e, tanto o de Bayovar como o de Paita levariam à zona mais ocidental da América do Sul, ou à parte sul-americana mais próxima do nordeste asiático e do Japão.
Possíveis problemas entre o Brasil e o Peru
Existem alguns fenômenos que, por não serem bem entendidos ou não se ter deles consciência, podem evoluir até se transformar em problemas que dificultem a vinculação direta entre o Brasil e o Peru. Tratase de problemas que poderiam degenerar até questões relativas a fronteiras. Um de nossos objetivos é colaborar para evitar o surgimento desse tipo de problemas e, se possível, contribuir para um processo de real integração sul-americana; para ser real, não poderá ser hegemônico (82). Vamos enunciá-los porque estamos convencidos de que tudo deve ser feito pela paz.
Opinamos que há fenômenos de natureza estrutural que se não forem controlados podem gerar até problemas de fronteira. São complexos por serem conseqüência da maneira pela qual essas sociedades se organizaram. Cada um deles constitui autêntica e fértil área de investigação. Não sendo possível explicitá-los aqui, mencionaremos alguns dos principais: o garimpo, a guerrilha e o narcotráfico. Neste trabalho só nos resta dizer que o garimpo é fenômeno fundamentalmente brasileiro; a guerrilha, no momento, é principalmente peruana; e o narcotráfico, um complexo multinacional. Á estrada poderia contribuir para que alguns desses fenômenos se tornassem problemas de fronteira.
Além desses, existem outros, menos complexos, e por isso poderão ser brevemente expostos neste artigo. Caracterizam-se por serem superestruturais e relacionam-se com a idéia sobre a utilidade da estrada, ou seja, a que ela serviria. No caso do Brasil, essa visão está tacitamente vinculada à visão que se tem do outro país por onde passará a estrada (83). Opinamos que essa visão é construída com base em insuficientes informações e, provavelmente mudaria se essas informações fossem enriquecidas.
No Brasil é generalizada a opinião de que a estrada deverá servir à economia ao dar saída à produção brasileira até o Pacífico, fazendo-a chegar ao Japão, ao nordeste asiático e à costa ocidental dos EUA com preços mais competitivos. A imprensa brasileira tem refletido algumas posições dos setores da classe dirigente do país, expressando a idéia de que a estrada simplesmente escoará sua produção até um porto do Pacífico, o qual servirá como plataforma de exportação (84). Uma variante nessa posição, afirma a necessidade de um corredor ao Pacífico, a portos que cobrem menores preços por direitos aduaneiros, o que tornaria o país mais competitivo no mercado do Oriente (85). Ainda outra vertente da mesma idéia diz que o Brasil deve ter uma saída pelo Pacífico para ser mais competitivo, evitando o canal do Panamá e, também, por necessitar encurtar as distâncias com relação ao Ocidente dos EUA e à Ásia (86). Em torno do mesmo a Folha de S.Paulo reportava que em 1989, quando o Congresso Nacional Brasileiro debatia a construção dessa estrada, muitos congressistas referiam-se a ela como a estrada Acre-Tóquio (87). S5o variações do mesmo tema: os territórios sobre os quais a estrada deverá passar importam somente como inevitável zona de passagem entre o Brasil e seu objetivo, realmente valioso, que é a comunicação com o nordeste asiático e a costa ocidental dos EUA. O extremo dessa posição foi manifestado no Congresso Nacional Brasileiro, quando, ao falar-se da Estrada Acre-Tóquio estava-se sugerindo que entre estes dois pontos não há nada; o Peru com seus interesses e recursos simplesmente não existia. Parece óbvio que essa maneira de pensar poderia transformar qualquer projeto, por melhor que fosse, em inegociável.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, durante a 42- Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-1990), comentando essas idéias, dizemos que a persistência nelas poderia gerar dificuldades. Posteriormente, fizemos o mesmo em Lima, na entrevista dada à influente revista Quehacer (88). Em seu número subseqüente, a revista publicou entrevista com o embaixador do Brasil no Peru, que afirmava não se tratar o Peru como uma zona de passagem, mas, juntos, Brasil e Peru " realizariam um amplo e complexo programa de integração de toda uma região" (89). Nesse caso, a diplomacia tem um projeto com possibilidades de contemplar os interesses de ambos os países, o que seria ideal. Até 6 de abril de 1992, o Brasil não tratou mais do tema, mas o Secretário Interino do Meio Ambiente, Ministro José Goldemberg, tocou no assunto para afirmar que a estrada ao Pacífico, pelo Peru, seria importante para escoamento da produção brasileira (90).
É dessa forma que alguns setores importantes da classe dirigente brasileira se expressam, como se a estrada servisse apenas ao Brasil, dizendo praticamente que o Peru, além de servir de zona de passagem, não é quase nada. Essa visão é semelhante à que círculos importantes dos países centrais têm do Brasil, principalmente da potência hegemônica, os EUA. Lê-se, de vez em quando, na grande imprensa daquele país que o Brasil é um país onde cobras passeiam livremente nas ruas. Quase todos se recordam como Ronald Reagan, quando presidente, em visita ao Congresso Nacional brasileiro, mostrou não saber em que país estava. Essas atitudes levam implícitas as visões do Brasil como país atrasado onde as cobras passeiam e tomam sol nas ruas de suas cidades; apenas um país subdesenvolvido, do qual até o nome se pode esquecer. Esses exemplos, como tantos outros, com toda a razão ofendem os brasileiros. É compreensível, porque essas visões são produtos do preconceito, da ignorância e da arrogância que andam de mãos dadas.
Voltando a falar do Peru, é necessário dizer que esse país tem projetos e recursos, além de uma sociedade civil bastante organizada, mobilizada e consciente dos seus interesses. Basta dizer, com relação à estrada, que o ex-embaixador do Peru no Brasil, Hugo Palma Valderrama, em declarações feitas à Folha de S.Paulo, sintetizou bem o que os círculos influentes do Estado peruano esperam do projeto. Dizia ele que essa rodovia poderia ser " o dínamo do desenvolvimento de vastas regiões peruanas" (91). O embaixador brasileiro no Peru demonstrou estar bem informado sobre os recursos existentes no país, principalmente daqueles que a estrada poderia tornar importantes e acessíveis ao Brasil (92). Mencionaremos alguns, que poderiam contribuir ao desenvolvimento econômico dos estados brasileiros mais próximos do território peruano. Gás: o Peru tem gigantescas reservas relativamente perto do Brasil, em Camisea. Em reservas de gás, na América do Sul, o Peru somente é superado pela Venezuela que, como a Argentina, é potência mundial nesse tipo de recurso. Cimento: O Peru pode satisfazer a demanda do noroeste brasileiro com a produção de Puno, a preços mais baixos pela curta distância. O noroeste brasileiro não produz cimento, trazendo-o do Estado de São Paulo. Fosfatos: o Peru é uma potência mundial desse adubo natural que poderia servir à agricultura intensiva, especialmente de grãos no cerrado matogrossense, o qual tem enormes possibilidades de expansão. Esses fosfatos evitam muitos dos problemas causados por adubos artificiais.
É certo que o Peru vive uma das piores crises de sua história, como, quase todos os países da América Latina, especialmente a partir da década de 80. A diferença é de grau e o Peru, como é sabido, ocupa uma das piores posições. Mas essa diversidade não é qualitativa com relação aos demais países latino-americanos. O Peru, em sua longa história, sobreviveu a muitas e profundas crises. Sobreviveu, por exemplo, absorvendo outros elementos culturais e transformando-se incessantemente, até o bárbaro ataque genocida e etnocida feito pelo Ocidente, representado pela Espanha. As crises profundas e cíclicas que ocorreram periodicamente foram determinantes na conformação da civilização andina.
O Quechua tem um conceito pachacutec que significa mais ou menos a força que transforma o mundo, virando o avesso pelo direito. Forças incontroláveis para o homem, tão poderosas que destróem o mundo para recriá-lo em seguida de maneira totalmente diferente. Esse conceito provavelmente vem da observação fática dos sábios pré-colombianos, que o território onde se encontra o Peru é parte do que a geografia moderna conhece como o círculo de fogo do Pacífico. Quer dizer que era (e é), a terra de centenas de vulcões, terremotos, maremotos e do choque de duas gigantescas correntes marinhas: a de Humboldt e a Equatorial, que vão conformar na sua Costa o fenômeno chamado El Niño. Além disso, esse país é cortado quase no centro pela Placa de Nazca, ssim chamada por passar pelo território peruano de Nazca, local de importante cultura pré-hispânica.
Comentamos essa visão do Peru, implícita na utilidade da estrada, porque mantê-la tornaria muito difíceis as conversações na fase definitiva do projeto. Por pior que seja qualquer crise, não é possível encontrar um país que se preste a ser mera zona de passagem da produção de outro, permitindo ainda a utilização por menores custos de seus portos para efetivar a exportação dessa produção. Certamente as organizações da sociedade civil mobilizar-se-iam contra tal atitude. Acordos de desenvolvimento, como os enunciados pelo Embaixador do Brasil no Peru, são elementos a serem considerados para uma séria discussão. Os projetos de desenvolvimento não podem ser destrutivos e têm de beneficiar as maiorias nacionais de ambos os países, especialmente as populações que vivem nos territórios por onde passaria a estrada. Projetos desse tipo, conhecidos e discutidos pelos setores organizados da sociedade são os únicos que podem aspirar à vigência histórica.
Conclusões
Se a globalização da economia continuar como até agora, em algum momento a maioria da Amazônia e o Oceano Pacífico unir-se-ão diretamente através da sua saída natural; é apenas uma questão de tempo. Quando isso ocorrer, é necessário que seja nas melhores condições, de acordo com o assinalado na introdução deste artigo como requisitos.
A opção mais conveniente, a nosso ver, seria através da saída amazônica natural para o Pacífico, na costa peruana. O caminho terá que ser quase totalmente construído, provavelmente como uma rodovia, apesar da possibilidade de um sistema intermodal. Além de realizar eficazmente a união pretendida, deverá ser o menos destrutivo; a ciência e a técnica atuais o permitem. A escolha deverá ser feita por uma comissão binacional (Brasil e Peru), que conte com a assessoria dos melhores cientistas conhecedores da área, independentemente de suas nacionalidades. É importante que a opção tenha o aval dos setores organizados da sociedade civil, com destaque para os representantes das populações por onde a estrada passará. Nosso estudo demonstrou que a estrada é a mais provável via da união pretendida.
Sabemos que esta estrada não só unirá a Bacia Amazônica com a do Pacífico, mas o Atlântico com o Pacífico sul-americano. Em termos físicos, estará criando condições para a real integração de países sul-americanos fundamentais do Atlântico e do Pacífico. Neste caso é bom recordar que, no século passado, a construção da ferrovia norte-americana unindo o Atlântico ao Pacífico foi essencial para consolidar os EUA como nação, tornando-os uma potência internacional.
Nos dias atuais, porém, não interessa aos EUA a união do Atlântico e do Pacífico sul-americanos porque, provavelmente, talvez até por sua própria experiência, não lhes convém. Não apenas pela possibilidade de a estrada tornar obsoleto o Canal do Panamá, controlado pelos EUA, mas também por razões estratégicas que têm a ver com política hegemônica. O controle dos Estados Unidos sobre a América do Sul, e sobre a América Latina de forma geral, é parte dos sonhos da classe dirigente daquele país para construir sua hegemonia mundial incontestada. Por isso os EUA encontrarão qualquer razão para opor-se a essa estrada. Mesmo que a quisessem, não teriam os recursos para construí-la; então, opõem-se a ela.
No momento, quem possui tais recursos é o Japão, além de ter interesse no acesso aos bens da Amazônia e da América do Sul em geral. Esse acesso é importante para o Japão porque, pobre como é em recursos naturais, tem de consegui-los de maneira livre e segura no mercado mundial para suprir a demanda de sua economia; portanto, esse mercado deve funcionar sem interferências. A Segurança Nacional Compreensiva (SNC) parece ser a orientadora da estratégia mundial do Japão. De acordo com ela, se o mercado mundial seguro é vital para o Japão, sua prioridade nele é a Bacia do Pacífico; a Amazônia com a estrada se vincularia diretamente à Bacia. Para que esse mercado tenha segurança, a condição sine qua, non para o Japão é a manutenção de ótimas relações com os Estados Unidos.
Ao que tudo indica, o Japão jamais desejará ter conflitos graves com os EUA, muito menos militares. Portanto, a busca da paz e a partilha do poder são elementos estruturais da SNC o que implica vantagens mútuas. Eis porque o Japão mostra-se resistente em participar do financiamento do projeto para construção da estrada, apesar de sua capacidade econômica e tecnológica. O Japão não deseja que os EUA vejam nessa atitude qualquer restrição ao que considera seus interesses estratégicos naturais América do Sul como parte do seu back yard.
Nos tempos atuais essa situação poderia ser boa para o Brasil c para o Peru, assim como para todos os países amazônicos e América do Sul como um todo. Entre uma grande potência que não quer a construção da estrada e outra que talvez a queira, seria possível negociar uma nova situação fundamentada no princípio das vantagens mútuas. O Brasil e o Peru teriam que assumir compromissos como os seguintes: a estrada terá de contribuir ao processo de integração sul-americano e, ao mesmo tempo, a reduzir sua margem de dependência, promovendo o desenvolvimento sustentado com a utilização racional dos imensos recursos que a própria estrada ajudaria a dinamizar. O Japão deveria estar seguro, no caso de sua concordância em contribuir para a realização do mencionado, que ele também teria acesso a esses recursos. Os EUA deveriam saber que convém aos seus interesses de longo prazo (93) tanto o desenvolvimento das diversas regiões da América Latina, como a manutenção de relações mais maduras e igualitárias com essas regiões. Para que Brasil e Peru tenham possibilidades de êxito ao negociar essas posições com Japão e EUA, precisariam ser capazes de administrar o financiamento da estrada.
A Eco-92 poderá ser importante para a SNC. De acordo com essa doutrina, a projeção mundial do Japão deverá ser feita sem gerar conflitos com os EUA. E a torpe política do governo Bush poderia trabalhar a favor da SNC. Como no judô, pode-se com técnica inverter a força do adversário, tornando-a sua própria arma de destruição. Assim, se na Eco-92 Bush grita tantas vezes que é o líder mundial e, para prová-lo isola os EUA do resto do mundo, pode tornar-se fácil para o Japão juntar-se a esse gigantesco resto, onde, tudo indica, será bem recebido por suas ótimas condições tecnológicas e econômicas (94). Aceito pela maioria, que é quase o consenso universal, e sem alarde, é provável que o Japão adquira um papel cada vez mais relevante na política mundial, sem necessidade de entrar em conflito com os EUA (95).
Se assim fosse, talvez o Brasil e o Peru possam finalmente conseguir apoios tecnológico e financeiro do Japão para a construção da estrada. É necessário incentivar o desenvolvimento desses países e de toda a América do Sul; nesse processo o Japão não colaboraria gratuitamente, pois existiriam interesses mutuos. A América do Sul necessita transferência de tecnologia de ponta e o Japão precisa dos recursos naturais da Amazônia (96). Por outro lado, os interesses dos norte-americanos estariam também assegurados, pois eles se beneficiariam do desenvolvimento dos países da América do Sul que comprariam mais.
O que não se pode aceitar são políticas como da administração de George Bush, de oposição permanente à construção dessa rodovia; também não deve ser aceita a política de tácita oposição a vários dos programas de desenvolvimento propostos, como os do Peru, por exemplo. São igualmente inadmissíveis as propostas militaristas e policialescas de intervenção dos EUA para resolver problemas de guerrilha e narcotráfico porque, como não têm capacidade econômica, oferece a que têm, militar. São inadmissíveis porque não resolvem esses problemas, servem apenas para por um pé na Amazônia, de acordo com a velha estratégia hegemônica e de controle. Essa política limitaria seriamente as possibilidades de desenvolvimento integral de Brasil, Peru e América do Sul e, para os EUA, traria apenas benefício de curto prazo.
A rodovia, ao unir Atlântico e Pacífico sul-americanos, tem importância estratégica planetária. Por isso, devem ser conciliados os interesses das grandes potências; não somente os delas, mas também dos outros países amazônicos e sul-americanos, evitando afetar as boas relações entre o Brasil e o Peru, sócios naturais desse empreendimento. Tal procedimento tornaria a América do Sul uma força negociadora com peso internacional. Orientando-se por uma concepção não-hegemônica, essa rodovia será um instrumento seguro de paz e terá a sua realização histórica. Essa tarefa histórica de união entre a Amazônia e o Pacífico, no seu traço final, será resultado do consenso da comissão binacional, organizada nos termos já mencionados.
Notas
Enrique Amayo Zevallos é professor de História Econômica e Social da América Latina do departamento de Economia da Unesp (Universidade Estadual Paulista Campus de Araraquara, SP). Foi professor visitante da Área de História das Ideologias e Mentalidades do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP entre 1990 e 1991.
Tradução de Mariza Bertoli. Revisão de Enrique Amayo Zevallos. O original em espanhol "De la Amazonia al Pacifico cruzando los Andes" encontra-se à disposição do leitor no IEA para eventual consulta.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jan 2006 -
Data do Fascículo
Abr 1993







