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A ONU e os direitos humanos

DOSSIÊ ONU E PAZ

A ONU e os direitos humanos

Celso Lafer

É COM GRANDE HONRA e satisfação que venho associar-me às atividades promovidas pela USP com vistas a celebrar os 50 anos da Carta da ONU. Tal celebração pode ensejar vários tipos de análise. Uma diz respeito a sua origem histórica. Neste sentido, cabe observar que a Carta tem como fonte a vitória militar. É um direito novo, fruto do resultado da Segunda Guerra Mundial. Representa uma nova tentativa, depois do insucesso do Pacto da Sociedade das Nações de constitucionalizar as relações internacionais, ou seja, de conferir estabilidade ao sistema internacional, delimitando juridicamente o exercício do poder. Em outras palavras, a Carta de São Francisco tem como objetivo civilizar o anárquico estado de natureza da guerra de todos contra todos, que o realismo da visão maquiavélico-hobbesiana identifica como sendo a característica definidora da vida internacional. É por conta desta anarquia que, no sistema internacional, a guerra é o termo forte, pois a paz é usualmente definida como a ausência de guerra.

A guerra, apesar de caracterizar desde tempos imemoriais, a vida internacional, é uma situação-limite. Representa a abolição, durante a sua vigência, de um dos mais antigos tabus da espécie humana - a proibição do homicídio, base do direito à vida, hoje considerado o mais intangível dos direitos humanos. Com efeito, a guerra converte a ação de matar outros seres humanos não apenas em algo permitido e legitimado, como também em algo comandado. É esta exceção ao mandamento do não matarás que insere a guerra na agenda ética do problema do mal no mundo. Com efeito, considerando-se, como sugere Bobbio, as duas dimensões do mal - o mal ativo, associado à vontade de poder, à prepotência, ao exercício da violência em todas as suas formas, e o mal passivo, que se refere à perspectiva das vítimas, que sofrem uma pena sem culpa, pode-se dizer que a guerra representa a combinação destas duas dimensões do mal em grande escala. Não é por acaso que projetos de paz, como o do Abbé de Saint-Pierre, ou o de Kant, foram elaborados depois de guerras européias. Não é igualmente por acaso que a perspectiva das vítimas de guerra, a perspectiva ex parte populi, introduzida na agenda política pelos processos de democratização, tenha levado a diversas formas de pacifismo.

A carta da ONU exprime este anseio de paz. Almeja, como diz o seu preâmbulo, "preservar as gerações futuras do flagelo da guerra". Por isso propõe delimitar através das técnicas da convivência social engendradas pela teoria jurídica, o exercício do poder dos Estados-soberanos desencadeador da violência da guerra. Na elaboração de um direito novo, a Carta levou em conta o que foi a destrutividade técnica dos instrumentos bélicos da Segunda Guerra Mundial, inclusive a bomba atômica, e a experiência do totalitarismo, que patrocinou os campos de concentração e o holocausto. Em síntese, um dos antecedentes do direito novo, foi a escala sem precedentes do mal ativo e passivo. Daí ter contemplado a perspectiva das vítimas do mal com uma preocupação com os direitos humanos. Estes foram considerados no preâmbulo; e nos artigos 1º, § 3º; 13, § 1b; 55, c; 56; 62 § 2º; 64; 68; 73; 76, c - o que significa uma abrangência da Carta da ONU nesta matéria, que contrasta com o mais modesto articulado do art. 23 do Pacto da Sociedade das Nações.

Assim, se é sem dúvida pertinente nessa celebração da Carta da ONU indagar o quanto vem contribuindo para a diminuição da violência e para a afirmação da paz no mundo, não é irrelevante discutir como, enquanto parte deste processo, vem favorecendo a afirmação dos direitos humanos. Este será o foco da minha análise e o ponto que quero desde já ressaltar é que este favorecimento contribui para instigar a convergência da Ética e da Política no plano internacional. Ressalvo, no entanto, que a promoção desta convergência tem a limitação institucional que deriva do fato de a ação da ONU caracterizar-se pela ação de um tertius que não é um governo - um poder comum - mas uma instância de interposição num sistema interestatal.

São assim os méritos mas também os limites desta instância de interposição os que vou discutir hoje, atendendo ao convite que me foi formulado. Este responde aos meus anseios, posto que, ao atendê-lo estou em consonância com minha reflexão acadêmica sobre os direitos humanos, desenvolvida enquanto professor desta Universidade; com a minha modesta, mas sincera, militância no campo dos direitos humanos no período do regime autoritário; com meus esforços nesta área quando me coube, em 1992, dirigir o Itamaraty, e com as minhas atuais responsabilidades, como chefe da Missão Permanente do Brasil em Genebra, que abrange, entre suas tarefas, o acompanhamento das atividades da Comissão de Direitos Humanos.

* * *

Antes de recapitular as conquistas alcançadas no âmbito das Nações Unidas referentes aos direitos humanos e propor uma avaliação, parece-me conveniente tecer algumas considerações preliminares sobre a evolução da questão dos direitos humanos no plano interno dos Estados e no plano internacional. Como já tive ocasião de assinalar em outras oportunidades, a evolução da problemática dos direitos humanos se deu de forma distinta nesses dois planos.

No plano interno, a primeira afirmação histórica conseqüente da noção de direitos humanos, como se sabe, dá-se no século XVIII, com as Revoluções Americana e Francesa. Trata-se de uma verdadeira inovação com relação aos modos tradicionais de pensar a política. Até então a preocupação predominante dos pensadores políticos era com o bom governo. A tirania havia, por certo, sido condenada por vários autores e meios para se evitá-la já haviam sido examinados, entre eles a divisão de poderes. A ótica, no entanto, era a dos governantes. A população governada era considerada como um conjunto de súditos com uma série de deveres com relação ao Estado. As duas revoluções inauguram a época da perspectiva dos governados, a da plena legitimação da visão ex parte populi. Assiste-se, como registra Bobbio, à substituição da ênfase na noção de dever dos súditos pela da promoção da noção de direitos do cidadão. Daí, nas palavras de Hannah Arendt, a idéia do "direito de ter direitos", que estará na base da construção dos regimes democráticos da Idade Contemporânea. O poder do governante - ou a soberania ilimitada, no plano interno - passa a ter limites. A raison d'état é contida. Abre-se uma nova possibilidade de favorecer a convergência entre a Ética e a Política, num regime que tem como regra básica, na fórmula de Bobbio, a idéia de que é melhor "contar cabeças do que cortar cabeças".

Não caberia aqui historiar as vicissitudes do processo de difusão do regime democrático, fundado no respeito aos direitos humanos, e de seu progressivo reconhecimento, no âmbito dos Estados, como aquele que melhor corresponde às expectativas do ser humano, considerado como ente dotado de dignidade e singularidade. Nem caberia, tampouco, reprisar a evolução que leva no âmbito do território dos Estados-soberanos a uma expansão do conceito de direitos humanos, dos direitos civis e políticos, considerados de primeira geração e representativos da herança liberal, aos direitos econômicos, sociais e culturais, considerados de segunda geração e representativos da herança socialista. O que importa é deixar claro que o surgimento e o triunfo da idéia de direitos humanos na esfera doméstica dos Estados se inserem em um longo processo de amadurecimento de concepções de natureza ética, centradas nos conceitos de dignidade humana e de universalidade do ser humano, acima de quaisquer particularismos.

No plano internacional, a evolução foi diversa, mais lenta, e não ocorreu paralelamente, como veremos, à que se verificou no plano interno, tendo obedecido a uma lógica própria. Antes de resumir essa evolução porém, conviria, para entendê-la, evocar brevemente os três paradigmas clássicos de convivência internacional sistematizados por Martin Wight: o hobbesiano-maquiavélico, o grociano e o kantiano.

O paradigma hobbesiano-maquiavélico, que a Carta da ONU procura superar, considera que a sociedade internacional se caracteriza ainda pelo Estado de Natureza, ou seja, pelo estado de guerra de todos contra todos. Como não existe, no plano internacional, diferentemente do que ocorre no interior dos Estados, um poder unificado, não há como solucionar o problema da anarquia dos significados que, no plano interno, é resolvido pelo poder soberano. Por isso para Hobbes, como precursor do positivismo jurídico, o direito é comando, não sabedoria. Daí a plenitude sem limites da soberania dos Estados e a convicção de que a única lei do sistema internacional é a da sobrevivência. Assim, as regras básicas da vida internacional são a prudência e o expediente pois a política internacional é tão somente a política do poder.

Em contraposição a este paradigma, o modelo da convivência que remete a Grócio, pressupõe a existência na sociedade internacional de um potencial de sociabilidade e solidariedade que torna possível conceber a política internacional como um jogo que não é, inapelavelmente, de soma-zero. Decorre dessa premissa o efetivo papel desempenhado pelo sistema jurídico do Direito Internacional Público, pelas organizações internacionais, e a valorização do transnacionalismo dos atores não-governamentais, expressão da interdependência e da cooperação, ou seja, de um abrangente processo do interesse recíproco dos Estados e de suas populações. A Carta da ONU, assim como antes dela o Pacto da Sociedade das Nações, contém importantes ingredientes grocianos.

O terceiro paradigma, que haure sua inspiração em Kant, considera possível ir além do modelo grociano de cooperação interessada, admitindo a inserção operativa da razão abrangente do ponto-de-vista da humanidade. Este encontra a sua expressão, para usar a terminologia contemporânea, nos assim chamados temas globais. O primeiro tema global, juridicamente consagrado pelo Pacto da Sociedade das Nações que tem assim um ingrediente kantiano, foi o problema da paz reconhecida como algo que diz respeito não apenas aos países diretamente envolvidos num conflito mas a todos os membros da Liga das Nações (art. 11).

Os direitos humanos - e aqui adianto a minha conclusão - tornaram-se, com base na Carta, no mundo pós-Guerra Fria, um tema global, à maneira kantiana. Representam o reconhecimento axiológico do ser humano como fim e não meio; tendo direito a um lugar no mundo; um mundo que encontra um terreno comum entre a Ética e a Política através da associação convergentes de três grandes temas: direitos humanos e democracia no plano interno e paz no plano internacional.

O aparecimento dos direitos humanos como móvel de iniciativas no sistema internacional não se deu, no entanto, em função da prevalência da ética kantiana no campo da política internacional. Ao contrário, esta permaneceria muito mais compreensível pelo modelo hobbesiano-maquiavélico, caracterizado pelo choque de interesses das diferentes soberanias, ainda que temperado pelo modelo grociano de cooperação. Existe, no entanto, neste final do milênio, um horizonte kantiano e é justamente como se consegue hoje vislumbrar este horizonte no plano internacional, em função da Carta da ONU, o que me proponho discutir nesta exposição.

Uma das primeiras ações internacionais de escopo universal, no século XIX, em nome dos direitos humanos, foi a da Inglaterra no combate ao tráfico de escravos. A iniciativa inglesa de eliminar o tráfico de escravos deveu-se à necessidade de suprimir práticas - a escravidão e o tráfico - incompatíveis com o nível de modernidade econômica e política alcançado por aquele país. A atuação internacional, embora fosse ao encontro dos anseios de grupos de humanistas inspirados eticamente - que fundaram, em 1839, em Londres, a Sociedade contra a Escravidão, uma das primeiras ongs voltadas para a promoção dos direitos humanos - atendia também a interesses nacionais ingleses.

A outra ação internacional de escopo universal ligada aos direitos humanos, no século XIX, foi a iniciativa de Henri Dunant - um comerciante de Genebra que testemunhou os horrores da batalha de Solferino - de organizar uma conferência internacional sobre os direitos das vítimas de conflitos armados. Desta iniciativa resultou a Primeira Convenção de Genebra (1864), que positiva o direito humanitário, bem como a criação da Cruz Vermelha. Esta foi concebida como uma ong independente e apolítica, agindo no plano internacional como uma instância de interposição neutra, na área humanitária, voltada para a proteção e assistência das vítimas militares e civis do mal dos conflitos internacionais, das guerras civis e das tensões internas geradas pela violência. Nesse caso, o interesse dos Estados em assinar a Convenção encaixa-se também na perspectiva grociana, dos interesses comuns em disciplinar o uso da força, ainda que a motivação do criador da Cruz Vermelha tenha sido eminentemente ética. O mesmo se aplica à assinatura por alguns Estados - entre os quais o Brasil - da Declaração de São Petersburgo, de 1868, sobre balas explosivas, que está na origem do outro ramo do direito positivo humanitário, o chamado ramo de Haia, interessado em restringir os meios usados em guerra para evitar ao máximo o sofrimento humano.

Ainda no século XIX, testemunhamos o desenvolvimento de princípios como o direito dos Estados de exercerem proteção internacional com relação a seus nacionais, desenvolvimento ligado à expansão internacional do capitalismo, e o instituto da intervenção de humanidade, segundo o qual os Estados têm o direito de intervir em favor dos nacionais de outros Estados que estejam sendo vítimas de violações flagrantes e atrozes dos direitos humanos. Este princípio foi aplicado, por exemplo, pelos ingleses, em favor dos gregos, em 1830. Embora resultassem em proteção aos seres humanos, tais princípios eram aplicados seletivamente e à luz de outras considerações. A intervenção de humanidade era - e ainda é - por isso mesmo, um princípio polêmico à luz do direito internacional.

Com o século XX, a primeira iniciativa marcante na área internacional referente aos direitos humanos é a criação, pelo Tratado de Versalhes, da Organização Internacional do Trabalho, vinculada à Sociedade de Nações, aberta ao transnacionalismo da representação operária e patronal, e destinada a harmonizar, em nível adequado, as condições de vida dos trabalhadores. Embora importantíssima para a consolidação dos direitos dos trabalhadores, a fundação da OIT deveu-se em boa medida à necessidade de dar-se uma resposta à inquietação operária e ao desafio da Revolução Bolchevista, bem como de evitar que discrepâncias muito grandes entre os custos da mão-de-obra trouxessem prejuízos ao comércio exterior dos países onde os direitos sociais já haviam conhecido importantes avanços.

A própria criação da Sociedade das Nações, após o término da Primeira Grande Guerra, constitui um desenvolvimento relevante na área de direitos humanos. Com efeito, o desmembramento dos grandes impérios multinacionais (austro-húngaro, otomano e russo) e a afirmação do princípio das nacionalidades, como critério básico da legitimidade internacional dos Estados, suscitou dramaticamente, em Estados de população heterogênea, o problema das minorias e dos refugiados, - problema cujo potencial de ameaça à paz configurou-se como ponderável. A Sociedade das Nações por isso mesmo tutelará as minorias e cuidará dos refugiados cujo aparecimento em larga escala, como vítimas do mal no mundo, foi revelador de inesperada dissociação, não prevista pelo modelo da Revolução Francesa, entre os direitos dos homens e os direitos dos povos. Ademais, o Pacto da sdn, embora não contendo cláusulas específicas de direitos humanos, menciona no seu artigo 23 certas obrigações relativas às condições de trabalho, ao tratamento eqüitativo às populações indígenas e ao tráfico de mulheres e crianças.

No tocante às minorias e aos refugiados, ou seja, às questões relacionadas a direitos humanos que foram objeto de atenção especial pela SDN, a preocupação maior, entretanto, era com a criação de condições capazes de evitar que crises relacionadas a esses dois problemas atingissem níveis que pusessem em risco a paz internacional. Neste sentido, a paz que a sdn procurou assegurar, com ingredientes basicamente grocianos, assemelhava-se mais a uma paz sinônima de ausência de guerra.

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Foi necessária a catástrofe da Segunda Guerra Mundial para que os direitos humanos passassem a receber, no sistema internacional, no direito novo criado pela Carta da ONU, uma abordagem distinta daquela com a qual vinham sendo habitualmente tratados. Os desmandos dos totalitarismos que terrorizavam vários países da Europa e que levaram ao megaconflito haviam consolidado a percepção kantiana de que os regimes democráticos apoiados nos direitos humanos eram os mais propícios à manutenção da paz e da segurança internacionais. Daí a necessidade de apoiar em normas internacionais o ideal dos direitos humanos. Sobretudo, insinua-se, entre os líderes democráticos, a percepção de que os direitos humanos não podem mais constituir matéria do domínio exclusivo dos Estados e que algum tipo de controle internacional faz-se necessário para conter o mal ativo e passivo prevalecentes no mundo. Trata-se, à luz do que tinha sido o horror da guerra e o horror do holocausto, da incorporação da idéia kantiana do direito à hospitalidade universal, sem o qual nenhum ser humano pode, diante da soberania estatal, sentir-se à vontade e em casa no mundo.

Já durante a Segunda Guerra, nos exercícios de reflexão sobre a futura organização internacional, que acabariam levando à criação da Organização das Nações Unidas, essas preocupações estavam presentes entre os líderes das democracias ocidentais, apesar de associadas também a considerações de Realpolitik. Nesse contexto, havia o problema da União Soviética, aliado fundamental no esmagamento do nazi-fascismo. A participação da URSS na nova organização mundial era fundamental para que esta pudesse revelar-se de alguma utilidade, enquanto órgão destinado à manutenção da paz. Como convencer um regime, inequivocamente totalitário no longo consulado de Stalin, a endossar documentos que promoviam valores incompatíveis com a sua natureza? Essa era uma das questões fundamentais que se colocavam.

A saída para tal dificuldade, na prática, beneficiou-se do fato de que a União Soviética, a essa altura, já havia desenvolvido sua própria concepção de direitos humanos, caracterizada por uma interpretação própria dos direitos civis e políticos e por uma ênfase nos direitos econômicos e sociais. O fato permitiu que se adotassem muitas vezes documentos consensuais contendo uma linguagem aceitável para todos, cuja leitura era, entretanto, diversa. É o que podemos ver na Declaração das Nações Unidas, de 1942, nos documentos de Dumbarton Oaks e, na própria Carta de São Francisco.

A Carta da ONU representa a concretização das aspirações referidas, imprimindo um teor ético à futura organização, em que pesem as motivações nem sempre de cunho ético que estão na sua origem e as divergências de interpretação a que seus dispositivos se prestavam. Esse teor ético - cujo potencial de realizações esteve longamente limitado pela confrontação ideológica - vincula-se a valores como a paz enquanto valor positivo que vai além da mera ausência de guerra, abrangendo os direitos humanos, a democracia, a tolerância, a cooperação e a legitimação da aspiração pelo desenvolvimento econômico. Como já foi dito, a Carta contém diversas referências aos direitos humanos. Consagrava, por outro lado, no art. 2º § 7, o princípio da não-ingerência em assuntos da competência interna dos Estados, o que deu origem a divergências de interpretação quanto à legitimidade de um envolvimento mais ativo das Nações Unidas na área dos direitos humanos.

A consagração do princípio da não-ingerência - embora matizada pela exceção atribuída às medidas tomadas pelo Conselho no cumprimento de suas responsabilidades na manutenção da paz e da segurança internacionais ao amparo do Capítulo VII - confirmava a força dos elementos hobbesianos nas relações internacionais. Tratava-se aí, é bem verdade, de um realismo defensivo, que partia daqueles Estados, mais fracos, que temiam o uso de motivações elevadas para a promoção dos interesses de Estados mais poderosos e viam na soberania sua melhor proteção.

A convivência de dispositivos contraditórios permitiu, no entanto, no marco da Carta, ao mesmo tempo em que foram sendo equacionados, de uma forma ou outra os conflitos do poder, que se encaminhasse um marco normativo de cunho grociano, mas afeito, como via directiva, aos ideais kantianos.

Conviria também lembrar, nesse sentido, que o art. 2º § 7 da Carta adotou em matéria de jurisdição interna dos Estados, em contraposição do art. 15 § 8 do Pacto da Sociedade das Nações, uma formulação mais dinâmica e aberta à evolução do Direito Internacional. Assim, ao invés de referir-se a competência exclusiva, como fez o Pacto, a Carta referiu-se a assuntos que dependem essencialmente de jurisdição interna do Estado, o que, como assinalou Lauterpacht, permitiu, sob a égide da Carta de São Francisco, ao direito internacional ir ampliando progressivamente sua esfera de normatividade.

Dada a confrontação ideológica que caracterizou o mundo bipolar da Guerra Fria, a evolução das deliberações sobre os direitos humanos no seio das Nações Unidas veio a refletir a diversidade de concepções relativas aos direitos humanos entre os países do bloco ocidental, herdeiros da tradição liberal e paladinos dos direitos civis e políticos, por um lado, e os países do bloco comunista, por outro, cuja bandeira inspirada pela tradição socialista eram, como vimos, os direitos econômicos e sociais. Se considerarmos os princípios da Revolução Francesa, podemos dizer que os primeiros se articulam em torno da noção de liberdade, os segundos em torno da noção de igualdade.

O movimento da descolonização, a luta contra o racismo e o apartheid, vieram a demonstrar a distância entre a teoria e a prática nos territórios sob colonização européia, dando ensejo, graças em especial às pressões dos países em desenvolvimento, à afirmação do direito de titularidade coletiva, de autodeterminação dos povos, contemplado na Carta (art. 1 § 2º). Desta mobilização dos países do Terceiro Mundo, articulados no Grupo dos 77, foram emergindo novas categorias de direitos, de expressão mais coletiva, os assim chamados direitos da terceira geração, entre os quais avultam o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, e o direito ao patrimônio comum da humanidade, cuja origem pode ser identificada, para voltar à matriz axiológica da Revolução Francesa, ao princípio de fraternidade.

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A Comissão de Direitos Humanos (CDH), criada em 1946, tendo como pano de fundo o segundo pós-guerra, concebeu uma estratégia de atuação da onu na área de direitos humanos sob o conceito de Carta Internacional dos Direitos Humanos, que compreendia a elaboração de uma Declaração Universal, de uma Convenção de Direitos Humanos e o estabelecimento de medidas de implementação.

Não houve dificuldades intransponíveis para se dar o primeiro passo, ou seja, para a elaboração da Declaração Universal, adotada em 1948 na Assembléia-Geral, por 48 votos a favor e 8 abstenções. A Declaração, não sendo mandatória, representou uma nova vis directiva. Além dos direitos civis e políticos, incorporou os direitos econômicos, sociais e culturais, e constituiu uma manifestação clara do repúdio aos regimes totalitários.

Em contraste com a facilidade de obtenção desse texto fundamental, ainda que representando uma soft law, a negociação da Convenção - um instrumento internacional de caráter vinculante - revelou-se problemática. Não tardou muito para que os representantes governamentais se dessem conta de que o caminho mais apropriado seria a elaboração de dois instrumentos ao invés de um. Os trabalhos preparatórios dos textos que se transformariam nos dois Pactos - um sobre Direitos Civis e Políticos, juntamente com o Protocolo Opcional estabelecendo o direito de petição individual; outro sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - estenderam-se no tempo e os textos só foram adotados pela Assembléia-Geral em 1966. Além das divergências ideológicas entre os ocidentais e o bloco socialista, vieram compor as dificuldades da negociação as perspectivas e aspirações do Terceiro Mundo, que acrescentaram uma dimensão Norte-Sul às discussões, além da dimensão Leste-Oeste.

Como vimos, os dois Pactos foram finalmente abertos à assinatura em 1966. Só em 3 de janeiro de 1976, entretanto, haviam reunido número suficiente de ratificações para poder entrar em vigor. A demora dos Estados em ratificar os instrumentos deveu-se, em boa parte, à relutância em submeter a supervisão internacional, ainda que pouco intrusiva - pelos órgãos de monitoramento dos tratados - sua situação interna no tocante aos direitos humanos.

Os Estados assumem dois tipos de obrigação ao aderirem aos Pactos. No tocante ao Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, a obrigação dos governos é basicamente - mas não só - abstencionista. No que respeita ao Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a obrigação é de adotar medidas para obter progressivamente (achieve progressively) a realização desses direitos. Poderíamos falar, no primeiro caso, de obrigações de resultado e, no segundo, obrigações de comportamento.

Consumava-se, assim, o projeto de uma Carta Internacional dos Direitos Humanos, integrada pela Declaração de 1948 e pelos dois Pactos. Ao lado desses instrumentos centrais, a estrutura normativa atual de direitos humanos no quadro das Nações Unidas é integrada também por diversas Convenções como a Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio, a Convenção sobre o Status dos Refugiados, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, as Convenções sobre Escravidão (a primeira das quais remonta a 1926), a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e mais recentemente, a Convenção sobre os Direitos da Criança.

À atividade normativa da onu, sucintamente resenhada, que teve o mérito de conferir hierarquia e prioridade axiológica ao tema dos Direitos Humanos no plano internacional, a CDH veio a instituir gradativamente um sistema de controle das violações de direitos humanos em todo o mundo. Esse sistema demorou a ser montado, devido à autodenegação imposta pela Comissão, reflexo da resistência da maior parte dos Estados em permitir a um órgão internacional atuar em área tradicionalmente reservada à jurisdição doméstica. Somente em 1967, a Comissão passa a examinar violações de direitos humanos, dando início - no vocabulário de alguns estudiosos - à sua fase intervencionista, por oposição à anterior chamada de abstencionista. Naquele ano, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) adota a Resolução 1235, que inscreve na agenda da CDH um item sobre as violações dos direitos humanos, o que permite à Comissão de Direitos Humanos monitorar a situação na África do Sul, dando início aos procedimentos ostensivos. Em 1969, a situação dos territórios árabes ocupados por Israel também passa a ser objeto de acompanhamento da CDH. Nesses dois casos, a atuação da Comissão originou-se de iniciativa dos não-alinhados e focalizou situações ligadas ao colonialismo e à ocupação territorial proveniente de conflito bélico.

Deve-se mencionar, ainda, o chamado Procedimento Confidencial, criado pela Resolução 1503 do ECOSOC, de 1970, que comporta várias etapas, com base no exame in camera de comunicações recebidas pelo Secretário-Geral que pareçam revelar um padrão consistente da violação dos direitos humanos. Somente em 1975, quando passa a examinar a situação no Chile, é que a cdh começa a controlar situações de violações de direitos humanos desvinculadamente de um contexto de seletividade intervencionista, ou seja, dos fatores inequivocamente políticos que incidem na dinâmica do funcionamento do sistema internacional. Com efeito, o Grupo de Trabalho Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile do regime de Pinochet, caracterizado por violação maciça dos direitos humanos no âmbito interno de um Estado, representou a base do primeiro grande precedente, que rompeu efetivamente com a idéia de um domínio reservado da soberania dos estados em matéria de direitos humanos. Os países não-alinhados, ao aprovarem a iniciativa, foram além de sua posição, até então restrita ao anti-racismo e ao anticolonialismo; o bloco socialista, ao aceitá-la admitiu uma acomodação tática de sua tradicional postura de defesa intransigente da noção clássica de soberania; os países ocidentais transcenderam, no caso, os seus interesses no campo econômico e estratégico. Daí, a abertura do caminho para a criação de novos mecanismos de controle ostensivo que representam, através da instância de interposição que é a ONU, a inauguração do ponto-de-vista da humanidade, ou seja do início do efetivo exame, perante o comum de um auditório universal, de legitimidade das condutas internas e internacionais das soberanias. Posteriormente diversos países são examinados pela CDH e, mais tarde, já na década de 80, surgem os mecanismos temáticos (desaparecimentos forçados, execuções sumárias, torturas, intolerância religiosa) que se somam, complementando, os que formalizam um determinado país.

Esse impressionante arcabouço, a maior parte do qual logrado apesar da confrontação ideológica, no qual se inseriram as preocupações e anseios do Terceiro Mundo, que soube aproveitar as brechas existentes no sistema bipolar, não impediu, contudo, que uma visão seletiva dos direitos humanos, reflexo da bipolaridade, continuasse a prevalecer. Essa visão seletiva, em razão de dar margem a manipulações políticas consideráveis, não era propícia a encorajar o respeito aos direitos humanos em sua integralidade. A situação favorecia certa hierarquização dos direitos. O fato de um país pertencer a um dos blocos levava-o a aplicar e a promover seletivamente determinada categoria de direitos e a negligenciar a observância de outros. Os países em desenvolvimento, por seu turno, utilizavam o atraso econômico como justificativa de violações de direitos humanos em seus territórios.

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A mais importante mudança no sistema internacional, depois da Segunda Guerra Mundial foi o fim da Guerra Fria, cujo evento matriz, emblemático do novo, foi a queda do muro de Berlim. Tal mudança ocorreu ao largo e independentemente da Carta da ONU, que assim não teve um papel-chave na configuração do atual cenário mundial. Teve, no entanto, inversamente, efeito direto no funcionamento do multilateralismo ao liberar as Nações Unidas da hipoteca da confrontação ideológica. Daí, diga-se de passagem, a recolocação na ordem do dia da reforma da Carta, que vem tendo seu foco principal - devido ao papel central do Conselho de Segurança na governança do sistema internacional - na reivindicação da atuação daquele órgão, tanto em sua composição quanto em seu processo decisório.

Quais são as notas básicas do novo cenário mundial, relevantes para o tema desta exposição, que têm impacto na diplomacia multilateral? Caracterizam-se pela passagem de um sistema de polaridades definidas - Leste/Oeste, Norte/Sul para outro, de polaridades indefinidas, que está sendo modelado pelo jogo de duas forças profundas - as centrípetas de unificação e globalização e as centrífugas de fragmentação. Exemplo das primeiras são os processos de integração econômica e política (UE, NAFTA, MERCOSUL etc.), da globalização da economia (OMC), das comunicações, entre outras. As forças de fragmentação manifestam-se em fenômenos como a secessão de Estados, os conflitos étnicos, os fundamentalismos religiosos etc. São forças que valorizam a sublevação dos particularismos, à semelhança da reação oposta pelo movimento Sturm und Drang do romantismo alemão à Aufklärung.

As forças de desintegração começam a fazer-se sentir em toda a sua intensidade a partir do colapso da União Soviética, que - podemos dizer - encerra uma primeira etapa do pós-Guerra Fria, marcada por certo otimismo e pela esperança de que os valores democráticos e liberais possam se universalizar, em prazos não muito longos, e sem maiores percalços. A fragmentação da União Soviética e a crise nos Balcãs, além de vários outros conflitos em diversas partes do mundo, vieram pôr fim a esse otimismo e mostrar o poder dos particularismos intolerantes e excludentes, sobretudo étnicos e religiosos. A virulência que assumem os conflitos étnicos atinge ápices impressionantes como as operações de limpeza étnica na ex-Iugoslávia e o genocídio de Ruanda. Quanto à intolerância religiosa, o exemplo mais dramático talvez seja a ação dos integristas argelinos.

É em meio a essa nova realidade internacional que se realiza, em Viena, em junho de 1993, a Segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que foi também a segunda - após a Rio-92 - no ciclo de grandes conferências sobre os chamados temas globais de inspiração kantiana, diria, previsto pelas Nações Unidas. Não inventariarei aqui todos os avanços obtidos em Viena, nem descreverei os pormenores das negociações, os quais se acham muito bem comentados em artigos e obras de dois de nossos diplomatas mais atuantes e competentes na área dos direitos humanos e que integraram a delegação brasileira àquele evento. Refiro-me ao Embaixador Gilberto Vergne Saboia, que presidiu o Comitê de Redação da Conferência, e ao Ministro José Augusto Lindgren Alves. Limitar-me-ei a ressaltar os principais pontos da Declaração e Programa de Ação de Viena (DPAV), que representa, a meu ver, o direito novo que na moldura da Carta da onu se tornou possível com o fim da Guerra-Fria.

Primeiramente, destaca-se o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos e da legitimidade da preocupação internacional com sua observância. Existem também dispositivos que reconhecem a pluralidade cultural a importância das particularidades nacionais e regionais e os fatores históricos e religiosos. Entretanto o caráter universal dos direitos humanos acha-se, consagrado no documento, de modo inequívoco.

Outro ponto fundamental da Declaração é a conceituação dos direitos humanos como sendo indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Sepulta-se, assim, ao menos no nível conceitual da ONU, a idéia de uma hierarquização seletiva dos direitos humanos baseada nas polaridades Leste/Oeste, Norte/Sul.

O direito ao desenvolvimento é reafirmado igualmente, sendo enfatizado que é o homem o sujeito do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o documento preceitua que a falta de condições econômicas e sociais adequadas não pode ser invocada para justificar violações dos direitos humanos. Reconhece-se a vinculação entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos e reafirma-se a relação entre a democracia, os direitos humanos e a paz mundial.

A tutela internacional dos direitos humanos é legitimada e a soberania estatal limitada no sentido de que também não pode ser utilizada para permitir violações dos direitos humanos. Não se chega, porém, a reconhecer o direito de ingerência.

O direito à autodeterminação é reafirmado, com a ressalva de que não poderá ser invocado para justificar ações que tenham como objetivo a secessão e o desmembramento de Estados livres.

Cabe, por fim, mencionar que a DPAV propõe o estabelecimento do cargo de Alto Comissário das Nações Unidas - proposta posteriormente endossada pela Assembléia-Geral - e faz uma série de recomendações com vistas à maior eficiência da machinery de direitos humanos das Nações Unidas. Entre elas cabe ressaltar a consolidação dos mecanismos de monitoramento, como os relatórios e o reforço de articulação das diversas instâncias da ONU, voltados para os direitos humanos.

A Conferência de Viena reuniu delegações de 171 Estados, teve 813 organizações não-governamentais acreditadas como observadores da Conferência e mobilizou duas mil organizações não-governamentais no Fórum paralelo das ongs. A abrangência de sua representatividade conferiu, assim, legitimidade inédita tanto aos avanços conceituais que logrou na área dos direitos humanos quanto aos parâmetros que fixou para nortear o desenvolvimento da estrutura internacional montada para sua proteção e promoção. Essas conquistas - é bom lembrar - deram-se em momento difícil da cena internacional, com a eclosão de novos conflitos étnicos, o agravamento dos já existentes e o acirramento das desigualdades na distribuição de renda entre países e no interior deles. O consenso de Viena, nessas condições, deveu-se à conjugação de fatores tais como a determinação e espírito construtivo de algumas delegações, entre as quais a do Brasil; a participação expressiva da sociedade civil de numerosos países - através das Organizações não-Governamentais - o que, de certa forma, poderia ser qualificado de presença da opinião pública mundial; e o receio de isolamento daqueles governos que, se as condições o permitissem, teriam evitado participar de qualquer exercício destinado à promoção das direitos humanos.

O significado maior da Conferência de Viena, para voltar ao que afirmei no início desta exposição, parece ter sido a elaboração de diretrizes mais precisas na área dos direitos humanos, para a construção de um sistema internacional em que a política e a ética deixem de ser esferas independentes, e passem, ao contrário, a se interpenetrarem cada vez mais nas linhas do ideal kantiano de uma razão abrangente do ponto-de-vista da humanidade. Em outras palavras, a Conferência favorece a subordinação das soberanias à ética dos princípios representados pelos direitos humanos.

* * *

Evidentemente, não se poderia esperar que as noções consagradas pela Conferência de Viena, por um consenso afinal frágil, viessem a ter impacto imediato e espetacular na cena internacional, ainda que a importância dessas noções seja evidente não só do ponto de vista da ética como também do da própria governabilidade do sistema internacional e da sua capacidade de lidar com o diverso. Caberia, aqui, a propósito, fazer um parênteses e, para ir encaminhando as conclusões, recordar a metáfora de Bobbio ao examinar o papel da razão na história, segundo a qual, em face do futuro, os homens estariam numa posição como se estivessem dentro de um labirinto. Existem saídas, mas elas não são óbvias, nem fáceis de serem encontradas. A única coisa que o homem aprende na experiência do labirinto é que existem becos sem saída. A lição do labirinto, portanto, é a da verificação da estrada bloqueada.

Como vimos, a cena internacional vem tendo sua evolução determinada, de um lado, por forças de integração, de outro, por forças de fragmentação. À luz do que se passa hoje no mundo, a atuação das forças de integração na promoção de condutas compatíveis com os ideais incorporados na noção de direitos humanos parece, às vezes, menos poderosa do que a das forças de fragmentação. O mundo continua a testemunhar eventos espantosos do mal como a depuração étnica nos Balcãs, o genocídio em Ruanda, a continuação de guerras civis cruentas, a exemplo das da Libéria, Somália e Afeganistão, eventos cuja origem está ligada a violações maciças de direitos humanos e que constituem, naturalmente, eles próprios, violações gravíssimas não só dos direitos humanos como do direito humanitário. O recrudescimento do racismo e da xenofobia e o revigoramento dos movimentos neo-nazistas são outros fenômenos inquietantes nesse contexto.

Por outro lado, a globalização da economia e a expansão do modelo de livre mercado, que constituiriam forças de integração, ao lado do progresso tecnológico que permitem, graças à liberação das energias humanas, têm agravado desigualdades sociais entre países ricos e pobres, aumentado o número dos excluídos. Além do mais, parece consolidar-se, em círculos influentes do poder e da opinião pública dos países desenvolvidos, a percepção não só de que o nível de ajuda externa aos países em desenvolvimento deve ser reduzido, mas também a de que a própria idéia de se procurar a correção dos desequilíbrios entre os países ricos e pobres por mecanismos intervencionistas é inadequada. Em vista da gravidade de certos problemas internos, sobretudo o desemprego, e dos desafios da competição global, muitos governos tendem a optar por políticas voltadas quase que exclusivamente para a afirmação da competitividade das economias nacionais, sem prejuízo da adoção de medidas protecionistas em certas áreas. Desse modo, reduzem-se os espaços para a solidariedade internacional. Isto ocorre apesar de o caráter global de certos problemas não ser ignorado por tais governos. No entanto, o conflito entre objetivos de curto prazo e os de longo prazo parece que vem sendo arbitrado em favor dos primeiros.

Em suma, além da ação das forças de fragmentação, a própria lógica da globalização ao agravar, pelo menos no primeiro momento, por força dos ajustamentos e das reestruturações, os desequilíbrios sócio-econômicos entre os países e no interior deles, terminam contribuindo para o aumento de tensões capazes de degenerar em conflitos.

Nessas condições, apesar de ter aumentado o número de países democráticos e a aceitação bastante generalizada dos valores de convivência que consagram, o desrespeito aos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais ainda persiste em todas as regiões do mundo e a plena realização do direito ao desenvolvimento permanece uma meta quase utópica.

Em face dessa realidade, uma instituição como a ONU, conforme se infere do que expusemos anteriormente, tem a capacidade de dar rumo para a correção dos desequilíbrios mais graves relativos à paz, ao desenvolvimento e aos direitos humanos.

Há de se considerar, entretanto, que as Nações Unidas não configuram um estado supranacional e desempenham, apenas, como já observei no início desta palestra, o papel de um tertius, que exerce a função de uma instância de interposição. As decisões emanadas do órgão são fruto de negociações entre os Estados-membros, nas quais a persuasão e a pressão são os instrumentos básicos. Por trás da persuasão e da pressão existem motivações kantianas nobres e éticas, e motivações grocianas de cooperação interessada de natureza política, estratégica ou econômica. Os pesos relativos dos países se espelham, no entanto, à maneira do realismo hobbesiano-maquiavélico em todas as decisões de relevância adotadas pelas Nações Unidas.

As decisões das Nações Unidas refletem o que pensam os países mais poderosos detentores do poder do veto no caso do Conselho de Segurança e, no caso da Assembléia-Geral, o que pensa a maioria dos países membros, sendo que só terão alguma chance de prosperar de imediato aquelas decisões que não encontrem a objeção da maior parte dos países mais poderosos. Em síntese, na interação entre as múltiplas soberanias, a anarquia dos significados é freqüentemente equacionada com base no que os mais fortes pensam.

Há, é verdade, muitas vezes espaço para compromissos e acomodações, nas quais, no campo dos direitos humanos, os Estados têm algum interesse, seja porque têm que prestar contas internamente - caso dos países democráticos - seja para não se verem isolados internacionalmente. Com efeito, hoje, no mundo pós-Guerra Fria, a legitimidade dos Estados e das sociedades, o seu locus standi no plano internacional, a sua credibilidade e o seu acesso à cooperação internacional, vêem-se reforçados com a promoção dos direitos humanos e a sua proteção democrática. Por isso, democracia e direitos humanos, no plano interno, passaram a ser um ingrediente relevante de soft-power no plano internacional. Dessa forma, só tende a não haver compromisso na área de direitos humanos se e quando estiverem em jogo interesses vitais dos Estados, ou que, pelo menos, sejam assim considerados por seus governos.

De qualquer modo, as iniciativas da ONU capazes de repercutir em grau relevante e de maneira mais direta na ordem internacional devem contar com o respaldo dos países poderosos. Na falta desse apoio, as iniciativas da ONU não têm condições de prosperar, ao menos, de modo mais imediato. Daí a percepção popular de que a onu ou é um instrumento dos países mais poderosos ou é um organismo ineficaz, que produz quantidades de documentos que caem no vazio. Embora seja esta uma visão simplista, podemos afirmar que há algo de verdadeiro nela no sentido de que a ONU não é melhor ou mais poderosa do que os Estados que a compõem. Por outro ângulo, poderíamos dizer que a ONU conservaria assim uma fisionomia hobbesiana temperada e contida por importantes ingredientes grocianos.

Essas características da ação da ONU, no entanto, não retratam toda a verdade. Não poderíamos, com efeito, afirmar que a atuação da ONU leve em conta, no nível do CSNU, unicamente os interesses das grandes potências e que tenda, por conseguinte, à preservação do status quo mundial em termos de distribuição do poder. Nem poderíamos declarar que tudo o que a Assembléia-Geral produz sem gerar conseqüências imediatas seja inútil.

Na verdade, por força de seu compromisso de respeitar a Carta das Nações Unidas, os Estados-membros, independentemente do que ocorre nos territórios sob sua jurisdição, são compelidos a legitimarem-se internacionalmente para conduzir-se, nas deliberações do órgão, com referência aos princípios éticos contidos no documento de São Francisco. Em conseqüência, os documentos negociados no âmbito da ONU, mesmo se vazados em linguagem vaga, têm necessariamente conteúdo ético.

As exigências de legitimidade, portanto, fazem com que esses documentos tenham um teor que não pode deixar de refletir os princípios éticos contidos na Carta, com um potencial de influir, ainda que a prazo mais longo, na evolução dos assuntos mundiais. Esse potencial terá maiores chances de realizar-se à medida em que, no plano interno dos países, se consolidem regimes democráticos. Mesmo no caso de regimes autoritários, a visão onusiana das coisas acaba por se fazer conhecer, já que os Estados-membros não podem obstaculizar sistematicamente a divulgação dos textos da ONU e o clima axiológico que refletem. De qualquer modo, há uma interação entre o processo internacional no âmbito da ONU e o processo doméstico, que termina gerando impulsos poderosos em direção da realização de objetivos éticos.

Além disso, a própria maneira multilateral como são tomadas as decisões nas Nações Unidas - em que o diálogo, a moderação e a razão influem consideravelmente - favorecem o desenvolvimento de uma ética centrada na tolerância e na razão.

Por fim, não se poderia subestimar o fato de que - por uma evolução auspiciosa dos acontecimentos - os países mais poderosos na cena internacional - as democracias ocidentais e o Japão - crescentemente incorporam em suas políticas externas as aspirações de suas sociedades civis. Estas, cada vez mais, demonstram não tolerar políticas baseadas na raison d'état, nem tampouco a diplomacia secreta. As políticas externas das grandes democracias ocidentais são continuamente objeto do escrutínio das sociedades civis. A exigência de transparência leva a que as atuações externas desses países incorporem progressivamente a perspectiva dos governados, a perspectiva ex parte populi, de vocação universal. Na medida, pois, que esse controle dos governos pela sociedade civil - inclusive através de sua participação direta e indireta nas deliberações da ONU e aí as ONGs têm papel relevante - se fortaleça nos países mais poderosos e a maioria dos países membros da ONU torne-se democrática, estaremos atingindo, no plano internacional, especialmente no âmbito da ONU - níveis de convergência e complementaridade entre a política e a ética, entre a força e o direito que favorecem o ideal kantiano da razão abrangente da paz perpétua e do direito à hospitalidade universal.

Assim sendo, podemos concluir dizendo: apesar de todas as deficiências que possa ter, a ONU, sem dúvida, é um fator essencial na promoção de ideais éticos, em geral, e dos direitos humanos, em particular. Essa capacidade da onu deriva dos princípios consagrados em sua Carta, cuja origem é o reconhecimento da legitimidade do patrimônio das idéias éticas da humanidade. O triunfo definitivo dessas idéias é, no entanto, uma incógnita. A missão que temos, todos aqueles que crêem nesses ideais, é de lutar para que eles se realizem cada vez mais - pois todos os valores têm a dimensão da inexaurabilidade - e para que as vias bloqueadas de que fala Bobbio - no contexto de sua metáfora sobre o labirinto - sejam definitivamente evitadas.

Celso Lafer é chefe da missão do Brasil junto à ONU em Genebra e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Palestra feita pelo autor no Colóquio A Carta de São Francisco: 50 anos depois, organizado pela Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados na Sala do Conselho Universitário da USP no dia 23 de junho de 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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