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Presença da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda

LITERATURA

Presença da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda

Walnice Nogueira Galvão

BEM FIRMADO em sua mais que merecida reputação de grande historiador, talvez o maior que já houve no país (não fora Capistrano de Abreu), foi quase com surpresa que se redescobriu, já nos anos 90 do século XX, Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário.

Do lado da historiografia

A primeira contribuição que deu à historiografia, Raízes do Brasil (1936), é até hoje seu livro mais conhecido, reeditado e traduzido. Procedendo ao cotejo entre duas colonizações latino-americanas — a portuguesa e a espanhola — encarnou-as respectivamente em dois tipos ao estilo weberiano — o semeador e o ladrilhador — que lhe forneceram bases para avançar hipóteses sobre a sociedade brasileira.

Depois, Monções (1945), Caminhos e fronteiras (1957), aos quais se deve anexar O extremo Oeste (embora este, deixado inconcluso nos anos 50, só apareça postumamente, em 1986), formam um bloco, pois tratam do desbravamento e ocupação dos interiores do Brasil, sobretudo pelo sertão paulista afora. Ali, o trato com as fontes primárias, aliás traço distintivo de sua obra, é fecundado pela visada antropológica, resultando em notáveis investigações de cultura material, que mostram a importância de índios e mamelucos nos costumes coloniais, bem como no povoamento do território.

Em Visão do paraíso (1959), tese de cátedra, Sérgio Buarque de Holanda estuda os motivos edênicos que presidiram aos descobrimentos, quando os conquistadores almejavam chegar ao paraíso terreal. Começando pelos devaneios com as terras ignotas já em vigência na Antigüidade, demonstra como à utopia paradisíaca se opõe uma fantasia demoníaca, que envolve o canibalismo, a existência de monstros e a intervenção de Satanás. É um monumento de erudição e gosto.

Nesse livro, embora ninguém possa negar que se trata de um marco na historiografia, a contribuição dos estudos literários é enorme, fato que não é único na obra do historiador, embora aqui mais acentuado. Sobressaem as sondagens de E.R. Curtius, autor de A literatura ocidental e a Idade Média latina, expoente da estilística alemã, insuperável pela perquirição filológica e membro de uma trindade completada por E. Auerbach, autor de Mimesis: a representação da realidade em literatura, e L. Spitzer, autor de Estudos de estilo. Curtius é referência constante: foi ele quem estudou na tradição literária ocidental a tópica com que o historiador está operando, erigindo-se em fonte para a exegese dos motivos edênicos. Mas são convocados poetas e ficcionistas, facultando ao leitor inteirar-se da extensão e profundidade de seu preparo anterior enquanto crítico literário.

Assim, volta e meia comparecem, sem que o autor sequer se dê ao trabalho de incluir esses nomes na bibliografia final, Homero, Horácio, Dante, Defoe, Coleridge, padre Vieira, François Villon, Tasso, as novelas de cavalaria, Ronsard, Quevedo, Rabelais, Garcia de Resende, Ovídio, Virgílio, James Joyce, La Fontaine, John Donne, Esopo, Fedro, Camões, entre muito outros. E se mais não mencionou foi porque não vinham ao caso, pois suas amplas leituras se estendiam em várias direções, como mostram os artigos de crítica literária precedentes.

Do Império à República (1972) tem um percurso original, pois, à época, Sérgio Buarque de Holanda dirigia a coleção História Geral da Civilização Brasileira, a qual mobilizava dezenas de colaboradores, dentre o que havia de melhor no pensamento brasileiro. Exerceu o encargo de 1960 a 1972, tendo sido produzidos sob sua direção os dois volumes da Colônia, para os quais contribuiu com vários ensaios, e os cinco do Império. Quando chegou ao último, cansado de tanta cobrança e tanto atraso na entrega dos trabalhos, sentou-se e escreveu sozinho as quase 500 páginas do sétimo volume, caso único na coleção. Depois disso desistiu e passou-a adiante.

Com este livro, ao concentrar-se nas instituições políticas, o historiador tornou-se especialista no período imperial. Tratando do vício de origem que é o patriarcalismo rural, observa como este, oriundo da Colônia, atravessa o Império e chega à República. Delimita-o de um lado o governo absoluto mas camuflado como constitucional do imperador e de outro a imensa maioria de uma plebe sem instituições organizacionais, composta por escravos e homens livres. Tudo isso com base num âmbito de eleitorado minúsculo, emperrando a plausibilidade de constituição da sociedade civil.

Obras que compõem o perfil de um grande historiador, tornam desnecessário mencionar os livros didáticos e os numerosos prefácios, reunidos recentemente no Livro dos prefácios (1996).

Uma observação mais acurada infere que Sérgio Buarque de Holanda talvez pudesse ter conhecido ainda mais fama em vida, influenciado mais discípulos e feito mais escola do que de fato ocorreu. A razão parece ser óbvia, ou seja, a de que remava contra a maré nativa de seu tempo: tempo de fastígio da história econômica. Também, para azar dos não-brasileiros, de todos os seus livros só Raízes do Brasil foi várias vezes traduzido, e em primeiro lugar na Itália, com o título de Alle radici del Brasile (Fratelli Bocca Editori, 1954). A propósito, nosso autor gostava de contar que o livro fora visto naquele país na seção de Botânica de uma livraria.

Depois, seria editado no México como Raices del Brasil (Fondo de Cultura Económica, 1955). Houve ainda uma tradução japonesa (Tóquio, Shinsekaisha Ltda., 1971) e outra chinesa (Pequim, Serviço de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, 1995), às quais se acrescentariam a alemã, Die Wurzeln Brasiliens (Frankfurt-am-Mein, Suhrkamp Verlag, 1995), e a francesa, Racines du Brésil (Paris, Gallimard, 1998).

Dentre os demais, apenas Visão do paraíso foi também traduzido, e só para o espanhol, ainda que tardiamente, pois saiu cerca de 30 anos após o seu lançamento (Visión del paraíso, Venezuela, Biblioteca Ayacucho, 1987).

Característica que perpassa a obra de ponta a ponta é a perícia estilística: estamos diante de um verdadeiro escritor, sem prejuízo dos méritos científicos daquilo que escreve. Em suma, um mestre da prosa, com certo pendor castiço e até clássico, ou classicizante, como que absorvendo a atmosfera lingüística das fontes primárias que tanto prezava.

Do lado da crítica literária

A certa altura, indo avançada sua carreira de historiador de renome estabelecido e identidade intelectual reconhecida, Sérgio Buarque de Holanda publica, pouco apartados no tempo, dois livros de crítica literária: Cobra de vidro (1978), reedição de um mais antigo de 1944, e Tentativas de mitologia (1979). Some-se a isso outra reedição literária coeva, a da Antologia dos poetas da fase colonial (1979), cuja primeira edição é de 1952-1953 (2 v.).

Os dois primeiros reúnem artigos oriundos da crítica militante em vários periódicos, mas especialmente do rodapé semanal do Diário de Notícias do Rio (onde substituiu Mário de Andrade) nos anos de 1940 e 1941, da Folha da Manhã e do Diário Carioca, compreendendo um lapso que se encerra em 1952. Completam o segundo dois trabalhos publicados n'O Estado de S. Paulo em 1956, estes avulsos, ou pelo menos não-comprometidos com o exercício semanal.

Em altíssimo nível e abarcando um horizonte de interesses mais que amplo — além de muito bem escritos, como sempre —, ambos só seriam melhor elucidados posteriormente, quando outras publicações aparecessem. Em todo caso, ficam vincados por duas características: a erudição e a abrangência temática. A primeira nunca se desmentiu e a segunda desembocará numa certa especialização, como adiante se verá.

Os artigos reunidos nesses dois volumes cobrem extensa gama e diversos tipos, além de notícias de lançamentos, como cabe a um rodapé. Vão desde minuciosas análises de poemas até textos de reflexão sobre determinados assuntos, como o romantismo ou o americanismo, ou sobre autores tão variados quanto Kafka, Pound, Lima Barreto, Gilberto Freyre, Gide, Thomas Hardy, Fargue, Auerbach, entre outros, sem esquecer o constante diálogo do membro da Semana de Arte Moderna de 1922 com os modernistas contemporâneos e seus sucessores.

Se necessário precisar qual a diferença entre ambos, o resultado revela-se curioso: embora tenham aproximadamente o mesmo número de artigos, o segundo é bem mais volumoso que o primeiro (Cobra de vidro: 19 artigos em 191 páginas; Tentativas de mitologia: 17 artigos em 284 páginas), resultando portanto da soma de trabalhos mais extensos. Todavia, por um critério não-quantitativo e mais pertinente de distinção, nota-se que o primeiro é de cunho mais literário, enquanto o segundo o é com menor exclusividade, enveredando francamente pelo campo da historiografia, com ênfase no Barroco e no Arcadismo, já prefigurando tanto Visão do paraíso quanto Capítulos de literatura colonial.

Sérgio Buarque de Holanda abandona as lides da crítica militante quando, em 1957, se torna professor de História da Civilização Brasileira na Universidade de São Paulo, embora nunca deixasse de escrever avulsamente para jornais e revistas.

Não se dá aí sua estréia como professor, pois desde 1936 já lecionara História Moderna e Econômica no Rio, como assistente de Henri Hauser na Universidade do Distrito Federal, mas, e sintomaticamente, também Literatura Comparada, como assistente de Trouchon, na mesma escola. Em 1937, quando os dois franceses se retiraram, assumiu a cadeira de História da América e de Cultura Luso-brasileira até 1939, quando a escola foi extinta. A partir de 1948 lecionou ainda História Social e Econômica do Brasil na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo.

No ano de 1958 abre-se concurso para provimento da cadeira de História da Civilização Brasileira, que já ocupava desde o ano anterior, e nosso autor a ela concorre, com a tese de cátedra intitulada Visão do paraíso. A partir de então, até sua morte em 1982, sua reputação fica consolidada como historiador, esquecido o crítico literário.

Quase um decênio após sua morte, sai, para surpresa geral, Capítulos de literatura colonial (1991), alentado volume com cerca de 500 páginas, cujos originais foram preparados por Antonio Candido. Instigado por um compromisso com José Olympio, Sérgio Buarque de Holanda aproveitara sua estada como professor na Universidade de Roma (1952-1954) para pesquisar o acervo da Arcádia Romana — vindo a demonstrar sua superior influência sobre o Arcadismo mineiro — e ler exaustivamente, como se verifica pela bibliografia, os árcades italianos e os seus estudiosos. Ainda pouco conhecido, trata-se, no juízo de um especialista no mesmo campo como Antonio Candido, do mais importante trabalho até hoje feito sobre o assunto.

Composto de oito ensaios aparentados porém na maioria inconclusos, todos convergindo para o estudo do Arcadismo mineiro, destinava-se, segundo o editor, a ser o sétimo volume, Literatura colonial, de uma História da literatura brasileira que José Olympio planejara nos anos 40 mas não chegaria a concretizar. Segundo os indícios, os ensaios datam da década de 50, época em que vem à luz a Antologia dos poetas brasileiros da fase colonial (1952-1953), sem dúvida ligada ao projeto.

O que responde pela incompletude é a profissionalização do historiador. Tendo trabalhado nesse ínterim no Instituto Nacional do Livro (1939-1943), na Biblioteca Nacional (1943-1946) e no Museu Paulista, como seu diretor (1946-1956), passara, como vimos, a ser professor na USP em 1957 e se dedicaria a redigir Visão do paraíso para o concurso de cátedra, que ocorreria no ano seguinte.

Uma coisa puxando outra, foi publicada em 1996 uma monumental obra em dois volumes, com cerca de 1.200 páginas, intitulada O espírito e a letra: estudos de crítica literária, reunindo textos esparsos em periódicos que Antonio Arnoni Prado pesquisou durante sete anos e caprichosamente anotou. A bem da verdade, a firmeza e a constância do pesquisador manifestam-se no fato de que, inclinando-se a publicar uma coletânea ao fim de quatro anos, atendeu às instâncias de Antonio Candido para que resgatasse tudo, o que demandou mais três anos de labores.

Como se comprova nessas páginas, mal se acomodando dentro dos limites do crítico de rodapé semanal, nosso autor franqueia ao leitor uma reflexão de amplo espectro. Assim, pode escrever sobre a literatura da Antigüidade e da Idade Média; ou sobre vastos temas teóricos como mito e arte, poética e estética, símbolo e alegoria, hermetismo em poesia; ou então entabular uma discussão com os modernistas seus contemporâneos ou com os da geração de 1945, também seus contemporâneos, só que duas décadas mais tarde; ou acompanhar os modernos do mundo, como Proust, Joyce, Pound, Eliot, Kafka, os surrealistas ou o New Criticism, de que foi grande conhecedor.

Cabe aqui lembrar que, ao abandonar os rodapés, doou a Antonio Candido cerca de 400 obras nessa especialidade, ou seja, do New Criticism e adjacências, tendo este as encaminhado à Biblioteca de Teoria Literária e Literatura Comparada (com direito a retrato na parede) e mais tarde à Biblioteca Central de Letras da USP.

Entretanto, no arco que se desenha nesses 40 anos de crítica literária, iniciados com o primeiro artigo, escrito em 1920 aos 18 anos, certas constantes se definem, de tal modo que cada vez mais a atenção vai-se concentrar no Barroco e no Arcadismo, prefigurando os Capítulos de literatura colonial, em gestação nessa época. Passam a freqüentar sua pena temas correlatos, como se pode verificar sobretudo em Tentativas de mitologia e em O espírito e a letra. Com as edições da década de 90 vindo a constituir uma verdadeira redescoberta dessa vertente de sua obra obscurecida pela do historiador conspícuo, o que se pode dizer é que a recepção de Sérgio Buarque de Holanda crítico literário ... mal começa.

Um balanço recente

A melhor súmula do pensamento do historiador poderia estar na seguinte frase: "Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história." O privilégio concedido aos "figurantes mudos" elucida as convicções que faziam de nosso autor um socialista desde a juventude, vindo a ser no final da vida membro fundador do Partido dos Trabalhadores.

A frase encontra-se estampada na quarta capa do livro resultante de um congresso que Antonio Candido, para quem o historiador é um dos expoentes do pensamento radical brasileiro, coordenou no Rio em 1997, sob os auspícios da Fundação Perseu Abramo, do pt. Os trabalhos apresentados foram depois reunidos sob o título Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil, editado por aquela Fundação em 1998.

Nota-se na reunião o caráter de balanço e de ampla cobertura de todas as vertentes da obra, sem deixar de lado a biografia. Para dar conta de uma tão extraordinária personalidade, no congresso e no livro multiplicaram-se os enfoques, no afã de abarcar os mais relevantes aspectos de sua trajetória. Sinal desse novo recorte, no balanço já foi reservado um lugar para o exame do crítico literário, tarefa que coube ao organizador de O espírito e a letra, mas também para o pensador radical.

O próprio coordenador, Antonio Candido, encarregou-se de traçar o perfil político do homenageado, estabelecendo um roteiro de seu desempenho desde a participação no grupo modernista e as posições que então assumira. Delas emerge um Sérgio libertário, que cedo se definiu sobretudo em contraposição ao nazismo, a cujas primeiras manifestações teve oportunidade de assistir pessoalmente, numa estada na Alemanha em 1929-1930.

Segue-se sua oposição à ditadura Vargas quando, em 1942, contribuiu para a fundação da Associação Brasileira de Escritores, entidade que abrigava a resistência intelectual do país e da qual exerceria a presidência nacional, primeiro, e a da seção paulista, posteriormente. À abde se deve um dos raros manifestos do período reivindicando liberdades democráticas, então lido no Teatro Municipal de São Paulo, na sessão de encerramento de seu primeiro congresso, em janeiro de 1945. O historiador, que à época morava no Rio, esteve presente na qualidade de membro da delegação carioca.

Nascia em agosto de 1945, no Rio, a Esquerda Democrática, de que nosso autor, novamente, é um dos fundadores. Dois anos depois ela se transformaria no Partido Socialista Brasileiro, pelo qual mais tarde, em 1950, por disciplina partidária embora sem a menor chance, ele se candidataria a um cargo legislativo por São Paulo, onde passara a residir.

Na vigência de outra ditadura, aquela trazida pelo golpe de 1964, o historiador nunca escondeu lhe ser contrário. Em 1969 aposentou-se da USP em gesto de solidariedade para com os colegas excluídos pelo AI-5.

Quando, poucos anos depois, um deputado eleito pelo mdb, Oscar Pedroso Horta, desencadeou no Parlamento uma campanha desafiando o regime, Sérgio Buarque de Holanda encabeçou um abaixo-assinado de apoio, naquilo que foi o primeiro manifesto oposicionista também dessa ditadura. Nesses anos ocuparia igualmente a vice-presidência do Centro Brasil Democrático, criado por Oscar Niemeyer. E assim viria mais tarde a formar entre os que fundaram o Partido dos Trabalhadores, em 1980.

Após este que é, até hoje, o mais completo esboço do percurso do historiador enquanto intelectual militante, Antonio Candido passa a analisar o último capítulo de Raízes do Brasil (1936), em função do travejamento das idéias políticas ali expostas. Duas são as novidades trazidas pelo livro à reflexão histórica no país: a primazia atribuída à incorporação das massas urbanas e à necessidade de liquidação do passado colonial, este perpetuado pelas oligarquias rurais. Distingue-se, por isso, de dois outros influentes livros da época: Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, e Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, que exaltam a missão das elites e a herança lusitana. Enquanto estes autores podem ser considerados politicamente conservadores, Raízes do Brasil contrasta por sua concepção democrático-popular.

Outro trabalho, apresentado por Luiz Dulci, fala do petista, começando por retratar Sérgio Buarque de Holanda, aos 78 anos e doente, apoiado numa bengala, participando do ato de fundação do pt. A interrogação da obra do historiador, hoje, poderia responder a certas questões até estratégicas para o partido, como, por exemplo, que rupturas e que continuidades deveriam servir de parâmetros para o posicionamento com relação ao passado das lutas populares. Ou, dentre muitas outras, fornecer o diagnóstico das mudanças históricas que permitiram a criação de um tal partido.

Luiz Dulci chama a atenção dos petistas para o modelo tanto pessoal quanto da obra, tentando compreender esses e outros pontos cruciais. Valeria a pena observar que o engajamento de Sérgio Buarque de Holanda começa pela dedicação de toda uma vida a estudar o Brasil, sem qualquer paroquialismo ou chauvinismo, antes enquadrando-o no painel da história em escala planetária. Espírito universal, reputado por sua erudição, nosso autor assimilava a cultura do mundo para aplicá-la ao país. E não é porque fosse brasileiro e estudasse seu país que deixaria de escrever obras que se situam no mais alto patamar cosmopolita: até nisso era democrático e popular. Dulci lembra ainda, com muito propósito, que Sérgio Buarque de Holanda realizou no ensaio o que os grandes modernistas realizaram em outros gêneros, a saber, uma investigação do Brasil.

O trabalho de Raymundo Faoro — prendendo-se sobre-tudo a Do Império à República — mostra como nosso autor, enquanto analista das instituições políticas, soube fazer uma história do ponto de vista do povo e não do poder. O desconcerto social brasileiro é ali explicado por um processo de longa duração, que persistiu no bojo da extinção do cativeiro em 1888: as massas mantinham-se sujeitas à tutela, enquanto o imperador, praticamente ilimitado em seu poder pessoal, governava assessorado por parlamentares oriundos de eleições fraudulentas. Quadro, como não poderia deixar de ser, desfavorável à formação da sociedade civil e da cidadania.

Examinando as relações entre política e sociedade na reflexão do historiador, Maria Odila Leite da Silva Dias, que trata de Raízes do Brasil, observa que, paradoxalmente, ele não acreditava em lições do passado para aproveitamento no presente. Ao contrário, procurava no passado forças de transformação que permitissem justamente emancipar-se dele.

Ilana Blaj e Ronaldo Vainfas cuidam de outros dois aspectos, conferindo-lhes o lugar de destaque que ocupam no conjunto da obra: a primeira, com base em Monções, Caminhos e fronteiras, O extremo Oeste, da cultura material; o segundo, fundamentando-se em Visão do paraíso, das representações mentais. Tal complementaridade evidencia como o historiador trafegava à vontade por vários campos do ofício.

Finalmente, Antonio Arnoni Prado, tratando dos artigos de imprensa que pesquisou e reuniu em volume, debruça-se sobre a articulação de Sergio Buarque de Holanda com o Modernismo. Por aí verifica-se que o ideário de ambos — do crítico e do movimento — nem sempre coincidiu: sua perspectiva universalista divergindo muitas vezes do radicalismo primitivista dos modernistas, enquanto discordava da crença numa elite e mesmo da necessidade de um projeto construtivo.

O legado do historiador

Anteriormente, nos anos 80, já tinham vindo à luz duas publicações de balanço da obra e da vida do historiador. A primeira se deve à Revista do Brasil (ano 3, n. 6, jul. 1987), em número preparado por Francisco de Assis Barbosa a partir de uma exposição comemorativa do cinqüentenário de Raízes do Brasil, realizada na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, no ano anterior. A segunda é Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra (1988), uma iniciativa conjunta do Arquivo do Estado, da Secretaria da Cultura e do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Esta última resultou de um encontro organizado pelo Departamento de História da USP, em 1987, conjugando esforços com as Semanas anuais em homenagem ao historiador, promovidas pelo Arquivo do Estado a cada mês de julho a partir de sua morte.

Uma guinada verifica-se após o interregno de cerca de uma década, quando uma avantajada publicação ultrapassando as 700 páginas dá vazão a novos trabalhos feitos sob a inspiração dos ensinamentos do historiador. Foi assim publicado em 1998 República: da Belle Époque à era do rádio, organizado por Nicolau Sevcenko e terceiro volume da coleção História da vida privada no Brasil, dirigida por Fernando A. Novais.

Como este livro evidencia, cruzado o Equador, as linhas de delimitação se tornam fluidas e sinuosas, mostrando uma interpenetração de público e privado que é no mínimo inesperada. O problema é atacado de vários pontos de vista e a partir de diferentes materiais de pesquisa, alguns dos mais originais. Colocado explicitamente por seus realizadores sob a égide de Sérgio Buarque de Holanda — o mestre da história social, das mentalidades, da cultura e da cultura material, do cotidiano, das singularidades, da articulação do local com o mundial, da crítica à ingerência do privado no público —, de quem se consideram discípulos, o livro atinge um patamar de qualidade raramente visto por estas plagas. Seis ensaios, afora o final assinado pelo organizador, procuram dar conta da tarefa.

Começando cronologicamente, o primeiro examina a vida privada do escravo no momento da Abolição e daí para diante, mostrando como, vendo-se livre, vai engrossar as fileiras da imensa plebe rural brasileira, notória por sua mobilidade espacial, estampada até em suas casas pelo país afora, tão impermanentes que mais parecem acampamentos. É a oportunidade para um belo estudo da moradia rural.

Seu destino não vai ser muito diferente daquele dos pobres do campo. O movimento geral é o afluxo para as maiores cidades, onde se notavam anteriormente focos de negros forros. A privacidade possível (do título dado ao ensaio pela autora, Maria Cristina Cortez Wissenbach) vem a se revelar contraditória, pois o esforço de organização das camadas urbanas a partir da República, e portanto a partir do fim do cativeiro, é em primeiro lugar uma batalha pela sobrevivência: a privacidade se improvisa onde, como e na medida que se revele possível. No mais das vezes, se dava até no espaço público, a exemplo dos quintais dos cortiços, pois o interior deles, minúsculo e inóspito, atirava as pessoas para fora; ou então no terreiro de candomblé e nas festas religiosas ou profanas, distinção tampouco existente.

Foi assim que não só os ex-cativos, mas também os brancos pobres, sofreram uma discriminação específica, que acabou desembocando em exclusão porque tal decidiu o projeto modernizante da República. Na formulação da autora, "a privacidade popular se orientava em direção ao mundo das ruas".

O segundo ensaio, assinado por Paulo César Garcez Marins, trata da arquitetura pública e privada de nossas metrópoles. As maiores cidades, já sede de pretos forros e de brancos pobres, vão receber os novos libertos pela Abolição e, em maior escala, os imigrantes. Não se restringindo ao Rio, embora esse seja o caso mais extremado, o ensaio aborda também São Paulo, Recife e Porto Alegre. Realiza minucioso levantamento das habitações dos pobres, sejam cortiços, cabeças-de-porco, casas de cômodos, mocambos, enfim todo tipo de moradia precária e coletiva, detendo-se no surgimento das primeiras favelas nos morros que circundam a baía da Guanabara. Interessantíssimo partido tomado, o estudo vai até Brasília, avançando uma ousada interpretação, como segue.

Não se conseguiu resolver o "problema" da residência dos pobres no Rio, nem mesmo com a remodelação Pereira Passos: estes sempre conseguiam ameaçar com sua proximidade os bairros das camadas mais afortunadas. Tanto é que, expulsos do centro, escalam as alturas; em conseqüência, o que possa haver de mais moderno ou público, por exemplo a avenida Central com seus palácios — núcleo ostensivo do poder político e econômico da cidade —, acaba por ficar a poucos metros de uma favela. E assim se continuou a proceder, até a ocupação de todos os morros, de modo que os belos bairros fronteiriços à orla marítima têm todos como pano de fundo enormes favelas. Tentativas esporádicas de remoção destas, às vezes, embora raramente, para outra habitação alternativa, não só não resolveram o "problema" como nem sequer o arranharam; e foram afinal abandonadas. Nessa linha de raciocínio, a construção de Brasília é vista como mais uma remoção, só que desta vez não dos pobres, mas do Estado e seu aparelho. E em Brasília, onde evidentemente logo se formaram favelas, os pobres constituem o cinturão da cidade; mas a segregação é perfeita, pois não há pobres dentro dela. A cidade subsiste em permanente estado de sítio, ou seja, sem a incômoda exibição dos pobres, mas assediada por eles.

O ensaio de Zuleika Alvim dedica-se aos imigrantes, assinalando que já vinham enganados desde a Europa. Sobras do amplo movimento de concentração da propriedade rural que fundamentou a Revolução Industrial, obrigando os pequenos proprietários e artesãos independentes a se tornarem operários nas fábricas, vieram a constituir assim uma imensa massa desempregada, vista como ameaça à ordem.

Quase todas as nações européias tornaram-se o que a autora chama de "expulsoras", ou seja, criaram condições de vida tais que os pobres ou iam embora ou morriam de fome. Na outra ponta, as fazendas brasileiras de café, tendo perdido o privilégio do trabalho compulsório, estavam interessadas em contratar substitutos para os escravos agora libertos. Assim, tanto agentes dos fazendeiros quanto do governo ou mesmo empreiteiros independentes iam à Europa portando promessas miríficas. A todos, pois eram camponeses, ofereciam um pedaço de terra — que era o que tinham perdido.

Ao chegarem, após abominável travessia numa terceira classe apinhada — 2.500 era a lotação habitual — nada havia em condições de instalá-los. Às vezes tinham de passar até seis meses esmolando pelas ruas, até serem designados para algum sítio; outras vezes tinham de andar cerca de 50 km após o fim da linha de trem para atingir o destino e ganhar seu lote de mato fechado. Isso ocorreu mais para o Sul, e já vinha ocorrendo desde o tempo do Império. Mas a maioria veio mesmo para trabalhar em regime de quase escravidão nas fazendas de café, sem jamais ter lote algum, e sem sequer conseguir se fazer entender numa língua estranha. Abandonando-as aos poucos, a maioria ganharia a cidade, sobretudo a de São Paulo, onde foi elemento fundamental para o deslanche da industrialização

Já o ensaio de Elias Thomé Saliba introduz uma nota inesperada, pois lida com a representação cômica coeva, sobretudo em periódicos, começando pelas revistas Fon-Fon!, O Malho, Kosmos, chegando até O Pirralho e Juó Bananere, nos quais os novos costumes introduzidos pela modernização da capital dão azo à sátira e à clave caricata. Visa-se ao lado do avesso do cinematógrafo, do bonde, do automóvel, do zepelim, do aeroplano, da velocidade, que não encaixavam bem com uma família ainda patriarcal e um Estado pouco democrático. A saída, bem achada, foi a representação galhofeira desses contrastes e dessas inviabilidades. Uma das maneiras, dentre as muitas examinadas no ensaio, de lidar com o paradoxo, foi utilizar os elementos meio safados da dança da moda, o maxixe, como termo de comparação e de deboche.

A modernização do Rio traz sobreposição de tempos que decorrem em ritmos diversos, bem como instabilidade e mobilidade que só se deixam tratar na veia burlesca. O desenraizamento e a improvisação imperam, com a introdução tanto de novos equipamentos urbanos quanto de novos espaços de convívio. Automóvel, cinematógrafo e telefone foram privilegiados como objeto de paródia. A zombaria serve de válvula de escape para o atordoamento trazido por tantas experiências novas de estranhamento, jogando com a duplicidade do antigo e do moderno.

O ensaio, assim como já dissecara Jeca Tatu e seus congêneres, termina analisando certas figuras como Cornélio Pires, Nhô Totico, Juó Bananere, o barão de Itararé, Mazzaroppi, Adoniram Barbosa e o primo Altamirando, de Stanislaw Ponte Preta, todos eles diferentes tentativas, com resultados diversos, de traçar uma caricatura que fosse paradigmática do(s) brasileiro(s). A perspectiva cômica mostra a maleabilidade de público e privado na vida brasileira, revelando como o privado usurpa o público, operando uma diluição deste.

No quarto ensaio, Marina Maluf e Maria Lúcia Mott tratam do mundo feminino na intimidade. Tomando como ponto de partida a Revista Feminina, editada em São Paulo, mostram a dificuldade que todos encontravam de lidar com a espantosa mudança na conduta da mulher, quando as saias e os cabelos encurtaram, ao contrário das idéias: a charge debuxa uma silhueta, o vestido pelo joelho, galgando o alto estribo de um bonde.

Pelas páginas da revista, discutem-se as mudanças, mas também o aparecimento de artefatos de higiene feminina nos anúncios, os preceitos de saúde e de ginástica, as tarefas domésticas, a expansão do uso da máquina de escrever trazendo a correlata dos cursos de datilografia e da profissão de secretária, o telefone logo associado à tagarelice das mulheres, o gradual desafogamento do corpo com a condenação do espartilho, o surgimento do fogão a gás e da geladeira primitiva etc.

O ensaio discute esses aspectos, bem como o Código Civil de 1916, o qual, embora retrógrado a nossos olhos — estabelecia identidade pública para o homem e privada para a mulher — já aliviava o anterior de 1890, passando a atribuir a ambos os cônjuges a responsabilidade pela família e não mais só ao marido. Entrementes, a mulher continuava a não ter direito ao trabalho, pois dependia do consentimento do marido. Entre a revista, o Código e outros materiais, como um manual de economia doméstica escrito por um homem — O lar feliz — as autoras apontam os sinais da privacidade feminina no período.

O ensaio de Nelson Schapochnik entretece a exegese de cartões-postais — entre os quais os recebidos por Mário de Andrade, constantes do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP —, albuns de família e rituais de vilegiatura a estações de águas, além de trazer uma meditação sobre o fenômeno do retratismo. Seleciona para análise alguns "ícones da intimidade" como os monogramas ou bordados, e a decoração dos interiores. Estes, apinhados num primeiro período mas rarefazendo-se já nos anos 40 — ao mesmo tempo que a vivência familiar centrada na casa vai se esgarçando —, dão lugar a uma interessante abordagem da privacidade a dois graus. Patenteia-se assim como as residências burguesas possuíam duas salas de jantar, uma para exercer a privacidade e outra para ser exibida a visitantes: na primeira consumia-se comida caseira, na segunda culinária francesa.

A Introdução e o capítulo final, ambos da autoria de Nicolau Sevcenko, generalizam as diferentes visadas dos demais trabalhos, percorrendo os horizontes das mudanças trazidas ao mundo pela Segunda Revolução Industrial, que, para Hobsbawm, foi o período de maiores mudanças até hoje havido na história, e suas repercussões no Brasil.

O ensaio de fecho concentra-se no Rio de Janeiro, centro vital do país, apreendendo as repercussões dessa revolução na vida da cidade. Bombardeado por um sem-fim de inovações mecânicas e elétricas, por uma explosão demográfica e por tudo quanto resultava de sua adequação ao grande mundo, o Rio torna-se uma metrópole, cheia de mazelas como todas as metrópoles. Interessam ao ensaio também os novos costumes: o cinema, o cigarro, o neon da publicidade (que então se chamava réclame, assim mesmo em francês), a corrida ao dinheiro, o bonde e todos os mistérios da eletricidade, a pressa e a velocidade, os automóveis, as estações de águas, os banhos de mar, os esportes, a ginástica, os trajes masculinos e femininos, o design de móveis e decorações — e como tudo isso se dividia desigualmente entre os domínios do público e do privado.

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Em suma, é desses modos diferentes e inventivos que os discípulos se esforçam por dar conta dos ensinamentos do mestre, estendendo-os a novos campos.

O legado do crítico literário

Como se viu anteriormente, o legado do crítico literário mal começa a dar frutos; mas certamente, após o indispensável resgate dessa vertente de sua obra, o futuro saberá mostrar-se à altura de uma tal herança.

Os trabalhos já elaborados ainda não são numerosos, alinhando-se aqui apenas os mais detidos, que ultrapassam a mera resenha para assinalar o lançamento, e exclusivos do campo literário.

De Alexandre Eulálio foi a conferência "Sérgio Buarque de Holanda escritor", proferida em 1986 quando da inauguração da biblioteca que leva o nome do historiador e guarda seu acervo na Unicamp, depois publicada em número especial da Revista do Brasil de julho de 1987; posteriormente, seria incorporada à l8ª edição de Raízes do Brasil.

Nesse texto, a atenção do leitor é logo chamada, desde o título, para o domínio do meio expressivo — a escrita — que caracteriza toda a obra, tanto na historiografia quanto na atividade propriamente crítica. Esta, à época, ainda se encontrava dispersa mas já era objeto de meticuloso levantamento, realizado por Rosemarie Erika Horch e publicado em Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. Traça-se o desenho de um percurso, começando pela participação intensa nas polêmicas do Modernismo dos anos 20, a que se seguem a adesão ao Surrealismo e a temporada na Alemanha, esta última predispondo à visão do Brasil de uma perspectiva distante. Registra, com cuidado, sua participação em diferentes periódicos em diferentes temporadas. Lembra como características dessa atividade a capacidade de argumentar, a receptividade à pesquisa formal inovadora, a coragem intelectual e o bom uso da ironia na formulação do juízo crítico.

Pouco depois, em 1991, surge um trabalho de Antonio Candido, a Introdução a Capítulos de literatura colonial. Afora comentar minuciosamente cada um dos oito ensaios, o crítico aprofunda a análise e interpretação tanto de sua originalidade quanto da abrangência da erudição ali demonstrada, que nunca cessa de cativar o leitor. Cruciais para a compreensão não só da literatura colonial mas também do Barroco e do Arcadismo entre nós ou fora daqui, neles nosso autor, segundo o crítico, coloca-se num ângulo de visão que lhe permite diagnosticar uma literatura oitocentista cindida entre o culto do passado e a sensibilidade do presente. Daí o estudo da escolha do índio como protagonista, quando se postula um brasileiro nativo por influência da voga do "homem natural". Entregando-se ao comparatismo, vai revelar como o peso dos italianos, que pesquisou in loco nos arquivos da Arcádia Romana, foi preponderante naquele momento. Ao expor como nosso Arcadismo é, tardiamente, ainda barroco, o historiador mostraria que "o tecido da obra literária é uma encruzilhada secular na qual vem bater toda a aventura espiritual do Ocidente".

O organizador dos rodapés literários dispersos, Antonio Arnoni Prado, além da Introdução a O espírito e a letra, escreveu ainda Raízes do Brasil e o Modernismo (publicado em Novos Estudos Cebrap, n. 50, mar. 1998 e em Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil) e Uma visita à casa de Balzac (Revista USP, n. 39, set./nov. 1998). Conforme adianta na Introdução, mesmo antes da irrupção do Modernismo o futuro historiador já estava externando convicções antipassadistas, de que o novo movimento viria ao encontro. Contextualizando a trajetória de seus interesses, realça como eles se relacionavam com o momento e com preocupações de aprofundamento. Três de suas contribuições são consideradas definitivas: a discussão de método e funções, inovadora e com bibliografia invulgarmente atualizada; a concepção da literatura como uma forma privilegiada de conhecimento; a fidelidade aos deveres do crítico, ao acompanhar e questionar tudo o que cada geração ia sucessivamente realizando em literatura.

Seu segundo trabalho, como vimos quando do exame do livro em que figura, perscruta mais de perto as convergências e divergências de nosso autor com o Modernismo. E o terceiro sugere ser o historiador cúmplice do crítico, pois toda a sua avaliação repousa na recriação da leitura de cada obra em sua época e nos tipos de influência que cada uma enfeixa; para tanto, a história revela-se imprescindível. Assim, tomando como base o artigo intitulado A casa de Balzac, de O espírito e a letra, aproveita para enfatizar como a visita a essa casa fecunda a análise propriamente estética da obra do escritor francês, chegando o historiador a lamentar que a projetada organização de um Museu Balzac, implicando uma remodelação da arquitetura, pudesse vir a obliterar tudo aquilo que ainda era sinal e vestígio do grande realista, nesta que fora uma de suas moradas.

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Para concluir e para começar a enumerar as tarefas: enquanto se escrevem ensaios esmiuçando as linhas mestras do pensamento crítico de Sergio Buarque de Holanda em literatura, ou então as interpenetrações entre história e literatura em seus trabalhos, há outra tarefa já à vista, só aguardando candidatos. É necessário pensar numa edição crítica, pois a parte literária da obra foi publicada com superposições. Enquanto O espírito e a letra recolhe, como reza a Introdução, "tudo ou quase tudo", observa-se que absorve também tudo ou quase tudo que antes estivera em Cobra de vidro e Tentativas de mitologia, sem falar nas superposições igualmente presentes em Capítulos de literatura colonial: falta o cotejo das partes que foram reescritas, diminuídas ou aumentadas. Só uma edição crítica poderia desatar esses nós, cruciais para a recomposição de uma obra de tal importância e, ao contrário da historiográfica, ainda tão pouco conhecida.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), autora de O império do Belo Monte (2001), Guimarães Rosa (2000), Le carnaval de Rio (2000), Desconversa (1998), Correspondência de Euclides da Cunha (1997), entre outros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2001
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