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Antonio Delfim Netto

PENSAMENTO ECONÔMICO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO II

Antonio Delfim Netto

Roberto Macedo

UMA METÁFORA de uso comum, Antonio Delfim Netto já teve muitos chapéus, cada um associado a uma ocupação. Ainda hoje, usa vários deles. Começou modestamente, com um boné, pois trabalhou como

office-boy de uma empresa. Seu caminho educacional - do primário ao ensino médio - iniciou-se no Liceu Siqueira Campos, levando-o à Escola Técnica de Comércio Carlos de Carvalho, de onde saiu, em 1946, como Contador, título então sem nível superior. Para chegar a este, ingressou na Universidade de São Paulo em 1948, no curso de Economia da hoje Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, conhecida como FEA.

Em 1952, logo depois de formado, tornou-se o segundo assistente da Cadeira de Estatística I. Chegou, por concurso, a professor catedrático em 1963, sendo de sua cadeira as disciplinas Análise Macroeconômica, Contabilidade Nacional, Teoria do Desenvolvimento Econômico, Economia Brasileira e Planejamento Governamental. Foi o primeiro aluno da FEA a tornar-se um de seus catedráticos.

Paralelamente à carreira na USP, atuou como consultor, no setor privado e no setor público. Em 1966 tornou-se secretário da Fazenda do Estado e, no ano seguinte, ministro da Fazenda, cargo que deixou em 1974. Depois, foi embaixador na França, retornando à FEA, em 1978, como chefe do Departamento de Economia. Voltou ao governo em 1979 como ministro da Agricultura, daí passando ao Ministério do Planejamento, de onde saiu em 1985. Elegeu-se deputado federal em 1986, e está hoje no seu quarto mandato. Tem ação legislativa sem destaque no plenário, mais voltada para o trabalho das comissões permanentes, já tendo sido membro de várias delas e presidente de algumas. Apontado anualmente pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) como um dos 10 parlamentares mais atuantes da Câmara Federal, atua também nos bastidores, em particular nos de seu partido político (PPB). Continua como consultor e escreve regularmente em jornais.

Como a ascensão política de Delfim Netto ocorreu nos governos militares, seus chapéus nessa fase, na qual atuou como czar da política econômica, constituem seu lado mais controvertido e vulnerável a críticas. Coube-me, entretanto, nesta coletânea, escrever sobre sua inegável e inestimável contribuição ao pensamento econômico brasileiro, um aspecto para o qual se pode "tirar o chapéu" sem vacilações. Essa contribuição sustenta-se em quatro pilares: a sua produção científica refletida em suas publicações dessa natureza; a sua influência metodológica - a marca que deixou no "modo de pensar do pensamento econômico"; as instituições que ajudou a construir ou levantar; os quadros que ajudou a formar, com seu impacto desdobrando-se, assim, por sucessivas gerações de economistas.

A influência de alguém no mundo das idéias não se manifesta apenas no que deixou nas bibliotecas. Revela-se, também, por esses outros aspectos, até porque sua carreira acadêmica se interrompeu ainda curta, e é reduzida a lista de suas publicações de maior densidade.

Na linguagem econométrica que tanto difundiu na FEA, suas publicações mediriam com erro sua influência, subestimando-a. Um modelo adequado para analisá-la seria um em que tal influência seria medida de forma a captar melhor a sua dimensão, e explicada por suas publicações, mais os outros três pilares a que me referi.

Cada um deles será abordado nas quatro seções seguintes, na seqüência em que foram mencionados. Ao final, outra seção acrescentará algumas observações adicionais, seguindo-se uma lista das referências bibliográficas mencionadas no texto.

O que ficou na biblioteca

O que está nas bibliotecas da USP em nome do autor Antonio Delfim Netto (www.usp.br/sibi), conforme referências ao final deste texto, confirma o já mencionado. Observando-se a relação em ordem cronológica, há em seu início poucos trabalhos de vulto, alguns dos quais comentarei a seguir. Depois, são apontados artigos menores, inclusive de jornais e revistas não-consagradas no meio acadêmico. Esta segunda parte tampouco lhe faz justiça, pois nessa forma produziu centenas de artigos a mais, os quais não constam dela. Ampliada ou não, toda a relação minimizaria a influência de Delfim, nome que a partir daqui utilizarei para identificá-lo. Além de mais sintético, era assim conhecido na FEA.

Suas contribuições mais importantes da fase em que atuou como professor e pesquisador concentram-se no período que vai do final dos anos 50 a meados dos anos 60. O destaque inicial é para O problema do café no Brasil (1959), considerado um clássico sobre assunto. É um estudo do mercado de café na sua evolução histórica, mas fugindo dos padrões tradicionais de um relato datado, de acontecimentos e personagens. Usa os recursos analíticos da teoria econômica, e nessa época ainda sem muita sofisticação econométrica, deixa conclusões importantes, entre as quais a de que a oferta, por ser uma cultura com plantio realizado no passado, "depende do preço nos anos t-4, t-5, , t-w, e tende a apresentar um movimento oscilatório próprio", que chama de "fator hereditário" (1959: 326). Já a demanda do consumidor, "depende do preço em t, da renda e do fator especulação" (id.). Por sua vez, a demanda do café exportado tem uma outra "elasticidade da procura que depende do preço dos concorrentes" (p. 328).

Baseado nessa análise, mostrou que o mercado do café era inerentemente instável, inclusive por conta de políticas governamentais. Estas, com seu efeito sobre os preços, e daí sobre a oferta e preços dos competidores, geravam também movimentos cíclicos no mercado. Conclui afirmando que "a política cafeeira que mais convém não é a que procura obter o máximo de dólares por saca a curto prazo, mas aquela que assegura a receita máxima de divisas a longo prazo" (p. 329). E não foi só influência sobre o pensamento. Suas idéias afetaram de modo efetivo a política cafeeira brasileira, particularmente em sua passagem pelo poder.

Outro trabalho importante é o intitulado Alguns problemas do planejamento para o desenvolvimento (1962), um estudo de modelos de desenvolvimento - então em moda na literatura internacional - e do papel, dentro deles, de variáveis básicas, como a taxa de investimento e a relação produto/capital. Começa com um modelo simples, sem distinção de setores, com proporção fixa de fatores, depois adicionando uma função de produção que admite substituição entre eles. Em seguida avança por um modelo de dois setores, discutindo a "taxa ótima de desenvolvimento" e, no final, apresenta um modelo de quatro setores.

Grande parte desse estudo é uma resenha da literatura, mas isso já era uma enorme contribuição, pois ela não chegava bem à FEA-USP por outros mestres. É importante também por duas outras razões. A primeira é que já revelava um Delfim avesso ao laissez-faire, como aliás demonstrou sobejamente no governo. Sob este aspecto, os trechos a seguir são ilustrativos.

Assim, em seu estudo Delfim buscava "... inferir que variáveis deve a programação do desenvolvimento levar em conta para poder acelerá-lo." ..."Para que o sistema de preços possa funcionar adequadamente, impõe-se que as modificações estruturais mais importantes sejam previstas e superadas antes de se tornarem um fator impeditivo da aceleração do desenvolvimento econômico. Este é o objetivo básico do planejamento" (1962: p. vi) ... "É ilusão pensar que existe a alternativa planejar ou não planejar, pois a única alternativa que existe, na realidade, é planejar bem ou planejar mal" (p. vii).

A segunda razão é o capítulo final, no qual desenvolve matematicamente o que chama de "uma solução geral e tão completa como possível do modelo de desenvolvimento de Celso Furtado (1958), demonstrando a compatibilidade entre o desenvolvimento econômico, o equilíbrio do balanço de pagamentos e o equilíbrio monetário" (p. ix).

Nesse modelo Delfim discute a restrição externa tão enfatizada por Furtado, concluindo: "De qualquer maneira, parece que se o setor exportador for suficientemente dinâmico para atingir uma taxa de expansão anual relativamente pequena ..., não devem decorrer do setor externo problemas insuperáveis" (p. 129). Coerentemente, no governo estimulou as exportações, e prega isso até hoje nos seus pronunciamentos e colunas de jornais.

Além da contribuição em si mesma, esse capítulo revela que não era radical a oposição de Delfim a muitas das teses da chamada "escola estruturalista", da qual Furtado - elogiado no texto - é um dos expoentes. Um de seus discípulos, Affonso Celso Pastore, isoladamente foi mais incisivo no ataque, conforme mostrarei posteriormente. Pragmático, Delfim aproveitava o que lhe parecia útil.

O mesmo pragmatismo é mostrado noutro trabalho, desta vez em conjunto com um grupo desses discípulos: Alguns aspectos da inflação brasileira (1964), um diagnóstico da inflação brasileira de então. De início, investem contra uma das teses estruturalistas, a da oferta inelástica da produção agrícola, afirmando que não poderia ser responsável por uma inflação de 80% ao ano (p. 8 e 11). Enfatizam os aspectos monetários e fiscais, estes englobados no que então se chamava de "finanças do governo". Admitem, contudo, uma das teses estruturalistas, a de que ao exportar produtos primários a receita cambial do país crescia lentamente, sem condições de atender à demanda de importações. Isso levaria a pressões no mercado de câmbio, com impacto inflacionário (p. 19).

O trabalho é também pioneiro ao incorporar, no modelo adotado, o efeito do reajuste salarial pelos picos - "o reajuste é, ao mesmo tempo, efeito e causa da inflação" -, um tema que serviu de base à política governamental que veio em seguida, de reajuste pelas médias (cap. 5).

No final, os autores estimam um modelo econométrico no qual há o efeito da moeda, do aumento dos custos em cruzeiros das importações, dos reajustes salariais e da perspectiva de aumento da própria inflação. Esta última variável antecipa a discussão do efeito realimentador, sobre a inflação, da indexação de preços e rendimentos. Culpam também o setor privado, ainda que pelo caminho da sua maior demanda de crédito por conta da inflação, atuando assim via moeda, por meio do qual atuava também o desajuste fiscal do governo.

Logo depois, quando Delfim e sua equipe foram para o governo federal, esse trabalho teoricamente heterodoxo, ao combinar inflação de custos com inflação de demanda, tornou-se política econômica, com ações voltadas para esses dois lados. Elas incorporaram, via controle de preços, mais uma visão do papel dos empresários.

São poucos os trabalhos mais densos de Delfim e, por isso mesmo, não haveria muitos mais a destacar. Mas, novamente não se trata apenas de contagem. Os que revisitei bastam para mostrar o seu grande impacto não apenas no pensamento, mas também em políticas econômicas neles fundamentadas.

Muitos acadêmicos concluem seus trabalhos com as tais "implicações de política econômica", mas que não se estendem além do próprio texto. Este não foi o caso de Delfim, que as teve materializadas, influenciando do pensamento à ação, esta, inclusive, praticada por ele mesmo.

A influência metodológica:

a "técnica de pensar" aliada à econometria

Na influência sobre o pensamento, tão importante quanto levar idéias às pessoas, é fazer com que estas desenvolvam as suas, ensinando-as a trabalhar por conta própria. É a velha história de dar peixe ou ensinar a pescar. Ainda que trazendo poucos, mas robustos, peixes no seu próprio cesto, Delfim forneceu a vara a muitos.

Do que chegava até nós - então na FEA -, alunos de seus alunos já então professores, por meio desses mestres ou nas conversas nos corredores, e até nos bares da vizinhança, bem como nos textos, teses e discussões a que tínhamos acesso, a percepção era a de que havia um grupo de professores sob a liderança de Delfim pregando o evangelho de uma teoria econômica metodologicamente assentada como "técnica de pensar".

Na base de tudo, estava o aparato da teoria, na qual se procurava seguir, então, o curso principal ou mainstream das vertentes inglesas, mais formalmente desenvolvido nos Estados Unidos, e que veio a dominar a área. Na época, do lado da Macroeconomia, predominava a visão Hicks-Hansen do modelo keyne-siano, ao lado do monetarismo de Friedman, que também pontificava. Na Microeconomia, a teoria neoclássica.

Tanto num quanto noutro caso, buscavam-se as formulações teóricas em modelos matemáticos. Quem quisesse ir da teoria à realidade, deveria recorrer a eles, utilizar métodos econométricos, procurar os dados adequados, e submeter a teoria ao teste estatístico de hipóteses.

Do lado filosófico, os fundamentos vinham de Karl Popper, com sua visão de uma ciência que evoluía a partir de paradigmas não-rejeitados nesses testes, até serem superados por outros que se revelavam relativamente mais robustos na passagem por eles.

Essa visão penetrou na FEA, e passou a constituir o padrão da maioria dos trabalhos que ali foram produzidos desde então. Assim, Delfim levou a sério a incumbência do memorial com que, em 1952, assumiu o cargo de segundo assistente da Cadeira de Estatística I. Nesse memorial, consta que ele teria a "... incumbência especial de dedicar-se à aplicação da técnica estatística a problemas concretos da economia brasileira". Difundiu intensamente essa visão, influenciando seus seguidores mais imediatos, e todos aqueles que posteriormente a utilizaram para trabalhar, incorporando outras teorias e outros métodos econométricos.

Para quem depois passou pelos cursos de pós-graduação nos Estados Unidos, ou mesmo nos desenvolvidos na FEA a partir do final dos anos 60, essa visão pode parecer trivial. Mas, na época de Delfim, ela não chegava via programas desse tipo, já que os cursos regulares de pós-graduação sequer existiam. Quase tudo vinha de seu esforço pessoal e do de seus seguidores.

Como marco dessa influência metodológica, aperfeiçoada também por esses discípulos, será abordado aqui o trabalho de um deles, iniciado quando Delfim estava de saída e sua influência pessoal na FEA havia atingido o ápice. Trata-se da tese de doutorado de Affonso Celso Pastore (1968), seu discípulo que mais se destacou, voltada para discutir a resposta da produção agrícola aos estímulos de preços no Brasil. Foi escolhida porque é típica dessa combinação de teoria e métodos econométricos, além de novamente revelar uma rusga com os estruturalistas. Outra razão é que acompanhei o trabalho de perto, como auxiliar de pesquisa, estando assim numa posição privilegiada para fazer este relato.

Bem armado teoricamente, em dia com a literatura nacional e internacional sobre o assunto, manuseando séries de tempo com modelos de defasagens distribuídas e vários métodos econométricos, tudo isso sem os cursos regulares e os "examões" de cursos de pós-graduação que aqui só aportaram posteriormente, Pastore investiu contra uma das teses da visão estruturalista da inflação: a de que a oferta de produtos agrícolas nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento não responderia, ou responderia muito pouco, aos estímulos de preços. Assim, dado um aumento da demanda, levando a preços maiores, tal fato não estimularia a produção, daí resultando pressões inflacionárias persistentes.

Na raiz da falta de resposta aos estímulos de mercado estaria a estrutura fundiária, dominada por latifúndios retrógrados e não-preocupados com a maximização dos lucros, ou por minifúndios voltados para a subsistência e não para o atendimento do mercado. Além dessa inelasticidade da oferta e das pressões inflacionárias correspondentes, o setor agrícola seria também um fator de atraso no processo de desenvolvimento econômico. Daí vinham propostas de reforma agrária, para tornar o setor mais eficiente no uso de seus recursos subutilizados.

Nas palavras de Pastore (1968: iv), "... embora essa interpretação do atraso relativo da agricultura tivesse dominado durante um período de tempo bastante apreciável, a hipótese de comportamento irracional dos agricultores, que figura na base de toda essa argumentação, nunca foi colocada à prova pelos seus adeptos".

Pastore, ainda que concentrando sua atenção em demonstrar que a hipótese estruturalista seria rejeitada pelos dados, apresentava, como alternativas, as hipóteses desenvolvidas por T.W. Shultz, da Universidade de Chicago, de que os agricultores responderiam aos estímulos econômicos, alocando corretamente seus fatores, com o problema residindo na utilização de tecnologia rudimentar e de mão-de-obra não-qualificada, entre outros aspectos. Assim, o remédio para a baixa produtividade deixaria de ser a reforma agrária, e sim o avanço tecnológico e sua absorção estimulada por políticas agrícolas adequadas.

Se estou aqui escrevendo este artigo, e tive a carreira que fiz, devo muito disso ao meu envolvimento com essa tese. Vinha fazendo os cursos na FEA, e estava chegando ao terceiro ano, depois de passar por disciplinas nas quais se ensinavam Teoria Econômica, História, História do Pensamento Econômico, Direito, muita Matemática e Estatística, mas tudo meio solto, sem a noção de como essas peças se encaixariam no meu futuro trabalho de economista. Com isso, a motivação era meio frouxa. O trabalho nessa tese serviu para juntar as peças num todo articulado e operacional. A partir daí passei a gostar mesmo do que estudava e fazia, com a motivação empurrando-me para o pós-graduação e para a carreira acadêmica.

O legado institucional

Em síntese, pode-se dizer que foi Delfim quem consagrou a FEA como escola de Economia. Tendo sido formada por professores de várias vertentes científicas ou profissionais, os catedráticos do curso de Economia eram das áreas de Direito, Filosofia, Engenharia, Matemática, Estatística, Sociologia, História e Geografia, para mencionar os de quem me recordo quando nela ingressei (1963), com os economistas em minoria. Delfim era um dos poucos, além de ter sido o primeiro formado como tal a ser contratado pela própria FEA.

Alguns dos catedráticos de outras áreas eram economistas "provisionados", título que se dá, quando uma profissão é regulamentada no Brasil, àqueles que demonstram tê-la exercido, ou mesmo atuado em função apenas relacionada com ela. Essa "provisão", contudo, não garantia a formação, e o curso não tinha traço unificador, nem densidade de conhecimento que pudessem garantir a formação de bons economistas. Tampouco estes eram profissionais bem caracterizados; profissão nova, era domínio de outras já consagradas: contadores, advogados e engenheiros, que se interessaram por ela, alguns via autodidatismo.

Nesse quadro, cabe a pergunta: como pôde uma estrutura como essa gerar um Delfim? Ele passou pela escola, graduou-se por ela, mas do que viu nas aulas levou mais de Matemática e Estatística do que de Economia mesmo. Tanto assim é que se tornou professor de uma cadeira dessa área, no início de sua carreira docente.

Sua formação mais sólida veio mesmo dos livros aos quais sua curiosidade o levou, dos estudos que realizou por conta própria, e dos que fazia com seus discípulos. E não se tratava apenas de realizar pesquisas, e depois escrever relatórios, artigos ou livros. Sob sua liderança, seu grupo realizava seminários para discussão de livros e artigos. Os horários eram tão exigentes como "conviventes". Havia sessões às 7 horas da manhã, ou reuniões que se prolongavam por noitadas de pizza.

Numa época em os direitos autorais não eram tão respeitados, e em que não havia ainda a xerox, vi secretárias transcrevendo artigos de vários autores - utilizando papel carbono - para serem usados em seminários, ou a combinação stencil-mimeógrafo, que gerava também cópias para os cursos na forma de apostilas. No final, um aparato conhecido como thermofax, que antecedeu a xerox.

Vale também lembrar todo um esforço paralelo de eficiência em condições tecnológicas que hoje seriam consideradas rudimentares: regressões múltiplas estimadas com máquinas de calcular - o computador estava apenas chegando - , gráficos feitos à mão, e por isso mesmo escassos nos trabalhos dessa época, e documentos mais importantes, como as teses, de 200 ou 300 páginas de texto, fórmulas e tabelas, datilografados em stencil para permitir a reprodução de umas duas centenas de cópias.

Muitos dos assistentes das várias cadeiras eram economistas e, no caso da de Delfim, todos eles. Sua influência chegou ao auge em meados dos anos 60, com a FEA ainda em fase de transição. Com a criação dos cursos de pós-graduação no Brasil, e o envio de vários professores assistentes para o doutorado no exterior, os economistas passaram a dominar a maioria dos cargos de professor titular do Departamento de Economia. Este emergiu de uma reforma que extinguiu o sistema de cátedras, e estruturou a carreira mais nos moldes do sistema norte-americano.

Dentro da FEA, entretanto, um outro desenvolvimento institucional merece particular atenção, a criação do Instituto de Pesquisas Econômicas (IPE), cujas atividades ganharam corpo na segunda metade dos anos 60. Ligado à Faculdade, não foi cria apenas de Delfim, embora este tenha tido grande papel no seu desenvolvimento institucional, no preenchimento de seus quadros e no levanta-mento de recursos para suas atividades. Na época, era um instituto voltado para atividades de pesquisa e para o desenvolvimento do curso de pós-graduação em Economia, com alunos em regime de tempo integral, selecionados nacionalmente em exame para essa finalidade, sustentados com bolsas de estudos e conduzidos inicialmente ao mestrado, depois de cumprir uma carga de créditos e preparar uma dissertação.

Nessa mesma época, recebeu o apoio do programa da United States Agency for International Development (Usaid), que trouxe professores norte-americanos para colaborarem nesse programa, bem como em outros semelhantes, com destaque para o que se estabeleceu na Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, sob a liderança de Mário Henrique Simonsen. O programa abria também a oportunidade de doutorado no exterior, em seguida aos cursos no Brasil, e foi responsável pela formação da nova geração de professores do Departamento de Economia ao longo da década de 70, os quais, nos anos seguintes, chegaram aos cargos de professor titular, com a aposentadoria dos antigos catedráticos.

As atividades do IPE desembocaram na criação da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) no início dos anos 70, novamente com grande apoio de Delfim, já então no governo. É uma fundação ligada à USP, mas com autonomia própria, o vínculo sendo que os membros do seu Conselho Curador, que escolhe a Diretoria Executiva, são indicados pelo Departamento de Economia da FEA. Trata-se de um modelo institucional que serviu de paradigma a várias instituições similares que hoje gravitam em torno das universidades brasileiras. A FIPE desenvolve atividades de pesquisa e dá apoio às atividades de ensino e pesquisa dos professores do Departamento.

Instituições funcionam em prédios e instalações, e até aí houve influência sua. O atual prédio da biblioteca da FEA, por exemplo, é resultado de uma dessas verbas "a fundo perdido" que constam do Orçamento da União, autorizada enquanto Delfim era ministro do Planejamento. Esta, entretanto, nada teve de perdido e, nas áreas de atuação da FEA, acomoda hoje uma das melhores bibliotecas do país.

A formação de quadros

Não cheguei a ter Delfim como professor. De qualquer forma, pude perceber sua iniciativa, sua liderança intelectual e seu carisma pessoal, mobilizando discípulos em torno de idéias, estimulando os mais talentosos a cultivá-las, enfim, criando uma escola em torno de sua pessoa.

Quando ingressei na FEA (1963), Delfim só dava aulas nos últimos anos. Era o professor de maior prestígio entre os alunos, e grande a expectativa de chegar às disciplinas que lecionava. Entretanto, quando chegou a minha vez, ele já havia deixado os seus chapéus da FEA, e optado pelos do governo. Fui aluno de seus alunos, como Affonso Celso Pastore, Carlos Antonio Rocca, Akihiro Ikeda, Eduardo Pereira de Carvalho, Paulo Yokota, Pedro Cipollari, entre outros. Percebia-se neles o entusiasmo de fazer parte de um grupo, de contar o que nele se fazia, de propagar as teses que desenvolviam, os artigos que escreviam e a orientação recebida de Delfim.

As teses de doutorado, para subir um degrau importante da carreira acadêmica, eram o ponto culminante desse engajamento. Em meados dos anos 60, vários desses discípulos defenderam teses desse tipo, cujas sessões públicas eram um acontecimento na FEA, com professores de outras instituições fazendo parte das bancas examinadoras, nas quais a presença de Delfim pontificava, às vezes quase roubando a festa, ao polemizar com os visitantes.

Nessas condições, a influência de Delfim sobre o pensamento econômico manifestou-se também por meio desses discípulos. Assim, quem quiser ir mais a fundo na documentação científica que Delfim deixou ou influenciou, deverá investigar as publicações de seus seguidores para ter uma visão mais completa. Além da tese de Pastore, vale mencionar as de Rocca (1967) e Cipollari (1968).

Observações adicionais

Delfim partiu fisicamente em meados dos anos 60, mas continuou apoiando a FEA, seus quadros e suas instituições mesmo enquanto fora. Quando foi para o governo, ela já estava bem estruturada, com gente estudando, pesquisando, avançando na carreira, e seguindo seus próprios caminhos.

A muitos, como no meu caso, foi aberta a possibilidade de estudos no exterior, de onde vieram os novos doutores que posteriormente se tornaram titulares e hoje, 30 anos depois, estão se aposentando precocemente por força de distorções no sistema previdenciário do país, que nem mesmo os governos militares - com ou sem Delfim - tiveram interesse ou força para corrigir. Estão sendo substituídos por uma nova geração, formada basicamente pelos cursos de pós-graduação já aqui instalados. Essa nova geração, pode-se dizer, que é a dos alunos dos alunos dos alunos de Delfim.

Integrante da geração do meio, vejo que ela e a seguinte foram particularmente beneficiadas pelo vácuo que se abriu com a saída de Delfim, quando levou vários de seus alunos, já professores da FEA, para o governo. Alguns deles, sem titulação acadêmica, ao saírem não tiveram fôlego ou vontade para retornar à universidade, deixando suas posições e respectivas verbas orçamentárias abertas para os que vieram

A FEA cresceu muito, e a influência de Delfim se diluiu no tempo, e na cabeça dos novos personagens que vieram depois. Sua marca, entretanto, permanece e merece registros como este, inscrevendo-o entre os nomes que mais influenciaram o pensamento, a metodologia científica, a produção acadêmica, a prática da política econômica governamental, as instituições, os quadros voltados para o ensino e pesquisa de Economia no Brasil, e os economistas que se encaminharam para outras atividades.

Roberto Macedo foi professor-titular, chefe do Departamento de Economia e diretor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. É pesquisador da FIPE-USP, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultor da Fundação Armando Alves Penteado (FAAP).

O autor agradece as observações e sugestões de Gustavo Silveira e Luiz Alberto Machado. Considera eventuais erros como de sua própria responsabilidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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