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São Paulo, por Raquel Rolnik

RESENHAS

São paulo é uma megacidade plural formada por imigrantes de todas as partes do Brasil e do mundo, mas também é extremamente desigual e com muitos contrastes que marcam sua história. As opções tomadas por seus gestores, em diversas épocas, definem até hoje a estrutura urbana e social da cidade e foram os motivadores desses contrastes.

É sobre essa cidade e sua evolução urbanística que a urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia, se debruça para contar a história de São Paulo, não apenas da formação de seu espaço urbano, mas dos fatores geracionais e das suas consequências para a população.

O livro segue a proposta da coleção "Folha Explica", ao qual pertence, ilustrando de maneira breve e objetiva o desenvolvimento de São Paulo. Voltado para o público em geral, permite também a quem é da área se atualizar sobre o tema.

A autora instiga o leitor a conhecer mais sobre São Paulo a partir de imagens urbanas da cidade e do relato de sua história. Logo na introdução é apresentado um apanhado geral acerca da cidade, iniciado pela descrição da paisagem original, formada por vales e colinas revestidos pela densa vegetação de Mata Atlântica e rios que se entremeavam. Essa paisagem sofreu sucessivas transformações ao longo dos anos, tornando-a irreconhecível. Hoje ela é formada por arranha-céus e torres iluminadas, com rios canalizados, contidos entre largas avenidas marginais - cidade da pujança econômica e do emprego, contrastando com a pobreza das favelas e periferias; cidade da exclusão e da informalidade.

A narrativa se amplia para abarcar a Região Metropolitana de São Paulo - formada por 39 municípios e mais de 17 milhões de habitantes -, sendo definida pela autora como "uma das cidades-mundo do planeta" em que suas relações, especialmente econômicas, ul-trapassam em muito os limites metropolitanos, atingindo lugares distantes no Brasil e no mundo. A metrópole é um importante nó nas redes entremeadas, sejam elas reais ou virtuais, estando facilmente acessível - especialmente para os mais ricos. Essa acessibilidade é contrastante nos guetos dos pobres e dos ricos: bolsões de pobrezas nas favelas e periferias distantes dos locais de trabalho, versus as fortalezas dos ricos e da classe média: condomínios e loteamentos fechados; enclaves urbanos separados pelos espaços públicos.

Os espaços públicos no imaginário urbano contemporâneo são considerados espaços de ninguém - apesar de pertencerem a todos. Deixaram de ser pontos de encontro e convivência e passaram a ser locais em que predomina a violência - espaços transformados em "praças de guerra".

Ainda na introdução são formuladas questões que visam estimular a reflexão sobre a cidade, em que, segundo a autora, o futuro de São Paulo parece incerto.

Os capítulos do livro apresentam de forma cronológica a evolução urbanística de São Paulo, descrevendo os momentos decisivos de sua história - que definiram a configuração atual da cidade: opções tomadas pelas sucessivas administrações na formulação de políticas públicas, por meio de modelos de cidade e gestão urbana, que são frutos das e refletem as relações econômicas e sociais, rebatidas no espaço, ou seja, nos ambientes natural e construído.

O primeiro capítulo é um relato da evolução da cidade - de sua origem, em 1554, até o início do século XX. Do local de fundação no Pátio do Colégio jesuítico - sobre colinas - visualizava-se ao fundo a distante várzea do Rio Tamanduatehy.

Desde sua gênese, São Paulo possui fronteiras abertas para quem quiser vir tentar a vida. Dela partiram os bandeirantes, no século XVII, desbravadores do território - sertão - em busca de riquezas e índios. Porém, foi a partir do cultivo do café em meados do século XIX, com as consequentes riquezas trazidas pelo fruto, que São Paulo começou a se desenvolver economicamente. Como a mão de obra não era suficiente para trabalhar na lavoura, começam a vir imigrantes que povoaram a cidade e o interior do Estado, originários especialmente da Europa.

A riqueza oriunda do café permitiu pela primeira vez a acumulação de capitais no país, que financiaram o nascimento da indústria, relacionada inicialmente à produção de tecidos e alimentos. Assim, mais mão de obra se fez necessária, instalando as primeiras colônias de imigrantes na cidade, que deram origem aos bairros operários: Lapa, Bom Retiro, Pari, Belém, Mooca e Ipiranga. Esses foram localizados nas várzeas e alagadiços, próximos às indústrias e linhas férreas.

Nessa mesma época se iniciou a abertura dos bairros aristocráticos, que de maneira contrastante foram construídos sobre colinas secas, arejadas e iluminadas, contando com avenidas largas e mansões muradas: Campos Elíseos, Higienópolis e a Av. Paulista.

Também é desse período o primeiro "surto" de urbanidade na área central, com melhoramentos e serviços públicos, providos em sua maioria pela Cia. Light: bondes elétricos, redes de água e esgoto, iluminação pública e pavimentação. O centro (entendido hoje como o centro histórico) passou por uma reforma urbanística, com alargamento e abertura de vias, além da construção e reforma de edifícios públicos. Houve com isso uma mudança radical na imagem da cidade - voltada para as elites, enquanto os bairros operários permanecem carentes de serviços, contando apenas com as linhas de bonde.

Assim, começou a se configurar espacialmente a segregação na cidade, com territórios separados por atividades e grupos sociais - cidade desigual e dividida. As opções adotadas pela administração municipal possuíam caráter discriminatório quanto à gestão urbana e à aplicação dos recursos públicos. As qualidades urbanísticas eram (e são até hoje) contrastantes: os bairros ricos contavam com leis que regulavam os modos de ocupação dos terrenos e a construção dos palacetes; enquanto, nos bairros operários, becos e vilas se formavam sem nenhuma regra, com cortiços insalubres misturados aos galpões industriais. Esse modelo de cidade - densa e ocupada - era, segundo a autora, um "barril de pólvora prestes a explodir".

O capítulo seguinte trata do grande desenvolvimento que sucedeu na cidade no início do século XX, com São Paulo detendo o poder econômico e político do Brasil, determinando os rumos do país na República Velha. Porém, esse grande crescimento e essa expansão culminaram com a crise no final dos anos 1920.

Nessa época houve um "novo" surto de industrialização, com novas fortunas sendo formadas, independentes dos recursos providos pelo café. A cidade passou a ter novos ares - com um ritmo totalmente novo -, transformando-se numa metrópole cosmopolita. A cultura erudita se mistura às modernidades vindas de fora. Marcam esse período o Movimento Moderno e a Semana da Arte Moderna de 1922, a passagem do Zeppelin (1928) e a construção do primeiro arranha-céus da cidade, o Edifício Martinelli.

Com toda essa efervescência, São Paulo continuou atraindo muitos imigrantes, alcançando na década de 1930 mais de um milhão de habitantes. Isso gerou uma grande demanda por terrenos e habitações, que sofreram uma forte valorização. Ao mesmo tempo, a Cia. Light não via mais como prioridade a ampliação das linhas de bonde, concentrando seus investimentos no fornecimento de energia, que teve seu consumo significativamente aumentado com o surto industrial. A não ampliação do transporte público agravou as condições de vida da população, somada à inflação geral, à escassez de produtos e à epidemia de gripe espanhola, gerarou tensões sociais, étnicas, políticas e econômicas.

Esses fatos motivaram as próximas opções de gestão urbana adotadas pela administração pública. O então engenheiro Prestes Maia criou em 1924 um plano de concepção urbanística para a cidade, estabelecendo um sistema de avenidas radioconcêntricas que não leva em consideração os obstáculos geográficos (morros, áreas inundáveis e rios), ao mesmo tempo que permitia que a cidade crescesse indefinidamente. De fato, o plano somente foi implementado a partir da década de 1940, quando Prestes Maia se tornou prefeito de São Paulo. Foram abertas as avenidas 9 de Julho, 23 de Maio, Radial Leste, Aricanduva, do Estado e as Marginais Tietê e Pinheiros - avenidas em fundo de vale que retificaram e canalizaram os rios, e em alguns casos os esconderam, permitindo ainda que as várzeas fossem intensamente ocupadas.

A opção pelo modelo rodoviarista de transporte sobre pneus permitiu a expansão horizontal da cidade e o surgimento das periferias, com a criação de loteamentos e a autoconstrução das casas (construções executadas pelos próprios moradores), solucionando, ao menos aparentemente, a crise de moradia, mas acarretando uma série de outros problemas. Esse modelo de ocupação periférica, disperso pelo território, com baixa densidade e sem infraestrutura, colocou abaixo a lógica que vigorava quanto aos investimentos públicos e à provisão de serviços.

Não havia legislação urbanística que estipulasse padrões de ocupação para a periferia, mas apenas para os bairros aristocráticos. Isso exigiu um reposicionamento na política urbana, com o município permitindo a inclusão da informalidade mediante a excepcionalidade. Para isso, foi incluído no Código de Obras da cidade, em 1932, um dispositivo que permitia incluir, de maneira seletiva e sem definir critérios, os loteamentos irregulares e as autoconstruções.

Essa falta de critérios deu margem ao "reino do favor", com a incorporação dos loteamentos e das residências das periferias na "cidade formal" por meio de negociações políticas, dando margem às trocas de favores, ao clientelismo e à corrupção que, segundo a autora, perduram até hoje.

Enquanto os dois primeiros capítulos descrevem o processo de elaboração das bases estruturais do que é hoje a cidade de São Paulo, o terceiro capítulo apresenta o processo de metropolização de São Paulo.

Essa se tornou a maior cidade brasileira em relação à população e o mais importante centro financeiro. A abertura de novas rodovias na década de 1940 - Presidente Dutra e Anchieta - mudou a forma de expansão territorial da cidade. Houve um novo "surto" industrial, intensificado na década de 1950, com a implantação de indústrias metalúrgicas, metalomecânica, elétrica, automobilística e petroquímica.

Nas décadas de 1960 e 1970, São Paulo teve um grande crescimento populacional, com forte imigração, especialmente interna, atraída pela pujança econômica - era do chamado "Milagre Econômico", promovido pelo regime militar.

Se ainda na década de 1950 iniciou-se a verticalização da área central de São Paulo, foi na década de 1970 que surgiu o primeiro subcentro da capital, na Av. Paulista e arredores, com o deslocamento do centro de consumo das elites. O centro tradicional, que era compartilhado por grandes empresas e ambulantes - "boca do luxo e do lixo" -, começou a ser esvaziado. Assim, o centro se transformou no local dos terminais rodoviários onde a classe pobre buscava o transporte público: ônibus e metrô; enquanto as classes média e alta se distanciaram do centro, utilizando o transporte individual: carro.

Na década de 1970 foi estabelecida oficialmente a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), elaborada de "cima para baixo" a partir de decreto federal de 1973. Apesar dos planos elaborados para a RMSP, na prática a gestão metropolitana não ocorreu - falta de ação -, pois a região nunca contou com uma unidade política que articulasse a gestão e implementasse ações coordenadas nos 39 municípios que a compõem.

Em 1972 foi estabelecida, tardiamente, a Lei de Zoneamento, que definia e restringia os usos e a forma de ocupação urbana em toda a cidade. Porém, essa lei, de uma maneira geral, consagrava o que já existia: verticalização onde já estava ocorrendo, zonas industriais nas várzeas do Tietê e Tamanduateí, e para o restante da cidade - 70% do território -, zona de uso misto e baixa densidade de ocupação. Em 1981, esse modelo de zoneamento foi completado com a permissão para que fossem construídos conjuntos habitacionais da Cohab na primeira franja da zona rural, cujas terras possuíam menor valor.

Esse modelo de ocupação urbana, consagrado e ampliado pela Lei de Zoneamento, aprofundou a segregação e a exclusão territorial, com os pobres morando cada vez mais distante, enquanto os ricos se concentram na área central, mais valorizada. Os moradores da extrema periferia foram radicalmente excluídos dos locais em que as oportunidades de emprego e renda estão presentes, relegados à educação precária, aos serviços urbanos deficientes e ao desemprego.

Para Raquel Rolnik, essas parecem ser as motivações da explosão da violência ocorrida a partir da década de 1990. A violência vai além da criminalidade, tomando conta de toda São Paulo, gerando e ampliando tensões e desigualdades, desqualificando áreas da cidade, com consequente desvalorização dos imóveis.

O quarto e o quinto capítulos tratam da cidade contemporânea, apresentando São Paulo em crise, com o esgotamento do paradigma da vida urbana em que, simultaneamente, e de forma contrastante, convivem a decadência e a pujança.

A partir da década de 1990, São Paulo vive um processo de reconversão econômica, com a ampliação dos serviços e reestruturação da indústria, marcando o fim das grandes plantas industriais e das multidões de operários. Esse processo acarretou grandes reflexos na estruturação dos empregos e organização espacial da cidade.

Isso vem ao encontro dos megainvestimentos em shopping centers e hipermercados, equipamentos que se multiplicaram e trouxeram consigo uma nova lógica de consumo, desarticulando as redes de comercio e serviço existentes no centro e subcentros. Se durante a década de 1980 os shoppings foram implantados nos bairros de classe média, na década seguinte isso se ampliou, com esses aumentando ainda mais de tamanho e sendo construídos em áreas de baixa renda e com baixa densidade de comércio.

Esse novo modelo de equipamento urbano e consumo teve como consequências principais a fragmentação do tecido urbano e social, criando enclaves urbanos e segregação. A cidade passou a cada vez mais estar concentrada e polarizada, com novos polos empresariais - Av. Eng. Luís Carlos Berrini, Marginal Pinheiros e, recentemente, a Av. Roberto Marinho -, mas que representam de fato a continuação do vetor de expansão sudoeste da cidade. Para a autora, conjuntamente à sucessiva criação de centralidades, ocorreu a perda contínua da qualidade urbanística (padrões de espaços públicos, ruas, e da forma de ocupação dos lotes pelas edificações).

Como observado, a opção da política urbana pelo transporte sobre pneus, associada a uma rede de metrô insuficiente perante a demanda, faz da acessibilidade urbana, ou melhor, da falta dela, um agravamento da exclusão e da segregação. Segundo a autora, em São Paulo, um terço das viagens é feito de carro, outro terço, de transporte coletivo; e o que é mais impressionante, o último desse terço é feito de deslocamentos a pé.

A cidade vive um paradoxo: enquanto é marcada pela velocidade de circulação de informações e comunicação, vê- se hoje paralisada. A cidade necessita de um pacto entre governos para que sejam realizados investimentos e integração dos diversos meios de transporte público, em especial os de massa.

São Paulo é uma megacidade que se revela partida entre ricos e pobres, incluídos e excluídos, conectados e desconectados, com sua estrutura básica diferenciada - formando um mosaico -, que marca os constantes contrastes existentes na cidade. Isso vai contra os fatos geradores da cidade, observados nos primeiros capítulos.

A São Paulo contemporânea transforma-se para a autora na anticidade: cidade fractal, com padrões urbanos diversos, em que a violência estimula a formação de fortalezas urbanas - essas são um "modelo" de ocupação do território empregado pelas classes média e alta que é desejado pelos pobres; mas, especialmente, a cidade passa a negar sua heterogeneidade - força motriz e origem da identidade da metrópole paulistana.

Em seu posfácio, o livro mostra que, na atualidade, São Paulo vive um momento ambíguo: vigor na dinâmica do mercado imobiliário e de consumo, contando com vigorosa produção cultural; mal-estar pela dificuldade em se locomover na cidade, "asfixiados pelas distâncias, pelo trânsito e pela poluição de automóveis, ônibus e caminhões" (p.79). O medo de sair às ruas, marca da violência e da exclusão, continua presente na cidade.

Como nos é apresentado nesse claro e intenso livro, a história da cidade de São Paulo é marcada por decisões de políticas urbanas - opções e modelos -, tomadas em momentos cruciais e que contam com maior ou menor participação de seus moradores. Para Raquel Rolnik, não há um "problema" ou marca urbanística na cidade que não esteja associado ao modo como ela é governada.

O futuro de São Paulo permanece incerto, mas o destino da cidade sempre estará nas mãos de seus moradores, mesmo que seus administradores não entendam dessa forma.

Júlio Cláudio da Gama Bentes é arquiteto e urbanista, doutorando na FAU-USP. Atualmente é o secretário-geral do Ins-tituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ). @ - julio.bentes@usp.br

  • São Paulo, por Raquel Rolnik

    Júlio Cláudio da Gama Bentes
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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