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Infecção por Saccharomyces cerevisae: uma infecção atípica em UTI

Resumos

Descreve-se aqui o caso de infecção fúngica mista por leveduras em paciente de UTI: por Saccharomyces cerevisae - levedura conhecida e de larga utilização na panificação e produção de vinhos - e Candida albicans. As infecções fúngicas mistas possuem alta mortalidade em terapia intensiva. Discutimos neste artigo o caso de paciente idoso portador de doença pulmonar obstrutiva crônica, portador de tumor não tratado de bexiga, tabagista, admitido no Hospital com quadro diarréico, evoluindo para choque séptico, com isolamento em hemoculturas das duas leveduras supracitadas. Quadro grave, de evolução letal, possibilitando a discussão de um dos germes emergentes em unidade de terapia intensiva e apresentação atípica em terapia intensiva.

Saccharomyces cerevisiae; Infecção; Candidíase; Fungemia; Sepse; Leveduras; Relatos de casos


A case of a mixed fungal yeast infection involving Saccharomyces cerevisiae - well known for its use in the bread and wine industries - and Candida albicans, is described in an intensive care unit patient. Mortality due to mixed fungal infections in the intensive care unit is high. An elderly smoker patient with chronic pulmonary obstructive disease and untreated bladder neoplasm was admitted to the hospital with diarrhea and progressed to septic shock. The above-mentioned yeasts were identified in blood cultures. This case with fatal outcome provides an opportunity to discuss one of the emergent germs found in the intensive care unit, in a case with an atypical presentation.

Saccharomyces cerevisiae; Infection; Candidiasis; Fungemia; Sepsis; Yeasts; Case reports


RELATO DE CASO

Infecção por Saccharomyces cerevisae – uma infecção atípica em UTI

Felipe Henriques Alves da Silva; Fernando Ribeiro Paço; Eduardo Reis; Vinicius Amaral

Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Espanhol – Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Felipe Henriques Alves da Silva Rua Gurupi, 70 apto. 202 – Grajaú CEP: 20561-100 - Rio de Janeiro (RJ), Brasil Fone: (21) 9809-6662 E-mail: felhenriques@uol.com.br

RESUMO

Descreve-se aqui o caso de infecção fúngica mista por leveduras em paciente de UTI: por Saccharomyces cerevisae – levedura conhecida e de larga utilização na panificação e produção de vinhos – e Candida albicans. As infecções fúngicas mistas possuem alta mortalidade em terapia intensiva. Discutimos neste artigo o caso de paciente idoso portador de doença pulmonar obstrutiva crônica, portador de tumor não tratado de bexiga, tabagista, admitido no Hospital com quadro diarréico, evoluindo para choque séptico, com isolamento em hemoculturas das duas leveduras supracitadas. Quadro grave, de evolução letal, possibilitando a discussão de um dos germes emergentes em unidade de terapia intensiva e apresentação atípica em terapia intensiva.

Descritores: Saccharomyces cerevisiae; Infecção; Candidíase; Fungemia; Sepse; Leveduras; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

O gênero Saccharomyces constitui um grupo de leveduras de vasto conhecimento humano, sendo o representante mais famoso deste conhecido como Saccharomyces cerevisiae, amplamente utilizado na panificação, produção de etanol e vinhos, além do uso na indústria farmacêutica na obtenção da lepirudina.(1) No campo biomédico, a pesquisa de anticorpos anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA) é marcador importante para diagnóstico da doença de Crohn. Outro representante do gênero, o Saccharomyces boulardii, tem utilização terapêutica no tratamento de afecções do trato gastrointestinal. Nos humanos, o gênero Saccharomyces pode estar presente como colonizante na mucosa gastrointestinal, respiratória e urinária em pacientes com doenças de base.(2-4) Apesar de rara, a infecção por fungos "incomuns" vem aumentando em nosso meio,(2,5) sendo o Saccharomyces cerevisae reconhecido como germe emergente, com uma incidência que pode chegar a 4% dos isolados de fungos em hemocultura.(2) A associação com outros fungos (especialmente Candida) também é bem descrita na literatura, cuja ocorrência determina altas taxas de mortalidade. O tratamento precoce para fungos determina prognóstico melhor.(6)

Relatamos o caso de um paciente idoso, portador de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), com apresentação de fungemia grave, com discussão posterior de aspectos microbiológicos e epidemiológicos desta rara afecção.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 73 anos, branco, argentino, morador do Rio de Janeiro, casado, músico, admitido no Hospital com quadro de astenia e diarréia. Tabagista pesado (30 maços-ano), portador de câncer de bexiga diagnosticado há um mês por exame de imagem, de comprometimento local, sem evidências de doença à distância. Iniciaria tratamento para esta neoplasia na semana seguinte a internação.

Iniciou quadro em sete dias anteriores a internação, quando procurou atendimento médico por prostração intensa, astenia, com alguma mudança no padrão do escarro. À época, foi iniciada antibioticoterapia com levofloxacina. Durante uma semana, não houve melhora da prostração e astenia, associando-se, neste momento, quadro de diarréia líquida, sem muco, pus ou sangue. Admitido no Hospital por desidratação intensa, com exame físico mostrando paciente em regular estado geral, desidratado, sinais vitais normais. RX de tórax de entrada com sinais de hiperinsuflação pulmonar, sem sinais consolidação aparente, leucograma com leucocitose e desvio à esquerda importante, hiponatremia (130 mEq/L), elevação de escórias renais (creatinina de 2,8) e proteína C reativa elevada (PCR de 26 mg/dl). Iniciada hidratação, esquema antibiótico trocado de levofloxacina para amoxacilina com clavulanato + ciprofloxacina após coleta de culturas (coprocultura inclusive). Além destas medidas, foram associados Saccharomyces boulardii e loperamida.

Durante internação na clínica médica, já com melhora leucométrica e ausência de germe identificado em culturas, paciente evoluiu taquipnéia e esforço respiratório sendo reculturado após suspensão de esquema prévio e iniciada antibioticoterapia com piperacilina + tazobactam. Neste momento, cessaram-se os eventos diarreicos. Houve piora do quadro em 24 horas e aparecimento de febre alta (39ºC), sendo solicitada internação na unidade de terapia intensiva do Hospital.

Paciente admitido com sinais de insuficiência respiratória, taquicárdico, pressão arterial normal. Exame do aparelho respiratório com tórax em tonel e ausculta pulmonar com roncos esparsos com crepitação difusa, além de utilização importante de musculatura acessória. Ausculta cardíaca sem maiores alterações. Abdome flácido, peristalse presente. Membros inferiores com discreto edema simétrico, bilateral com panturrilhas livres bilateralmente. Oligoanúrico. Não havia cateter venoso profundo instalado antes da internação na unidade de terapia intensiva (UTI). Procedida entubação orotraqueal, acoplado a ventilação mecânica, sedado com midazolan e fentanil. Colhidas novas culturas, mantido piperacilina + tazobactan e associado claritromicina ao esquema. Exames laboratoriais de admissão com leucocitose e desvio (12% de bastões), mantidos níveis elevados de escórias renais e proteína C reativa, com gasometria arterial com acidose metabólica compensada e hipoxemia grave.

Evoluiu com choque não responsivo a reposição volêmica de 30 ml/kg. Instaladas noradrenalina em dose inicial de 0,3 mcg/kg/min, SvO2 de 81%. Ecocardiograma sem disfunção, fração de ejeção 63%, veia cava sem variação inspiratória, PSAP de 59 mmHg, sem alterações valvares. Doppler venoso de MMII sem sinais de trombose venosa profunda. RX de tórax com infiltrado retículo nodular difuso nos quatro quadrantes. Secreção esbranquiçada em moderada quantidade. PO2/FiO2 de 200. APACHE de 24 horas de 14. Solicitada hemodiálise por insuficiência renal aguda, iniciada após 6h da solicitação.

Broncoscopia evidenciou mucosa levemente edemaciada, com secreção clara, moderada, sendo colhidos materiais para cultura e BAAR. Após medidas iniciais, houve melhora do quadro respiratório (PO2/FiO2 em torno de 240) e metabólica, apesar de febre e necessidade de aminas vasoativas após 48 horas. Resultado de hemoculturas da admissão no Hospital evidenciou Candida albicans em duas amostras, além de Saccharomyces cerevisae em mais duas amostras das hemoculturas colhidas na admissão na UTI. Urinocultura positiva para Candida albicans. Anti-HIV negativo. BAAR negativo. Associado fluconazol ao esquema antibiótico. Após início de fluconazol, houve melhora clínica, apesar de vários picos febris diários. Colhidas novas culturas e, por recomendação da comissão de infecção hospitalar, trocado esquema antifúngico para anfotericina B após três dias de fluconazol. Cultura de LBA evidenciou crescimento de Saccharomyces cerevisae.

Quarenta e oito horas após o início de Anfotericina B, paciente evoluiu com melhora do quadro, defervescência, retirada de amina vasoativa, melhora de PO2/FiO2, quadro metabólico equilibrado, evolução laboratorial positiva, ainda em hemodiálise diária. Colhidas culturas a cada 48 horas para avaliação de resolução de candidemia. Suspensa sedação na tentativa de retirada de prótese ventilatória. Houve falha no teste de ventilação espontânea, não sendo possível retirada de ventilação mecânica.

Paciente desenvolveu novo quadro de choque séptico após sete dias do início da anfotericina, sendo iniciado meropenem após nova coleta de culturas, com manutenção de terapia antifúngica. Paciente evoluiu com melhora clínica inicial após terapêutica descrita. Após dois episódios de fibrilação atrial, quarenta e oito horas após novo esquema, paciente evolui com distensão abdominal e novo choque refratário a aminas vasoativas em altas doses. Aventada hipótese de isquemia mesentérica associada à arritmia. Tomografia não realizada pelos níveis elevados de aminas vasoativas e troca gasosa insatisfatória. RX de abdome com distensão de alças. Cirurgia Geral contra-indicou inventário da cavidade pelo quadro clínico avançado de choque e alterações metabólicasgraves. Óbito em 13 dias após admissão na UTI, 24 horas após início do evento abdominal. Cultura de secreção traqueal colhida na penúltima complicação evidenciou Klebsiela oxytoca sensível a carbapenêmicos. Todas as hemoculturas colhidas até a data do óbito foram positivas (pelo menos uma amostra) para Candida albicans.

DISCUSSÃO

Saccharomyces cerevisae é uma levedura conhecida há muito tempo pelo ser humano, com ampla utilização industrial.(1,2,7) Apesar de ser um germe distribuído na natureza e de virulência, até então, baixa para seres humanos, a infecção invasiva por Saccharomyces cerevisae vem sendo reconhecida com maior freqüência nas últimas décadas, sendo agente reconhecido em cerca de 4% das hemoculturas positivas para fungos, inclusive em indivíduos imunocompetentes.(2,5) Sua primeira descrição como patógeno ocorreu em 1958 por Reihersol e Hoel em isolados repetidos de escarro em paciente com broncopneumonia.(4) A epidemiologia ainda não é totalmente conhecida, sendo reconhecido colonizador transitório da mucosa gastrointestinal (especialmente após alimentos contaminados, do trato genital feminino e trato respiratório.(2-4,7) Acredita-se que sua entrada no organismo seja predominantemente por via gastrointestinal, apesar de relatos de contaminação de cateteres através das mãos contaminadas, podendo, por isso, ser considerado causa de infecção associada a cuidados de saúde.(2,8) Sua presença em líquidos estéreis indica ou quebra de barreira ou alta população do fungo.(2) Os fatores de risco são muito similares aos da candidemia, como uso de cateteres, nutrição parenteral, hemodiálise, uso de antibiótico de largo espectro, imunossupressão (HIV ou doenças neoplásicas) e transplantados. Além destes, na fungemia por Saccharomyces, um fator de risco isolado e exclusivo, consiste na utilização prévia do probiótico Saccharomyces boulardii, largamente utilizado no tratamento de diarréias, especialmente aquelas associadas a antibióticos.(2,3,5) Tal fato decorre da identificação cada vez mais descrita em literatura de cepas de S. boulardii geneticamente idênticas a cepas de S. cerevisae, sendo considerado atualmente, taxonomicamente, um subtipo do Saccharomyces cerevisae.(2,3) Este é um dado que exige atenção, já que, após abertura da cápsula para administração enteral deste probiótico, o mesmo pode permanecer em superfícies por até duas horas e em até um metro de distância, sendo sua remoção difícil, mesmo com lavagem das mãos, consistindo num possível foco de disseminação pelas unidades fechadas.(3) A detecção de fungemia ocorre em aproximadamente 10 dias de utilização do probiótico segundo literatura estudada.(3)

A manifestação mais importante da infecção por Saccharomyces é a fungemia, que clinicamente pode ser indissociável da infecção por Candida, inclusive com descrições de presença de coriorretinite e lesões esofageanas.(2,3,5) Fungemia por Saccharomyces é descrita em pacientes imunocomprometidos, HIV positivos, mas também em pacientes imunocompetentes. Além da fungemia, outras manifestações (mais raras) também podem ocorrer como endocardite, abscesso hepático, pneumonia, vaginite e esofagite.(2,3)

O isolamento do fungo em culturas é simples, baseado em sua morfologia, característica de crescimento e bioquímicas únicas.(3) A diferenciação para o subtipo boulardii não é rotineira por não existirem características patognomônicas deste subtipo.(2)

Não existe consenso para o tratamento da infecção, com descrições favorecendo o uso do fluconazol, voriconazol, flucitosina, anfotericina B e até associação de anfotericina B a fluconazol.(2-8) Outras medidas importantes consistem na retirada de cateteres e suspensão do probiótico Saccharomyces boulardii.(3,7,8)

Infecções fúngicas mistas, apesar de mais frequentemente descritas relacionadas a melhoria dos métodos diagnósticos, possui uma ocorrência com pouca descrição em literatura correspondendo a cerca de 3-5% de todas as candidemias. Sua presença parece não aumentar a mortalidade em relação a infecções monofúngicas, com descrições, inclusive, de me-nor mortalidade (20% vs. 53% em algumas séries).(6) O tratamento não difere do tratamento convencional da fungemia por germe único, devendo ser observados o perfil de sensibilidade dos germes envolvidos.(7)

O caso apresentado surpreende já pelo (difícil) diagnóstico de candidemia disseminada em um paciente DPOC que, apesar da doença pulmonar, não fazia uso de corticoesteróides prévios, sem internação prévia, com tumor de bexiga incipiente, sem uso de cateteres venosos profundos, com uso de um ciclo de antibiótico em nível ambulatorial, oriundo da comunidade (poucos fatores de risco na admissão) e que desenvolve um quadro de infecção fúngica mista por S. cerevisae e Candida albicans. O aparecimento do Saccharomyces em culturas está associado a provável quebra de barreira intestinal associada ao uso do probiótico Saccharomyces boulardii. O uso do obstipante loperamida provavelmente acelerou o processo de translocação intestinal do germe, podendo ser observada a fungemia num período menor do que o descrito em literatura. Tal caso chama a atenção para um germe emergente, de detecção crescente nas últimas décadas e associado à utilização de probióticos, tão comuns na nossa prática clínica e frequentemente considerados inócuos, constituindo fator de risco importante para a suspeição deste germe. O tratamento antimicrobiano, primeiro com fluconazol e secundariamente com a Anfotericina B, resultou em desaparecimento do Saccharomyces da hemocultura, apesar de não haver diretrizes claras para tratamento ou determinação de controle de cura para esta afecção. Outro fator interessante do caso foi a presença de infecção fúngica mista, afecção ainda rara, mas cada vez mais relatada na literatura em terapia intensiva.

Submetido em 04 de Janeiro de 2011

Aceito em 28 de Fevereiro de 2011

Conflitos de interesse: Nenhum.

Recebido do Hospital Espanhol – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

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  • Autor correspondente:
    Felipe Henriques Alves da Silva
    Rua Gurupi, 70 apto. 202 – Grajaú CEP: 20561-100 - Rio de Janeiro (RJ), Brasil
    Fone: (21) 9809-6662
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Aceito
      28 Fev 2011
    • Recebido
      04 Jan 2011
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