Resumos
No contexto da globalização, a concepção de crescimento/desenvolvimento está orientada na direção do mercado e da competitividade internacional, sustentada por políticas de ajuste econômico que têm produzido um quadro considerável de exclusão social. Diante desse cenário, que representa uma ameaça à estabilidade do sistema, os organismos internacionais, o FMI, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)/Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), têm alertado os governos sobre a gravidade do problema e enfatizado a necessidade de intervenção, por parte do Estado, em serviços sociais como a educação e a saúde básicas. Neste artigo, sustentamos que a ênfase na educação e na saúde básicas é parte integrante das estratégias político-ideológicas da globalização e, portanto, constituem-se em variáveis fundamentais no processo de implementação das políticas de ajuste econômico para manter a pobreza em níveis suportáveis, contribuindo, assim, para a estabilidade política e social.
desenvolvimento; globalização; políticas de ajuste econômico; educação; saúde
In the context of globalization, the conception of growth/development is oriented towards the market and international competitiveness, which, in its turn, is supported by economic adjustment policies that have produced a considerable social exclusion environment. In face of this situation, which has been threatening the system stability, the international organisms, the IMF, the International Bank for Reconstruction and Development (IBRD)/World Bank and the Inter-American Development Bank (IDB), have alerted the governments on the seriousness of the problem and emphasized the need for State intervention in social services such as basic education and health. In this article, we state that focusing on basic education and health is an important part of the political ideological strategies in globalization and, therefore, they are vital variables in the process of implementation of economic adjustment policies to keep poverty at bearable levels, contributing, thus, for social and political stability.
development; globalization; economic adjustment policies; education; health
ARTIGOS
A centralidade em educação e em saúde básicas: a estratégia político-ideológica da globalização1 1 . Este texto é resultado de parte das reflexões sistematizadas para comprovação da tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da Unicamp, área de concentração História, Filosofia e Educação, sob orientação da Profa. Dra. Maria Elizabete Sampaio Prado Xavier.
Ireni Marilene Zago Figueiredo
Professora do Colegiado do Curso de Pedagogia e do Mestrado em Educação da Unioeste Universidade Estadual do Oeste do Paraná Campus de Cascavel PR. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional e Social GEPPES. irenifigueiredo@unioeste.br
RESUMO
No contexto da globalização, a concepção de crescimento/desenvolvimento está orientada na direção do mercado e da competitividade internacional, sustentada por políticas de ajuste econômico que têm produzido um quadro considerável de exclusão social. Diante desse cenário, que representa uma ameaça à estabilidade do sistema, os organismos internacionais, o FMI, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)/Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), têm alertado os governos sobre a gravidade do problema e enfatizado a necessidade de intervenção, por parte do Estado, em serviços sociais como a educação e a saúde básicas. Neste artigo, sustentamos que a ênfase na educação e na saúde básicas é parte integrante das estratégias político-ideológicas da globalização e, portanto, constituem-se em variáveis fundamentais no processo de implementação das políticas de ajuste econômico para manter a pobreza em níveis suportáveis, contribuindo, assim, para a estabilidade política e social.
Palavras-chave: desenvolvimento; globalização; políticas de ajuste econômico; educação; saúde.
ABSTRACT
In the context of globalization, the conception of growth/development is oriented towards the market and international competitiveness, which, in its turn, is supported by economic adjustment policies that have produced a considerable social exclusion environment. In face of this situation, which has been threatening the system stability, the international organisms, the IMF, the International Bank for Reconstruction and Development (IBRD)/World Bank and the Inter-American Development Bank (IDB), have alerted the governments on the seriousness of the problem and emphasized the need for State intervention in social services such as basic education and health. In this article, we state that focusing on basic education and health is an important part of the political ideological strategies in globalization and, therefore, they are vital variables in the process of implementation of economic adjustment policies to keep poverty at bearable levels, contributing, thus, for social and political stability.
Key words: development; globalization; economic adjustment policies; education; health.
No contexto do Pós-Segunda Guerra, foi produzida a Ideologia Desenvolvimentista, como estratégia da afirmação da hegemonia econômica e política dos EUA e do deslocamento da Guerra Fria para o chamado Terceiro Mundo. A Guerra Fria, sustentada pela Doutrina Truman, foi apresentada pelos EUA que, entre outros objetivos, visava ajudar financeiramente os países que decidissem lutar contra o comunismo (Teixeira, 1993).
A Mensagem que Truman enviou ao Congresso, em junho de 1949, conhecida como "Ponto IV", enfatizou a necessidade de ajuda às economias subdesenvolvidas, para ampliar as condições de trocas econômicas entre os EUA e esses países. Em 1950, foi outorgado o Act for International Development Ato para o Desenvolvimento Internacional ou "Ponto IV", legalizando as já legitimadas determinações da Mensagem enviada por Truman ao Congresso em 1949, traçando as bases e as noções para o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. Definia-se, portanto, o projeto de segurança externa frente às possíveis investidas dos países comunistas nos países periféricos. "Estabelecia, aí, novas regras para a cooperação econômica, mediante o estabelecimento de acordos para a assistência econômica, para a cooperação financeira, técnica e para as doações" (Nogueira, 1999, p. 63).
A "Política da Porta Aberta" indicou a direção da política de segurança externa dos EUA, construindo a noção da inexorabilidade da assistência técnica para o crescimento econômico, desde a Mensagem de Truman, o "Ponto IV". Os objetivos da política de segurança externa norte-americana foram colocados em prática através da mediação da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional USAID (1958), que ganhou destaque no Brasil a partir de 1961, com a promulgação da "Carta Punta del Este". Desse modo, em agosto de 1961, na reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social (CIES-OEA), realizada em Punta del Este, Uruguai, as Repúblicas Americanas subscreveram a Carta Punta del Este, conferindo o caráter interamericano à Aliança para o Progresso, proposta pelo governo John Kennedy (Deitos, 2001).
Dessa forma, nas primeiras décadas do Pós-Segunda Guerra, as ajudas bilaterais para o desenvolvimento preponderaram em relação às ajudas multilaterais, pois o Banco Mundial, inicialmente, teve suas ações mais voltadas para a reconstrução física e econômica dos países da Europa, com o Plano Marshall. Na América Latina, no contexto da Guerra Fria, tivemos o programa da Aliança para o Progresso, que à semelhança do que fora feito na Europa, por intermédio do Plano Marshall, tinha como objetivo promover o desenvolvimento nessa região.
Toda a formulação da Aliança para o Progresso, no período da ideologia do desenvolvimento, está associada ao comunismo e, conseqüentemente, ao tema da segurança, pois a preocupação com as tensões sociais, como resultado da pobreza, está associada a essa ideologia.
No contexto da Aliança para o Progresso, a educação e a saúde não foram consideradas as principais estratégias de intervenção. A educação, por exemplo, foi pensada menos em termos econômicos, relacionada ao desenvolvimento, e mais como espaço de embates ideológicos, pois havia grande preocupação com a influência marxista nas universidades latino-americanas. No contexto da Aliança para o Progresso, a educação foi pensada mais a partir de T. W. Schultz, mas a estratégia da Aliança é completamente rostowiana. Neste sentido,
para a perspectiva neoclássica, sistematiza por T. W. Schultz na teoria do capital humano, a Educação seria "o" fator chave que levaria os países insuficientemente desenvolvidos ao desenvolvimento. Como é possível observar, este tipo de proposição tem importantes nuances em relação às teses de Rostow, por acentuar a ação ideológica. Nesta época, ambas orientações coexistiam nos centros de poder. Apesar de convergirem quanto à necessidade de interferência "externa" [...], divergiam quanto ao caráter da interferência externa: a primeira enfatizava que a educação e a técnica (necessariamente exógenas) poderiam alavancar o desenvolvimento, a segunda sustentava a combinação de ações ideológicas e ações de domínio direto e aberto. A história mostrou que no período áureo de desenvolvimentismo, prevaleceu a segunda, como atesta a terrível série de golpes militares na América Latina... (Leher, 1998, p. 72).
Portanto, até a década de 1960, a educação e a saúde eram secundárias para o Banco Mundial. A situação começou a mudar a partir de George D. Woods e, mais definitivamente, na gestão de Robert S. McNamara (1968-1981), que deu ênfase à pobreza. "O foco na pobreza significava o fortalecimento de uma concepção estratégica diferente da de Johnson e Rostow e, por conseguinte, da Aliança para o Progresso" (Leher, 1998, p. 202).
Na gestão de McNamara, as sugestões do Relatório Pearson (1969), que constituíram o resultado de um estudo sugerido pelo seu antecessor George D. Woods (1963-1968), foram viabilizadas. As conclusões do Relatório Pearson não foram mais do que a identificação das práticas propostas por Truman, em sua Mensagem, em 1949. O Relatório sistematizou as recomendações decorrentes da avaliação das conseqüências da ajuda para o desenvolvimento econômico, sendo que o caráter de crise e de desencantamento da ajuda para o desenvolvimento, da parte dos países desenvolvidos, foi atribuído à ajuda bilateral (Nogueira, 1999).
Na década de 1970, portanto, a ênfase do BIRD nos investimentos sociais estava associada às críticas e recomendações do Relatório Pearson, e também à crise internacional e aos movimentos de libertação na África, na Ásia e na América Latina. Assim, foi a partir da conjuntura de crise internacional e das questões de segurança implícitas que o Banco Mundial passou a considerar as causas sociais da pobreza e das necessidades básicas.
Nessa direção, McNamara representou o primeiro marco expressivo de mudança na concepção teórica do Banco Mundial, pois anteriormente essa instituição nunca havia concebido a tarefa de desenvolvimento como algo relacionado ao alívio da pobreza. Defendeu que a pobreza deveria ser enfrentada, uma vez que os benefícios do crescimento econômico por si só não alcançariam os pobres. Foi, portanto, um dos principais responsáveis pela mudança na estratégia de política externa norte-americana.
Dessa forma, a noção de desenvolvimento tem sido referência histórica para o Banco Mundial. A ênfase no crescimento econômico, como dinamizador do desenvolvimento, tem sido a base conceitual desde a sua origem. Essa noção de crescimento/desenvolvimento e as transformações construídas no decorrer de sua história estão relacionadas ao movimento do capitalismo em nível internacional e suas relações com os países periféricos, materializadas por meio de diferentes articulações e mediações político-ideológicas e econômico-financeiras, na implementação dos programas de desenvolvimento e de ajustes estruturais e setoriais empreendidos nesses países.
O financiamento concedido pelo Banco Mundial, até o final da década de 1950, destinou-se aos setores de infra-estrutura de capital, tais como: transportes, energia elétrica, telecomunicações, irrigação e racionamento de água. No início da década de 1960, o Banco e a AIF reconheceram que o desenvolvimento de setores como a educação, a agricultura e a indústria teriam importância decisiva para o progresso social e econômico. O Banco e a AIF, em 1968, empreenderam o primeiro plano qüinqüenal, no qual as operações creditícias duplicaram em comparação com os cinco exercícios anteriores. Além do financiamento para os setores tradicionais, incrementaram-se, em medida significativa, as operações relacionadas com os setores educativo e agrícola. Também se prestou mais atenção aos aspectos sociais do progresso econômico, incluindo o crescimento da população, o emprego, a saúde, a desnutrição, os efeitos ambientais... (Banco Mundial, 1974).
Portanto, com McNamara, a concepção do desenvolvimento não se limitou ao crescimento econômico. A partir desse momento, o Banco Mundial sustentou que o crescimento econômico precisaria incluir aspectos sociais e políticos, associados à planificação familiar, à urbanização e ao desemprego. McNamara (1974) defendia que os governos deveriam reorientar sua política de desenvolvimento para enfrentar frontalmente a pobreza. Os governos realizariam essa meta sem abandonar os objetivos do crescimento econômico geral, mas deveriam estar dispostos a dar alta prioridade ao estabelecimento de metas de crescimento em termos de necessidades humanas básicas: educação, saúde, nutrição, habitação e emprego.
O atendimento à educação e à saúde básicas constitui-se, com clareza indiscutível, em estratégias político-ideológicas para conter o crescimento populacional e, conseqüentemente, administrar a pobreza. O Relatório Pearson atribuía ao crescimento demográfico descontrolado o aumento da pobreza, o que foi reafirmado por McNamara (1974, p. 18), ao ressaltar que "[...] o maior obstáculo ao progresso social e econômico da maior parte dos povos do mundo subdesenvolvido é o crescimento demográfico desmesurado".
O Relatório Pearson vinha rever a noção de desenvolvimento e suas relações com o crescimento econômico. Assim, a preocupação com a "satisfação das necessidades básicas" emergiu das recomendações e indicações deste Relatório, passando a associar o financiamento de infra-estrutura ao financiamento da "satisfação das necessidades humanas básicas". Todavia, o setor de infra-estrutura, na concessão dos financiamentos, permaneceu como eixo central para conquistar o crescimento econômico, fator de desenvolvimento (Deitos, 2001; Lichtensztejn; Baer, 1987; Nogueira, 1999).
Nesse sentido, para conter a pobreza eram precisos investimentos em infra-estrutura produtiva e social, educação, saúde, moradia, controle demográfico, nutrição e criação de empregos. Mas também era preciso conceber a educação e a saúde de forma integrada para garantir a estabilidade social, com o desenvolvimento de projetos, nessas áreas, que articulassem o crescimento/desenvolvimento com o bem-estar social. Dessa forma, o Banco Mundial (1975) considera que a saúde contribui diretamente com o bem-estar humano e pode ser considerada como uma medida de bem-estar social. Uma política de saúde construtiva deve almejar a manutenção do delicado equilíbrio entre uma saúde melhor e o desenvolvimento econômico geral. As atividades no setor de saúde devem focalizar-se nas atividades do setor da educação, devendo apoiar projetos que combinem a promoção do desenvolvimento econômico com a redistribuição do bem-estar.
A "satisfação das necessidades básicas", na estratégia do Banco Mundial, expressava-se no reconhecimento de que, por intermédio do crescimento econômico, não seria automaticamente alcançado o bem-estar da maioria da população dos países subdesenvolvidos. Nos vinte anos de "ajuda para o desenvolvimento", constatou-se que o bem-estar social da população não teria correspondido ao índice de crescimento, medido pelo Produto Bruto dos países razoavelmente industrializados, como foi o caso do Brasil. A suposição era de que o desenvolvimento social ocorreria como derivação mecânica do crescimento econômico. Como essa lógica não se realizou, atribuiu-se ao crescimento demográfico descontrolado o aumento da pobreza e, conseqüentemente, a não ampliação dos benefícios sociais do progresso, produto dos índices do crescimento econômico (Nogueira, 1999).
Na Aliança para o Progresso a educação não fez parte do "núcleo sólido" de sua formulação e ocupou apenas um lugar secundário, ainda que, do ponto de vista político, a Universidade tenha sido considerada relevante como espaço de embates ideológicos. Porém, com o reconhecimento do papel fundamental da agricultura e do capital humano uma preocupação constante do Banco Mundial consagrar-se-iam as teses neoclássicas de T. W. Schultz, da Teoria do Capital Humano, em que a educação e a técnica (necessariamente exógenas) poderiam impulsionar o desenvolvimento, levando os países subdesenvolvidos ao desenvolvimento (Leher, 1998).
A formação do "capital humano" requeria investimentos em educação e saúde, os quais reduziriam a pobreza e gerariam o bem-estar social. Assim, era preciso promover a "satisfação das necessidades básicas" a partir de dois processos: aumentar a produtividade dos mais pobres, por meio da "valorização" do "capital humano", e promover a extensão de serviços básicos mínimos a essa população.
Nesse sentido, enfatiza McNamara (1979), a população pobre necessita de um nível adequado de renda, bem como de um acesso eqüitativo aos serviços públicos essenciais que são fundamentais para sua saúde e produtividade. Os serviços públicos essenciais contemplariam o abastecimento de água potável, a educação básica, a atenção médica preventiva, a eletricidade e o transporte público. A tarefa do Banco Mundial consiste em ajudar os países-membros em desenvolvimento na realização de todas as suas atividades relacionadas com o processo de desenvolvimento. Isso inclui a luta contra a pobreza absoluta, visto que a única esperança viável de reduzir a pobreza consiste em ajudar as pessoas pobres a incrementar sua produtividade.
A educação e a saúde básicas passavam a ser amplamente consideradas variáveis fundamentais do processo de desenvolvimento social e econômico e de segurança externa. Na Conferência Internacional sobre Atenção Primária em Saúde, realizada em Alma-Ata, URSS, em setembro de 1978, com patrocínio conjunto da OMS Organização Mundial de Saúde e do UNICEF Fundo das Nações Unidas , afirmou-se que um dos principais objetivos dos governos, das organizações internacionais e da comunidade mundial, até o ano 2000, é que todos os povos atinjam um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva.
Assim, a promoção e a proteção da saúde são condições indispensáveis para um determinado desenvolvimento econômico e social sólido, bem como contribuiriam para melhorar a qualidade de vida e para alcançar a paz social. A atenção primária em saúde é a chave para alcançar essa meta como parte do desenvolvimento. Uma política de independência, de paz e de desarmamento deveria liberar recursos adicionais, os quais poderiam ser empregados para fins pacíficos e, em particular, para acelerar o desenvolvimento social e econômico. Uma proporção desses recursos deveria ser destinada ao cuidado primário com a saúde, elemento essencial do desenvolvimento (OMS/Unicef, 1978).
O enfoque do Banco Mundial na educação ampliou-se no final da década de 1960, acabando por destacá-la como uma de suas políticas setoriais durante a década de 1970. Nesse contexto, a UNESCO foi perdendo suas atribuições para o Banco Mundial e, após a saída dos EUA daquele organismo, em 1984, o debate sobre a educação foi se transformando em assunto de negócios, de banqueiros e de estrategistas políticos. A saída dos EUA da UNESCO situou-se no bojo do abandono da ideologia do desenvolvimento e de privilegiamento de outros meios de direção intelectual e moral presentes na ideologia da globalização, que surgiu a partir da crise estrutural do capitalismo, já evidenciada na década de 1970. Dessa forma, a doutrina desenvolvimentista estava demasiadamente exaurida e desacreditada. Por isso, foi muito bem-vinda a renovação do sistema ideológico. Os neoliberais consideram-se como portadores da "verdadeira doutrina" capitalista e empreenderam reformas que configuram, conforme alegam, uma nova Era, a da globalização (Leher, 1998).
Dessa forma, antes da década de 1970, os empréstimos do Banco Mundial foram direcionados para o setor de infra-estrutura (energia, transportes e comunicações). A partir da década de 1970, com projetos destinados ao setor social (Tabelas 1 e 2), teve início uma outra fase de atuação do Banco Mundial nos países subdesenvolvidos.
As conseqüências da crise financeira internacional e da crise da dívida externa (1982) que atingiram os países periféricos, decorrentes da associação da elevação do preço do petróleo (1973-1979); da ação unilateral dos EUA de elevar as taxas de juros (1979) e da revalorização do dólar pelo Banco Central norte-americano (1979), contribuíram para que os organismos multilaterais de financiamento, o FMI, o BIRD e o BID, assumissem a liderança no processo de renegociação da dívida desses países, por meio de uma série de condicionalidades econômico-financeiras e político-ideológicas circunscritas aos Planos de Estabilização e aos empréstimos para os ajustes estruturais (1980) e setoriais (1983).
Assim, com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o BIRD já não precisava mais lutar para conter a expansão do comunismo. Foi assim que iniciou a sua contribuição para a expansão do novo modelo econômico, conforme desejavam e pressionavam os governos conservadores dos países centrais. Os EUA abandonaram a doutrina de desenvolvimento para todos, a partir da crise da dívida externa, concentrando-se na defesa de que os países pobres deveriam economizar tanto quanto possível, para honrar os serviços de suas dívidas e preservar o seu crédito (Leher, 1998).
As ações do presidente do Banco Mundial, Alden W. Clausen (1981-1986), voltaram-se para o ajuste estrutural das economias endividadas. Nessa direção, os países em desenvolvimento deveriam ajustar-se à economia externa por meio dos programas de ajuste econômico. Alden W. Clausen também sustentou que a estratégia para a redução da pobreza estaria no aumento da produtividade dos pobres. Os governos deveriam adotar medidas para assegurar que as oportunidades de emprego e o poder aquisitivo dos pobres não fossem limitados pela doença, pela insuficiência alimentar e pela carência de educação (Clausen apud Silva, 2002).
Nesse sentido, na década de 1980, para dar continuidade ao processo de implementação das políticas de ajuste econômico, houve uma ampliação dos recursos para os setores sociais (Tabela 2). Essa prioridade do BIRD estava associada à necessidade de controlar as situações de extrema pobreza durante o processo de ajustamento econômico, enquanto medida para evitar possíveis tensões sociais. Em 1984, a educação e a saúde obtiveram 30,49%, do total de empréstimos. Em 1988, a saúde, o desenvolvimento urbano, o abastecimento de água e o saneamento básico representaram 58,01% do total dos investimentos, e em 1989 o desenvolvimento urbano obteve 100% dos empréstimos.
Na gestão de Barber Conable (1986-1991), os empréstimos do Banco Mundial vieram acompanhados das condicionalidades impostas pelos ajustes estruturais e setoriais. Na conjuntura da crise, com os empréstimos de ajuste setorial e estrutural, permaneceu a noção de que para haver desenvolvimento era preciso haver crescimento econômico, mas foi nesse contexto que o crescimento se orientou para a imersão competitiva no mercado internacional.
Na década de 1990, o Banco Mundial reafirmou a necessidade de administrar a pobreza, ao destacar que seu objetivo continuava sendo a sua redução. O argumento pautava-se na defesa de que o ajuste era visivelmente necessário para conquistar a saúde a longo prazo (Banco Mundial, 1993, p. 08). Desse modo, permaneceu a ênfase no crescimento econômico como fator de desenvolvimento social, ao declarar que suas ações consistiam em colaborar com os países, ajudando-os a formular e aplicar políticas que resultassem na ampliação dos mercados e no fortalecimento de suas economias, visando melhorar a qualidade de vida de todos os habitantes (Banco Mundial, 1995b; p.9; 1995d, p.VI apud Silva, 2002, p.82).
Com Lewis T. Preston (1991-1995), evidenciou-se uma nova condicionalidade aos empréstimos do Banco Mundial, dado que a governabilidade constituiria um critério fundamental para a obtenção de êxito nas reformas. A ênfase na governabilidade estaria associada à capacidade do governo de realizar as políticas de ajuste, definidas pelos organismos internacionais. Assim, a ênfase na "administração da pobreza" dizia respeito às condições de governabilidade e, mais genericamente, à sustentação das reformas.
O presidente do Banco Mundial, J. D. Wolfensohn (1995), apontou para a mesma direção, sendo mais explícito ao associar pobreza e segurança. Destacou, portanto, que a redução da pobreza seria prioridade, visto que ela era responsável por gerar instabilidade política, social e econômica. O Banco Mundial estava ciente do problema, e daí a preocupação com a governabilidade, em duas dimensões: 1) criar condições macroeconômicas estáveis para manter inalteráveis as regras contratuais relativas ao capital e ao trabalho; e 2) controlar as tensões sociais decorrentes da "exclusão forçada", visando a estabilidade política (Leher, 1998).
Foi no último período que se produziu um consenso, no interior do Banco Mundial, sobre os danos sociais e o fracasso da aplicação dos Planos de Estabilização do FMI e dos programas de ajuste do BIRD e do BID. Os prejuízos dos programas de ajustes foram mencionados no documento World Development Report, de 1990, quando admitiu que, "no curto prazo, alguns pobres podem perder", e em 1993, quando Sebastian Edwards, economista-chefe para América Latina e Caribe, reconheceu que em alguns países os programas de ajuste estrutural eram excessivamente custosos, o que piorava a distribuição de renda, embora o custo de não realizar também fosse alto. Outros estudos do Banco Mundial também reconheceram que em muitos países em processo de "ajuste" houvera aumento de desemprego, enquanto a matrícula no ensino primário e os níveis nutricionais dos pobres desabaram. A política que visava "aliviar" a pobreza teria de ser incluída no contexto da política de "ajuste estrutural" (Leher, 1998).
A necessidade de dar resposta imediata aos grupos socialmente vulneráveis, com programas para os pobres (pro-poor programs), do Banco Mundial, está sistematizada no documento World Development Report 1990: Poverty, que descreve os indicadores do agravamento da pobreza produzido pela crise, somado aos efeitos das políticas de ajuste econômico. A necessidade de administrar a pobreza e de controlar politicamente a miséria tem sido ampliada, consistindo num mecanismo estratégico de longo prazo, o que levou à publicação dos dois volumes da UNICEF sobre o Adjustmente With a Human Face (1987), e também do documento Reforma social e pobreza (1993), organizado e publicado conjuntamente pelo BID e pelo PNUD. Em 1999 o FMI também demonstrou sua "preocupação" com aquilo que chamou de "humanização da globalização", conforme declaração do ex-diretor da instituição, Michael Candessus, para o jornal Folha de São Paulo, em 29 de setembro (Tavares; Fiori, 1993; Soares, 2002).
Para o Banco Mundial, o atendimento à educação e à saúde básicas, como estratégias para administrar a pobreza e inserir o indivíduo no mercado de trabalho, é inerente ao cumprimento da "satisfação das necessidades básicas" estabelecidas por Robert S. McNamara, no final da década de 1960 e consolidadas a partir da década de 1970. Na década de 1990, observamos essa preocupação quando o Banco Mundial estabeleceu que cabe à educação básica fornecer conhecimentos técnicos sobre nutrição, sobre controle da natalidade, sobre programas de contabilidade, de informática e de conhecimentos sobre ecologia para evitar a degradação ambiental e manter a força dinâmica do trabalho saudável (Banco Mundial, 1998-1999).
Especialmente na década de 1990, a concepção de trabalho, para o Banco Mundial e para o BID, constituiu o maior bem dos pobres; noção fundamental para justificar o investimento em capital humano. Concebe-se que a pobreza se reduz à medida que aumenta o nível de educação da força de trabalho. Isso legitima a prioridade da educação e da saúde básicas, o que, segundo o Banco Mundial e o BID, além de possibilitar a obtenção de renda pelos pobres, impulsionará o crescimento econômico e o desenvolvimento social, reduzindo a pobreza.
A educação e a saúde articulam-se como mitos promotores, na relação educação/saúde-trabalho-renda-redução da pobreza. Os organismos multilaterais de financiamento sustentam, portanto, que melhorar a educação é de particular importância para consolidar o desenvolvimento econômico e social (BID, 1999). A educação constitui um instrumento de promoção do crescimento econômico e de redução da pobreza, mediante a utilização produtiva do trabalho e a prestação de serviços sociais básicos aos pobres (Banco Mundial, 1995). Na área da saúde, é fundamental a intervenção pública como condição para reduzir ou aliviar a pobreza, bem como para melhorar as condições de saúde e contribuir com o crescimento econômico (Banco Mundial, 1993).
A ênfase na educação e na saúde básicas, como mecanismo de reduzir a pobreza por meio do aumento da produtividade e da renda, resultaria numa situação de bem-estar social dos indivíduos. Dessa forma, o Banco Mundial (1993) sustentava que os investimentos públicos na área da saúde se justificavam na medida em que os pobres nem sempre podiam pagar pelo tratamento médico, que resultaria no aumento de sua produtividade e seu bem-estar. Esses investimentos são importantes, pois reduzem a pobreza ou mitigam suas conseqüências. Assim, algumas ações em favor da saúde são de caráter essencialmente público.
Na América Latina, a implementação de um conjunto de reformas estruturais e setoriais de dimensão neoliberal, realizadas nas duas últimas décadas, tem produzido um quadro de distribuição de renda desigual, que gera a pobreza, seguida da precarização das condições de saúde, educação, moradia e emprego. Assim, as mudanças efetivadas na noção de crescimento/desenvolvimento, conforme mencionamos, e as ações que foram realizadas a partir dessas novas noções, pelo Banco Mundial, demonstram que, mesmo com a incorporação de outros fatores, o crescimento econômico continuou sendo a meta prioritária para o desenvolvimento social dos países periféricos. O FMI, o Banco Mundial e o BID, ao prosseguirem com o processo de implementação das políticas de ajuste estruturais e setoriais, buscam corrigi-las com medidas destinadas a administrar a pobreza.
Neste sentido, a preocupação com o aumento da pobreza e o consenso no interior das instituições, como o FMI, o BID e o Banco Mundial, de que havia necessidade de correção nas propostas de ajuste não encerraram a agenda para a implementação dos programas de ajustes estruturais e setoriais. A necessidade de intervir, de acordo com o Banco Mundial (1993), é porque há necessidade de proteger os pobres, visto que ainda resta muito a aprender acerca de meios mais eficazes de implementar os programas de estabilização e de ajuste.
Afinal, destaca o Banco Mundial (2000), o Brasil, no geral, aceita a globalização como realidade e quer tirar o máximo de benefício dela. Ao mesmo tempo, os riscos e custos de resultados negativos, especialmente no âmbito social, precisam ser cuidadosamente gerenciados.
Considerando a dívida externa brasileira, nos últimos 30 anos (1968-1999) cresceu 237 bilhões de dólares! No decorrer do primeiro mandato de FHC, a transferência para os credores girou em torno de 128 bilhões de dólares, cerca de 233 bilhões de reais. Com esse dinheiro teria sido possível pagar um "bônus" de 1.474 reais para cada brasileiro, ou dar 45 mil reais para cada família brasileira que vive com até 1 salário mínimo, ou investir 58 bilhões de reais ao ano para erradicar a pobreza, durante quatro anos (Gonçalves; Pomar, 2001).
No entanto, no Brasil na década de 1990, dados demonstram que o número de pobres2 2 . A estimativa do número de pobres aqui está baseada em dados da PNAD-90. São consideradas pobres aquelas pessoas cujo rendimento familiar per capita mensal é igual ou inferior ao valor de uma linha de pobreza (1/4 do salário vigente em 1980). Este valor da linha de pobreza correspondia a um rendimento familiar per capita anual de US$ 413 em 1990, o equivalente a US$ 34,4 mensais...» Nota da autora no texto. era de 39,3 milhões, correspondente a 27% da população total.
Nessa mesma década, trinta e dois milhões de pessoas (22% da população brasileira), compondo nove milhões de famílias, estariam em situação de indigência3 3 . Ver IPEA, 1993, que considera indigentes aquelas famílias cujos rendimentos mensais lhes permitem, no máximo, a aquisição de uma cesta básica de alimentos. Nota da autora no texto. , com semelhante distribuição regional e urbano-rural (Soares, 2001).
Também é preciso lembrar que os diversos ajustes fiscais têm implicado cortes para o conjunto das políticas sociais, inclusive para as políticas sociais restritas e focalizadas.
Em termos de evolução do gasto com o conjunto dos benefícios assistenciais dirigidos aos mais pobres, os anos iniciais da década de 1990 confirmam e agravam a tendência anterior de queda, apresentando cortes de 50% nesses gastos. Os recursos relativos aos gastos com salário-família passam de um patamar de US$ 1 bilhão entre 1980 e 1982 para um patamar de 100 milhões a partir de 1991 (Dain, 2001, p.133).
A racionalidade econômica (relação custo-benefício) é o parâmetro para definir as prioridades de investimentos em educação e saúde e, conseqüentemente, a taxa de retorno social a elas inerentes.
O acesso à água potável e o controle de doenças infecciosas são bens e serviços públicos com grandes externalidades4 4 . O Banco Mundial (1993) define o que geraria essas externalidades positivas da seguinte forma: os bens públicos são caracterizados pelo fato de que todos podem usá-los ou beneficiar-se deles, sem que tais uso e benefício fiquem limitados para os demais. As externalidades positivas dos bens públicos ocorreriam, portanto, quando o consumo de um indivíduo beneficiasse aos demais. Por isso, é justo que o pacote de atendimento clínico essencial seja financiado com verbas públicas, na medida em que gera externalidades positivas e reduz a pobreza. que o setor privado não pode fornecer, ou só o faz de maneira limitada [...] A rentabilidade da educação é especialmente elevada no nível primário, porque a alfabetização universal gera grandes externalidades para a sociedade. A educação das meninas, por exemplo, está vinculada à melhoria da saúde das mulheres e de seus filhos e a taxas mais baixas de fecundidade (Banco Mundial, 1997, p.55).
Os impactos e as conseqüências da crise estrutural do capitalismo, da crise da dívida externa e dos ajustes estruturais e setoriais, que produziram respostas sociais e políticas específicas, têm como resultado a priorização de ações de assistência focalizadas e restritas, com ênfase nas áreas de educação e saúde básicas. Para tanto, a defesa tem sido de que é preciso "...melhorar a eficiência do gasto social e apoiar a descentralização dos serviços oficiais, com vistas a parcerias estreitas com a comunidade e a sociedade civil" (BID, 2000, p.216).
Em síntese, no contexto da ideologia da globalização, as políticas restritas e compensatórias, que têm como prioridade atender aos grupos de extrema pobreza, consubstanciam, em parte, a proposta dos organismos multilaterais de financiamento em especial o Banco Mundial e o BID de focalização dos gastos destinados a esses grupos, o que justifica o investimento do Estado nas áreas de educação e saúde básicas.
Nesse sentido, a lógica emergencial e seletiva dos programas que reforçam essa perspectiva vincula-se, por exemplo, às ações das Organizações Não-Governamentais (ONGs), do Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da Família (PSF), do Programa Fome Zero, do Programa Bolsa Família, do Programa Comunidade Solidária, entre outros.
O consenso do BID e do Banco Mundial, quanto ao Estado oferecer os serviços essenciais básicos, de educação e de saúde, tem como meta manter a pobreza em níveis suportáveis, atendendo às demandas sociais críticas para administrar os efeitos recessivos das duras políticas de ajuste econômico. Desse modo, pode-se afirmar que a intervenção do Estado, nessas áreas, contribui para criar as condições favoráveis mínimas para implementar as políticas de ajuste econômico, visando contribuir com a estabilidade política e social (Figueiredo, 2006).
Recebido em 22 de março de 2007 e aprovado em 21 de setembro de 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Set 2010 -
Data do Fascículo
Abr 2008
Histórico
-
Recebido
22 Mar 2007 -
Aceito
21 Set 2007