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Condição humana contra "natureza"

PONTO DE VISTA

Condição humana contra "natureza"* * Publicado em CAVARERO, Adriana; BUTLER, Judith. "Condizione umana contro 'natura'". Micromega. Almanacco di Filosofia, Roma: Gruppo Editoriale L'Espresso, n. 4, p. 135-146, 2005. Tradução portuguesa de Selvino Assmann. Traduzido e publicado com permissão da Micromega e das autoras.

Adriana CavareroI; Judith ButlerII

IUniversità di Verona

IIUniversity of California, Berkeley

Adriana Cavarero: Quando o tema é a natureza humana, é quase obrigatório acenar para Aristóteles. Na sua filosofia já surgem duas questões fundamentais. Uma diz respeito à própria plausibilidade de uma "natureza humana", entendida em termos objetivos e a-históricos (e, além disso, modelada sobre o homem como paradigma abstrato e universal, ou seja – conforme observa Hannah Arendt – fictício). Outra tem a ver com a necessidade de definir o humano com referência ao não-humano, que, em termos aristotélicos e por uma longa tradição, é o animal. Hoje, o pensamento radical sobre a ética e a política, e, de qualquer modo, o pensamento que julgo mais interessante, não só nega que exista uma natureza humana entendida universalmente, mas tende, sobretudo, a definir o humano mais com referência ao inumano do que ao não-humano. Não se trata apenas de um jogo de palavras. Assim, o não-humano diz respeito – pelo menos tradicionalmente – ao animal. O inumano, por sua vez, alude a uma negação do humano que é interna ao próprio humano. A barbárie de Auschwitz poderia servir de exemplo. Parece, aliás, que a época histórica inaugura uma reflexão sobre o humano que não pode deixar de se confrontar com o abismo da sua autonegação. É como se a natureza humana fosse uma questão que não tem a ver com o lugar da espécie humana na classificação do mundo dos seres vivos, mas sim com o modo como os humanos desvelam para si mesmos o paradoxo da sua humanidade.

Judith Butler: Sem dúvida, devemos estar atentos a uma questão desse tipo. Aliás, seja no inglês human nature, seja no italiano natura umana, esperamos tanto da palavra "natureza" que se torna quase impossível chegar ao atributo "humana". Lembro-me de ter lido, certa vez, um ensaio de A. O. Lovejoy, documentando, só na língua inglesa, mais de oito usos da palavra nature, e me parece que a palavra exista sob um eixo de conotação incapaz de ser reduzido a um só ponto de significado. Obviamente, tal indecidibilidade semântica é paradoxal, pois precisamente uma das coisas esperadas da palavra "natureza" é estabelecer, de uma vez por todas, o que é irredutível e inequívoco na palavra "humana". Sem dúvida, a palavra "natureza" excede a palavra "humana" no próprio momento em que é proposto que o que é humano tem uma natureza; no primeiro sentido, a natureza oferece-nos a perspectiva pela qual o humano é um existente entre muitos outros existentes inter-relacionados; por sua vez, no segundo sentido, a natureza é entendida como aquilo que é mais essencial ao humano, insubstituível e necessário. Portanto, aqui já se apresenta um paradoxo – paradoxo que, talvez, se efetiva na sua maneira mais vistosa no pensamento segundo o qual os seres humanos têm uma natureza ou fazem parte de uma natureza.

Aliás, o humano é definido por Aristóteles em contraposição ao animal, mas, ao ser chamado zoon logon echon, e até mesmo zoon politikon, embora sempre seja um animal. Vemos, portanto, que o conceito que serve para definir o humano por diferença – o animal – é a própria base da sua definição. Quando o animal é removido da esfera política, deixa de ser humano, mas, quando dela passa a fazer parte, torna-se humano sem deixar de ser animal.

Além disso, não sei se procurar nesse caso algo parecido com um fundamento poderá servir realmente para desenvolver nosso pensamento. Provavelmente importa mais observar que o in-humano acaba sendo usado, por exemplo, tanto para descrever a crueldade do torturador, quanto o estado a que a vítima torturada é reduzida. Pode-se dizer, portanto, que o inumano passa a ser um atributo que ocorre entre os humanos presentes na cena da tortura. Por outro lado, porém, o inumano não pode ser um atributo dado, pois, se fosse assim, pertenceria necessariamente à esfera do humano. Deve haver um modo através do qual a própria cena da tortura acaba inviabilizando a possibilidade de atribuição, como se isso que aparece na cena fosse algo que por definição não poderia sustentar um atributo – inumano e, portanto, em certo sentido, indescritível. Obviamente, de algum modo, procuramos descrevê-lo, e realmente o descrevemos. Testemunhas de toda espécie confiam na tarefa dessa descrição. Algo indescritível, contudo, entrou em cena, perturbando a nossa capacidade de representar o que consideramos a cena humana.

Cavarero: O exemplo da "cena da tortura" parece-me um bom ponto de partida para a reflexão. Sobretudo se nessa cena, como você sugere, quisermos ver o paradoxo de um inumano que passa do torturador para a sua vítima, e vice-versa. Isso, no plano ético, se torna imediatamente repugnante, pois o inumano corre o risco de aparecer, em última análise, como aquilo que o torturador e o torturado compartilham: mais que um atributo, o traço comum, o último resíduo, da sua perdida – ou negada, mortificada – humanidade. É como se em ambos a humanidade se transformasse na sua própria autonegação, mostrando, por assim dizer, o inumano que pertence ao humano como sua extrema, mas constitutiva possibilidade. Ou melhor, como se o inumano não fosse diferente do humano, e sim o modo extremo – na ferocidade do torturador e no sofrimento da vítima indefesa – em que a condição humana se revela.

Ao substituir o conceito clássico de natureza humana com o de condição humana, estou obviamente fazendo uma referência explícita ao vocabulário da minha filósofa preferida: Hannah Arendt. Da condição humana, em sentido arendtiano, interessam-me, sobretudo, as características que definem a especificidade do humano nos termos de uma pluralidade de seres únicos, expostos um ao outro, num contexto material de relações que sublinham a fragilidade essencial de toda existência. O humano é, precisamente, o exposto. O exposto ao outro: em cena de recíproca exposição que, precisamente pela sua radicalidade, não pode excluir, mas, pelo contrário, prevê a violência. Quando você, nos textos mais recentes (por exemplo, em Vite precarie – Vidas precárias), fala de vulnerabilidade, você caminha, na minha opinião, em direção muito parecida ou, pelo menos, é sob essa perspectiva arendtiana que interpreto seu discurso sobre a categoria do vulnerável. Se o humano for, por definição, o exposto enquanto vulnerável, segue-se que a violência – dada e sofrida – está inscrita de maneira essencial na condição humana. O inumano – tal é a tese que proponho – aparece em primeiro plano, mostra-se em toda sua horrenda potência, toda vez que a vítima da violência é um ser indefeso, desarmado, ou seja, reduzido à sua pura vulnerabilidade. Nesse sentido, o torturador é uma figura do mal que revela o inumano como possibilidade intrínseca do humano. O que de fato é negado, na vítima, é uma humanidade que, enquanto vulnerabilidade essencial, sobrevive à sua própria negação. Não só, pois, o torturador personifica o mal, mas o seu trabalho de desumanizar o torturado – de um certo ponto de vista – acaba sendo inútil. Não gostaria de entrar aqui em questões religiosas, mas parece que a figura do Cristo possui essa potência representativa do humano enquanto essencialmente vulnerável. Ou, pelo menos, é evidente que, ao falarmos do teatro da tortura como lugar onde a tensão entre e o humano e o inumano se põe em cena, torna-se difícil esquecer o papel do Cristo na história do imaginário ocidental. E, como você sabe, o campo expressivo – desde a iconografia até a narrativa – nesse caso é muito amplo: estamos, sintomaticamente, no lado oposto do indescritível.

Butler: É claro que me sinto provocada pela sua imagem de Cristo como figura da vulnerabilidade humana, como você diz muito bem. Por outro lado, o motivo pelo qual a figura de Cristo é tão fascinante não se deve apenas por representar a vulnerabilidade humana, mas também, e igualmente, enquanto representa a superação final da fragilidade e mortalidade humana mediante a promessa da redenção e da volta a Deus. A dificuldade de pensar ambas as questões contemporaneamente, e a impossibilidade de uma fácil reconciliação entre ambas, é sem dúvida o que fixa a atenção na figura da cruz.

Sinto-me dever muito a você no que diz respeito ao meu pensamento mais recente, por ter-me feito notar as implicações éticas do modo como nos encontramos expostos, em nossa vulnerabilidade e fragilidade, um frente ao outro. Por um lado, tal vulnerabilidade implica realmente uma obrigação ética, uma atenção especial diante da precariedade da vida, uma responsabilidade para encontrar as condições em que essa vida frágil possa prosperar. Por outro, essa mesma vulnerabilidade é precisamente o que nos torna propensos à violência e também às práticas que nos envolvem na perspectiva da destruição da própria vida. Destruir uma vida é destruir as condições da sua vulnerabilidade, especialmente quando tal vulnerabilidade é experimentada como algo invivível na sua exposição. Além disso, estou de acordo com você ao afirmar que urge repensar a natureza humana em termos de condição humana.

Aquilo em que provavelmente divirjo de sua posição tem a ver com o fato de procurar pensar a agressividade e a capacidade destrutiva como partes integrantes da condição humana. Você certamente tem razão em descrever o extremo do ser torturado como ponto no qual a condição humana acaba iluminada, e onde, por outro lado, a vulnerabilidade humana é ressaltada. Mas, visto o outro lado da cena, pode-se afirmar que o torturador, de qualquer modo, põe em relevo o humano mesmo que de outra forma da mesma forma como os que pregaram Cristo na cruz devem estar incluídos quando pensarmos na condição humana. Aliás, não apenas penso que a agressividade esteja condicionada por uma vulnerabilidade primária que se afirma como algo a ser tomado em consideração durante toda a vida, mas acredito, também, que, se não tivermos um conceito de agressividade, o nosso conceito de atenção ética acaba ficando muito fraco. Além disso, como parte de toda prática de si, sobre si, implica reconciliar-se com a capacidade destrutiva que está em cada um de nós, implica dirigir a própria agressividade para fins construtivos, dando especial atenção aos efeitos destrutivos potenciais de uma agressão não cultivada através de uma estrutura ética. O esforço do menino e da menina para "individualizar-se" com relação ao progenitor diante do qual é mais dependente implica uma necessária agressividade sem a qual o self não pode emergir. Emerso o self, tal agressão não desaparece, mas sim reaparece todas as vezes que a fronteira do self é violada. Não parece haver outra maneira. Aliás, quando você afirma que a singularidade deve ser respeitada e a exposição da vulnerabilidade nos deveria ligar levando-nos a respeitar eticamente a precariedade da vida, você aceita o oposto como conseqüência igualmente provável: que a vida na sua singularidade possa ser negada, que a vulnerabilidade venha a ser confrontada com a crueldade, sem que nesse caso respeito algum seja posto em questão. A condição humana é precisamente esta aposta, esta rachadura, e esta divergência que volta continuamente. E não que a escolha seja entre, por um lado, a ética e, por outro, a agressividade. Aliás, a questão reside precisamente nisto: sendo, em conseqüência do nosso ser físico, social e singular, não apenas vulneráveis mas também agressivos, o que devemos fazer para cultivar a agressividade para fins não violentos? Realmente, por mais que todos nós queiramos preservar e cultivar a relacionalidade, há, sem sombra de dúvida, momentos em que somos tentados a romper exatamente tal relacionalidade por motivos que, no momento, parecem ser essenciais para a conservação do self. Nesses instantes esquecemo-nos, aliás, de que a autoconservação só pode acontecer no contexto da relacionalidade – todos nós precisamos da relacionalidade para viver. Como se apresentaria então a ética de um self que é, por definição, ambivalente e que, além disso, deve entrar em contato, em qualquer relação social, com a formação psíquica ambivalente dos outros?

Cavarero: De modo algum parece haver discordância com você se, conforme afirma, a questão principal consiste em pensar a agressividade e a destrutividade como parte da condição humana que nos define como vulneráveis. Entender a condição humana como relacional significa sublinhar uma reciprocidade essencial pela qual não só cada um está exposto ao outro, mas é, por sua vez, o outro a quem ele se expõe. Dito de outra maneira, a minha vulnerabilidade não só me expõe à violência de outrem, mas transforma cada outro ser humano, enquanto compartilha a condição humana de vulnerabilidade, em vítima potencial da minha violência (ou, como você diria, da minha agressividade, destrutividade). É precisamente aqui que lança raízes a dimensão ética. Obviamente, ela não consiste em uma série de preceitos universais que mandam fazer o bem, mas tem a ver com a nossa responsabilidade singular para com o outro, com o ato de respondermos diante da sua essencial vulnerabilidade. Quando tal resposta ocorre na forma de uma violência extrema, como no caso da tortura – ou seja, quando a dimensão ética se confronta com o paradoxo de um trabalho em favor da desumanização do humano que, mesmo assim, confirma o humano enquanto essencialmente vulnerável –, então estamos na proximidade da figura, infelizmente humaníssima, do mal. Entre a figura extrema do mal e outras formas menos radicais de violência, como o são as variações modulares de atos agressivos com respeito ao outro, de qualquer maneira sempre estará em jogo a nossa responsabilidade, a tonalidade ética da nossa resposta.

Tenho, porém, a impressão de que as suas perplexidades não tenham a ver tanto com a plausibilidade da tortura como figura do mal, mas se refiram antes à dificuldade de inserir nesse quadro a agressividade natural que – conforme nos diz a psicologia e, sobretudo, a psicanálise – está implicada no processo de autoconservação do self. Escrevo aqui o termo natural em itálico por entendê-lo, na minha opinião, como uma explícita provocação. Pergunto-me se, de fato, não é a psicanálise a falar ainda da natureza humana que, no caso da filosofia, concordamos em rejeitar de modo crítico, substituindo-a com a categoria de condição humana. Pergunto-me, em outras palavras, por que motivo o interesse por uma condição humana entendida em termos de relacionalidade entre seres vulneráveis – de que tanto você quanto eu apreciamos a potencialidade crítica e política com respeito ao indivíduo autônomo e liberal da modernidade – deveria necessariamente fazer as contas com o self de um saber psicanalítico, cuja doutrina, aliás, talvez ainda não estejamos dispostos a rever de maneira realmente radical. Dou-me conta de que o problema é muito complicado, e aqui não há nem espaço nem, de minha parte, a competência para o discutir. Tendo em conta você fazer parte do grupo que releu Freud e Lacan em termos competentemente críticos e é, além disso, a representante mais autorizada do pensamento radical e feminista norte-americano, limitar-me-ei a fazer-lhe uma pergunta: você não vê o perigo de reforçar a instância metafísica de uma natureza humana "igual para todos" – conforme observa, aliás, Hannah Arendt com referência à psicanálise – quando fala de um self que, na infância, deve necessariamente agredir o progenitor de que mais depende, a fim de se individualizar, emergir como self, etc.? Dito em termos ainda mais drásticos: existe por acaso, no discurso psicanalítico, um núcleo intocável, "científico" e por isso inegável, enquanto, por sua vez, o discurso filosófico, em todas as suas versões e seus estilos, poderá ser atacado sem reservas?

Ou seja, de maneira ainda mais direta: não lhe parece que, se a ética, conforme você justamente declara, deve ser pensada com referência aos paradoxos e à ambivalência da condição humana, então qualquer conceito natural do self excluirá necessariamente a própria condição humana da esfera da ética?

Butler: Certamente estou de acordo com você ao afirmar que toda teoria, entendendo o self como natural ou naturalista, deve ser posta sob exame pelo modelo relacional. E também estou de acordo ao pensar que toda psicanálise baseada num paradigma científico perde precisamente o que é o potencial crítico da própria psicanálise. No entanto, devemos tomar em consideração o fato de que há uma versão da psicanálise, aliás atualmente bastante prevalecente, que rejeita o estado natural dos impulsos e do self, ao mesmo tempo que rejeita o estatuto de cientificidade para a teoria psicanalítica.

Se há agressividade no infante humano, ela está no infante só enquanto ele entra no mundo e se torna um self no contexto de relações vivificantes. Creio ser esse o pressuposto tanto da teoria sobre as relações objetivas, quanto da psicanálise relacional ou intersubjetiva. Muitas feministas, de algum modo, têm desenvolvido a sua teoria usando tal modelo, entre elas Jessica Benjamin, Murriel Dimen, Nancy Chodorow, Ken Corbett, Adrienne Harris, além dos que se vinculam a Winicott, como Christopher Bollas, Jacqueline Rose e outros. Até os seguidores de Jean Laplanche estariam de acordo com ambas as perspectivas, contestando tanto o estatuto natural no que diz respeito ao self e às pulsões, quanto a base científica da psicanálise. O próprio Lacan deixou claro que todo desejo humano é, por definição, não-natural, sendo algo que só nasce no contexto lingüístico e, mais especificamente, no cenário da "interpelação". Certamente não há uma noção natural do self, considerando, como você sabe, que o moi de Lacan emerge do registro do imaginário especular, e sempre afastado da necessidade. Algumas reelaborações feministas dessa posição podem ser encontradas no pensamento de Luce Irigaray, Rosi Braidotti, Mary Kelly, Bracha Ettinger. Pareceria, portanto, que todas essas posições recusam seja o self "natural" – e, por isso, uma agressividade "natural" –, seja a base científica da própria psicanálise.

Claro que, tomadas clinicamente, as "verdades" da psicanálise emergem exclusivamente no contexto do transfert. Penso que ambos, Christopher Bollas e Jessica Benjamin, embora de modos diferentes, tenham defendido que a relacionalidade é o contexto próprio em que o conhecimento psicanalítico é produzido.

Mas tudo isso nos deixa ainda a questão crucial do estatuto da violência, da agressividade e da destrutividade. Fico tentada a recorrer a Melanie Klein para responder a essa pergunta, contudo me permita inspirar-me de modo mais geral no paradigma que você sugere.

Se existe agressividade "na" criança – caso quisermos falar nesses termos – isso se deve unicamente ao fato de que sua vida afetiva é vivificada no contexto em que alguém passou a cuidar dela de determinados modos específicos. É só enquanto se encontra solicitada no plano dos seus desejos fundamentais que a criança emerge afetivamente, a saber, como um ser capaz de responder e de sentir. De fato, a criança torna-se um adulto que pode ser responsável precisamente segundo o conceito de correspondência ética proposto por você. Mas, para que isso efetivamente aconteça, a criança deve ser correspondida, deve fazer mimeticamente uso dos modos de ser amada, deve ser alimentada por uma relação – mesmo que seja só pelo fragmento imaginário de uma relação, mesmo que fosse apenas por uma lembrança, desproporcionalmente aumentada, da experiência de ser correspondida. Tal reciprocidade, por você apresentada como condição necessária, ou até como a substância, de uma relação ética adulta, começa como uma assimetria entre criança e adulto (quer seja um progenitor, quer seja alguém a se ocupar com a criança em primeira pessoa). Assim, uma parte da tarefa ética da psicanálise consiste em tornar os adultos conscientes do fato de não serem mais crianças, do fato de que as assimetrias, exigidas pelo infante e pela criança, não são modelos aplicáveis às relações adultas inscritas na ordem ética. Não se trata, porém, de uma tarefa simples, visto que a infância não se supera com a idade, mas persiste psicologicamente em modos que freqüentemente nos confundem também e precisamente como adultos. Sobre esse aspecto, há um acordo quase geral.

Talvez o ponto mais importante tenha a ver com o modo como pensamos a violência, a destrutividade e a agressividade. Certamente estaremos de acordo afirmando que nem a propensão para destruir nem a responsabilidade ética para com o outro são parte integral de uma natureza humana, singularmente encontrável em cada indivíduo. Ambas as disposições apenas são possíveis se houver uma relação, e no contexto de uma relação. Se há espaço pronominal para o "eu", isso acontece sob a condição de que, ao mesmo tempo, esse eu tenha sido correspondido, cuidado, e criado por um outro, e que o outro se torne assim a própria condição desse "eu". Tal condição do ato de assumir o cuidado da criança produz, no entanto, um paradoxo, pois, precisamente devido a essa dependência, o próprio ato de depender pode ser interpretado como uma impotência primária em face (em mão) do outro; ou melhor, pode ser interpretado como situação em que o "eu" perde os seus confins, esmigalhados por uma autoridade que o próprio eu não pode, por si mesmo, nem compreender plenamente nem explicar para si. A pergunta "quem sou eu?", que leva o paciente ao tratamento psicanalítico, só é possível tendo por base um conjunto de relações precedentes e persistentes. A pergunta "quem é você?" está, portanto, dirigida a um outro, concreto e distinto, mas está igualmente, e de maneira opressiva, voltada para si mesmo. Antes de poder chegar a uma situação ética na qual poderemos ser capazes de dirigir a um outro, irredutivelmente diferente e singular, a pergunta "quem é você?", devemos efetuar uma diferenciação. Tal diferenciação, sem dúvida, não é só uma necessidade de desenvolvimento para a sobrevivência psicológica do "eu", mas também, conforme você muito bem observa, um pressuposto ético.

Por outro lado, os momentos em que a distinção entre o "eu" e o "tu" entra em colapso são invariavelmente aqueles em que o eu tem medo de si mesmo, de sua distinção e sobrevivência como "eu" definido por confins. Tal ansiedade é co-extensiva à vida, enquanto cada "eu" é produzido e sustentado unicamente por uma rede de relações que ameaçam, ao mesmo tempo, desfazê-lo. A resposta a tal colapso da distinção entre o "eu" e o "tu" também pode assumir, conforme nos ensina Hegel, a forma da destruição e da agressão: eu te nego, assim sei que existo. Pode-se, contudo, dar conta de tal ansiedade, trabalhando com ela, cultivando-a e refletindo sobre ela. É precisamente esta, na minha opinião, a tarefa ética da psicanálise. Para nos tornarmos uma pessoa capaz de responder à vulnerabilidade e unicidade do outro, devemos primeiro dar conta das ansiedades e dos medos que me levam a pressupor que o outro seja eu mesmo um outro que quero expelir ou incorporar, rejeitando toda separação ou então invocando-a incondicionalmente. Tal luta uma luta psicanalítica – é, me parece, a condição necessária para alcançar a sua própria noção de relacionalidade ética.

Cavarero: Você me deu uma aula de psicanálise, e a mereci. Contudo, correndo o risco de ser chata, quero insistir na minha objeção, procurando deixá-la mais clara.

Entre todas as posições citadas por você – grande parte delas por mim conhecidas –, a sua, a saber, aquela elaborada a partir de Scambi di genere [Trocas de gênero ], me parece certamente a mais radical. Ao pôr em discussão o paradigma heterossexual, você atacou um dos elementos basilares, senão o fundamento mesmo, da psicanálise. Pergunto, pois, exatamente por confiar na sua radicalidade, se não será possível ler de maneira igualmente crítica a narrativa psicanalítica de um self cujo processo de formação, articulando-se através de estágios mais ou menos necessários de diferenciação, prevê o papel fundante (e, na minha opinião, mitologizado) da infância. É aqui, portanto, que vejo um risco de "naturalismo". Obviamente, o discurso muda quando a psicanálise, renunciando às suas pretensões clínicas, é tomada como uma das teorias mais interessantes do século XX, ou seja, como o campo teórico que nos permite, entre outras coisas, não só desconstruir o sujeito clássico, mas também repensar a categoria de relação. Nesse sentido, estou mais que disposta a seguir você, por exemplo, na valorização das relações de dependência identificadas por Melanie Klein. Mas precisando algumas coisas. No discurso que insiste na necessidade de que o adulto supere a assimetria própria das relações da infância, vejo o risco de reforçar uma espécie de ideal de "autonomia" do self que representaria uma evolução necessária – um ganho – com respeito ao horizonte da dependência. Com isso não quero afirmar, obviamente, que o adulto deva continuar eternamente criança. Quero sustentar, isso sim, que a categoria de dependência é central para uma ética da relação, ou seja, quero defender que o self, exposto e vulnerável, de cuja condição humana estamos falando, é constituído por uma dependência em relação ao outro, que age não só na infância, mas sempre e cada vez de novo. A infância – sobre a qual, nos meus escritos, várias vezes refleti com referência à cena materna – é assim, na minha perspectiva, simplesmente uma "figura" hermenêutica, um "lugar" para a fadiga do conceito e o trabalho da imaginação, e não um estágio fundante para a formação do self.

Discutindo sobre o humano e in-humano nos termos de uma vulnerabilidade essencial, estamos realmente procurando traçar uma ontologia e uma ética que não pode menosprezar – ou "superar" – a relação constitutiva de dependência. O ponto fundamental, portanto, na minha opinião, não consiste em salvar o self, tornando-o por assim dizer autônomo e independente, com respeito às relações que o põem no mundo, mas sim em desconstruir e desmitificar, mesmo no interior da disciplina psicanalítica, toda narrativa que celebre a necessária diferenciação do self. Dizendo-o de maneira diferente, o desacordo entre a sua e a minha posição parece ter a ver com o modo de interpretar os graus mais ou menos intensivos da relação. Você procura chamar minha atenção para o problema de um "eu" que teme pela sua dissolução, incorporação no "tu" e luta contra aquilo que ameaça "desfazer" os seus "confins". E, ao encontrar precisamente aqui um papel ético para a psicanálise, você sustenta que, para se "tornar uma pessoa capaz de responder à vulnerabililidade e unicidade do outro", seja necessário elaborar as ansiedades de indistinção e incorporação. De minha parte, procuro chamar a sua atenção na direção oposta. Não considero, realmente, que a relação de dependência desemboque necessariamente em uma ansiedade de indistinção que é co-extensiva à vida. Vejo, sim, o perigo de que o sonho, velho e moderno, da autonomia do self acabe trocando a relação por indistinção e a dependência por incorporação. Por outras palavras, as patologias egocêntricas do sujeito moderno ou, se quiser, da ontologia individualista, preocupam-me muito mais do que suas ansiedades – por mais que sejam coerentes – na relação com o outro enquanto lugar de contaminação, de ruína, dissolução. Pois, do ponto de vista da história da filosofia ocidental, se pensarmos bem, há realmente certa lógica na loucura desse sujeito que, após séculos celebrando a sua autonomia e autopoiesis, basta descobrir a dependência, que acaba tomado pelo temor de desaparecer no outro.

De resto, para além dos tons drásticos que a versão polêmica do meu discurso assume, estou certa de uma coisa: que nem a mim nem a você interessa uma reflexão sobre a "natureza humana" que seja um mero exercício intelectual – disposto a usar o léxico filosófico mais do que o psicanalítico – e não uma oportunidade para repensar a ética e, sobretudo, a política. Para isso, interessa-nos analisar a violência, ou melhor, interessa-nos pôr à prova a produtividade política da condição humana de vulnerabilidade num contexto de uma época de guerra e destruição, quando, mesmo morrendo em massa, se morre sempre um de cada vez, um a um. Não está já aqui o outro, de quem dependo ou que depende de mim – assimetricamente conforme acontece entre uma pluralidade de seres únicos, obviamente ignorantes dos teoremas abstratos sobre a igualdade?

Butler: Certamente, o Outro de quem dependo e que depende de mim já está aqui, como você afirma. E também estou de acordo sobre o fato de que não podemos relegar tal "dependência" a uma infância que posteriormente é "superada" na vida adulta. A dependência é co-extensiva à vida e, sem ela, a vida não se sustenta. Além disso, sei bem que algumas teorias sobre o desenvolvimento do eu defendem dever existir uma "diferenciação" que "supere" a dependência enquanto estado infantil ou regressivo. Isso é obviamente inaceitável. Se aceitarmos a dependência como co-extensiva à vida, haverá, porém, modalidades, tanto psicanalíticas quanto políticas, de a tematizarmos, o que, em nosso diálogo, ainda não fizemos. Na minha perspectiva, a infância não é o que a idade adulta deixa para trás, mas é o que volta em formas psíquicas de que a vida adulta deve dar conta. Concordo, como você diz, em que a dependência, a vulnerabilidade e a exposição sejam as pré-condições ontológicas da vida humana, e aceito também que a vida humana tem uma história e que, embora se possa falar da história da humanidade como tal, se deva, contudo, falar da história deste ou daquele ser humano, um a um. Se o recurso à ontologia nos desvia da singularidade das nossas histórias, poderá acontecer, realmente, que um movimento rápido e imediato demais para afirmar uma situação geral tornará impossível precisamente o reconhecimento de cada um na sua singularidade. O próprio significado de "singularidade" deverá incluir, como sua parte essencial, tal história singular, diferente daquela de qualquer outro. Estou inclusive disposta a afirmar que não será possível nenhum reconhecimento de uma história singular se não houver alguma vinculação que os ligue entre si, algum caminho comum no qual o reconhecimento pode circular.

Parece-me, por outro lado, que, se quisermos definir a violência produzida no mundo, por exemplo, pelos Estados Unidos, nos últimos quatro anos, deveremos buscar compreender a conexão entre as concepções da soberania e as figuras do self, entre as noções de nacionalismo e os modelos de masculinidade. Os Estados Unidos procuraram ignorar a própria exposição e vulnerabilidade logo depois do 11 de Setembro, restaurar a própria masculinidade e a própria idéia expansiva de soberania. Não tenho certeza de que se possam compreender as atuais guerras norte-americanas como simples ato de vingança. Todos sabem, realmente, que, embora não fosse possível evidenciar algum nexo causal entre o 11 de Setembro e o regime de Saddam Hussein, a maioria do povo norte-americano contudo estava convencida da necessidade da guerra (mesmo se hoje, me parece, já não seja mais assim). O que leva à violência é a necessidade de purgar a coletividade nacional das suas necessidades, de desembaraçar-se da sua própria exposição e de negar a sua dependência (daí nasce o "heroísmo" de se ir sozinhos para o Iraque, ludibriando as Nações Unidas). Se admitirmos que sermos humanos equivale a estar expostos, a sermos dependentes, vulneráveis e, mesmo assim, necessitados de proteção e de um reconhecimento público consentindo que o valor dessa singularidade exposta venha a ser reconhecido, então devemos ser capazes de dar conta dos comportamentos "humanos" que procuram negar e destruir precisamente essa condição humana. A ontologia proposta por você oferece-nos um modelo do humano ao qual aspirar, uma idéia do humano a afirmar, e nos fornece também uma base normativa para julgar como "inumana" toda ação que procura destruir tais condições ontológicas.

Mas tal ontologia não nos pode dizer por que motivo as nações vão à guerra – e o fazem! –, por que motivo procuram eliminar em si mesmas e nos outros a humanidade, por que motivo elas buscam direcionar para outro lugar a exposição e a necessidade, e exibir um self que é definido, pelos seus confins, como soberano, arrogante, presunçoso, racista e destrutivo. Gostaria de sugerir, modestamente, que deveríamos ter em conta o fato de que o humano pode revoltar-se contra a humanidade, própria e de outrem, e que, não só, efetivamente o faz, mas às vezes o faz pois considera insuportável a sua própria condição humana. Aliás, se quisermos usar o termo "patologia" para falar desse paradoxo, estou de acordo; contudo, temo que tal "patologia" tenha sido instaurada como "norma".

Por conseguinte, penso que devemos estar atentos aos deslocamentos históricos das configurações do humano, a fim de desenvolvermos uma visão crítica sobre os motivos que levam às vezes os seres humanos a destruir as próprias condições da humanidade, e a fim de encontrarmos instrumentos críticos que enfrentem tal destruição já tornada, me parece, co-extensiva ao plano ordinário da vida.

Recebido em março de 2007 e aceito para publicação em agosto de 2007

Tradução de Selvino J. Assmann

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    Publicado em CAVARERO, Adriana; BUTLER, Judith. "Condizione umana contro 'natura'".
    Micromega. Almanacco di Filosofia, Roma: Gruppo Editoriale L'Espresso, n. 4, p. 135-146, 2005. Tradução portuguesa de Selvino Assmann. Traduzido e publicado com permissão da Micromega e das autoras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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