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Geografia e saúde: o lugar como premissa da atividade informacional da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde

Resumo

O presente artigo visa chamar a atenção para a necessidade de se considerar o lugar como uma variável importante da atividade de informação em saúde na Atenção Básica do Brasil. Enquanto processo normatizado e fundamentado no centralismo do Estado e numa metodologia restrita de se enxergar a saúde, a atividade informacional, como é concebida hoje, acaba por minar novas possibilidades de compreender os lugares do país de uma maneira emancipatória, autônoma e que dê voz às forças ascendentes que habitam o cotidiano. Nesse sentido, alertamos para a necessidade de se compreender a saúde na sua relação com os lugares e da influência destes em todos os processos da vida social. Uma nova atividade informacional deve, entretanto, ser capaz de capturar as realidades locais e suas geografias, sendo assim mais susceptível de sucesso, no que diz respeito a garantir a saúde e a vida de todos.

Palavras-chave:
Geografia e Saúde; Informação em Saúde; Informação Ascendente; Lugar e Autonomia

Abstract

The aim of this article is to warn the necessity of considering the place as an important variable of the information activity in the Brazilian Primary Care. Informational activity, as a standardized process, based on the State centralism and on a constrained view on health, undermines new opportunities to understand the places of the country in an emancipatory, autonomous way, in which voice is given to the upward forces that inhabit everyday life. Thus, we need to understand health's relationship with places, as well as their influence on all the processes of social life. A new informational activity must be able to capture local realities and their geographies, being, therefore, more likely to ensure health and life for everyone.

Keywords:
Geography and Health; Health Information; Upward Information; Place and Autonomy

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir acerca do processo de produção, sistematização, gestão, disponibilidade e acesso à informação em saúde, o que aqui denominamos "atividades informacionais". Encaramos a discussão a partir de um ponto de vista geográfico e levando em consideração a ideologização que está envolta nessas atividades. Os subsídios da pesquisa que fundamentam a discussão foram realizados no período de dois anos (2012-2013). Investigamos aspectos que consideramos como arcabouços ideológicos da atividade de informação em saúde no Brasil, com foco na Atenção Básica, cujos usos do Sistema de Informação (SIAB) e o recente e-SUS indicam fortes continuidades do modelo hegemônico de se pensar a saúde. Iniciamos a pesquisa tendo como balizamento os seguintes pontos:

  • A estratégia técnica e metodológica da informação em saúde no Brasil tem como núcleo um conjunto de determinações valorativas que limita o entendimento amplo de saúde: o paradigma clínico (biomédico ou flexneriano) (Foucault, 1998FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.; Freidson, 2009FREIDSON, E. Profissão médica: um estudo de sociologia do conhecimento aplicado. São Paulo: UNESP, 2009.; Illich, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.);

  • A restrição da elaboração intelectual e metodológica da atividade informacional aos meios institucionais do Estado, com especial autoridade da instância federal, por meio do DATASUS e do DAB, a qual alcança os lugares através de aconteceres hierárquicos1 1 "O acontecer hierárquico é um dos resultados da tendência à racionalização das atividades e faz-se sob um comando, uma organização, que tendem a ser concentrados e obriga-nos a pensar na produção de um sentido, impresso à vida dos homens e à vida do espaço. [...] Nesse caso temos a primazia das normas, não mais com a relevância da técnica, mas da política" (Santos, 2012, p. 140-141). rigidamente normatizados. Daí a menção a termos como modelo monarquista (Branco, 2006BRANCO, M. A. F. Informação e saúde: uma ciência e suas políticas em uma nova era. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.), panóptico (Balbim, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 2003. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.) ou círculo descendente de informação (Silva, 2010SILVA, A. M. B. Círculos de informações e novas dinâmicas do território brasileiro. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS, 16., 2010, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: AGB, 2010. Disponível em: <http://www.agb.org.br/evento/download.php?idTrabalho=4433>. Acesso em: 14 jul. 2016.
    http://www.agb.org.br/evento/download.ph...
    ) para designar tal atividade;

  • Informações externas ao modelo biomédico de pensamento aparecem de forma apenas residual, e, ainda assim, dentro de um sistema de softwares que tem como premissa o cadastro de pacientes, primeiro em fichas de papel, e depois de forma eletrônica, esta última sendo uma das bandeiras principais da informática médica;

  • Ainda que seja benéfica, a crescente informatização das escalas mais primárias da rede assistencial em saúde no Brasil pouco altera as relações entre os profissionais da saúde e os lugares onde trabalham. Esse processo mantém a Atenção Básica como uma "antessala do hospital" e a descentralização e expansão da atividade informacional como um mecanismo apenas operacional e

  • Tais características padronizam a atividade de informação em saúde no país, deixando em segundo plano as complexas singularidades de cada lugar, e, portanto, as complexas demandas por saúde.

De chofre vislumbramos que esse conjunto "operacional" cria um vácuo dentro do processo de fortalecimento da atenção primária em saúde, que foi pensada e desenhada tendo como marco a Conferência de Alma-Ata:

[A atenção Básica em Saúde é a] Atenção essencial à saúde baseada em tecnologia e métodos práticos, cientificamente comprovados e socialmente aceitáveis, tornados universalmente acessíveis a indivíduos e famílias na comunidade por meios aceitáveis para eles e a um custo que tanto a comunidade como o país possa arcar em cada estágio de seu desenvolvimento, um espírito de autoconfiança e autodeterminação. É parte integral do sistema de saúde do país, do qual é função central, sendo o enfoque principal do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. É o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, levando a atenção à saúde o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo o primeiro elemento de um processo de atenção continuada à saúde (OMS, 1978OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; UNICEF - FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Declaração de Alma-Ata. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, 1978, Alma-Ata (USSR). Disponível em: <http://www.opas.org.br/declaracao-de-alma-ata/>. Acesso em: 6 ago. 2016.
http://www.opas.org.br/declaracao-de-alm...
).

Destarte consideramos que a realização de uma revisão profunda no modelo atual das atividades de informação existente na atenção primária se faz necessária. A forma hierarquicamente organizada dessa atividade expropria das populações a possibilidade de compreenderem a saúde vinculada a um processo de autonomia (Illich, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.) "cuja efetivação depende das oportunidades oferecidas pelos lugares" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 337, grifo nosso). Esse processo de autonomia seria um fator de constrangimento, quiçá de impossibilidade de uma determinação padrão e rígida para o que é normal e o que é patológico (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.). Em nosso entendimento, essa revisão no modelo instituído pelo Ministério da Saúde em sua atividade informacional voltada à atenção primária passaria por duas questões básicas:

  • Reforçar uma contraproposta teórica sobre saúde que seja alternativa à atualmente hegemônica, que levaria em consideração a ideia ampla de saúde e, mais nuclearmente, a de autonomia dos indivíduos e dos lugares e

  • Encontrar princípios teóricos para os conceitos de informação engendrados na ideia de que "é o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realização mais eficaz" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 338) e que é a ordem local que "funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade" (Santos, 2008, p. 339).

Consideramos que o projeto político de se viabilizar um círculo ascendente de informação da saúde pública passe pelo desafio de encarar o futuro a partir de uma crítica profunda que viabilize uma alternativa ao poder hierárquico e centralizador do Estado. Tal preocupação se insere na geografia pela premissa de que os lugares, enquanto espaço onde o uso do território é efetivado, devem ser definidos a partir de dentro, a partir das solidariedades domésticas e contíguas, ou seja, de solidariedades orgânicas (Cataia, 2010CATAIA, M. Uso do território e federação: novos agentes e novos lugares: diálogos possíveis e participação política. Revista Scripta Nova, Barcelona, v. 14, n. 331 (16), 2010.). A tentativa de se enfrentar desafios políticos e ideológicos do futuro perpassa pela necessidade de se fazer o balanço do passado e do presente (Mészáros, 2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.). Isso porque, devemos aprender com o passado e evitar as estratégias infrutíferas pretéritas. Além disso, do ponto de vista defendido aqui, a cada movimento social uma nova ordem geográfica se estabelece, "seja pela criação de novas formas para atender a novas funções, seja pela alteração funcional das formas já existentes" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 60). Ou seja, não nos é possível abstrair das materialidades, da configuração territorial, das alavancas do presente, que podem e devem ser usadas "como elos de mediação com a ordem alternativa esperada, qualitativamente diferente" (Mészáros, 2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 35).

Tais elos de mediação nos servem para acreditar que não devemos esperar por uma inversão radical dos valores e das condições materiais da ideologia clínica no território brasileiro, mas sim assumir que o Sistema Único de Saúde (SUS) guarda em si possibilidades reais de criação de mecanismos que provoquem "mudanças fundamentais exigidas para transformar potencial em realidade mediante o trabalho duro de uma reestruturação radical da ordem existente" (Mészáros, 2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 35). E então

Não importando o quanto sejam pequenos os aperfeiçoamentos projetados para o futuro, se for esperado que sejam sustentáveis, [...] eles só se tornam viáveis se estiverem inseridos num quadro mais amplo de mudança estratégia significativa [...] e que não seja anulada, como geralmente acontece. (Mészáros, 2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 36).

Acreditamos que a estrutura existente da saúde pública oferece possibilidades que se tornem verdadeiros elos de mediação entre uma concepção de saúde restrita para outra que centralize os lugares como epicentro de toda a atividade de saúde pública no país. E se a informação antecipa a ação política, essa variável se torna, portanto, chave no processo de transformação da realidade por nós vislumbrada.

A informação da Atenção Básica é uma informação descendente

A estratégia e-SUS, institucionalizada em 2013 pelo Ministério da Saúde como alternativa ao SIAB, é um processo derivado do Plano Nacional de Informação e Informática em Saúde, que se origina de uma intencionalidade clínica, e, pela informática médica, incentiva o desenvolvimento tecnológico nos campos do registro eletrônico individual, do prontuário eletrônico e da telessaúde. Nesse sentido, informação em saúde é confundida com informação médica, e a informática é aplicada de maneira enviesada. Ao implantar tal lógica na atenção primária em saúde, esse nível de atenção acaba assumindo, dentro da macroestrutura do SUS, um papel de local de triagem e encaminhamento para os níveis de atenção secundário e terciário (atendimentos clínicos especializados). Isso porque o território, importante ente de gestão da atenção básica na saúde pública, é entendido de forma reduzida: torna-se uma coleção de corpos, que deve ser monitorada de maneira informatizada cada vez mais ágil, a fim de aperfeiçoar as decisões dos profissionais e gestores da saúde, o que melhoraria o sistema de referência e contrarreferência, que regula o deslocamento dos usuários do SUS dentro das diferentes fases de atenção à saúde. Essa lógica é percebida desde o SIAB e se mantém no e-SUS. Os dados colhidos são predominantemente clínicos, ainda que existam, de forma residual, informações de cunho socioeconômico e demográfico.

Além disso, se o SIAB era uma ferramenta associada à atividade da equipe Saúde da Família e de agentes comunitários de saúde, o e-SUS se expande e atinge outras equipes e profissionais autorizados a atuar na atenção primária pela Portaria nº 2488, de 21 de outubro de 2011: enfermeiros, médicos, cirurgião-dentista, técnico em saúde bucal, auxiliar em saúde bucal, auxiliar de enfermagem, agente comunitário de saúde, todos esses profissionais que compõem as diversas equipes de saúde da família, mas também os profissionais que compõem o Núcleo de Assistência à Saúde da Família (NASF): médico acupunturista, assistente social; profissional/professor de educação física, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, médico ginecologista/obstetra, médico homeopata, nutricionista, médico pediatra, psicólogo, médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, médico geriatra, médico internista (clínica médica), médico do trabalho, médico veterinário, profissional com formação em arte e educação (arte educador) e profissional de saúde sanitarista, ou seja, profissional graduado na área de saúde com pós-graduação em saúde pública ou coletiva ou graduado diretamente em uma dessas áreas.

Nesse sentido, assumindo que a atenção primária em saúde é contemplada com uma ampla variedade de profissionais que estão dentro da lógica da divisão médica do trabalho - a exceção do arte educador, do agente comunitário de saúde e do profissional de saúde sanitarista - é natural que o conjunto de ferramentas informacionais disponibilizadas dentro do SIAB e do e-SUS sejam direcionadas a tais profissões. Tal sistema técnico de informação seria um reflexo das demandas que tais funcionários têm em seu dia a dia. Tanto o SIAB quanto o e-SUS, por meio de seus softwares CDS e PEC, aglomeram em si a função de serem úteis para um grupo profissional já estabelecido dentro do SUS. Não é a toa que o PEC, além de ser um instrumento de coleta de dados, torna-se ferramenta para o agendamento e organização de consultas, por exemplo.

Nessa medida, a transição do SIAB para o e-SUS gera um conjunto de benefícios para esses profissionais, já que a informatização do sistema acelera e racionaliza o tempo de trabalho deles, fazendo que usem melhor a jornada de trabalho para o exercício de suas funções principais.

Outro efeito benéfico do e-SUS é que, em seu cenário de informatização máxima, quando os próprios profissionais transmitem as informações diretamente para o DATASUS, simultaneamente ao momento em que são colhidas, o retorno dos dados à gestão local é mais rápido. Isso pode significar, em tese, que os gestores locais, seja na secretaria municipal, nos distritos sanitários ou nas próprias unidades básicas, possuirão maior agilidade para trabalhar com informações e tomar decisões.

Parece-nos claro, portanto, que a tecnoesfera2 2 Tecnoesfera e Psicoesfera formam os "pilares com os quais o meio técnico-científico introduz a racionalidade no próprio conteúdo do território" (Santos, 2009, p. 51). Importante ainda lembrar que a "psicoesfera é fortemente dominada pelo discurso dos objetos, das relações que o movem e das motivações que os presidem" (Santos, 2009, p. 50), e ela também faz parte do meio geográfico, fornecendo regras objetivas da racionalidade ou do imaginário, mas ela é, por muitas vezes, o produto de uma sociedade mais ampla que o lugar. Kahil (1997) nos mostra que, no mundo moderno, diante da complementaridade, concorrência e antagonismo existente diante da diversidade de signos, significados e sentidos que a Tecnoesfera - mobiliadora do espaço - produz, é inevitável compreender os fenômenos observando a Psicoesfera - complemento da Tecnoesfera, que representa o modo de vida. A Psicoesfera é a materialização dos valores formadores de uma nova identidade social. , base para a atividade da informação na Atenção Básica, está associada a uma psicoesfera específica, cujas características são as seguintes: concepção restrita de saúde e de doença; posição neutra de ciência, na medida que cria uma ideia linear de que mais informática é mais informação, e, portanto, mais saúde; Na medida em que o DATASUS e o Departamento da Atenção Básica mantêm suas posições regulatórias na concepção metodológica e no controle dos dados, cria-se uma separação rígida entre o Estado e os lugares: o sistema técnico de informação da Atenção Básica do SUS é interno à estrutura funcional do setor saúde do Estado brasileiro, sendo portanto obra de seus técnicos. Na outra ponta, os lugares são percebidos como "depósitos de dados", inteligíveis ao sistema informacional implantado pelo SUS.

A primeira característica elencada é uma consequência clara da competição ideológica que existe em torno do conceito de saúde e, portanto, das ações políticas internas ao SUS. Cabe a nós aqui reforçar a observação de que por mais que o e-SUS tenha ampliado seu leque informacional para um conjunto de informações de origem social, demográfica, geográfica ou econômica, não amplia radicalmente as alternativas práticas para a realização de ações de saúde subversivas ao modelo ideologicamente hegemônico existente.

A segunda e terceira características fundamentam a atividade informacional organizada sob a forma de círculos descendentes de informação, que estão relacionados, segundo Fonseca (2011FONSECA, H. R. Produção e difusão de informações na cidade de Campinas-SP: um estudo da região do Jardim Campo Belo. 2011. Monografia (Graduação em Geografia) - Instituto de Geociências da Universidade de Campinas, Campinas, 2011.), ao preenchimento do território com tecnologias da informação que permitam a chegada desses círculos informacionais nos lugares, ou ainda, segundo Alves (2010ALVES, C. N. Os circuitos de informações no território: a produção musical em Recife. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS, 16., 2010, Porto Alegre. Anais..., 2010.), são fundamentados em normas externas aos subespaços. Nesse sentido, a informação se assume como uma atividade puramente técnica, campo de trabalho com desafios, a ser desatado pelos especialistas, que devem "encontrar a codificação mais performante (velocidade e custo) a fim de transmitir uma mensagem telegráfica de um emissor para um destinatário" (Mattelart, 2005MATTELART, A. Sociedade do conhecimento e controle da informação e da comunicação. In: ENCONTRO LATINO DE ECONOMIA POLÍTICA DA INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÃO E CULTURA, 5., 2005, Salvador. Disponível em: <http://www.gepicc.ufba.br/enlepicc/ArmandMattelartPortugues.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2016.
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, p. 6). Nesse caso, os lugares são os emissores, e os destinatários são os gestores públicos. O meio técnico e metodológico pelo qual a informação transita daquele ponto para este (o próprio sistema informacional) é basicamente controlado e construído pelo núcleo profissional especializado que se encontra no âmbito ministerial: DATASUS e DAB.

Esse meio é condição fundamental para a manutenção da estrutura descendente desse círculo de informação, na medida em que a forma com a qual foi construído restringe o uso da informação a um grupo muito seleto de pessoas. Ainda que a Constituição de 1988 e, posteriormente, a Lei nº 12.527, de 2011, prevejam a abertura ao acesso de informações produzidas pelo Estado para o povo brasileiro, esse acesso é somente parcial, já que é dificultado pela linguagem científica altamente especializada das informações e por seu ferramental instrumental (o computador e a internet) ainda pouco difundido no país. Nesse sentido, o Ministério da Saúde produz um estoque de informações que é manipulado por poucos (Santos, 2007SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.), o que acarreta numa ampliação das dificuldades para a formação de uma cidadania integral para todos.

A informação descendente é, portanto, invasora aos lugares. Mesmo que o agente condutor dessa atividade seja o Estado, e mais precisamente um setor dele que está diretamente vinculado a um cuidado de bem-estar social tradicional como a saúde, a informação descendente se torna invasora por privilegiar um endurecimento metodológico e instrumental e desonerar os lugares - em toda a singularidade que esse conceito representa - da integralidade do processo de produção de informação.

Nesse sentido, entendemos que o círculo descendente de informação do SUS se constitui num problema político, na medida em que tal círculo informacional revela uma tentativa do Estado em tratar seus problemas com "determinações legais necessariamente uniformizadoras e niveladoras" (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 470), que seriam "inadequadas à irreprimível variedade desses problemas e ao modo como emergem do solo social, gerados pela atividade-viva diária dos indivíduos motivados pelas suas aspirações pessoais" (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 470).

Mesmo não sendo objeto deste artigo, caberia aqui lembrar que a informação na saúde faz parte das políticas públicas que, como sabemos, têm suas origens nos países anglo-saxões e seriam uma alternativa ao planejamento tradicional. Essas políticas têm uma visão parcial dos problemas, são ações que trazem certa flexibilidade, entretanto deixam a desejar quando o assunto é visão global. De modo geral, traduzem-se em enfoques parciais e limitados, na verdade, constituem-se no antiplanejamento territorial. Mas esse é objeto de outro trabalho que está em fase de conclusão.

Retomando nossa discussão, poderíamos até supor que, diferentemente dos círculos de informação descendente das corporações privadas, que estão sujeitas aos mais explícitos interesses expropriatórios, a atividade informacional do SUS teria "boas intenções". Mas essa estrutura descendente parece restringir o seu uso, por meio de um arcabouço técnico e também intelectual, que fortalece a ação política apenas àqueles que têm um "aparato intelectual superior", que invocaria um "Princípio da consciência que vem 'de fora', [...] [como se] quando os intelectuais forem capazes de encontrar sua 'terra natal espiritual' então por meio deles as massas a encontrarão também" (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 480).

Ao observamos todas as etapas de trabalho das equipes de saúde da rede de Atenção Básica, mais precisamente no que toca a atividade informacional (Curioso, 2011CURIOSO, R. O lugar em uma ficha: estudos geográficos do sistema de informação da atenção básica em Natal. 2011. Monografia (Graduação em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011.), ficou claro que, ao longo das diferentes etapas, existe um momento regido por aconteceres homólogos e complementares, sofrendo forte influência do cotidiano, e outro momento regido por aconteceres hierárquicos, cuja imposição das normas do DATASUS é a maior influência. Esses aconteceres vão se metamorfoseando na medida em que o trânsito de informações ocorre: iniciando pela concepção intelectual dos sistemas de informações no âmbito restrito dos técnicos e analistas especializados, desde o levantamento de informações, feito pelo agente comunitário de saúde em cada domicílio, passando pela consolidação de informações individualizadas, feitas pelos mais variados profissionais da Atenção Básica, e partindo, por fim, para a transmissão dos dados para o Ministério da Saúde. Essas características são visíveis tanto na fase do SIAB quanto na atual instituição do e-SUS.

O raciocínio desenvolvido aqui começa por admitir que o território, a região e o lugar são totalidades materiais e humanas como também históricas. Entidades materiais-humanas e história são realidades que permanentemente se transformam; são totalidades em constante processo de totalização. A totalização é o movimento pelo qual se constitui uma totalidade enquanto unidade sintética do diverso. A energia desse movimento é a sociedade em sua complexidade. Analisar o lugar a partir dessa complexidade é, de certa maneira, contrapor-se à visão setorial que ainda é uma característica marcante das políticas públicas.

O lugar tomado de maneira atomizada e considerado fora da totalidade é uma abstração. Objetos (equipamentos, postos de saúde, hospitais) e lugares somente fazem sentido se compreendidos numa rede de pertencimentos mútuos. É nessa rede que os lugares encontram sua razão de ser. Essa razão tem seu sentido no movimento geral da sociedade e encerra combinações particulares, acarretando diferenciações territoriais e conferindo especificidade e particularidade aos lugares por meio do acontecer solidário. É na escala do lugar e do cotidiano que verificamos a existência simultânea do tempo do mundo, da nação e do lugar. Falemos, pois, de solidariedades, não aquela de cunho moral, mas sim a que diz respeito à "realização compulsória de tarefas comuns, mesmo que o projeto não seja comum" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 166). Nesse sentido, há uma miríade de formas na qual essas solidariedades se dão, a qual chamamos de aconteceres (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.). Estes estão na dimensão dos eventos e, por conseguinte, dos sistemas de ação. O acontecer solidário se dá sob três formas: acontecer homólogo, acontecer complementar e acontecer hierárquico. São essas formas básicas da ação que correlacionam os lugares a outros, que dão à totalidade seu aspecto dinâmico, e para os lugares a dimensão de realização do próprio mundo.

O acontecer hierárquico "é resultante das ordens e da informação provenientes de um lugar e realizando-se em um outro, como trabalho" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 166). Esse acontecer, como já assinalamos, tende para a centralização, é resultado da racionalização como único elemento a ser considerado, o que elimina qualquer tentativa de se introduzir na reflexão a incerteza, a singularidade, circunstâncias e contingências, eliminando assim a possibilidade de uma análise situacional (Silveira, 1999SILVEIRA, M. L. Uma situação geográfica: do método à metodologia. Revista Território, Rio de Janeiro, ano IV, n. 6, p. 21-28, 1999.; Matus, 2005MATUS, C. Teoria do jogo social. São Paulo: FUNDAP, 2005.). No âmbito do acontecer hierárquico, das ordens e da informação privilegiada, eliminam-se as horizontalidades, vive-se no reino e na primazia das normas e da política, no reino das relações verticais.

O acontecer hierárquico responde às dimensões estruturais que compõem o território, que por sua vez são conduzidas pelo Estado, pelos órgãos internacionais e pelo mercado global. O pensamento pragmático e tecnocrático, produzidos longinquamente aos lugares, demandam organizações sociotécnicas por meio das quais as orientações e os comandos produzidos em escala mundial alcançam os lugares. O papel das densidades técnica e informacional, os quais definiremos mais adiante em nosso texto, é imprescindível para compreender em que medida um lugar está atrelado a essa estrutura supracitada. Nesse sentido, admitimos que a ação instrumental, principal sentido da ação que alimenta o paradigma administrativo (Ribeiro, 2013RIBEIRO, A. C. T. Relações Sociedade-Estado: elementos do paradigma administrativo. In: ______. Por uma sociologia do presente: ação, técnica e espaço. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. p. 95-116. (Volume 3).), demanda dos lugares uma densidade de objetos técnicos e informacionais, principal condição material que transforma o acontecer hierárquico.

Os aconteceres homólogo e complementar estão na dimensão da conjuntura. O primeiro diz respeito às contiguidades funcionais, é a resultante criada pela modernização mediante a informação especializada, mas que "é marcado por um cotidiano compartido mediante regras que são localmente formuladas ou reformuladas" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 167), aqui a informação tende a se horizontalizar. O acontecer complementar se refere ao intercâmbio de lugares próximos, por exemplo, entre cidades de uma região metropolitana. Tanto um como outro indicam os sentidos da ação orientados em escala regional ou local, e embora haja a constituição da ação instrumental como plano de orientação para a formulação das políticas públicas e da ação das empresas, estas se inserem numa situação geográfica em que disputam sentido junto com as ações vindas "de baixo", com forte papel do cotidiano e do mundo do indivíduo em sua escala corpórea, criando novas formas de ação e de uso do território mediante as suas necessidades conjunturais. A densidade comunicacional é condição de existência dos aconteceres homólogo e complementar, pois indica a produção da vida social alheia à racionalidade técnica dos tempos atuais.

A não observância de todo esse processo traz, como consequência, o fato de que os detalhes do cotidiano e do lugar, que são quase inteiramente apreendidos pelo agente comunitário de saúde, não são propriamente apreendidos pela atividade informacional vigente, e aos poucos vão se perdendo. Os ricos detalhes do espaço vão dando lugar à generalização estatística e à restrição à ciência biomédica. Perde-se detalhe, mas em compensação se ganha abrangência, alcance. Esse modelo de fluxo de informação, que se assemelha à arquitetura panóptica discutida por Balbim (2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 2003. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.), tem como destinatário final o Ministério da Saúde, que, embora não tenha em seu poder a capacidade de captar o cotidiano e a primazia das formas do lugar, garante a posse de dados estatísticos de todos os usuários da rede básica do SUS, em todo território nacional.

O lugar é visto por Santos (2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.) como o espaço do acontecer solidário ou ainda a dimensão espacial do cotidiano. Essa dimensão do cotidiano seria basicamente dada pela própria existência de um acontecer homólogo, que funciona segundo a lógica interna de um lugar, e um complementar, que se sustenta na relação de mutualismo e reciprocidade entre lugares diferentes, mas contíguos. Em comum, está o fato de que ambos se relacionam num território que, segundo Santos (2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 167) "é marcado por um cotidiano compartido mediante regras que são localmente formuladas ou reformuladas. Neste caso, as informações utilizadas tendem a se generalizar horizontalmente".

Não queremos aqui anular os benefícios que a atividade informacional da Atenção Básica trouxe, na medida em que se tornou mais descentralizada e modernizada através da transição do SIAB para o e-SUS. O aperfeiçoamento da atividade informacional nos moldes elencados ao longo deste artigo é benéfico na medida em que promete melhorar o cotidiano de trabalho dos profissionais já existentes, bem como organizar o sistema de referência e contrarreferência, trazendo potencialmente uma grande economia para o orçamento de saúde pública. Além disso, existe certa maleabilidade na estratégia e-SUS, no que diz respeito aos softwares utilizados, pois permite que municípios criem suas próprias soluções informacionais, de forma que as metodologias e a atividade informacional da Atenção Básica sejam feitas de forma mais descentralizada e com uma pequena margem de manobra criativa para que os técnicos e gestores locais consigam, em alguma medida, representar as singularidades de onde vivem dentro desse cotidiano informacional. Devemos frisar que essas características positivas das políticas de informatização e informação da Atenção Básica do SUS têm como substrato a própria importância que a Estratégia Saúde da Família ganhou dentro do SUS, justamente por abarcar de forma explícita a preocupação com a construção de uma política de saúde que, se não necessariamente parte dos próprios lugares (bottom-up), considera-os como particularidades que devem ser observadas. A política de territorialização da Atenção Básica do SUS mantém-se como condição sine qua non para que a proposta deste artigo, de construção de políticas de informação e comunicação mais diversas, ocorra de forma plena.

Mas tais softwares não podem fugir às determinações instrumentais definidas para o e-SUS, definidas pelo DATASUS e o DAB em escala nacional. A estatística e a quantificação ainda seriam os únicos parâmetros possíveis e dentro delas que tal manobra criativa poderia ocorrer. Cremos que a descentralização meramente operacional da atividade informacional mantém a lógica preexistente do SIAB, de ser "cartilha impositiva do Ministério da Saúde aos gestores municipais [que] se caracteriza como um instrumento regulatório que propicia um planejamento ascendente às avessas" (Aranha, 2010ARANHA, P. R. M. Do mundo como norma ao lugar como forma: o uso do território pela estratégia da saúde da família. 2010. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2010., p. 96). Não é à toa que Dantas e Aranha (2009DANTAS, A; ARANHA, P. R. Saúde na perspectiva da geografia nova. Revista Mercator, Fortaleza, v. 8, n. 16, p. 125-132, 2009.) compreendem que a descentralização, vista como sinônimo de municipalização, é um equívoco3 3 Lembramos que essa discussão passa necessariamente pelas questões da regionalização, da federação, das fronteiras e do entendimento do que é realmente um município no Brasil. .

Daí a necessidade de se repensar a atividade informacional da Atenção Básica, adotando premissas que escapam à força regulatória da racionalidade hegemônica sobre saúde, tanto do ponto de vista epistemológico (centrado na clínica) quanto administrativo (centrado na formulação de políticas centralizadas). Precisamos de um novo entendimento sobre saúde, informação e lugar, encontrando elementos teóricos, políticos e técnicos que associem esses três conceitos. Daqui em diante, delinearemos os elementos teóricos que resgatem um entendimento sobre saúde, lugar e informação, e que tem a pretensão de engendrar uma proposta ascendente do círculo de informação da Atenção Básica. É apenas com base nesse preceito que vislumbraremos a saúde em seu conceito amplo, provido de sua associação com a ideia de autonomia, e que o lugar em toda a sua riqueza poderá ser, por fim, o locus difusor de novas racionalidades emancipatórias.

Saúde, autonomia e autodeterminação dos lugares

A doença consiste em "uma redução da margem de tolerância às infidelidades do meio" (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 78). E, ainda segundo esse autor, o homem só se sente em boa saúde quando está mais que o normal, isto é, "não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas, também, normativo, capaz de seguir novas normas de vida" (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 79). A proposta desse autor abre margem para uma discussão profunda sobre a saúde e suas implicações para a ação política.

A origem da sua preocupação em conceituar a saúde tem raiz na sua insatisfação com a concepção clínica, cujos modelos do que é fisiológico e do que é patológico se tornam universais, padronizando toda manifestação de mudanças no corpo dentro do esquema teórico pressuposto por esse ramo do conhecimento. Esses esquemas teóricos padronizados não são o suficiente, visto que a linha entre o estado de saúde e de doença do corpo é muito variada e o indivíduo que sofre é o único capaz de definir seus próprios limites e possibilidades (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.).

A relação entre saúde e doença não se limita, e nem deve ter como ponto de partida, a vida biológica, mas sim a vida social:

Em última análise, podemos viver, a rigor, com muitas malformações ou afecções, mas nada podemos fazer de nossa vida, assim limitada, ou melhor, podemos sempre fazer alguma coisa, e é nesse sentido que qualquer estado do organismo, se for uma adaptação a circunstâncias impostas, acaba sendo, no fundo, normal, enquanto for compatível com a vida. (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 79).

É para além do corpo que devemos olhar, considerando que o homem o avalia "apenas como um meio de todos os meios de ação possíveis" (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 79). A saúde é, por fim, "um sentimento de segurança na vida, sentimento este que, por si mesmo, não se impõe nenhum limite" (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 79). Com essa concepção sobre saúde, nova adequação seria dada para as disciplinas mais centrais do paradigma flexneriano, como por exemplo, a fisiologia. Esta se tornaria uma "ciência dos ritmos estabilizados da vida", e tal objeto seria muito mais associado aos hábitos sociais do que a uma natureza dos indivíduos: a mutabilidade dos modelos e das teorias do saber biológico sobre o corpo humano seria uma premissa fundamental, visto que para conjunto de hábitos, mudam-se os critérios para se determinar os limites do próprio corpo (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.).

A definição de doença em Canguilhem muito se assemelha à noção de iatrogênese social proposta por Illich (1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975., p. 31), que assume que esta "é uma penosa desarmonia entre o individuo situado dentro de seu grupo e o meio social e físico, que tende a se organizar sem ele e contra ele. Isso resulta em perda de autonomia na ação e no controle do meio". A iatrogenia é um conceito comumente atribuído para designar os efeitos indesejados e colaterais que a própria ação médica causa no corpo dos indivíduos. Esse autor assume que tal fenômeno não se dá apenas na dimensão biológica do corpo humano, mas alcança escalas ainda mais danosas quando é perpetuada por todo o meio social.

Para ele, "o controle institucional da população pelo sistema médico retira progressivamente do cidadão o domínio da salubridade no trabalho e o lazer, a alimentação e o repouso, a política e o meio" (Illich, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975., p. 32). O autor ainda assume que o maior mal causado pela expansão da divisão médica do trabalho é porque a mesma produz dependência, que

Tende a empobrecer o meio social e físico em seus aspectos salubres e curativos, embora não médicos, diminuindo as possibilidades orgânicas e psicológicas de luta e adaptação que as pessoas comuns possuem. (Illich, 1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975., p. 37-38).

A definição de Canguilhem apontada no inicio deste subitem, assim como o apontamento de Illich sobre a iatrogenia social guardam um importante questionamento. O que torna o meio infiel e como tornar o meio mais fiel ao homem? Essas parecem ser as perguntas fundamentais. O questionamento sobre saúde parte para uma direção em que a dimensão biológica do corpo é apenas uma das consequências de tamanha infidelidade. Para encararmos essa problemática consideramos imprescindível levarmos em conta duas ideias: a noção de Salubridade colocada por M. Foucault (1984FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. In: ______. Microfísica do poder. 4. ed. São Paulo: Graal, 1984. p. 79-98.) em seu texto "O nascimento da medicina social", no qual a tônica se prende ao estado das coisas, dos elementos constitutivos do meio e da base material da vida social; e a noção de Dimensão Espacial do Cotidiano de M. Santos (2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 321), aqui as materialidades assumem, ao mesmo tempo, uma condição para ação, uma estrutura de controle, um limite à ação e um convite à ação. Além disso, essa dimensão seria a conexão materialística entre os homens, fazendo que a localidade se aflore e se oponha ao global e às verticalidades. É nessa dimensão que se superpõe dialeticamente as temporalidades, na qual a cooperação se instala e a contiguidade é criadora da comunhão, é nela que "a política se territorializa, com confronto entre organização e espontaneidade" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 322), é nessa dimensão que os aconteceres homólogos e complementares se sobrepõe aos aconteceres hierárquicos, nela a criatividade e a espontaneidade se instalam e o meio se torna mais "fiel".

Ainda que Illich credite à iatrogenia social a perda de autonomia do homem sobre o próprio lugar em que vive, não podemos aqui pressupor a existência de uma autonomia dos lugares em estado puro. Caso contrário, estaríamos dando as costas à tradição dialética de compreender a realidade como uma renovação em curso da relação entre o singular (os lugares), o particular (as regiões ou ainda o estado-nação) e o universal (o mundo) (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.). Ao confundir o autônomo com a individualidade isolada, cria-se uma penumbra analítica da realidade que omite do ponto de vista do indivíduo os processos globais que o compõe e muitas vezes o determina. (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. São Paulo: Boitempo, 2009.). Hoje os lugares são, cada vez mais, "condição e suporte de relações globais que, sem eles (lugares), não se realizariam" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 156). É nesse sentido que não se pode compreender os lugares neles mesmos. "Hoje, certamente mais importante que a consciência do lugar é a consciência do mundo, obtida através do lugar" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 161).

Os aconteceres hierárquicos compõem o lugar e estes são responsáveis pelo governo da ordem local, por meio de uma "regulação distante, cujos objetivos são setoriais, particulares, exclusivos de uma só intenção. Tais regras, estranhas, superpõem-se, desafiantes e desestruturantes, às normas localmente constituídas" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 162). Sejam intencionalidades privadas ou ainda aquelas fornecidas pelo Estado, quando são externas à ordem local, possuem essas mesmas características e provocam tal desordem.

Autonomia aqui, portanto, não é a busca pelo isolamento, mas sim pelo resgate das normas localmente constituídas, das solidariedades orgânicas, regidas pelos aconteceres homólogos e complementares (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.), e estas somente serão refeitas quando observados o mundo que está contido em cada um desses espaços.

Conhecer o mundo para conhecer a si próprio faz parte de um movimento de produção da consciência, que só poderia ser "gerada de dentro da base de massa da sociedade [...], pelas próprias massas, em resposta às tarefas e aos desafios que elas têm de enfrentar em suas tentativas de solucionar os problemas materiais, políticos e culturais de sua vida cotidiana" (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 482). É nesse sentido que, no projeto de construção da autonomia dos lugares, torna-se imprescindível a participação ativa do homem comum.

Constrói-se, pois, um horizonte teórico sobre saúde que se pauta num projeto em que cada lugar busque a sua própria organização social. Trazer o poder decisório para dentro de cada porção do espaço brasileiro significa, em outros termos, tornar o meio cada vez mais "fiel" ao próprio homem. É claro que tornar os lugares totalmente "fiéis" a cada indivíduo não é possível, visto que todo ser humano é apenas um de vários agentes que compõem o tecido social do território. Na medida em que o lugar é a dimensão espacial do cotidiano, este se revela locus "onde se despregam forças sociais antagonistas, lutas em jogo, regulação dos conflitos" (Tedesco, 2003TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano: introdução à constituição de um campo de análise social. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003., p. 147).

Acreditamos que o ponto de partida para manifestação social dessa forma alternativa de se pensar a saúde se dá através da atividade informacional, na medida em que estamos em um período da história em que essa variável torna-se uma das grandes forças que compõe o sistema de funcionamento do território - ao lado dos trabalhadores, dos recursos e do capital (Brunet e Dollfus, apud Castillo, 1999CASTILLO, R. A. Sistemas orbitais e uso do território: integração eletrônica e conhecimento digital do território brasileiro. 1999. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.). Além disso, considerando que "cada ação hegemônica, hoje se realiza com base na informação precisa - o que permite a escolha ideal no tempo e no espaço e promove os arranjos territoriais mais adequados a determinados fins" (Castillo, 1999CASTILLO, R. A. Sistemas orbitais e uso do território: integração eletrônica e conhecimento digital do território brasileiro. 1999. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999., p. 37), não podemos prescindir dessa atividade se quisermos fortalecer ou ainda hegemonizar a ação emancipatória que redefinirá a saúde dos lugares.

Os lugares e as forças ascendentes

Com o advento da globalização, os lugares, e em especial as grandes cidades, ganham uma nova dimensão existencial. Hoje a cidade "reúne pessoas das mais diversas origens, dos mais diversos níveis de instrução, de riquezas, de entendimento" e, nesse sentido, guarda em si "uma enorme riqueza de perspectivas" (Santos, 2007SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007., p. 60). Nesse sentido, ela encerra em si uma diversidade de anseios, que demarcam basicamente a relação biunívoca existente entre o mundo e os lugares, de forma que o primeiro busca influir sobre os lugares, mas estes "também tem o seu peso em relação ao universo" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 25).

Vemos o avanço da modernização tecnológica, que faz que diversas variáveis mundiais tenham "uma difusão geral sobre toda ou sobre a maior parte do território e afetam todos os habitantes" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 95), explicada basicamente pela difusão da informação e de novas formas de consumo. Ela institui nos lugares "o mundo da fluidez, da vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes" (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008., p. 314-315). As grandes cidades, principais receptores dessa modernização tecnológica, recebem também essa forma de ver o mundo. Mas a coexistência na cidade acaba por revelar uma contingência da proximidade, pois em toda a sua densidade técnica, científica, informacional e comunicacional revela uma anarquia cotidiana e, consequentemente, intensifica as relações interpessoais.

É nesse sentido que podemos afirmar que embora o mundo contemporâneo seja marcado pela sobreposição instrumental da razão global às inúmeras razões locais (Silva, 2002SILVA, A. M. B. São Paulo, produção de informações e reorganização do território brasileiro. 2002. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.), estas últimas não se esvaem. As ordens locais possuem pautas políticas, culturais, econômicas e sociais próprias que, ao invés de persistirem até o seu perecimento, reagem, absorvendo variáveis mundiais e se metamorfoseiam, aproveitando oportunidades de nossas épocas para continuarem existindo. São essas forças locais geradas pela inevitabilidade da copresença, da vizinhança e do intercâmbio que denominamos como forças ascendentes, que também moldam o espaço de acordo com seus próprios anseios produtivos, culturais e sociais, mais ou menos alheios aos eventos mundiais que são internalizados nos lugares.

O lugar é constituído por uma densidade técnica, ou seja, pela composição material dos objetos técnicos de diferentes origens em contiguidade; deriva-se desta a densidade informacional, na medida em que a informação, quando ativada pela ação humana, é unívoca, "é uma informação obediente às regras do ator, e introduz, no espaço, uma intervenção vertical, que geralmente ignora o entorno, posta a serviço de quem tem os bastões de comando" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 160). Sua energia social é a produção do conhecimento por meio da instrumentalidade técnica, e nesse sentido concordamos com a ideia de que a existência de certos objetos "aumenta o grau de racionalidade do ambiente do qual fazem parte, e acaba por limitar o escopo da ação dos atores que os utilizam, segundo um conjunto de procedimentos predeterminados" (Contel, 2006CONTEL, F. B. Território e finanças: técnicas, normas e topologias bancárias no Brasil. 2006. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006., p. 276). Essa é a característica fundamental reveladora de uma força descendente, criadora de seu próprio círculo informacional e, portanto, é externa ao lugar. É a informação em saúde atualmente posta em prática. Mas as forças ascendentes encontradas no cotidiano dos lugares revelam também um outro componente dos lugares, a densidade comunicacional, que é resultante do estado de copresença próprio dos lugares. Ela é o que põe as pessoas umas com as outras, em contato imediato, geradoras de situações cara a cara. A comunicação é gerada no lugar, e é, portanto, resultante do meio social ambiente (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012.). Torna-se, portanto, componente essencial para os círculos de informação ascendentes.

A energia que metaboliza a densidade comunicacional dos lugares é a inteligência, "inseparável da vida afetiva, ou seja, dos sentimentos e das emoções, das necessidades e dos desejos, dos temores, das esperanças ou das expectativas do sujeito" (Görz, 2005GÖRZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., p. 85). Enquanto que o conhecimento (densidade informacional) pressupõe uma relação sujeito-objeto entre o indivíduo e o conhecido, a inteligência (densidade comunicacional) pressupõe uma relação sujeito-objeto-sujeito. Ela é, portanto, inseparável da noção de saber, já que esta é o conhecimento do mundo através da experiência intuitiva e cognitiva, em sua realidade sensível. Através dela se "constrói relações comunicativas, não submetidas a um comando" (Görz, 2005GÖRZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., p. 12).

Não podemos aqui imaginar que não exista relação entre a densidade comunicacional e a informacional. Acreditamos que entre o conhecimento e o saber não exista uma dissociação, mas sim uma hibridez, que revelará diversas formas de círculos de informação, que serão ascendentes na medida em que o conhecimento é apenas ferramenta complementar ao saber local, ou descendentes quando o saber local é esquecido pela racionalidade instrumental direcionada ao lugar por intencionalidades externas. É nesse sentido de indissociabilidade entre a informação ascendente e descendente que Fonseca (2011FONSECA, H. R. Produção e difusão de informações na cidade de Campinas-SP: um estudo da região do Jardim Campo Belo. 2011. Monografia (Graduação em Geografia) - Instituto de Geociências da Universidade de Campinas, Campinas, 2011.) aponta a interação e o conflito entre os agentes desses circuitos, revelando novos conteúdos. Na medida em que os objetos técnicos modernos amplamente difundidos, como o computador, reforçam a densidade informacional, tais "técnicas flexíveis, logo, de fácil implantação no território (e, por isso, tão difundidas), chegam aos espaços opacos onde podem ganhar novos usos impulsionados pelo cotidiano da escassez." (Fonseca, 2011FONSECA, H. R. Produção e difusão de informações na cidade de Campinas-SP: um estudo da região do Jardim Campo Belo. 2011. Monografia (Graduação em Geografia) - Instituto de Geociências da Universidade de Campinas, Campinas, 2011., p. 90). A hibridez entre os circuitos de informação também nos revela a junção indissociável entre ação política e as novas possibilidades instrumentais do período atual.

Nesse sentido acreditamos que a densidade informacional pode comportar em si, como possibilidade, uma alternativa prática para o fortalecimento das ordens locais, e, portanto, a busca pela autonomia. Essa possibilidade se torna real na medida em que ela se torna um apêndice da densidade comunicacional. Isso ocorre na medida em que os agentes informacionais são imbuídos com uma perspectiva autogestionária, que por sua vez os faria visualizar,

Na revolução tecnológica atual, não o prolongamento das antigas tendências, mas, ao inverso, uma verdadeira revolução organizacional, que implica o acesso de todos a todas as informações e, por consequência, o autogoverno dos homens (Lojkine, 1995LOJKINE, J. A revolução informacional. São Paulo: Cortez, 1995., p. 149).

Por se tratar de um circuito descendente a informação em saúde na Atenção Básica exclui a densidade comunicacional (e, portanto, o saber e a inteligência) de seu processo. Além disso, a política de informação em saúde não permite o acesso de todas as informações possíveis de serem apreendidas, mas apenas daquelas que seguem o padrão teórico-metodológico hegemônico e normatizado pelo Ministério da Saúde.

A possibilidade de transformação da atividade informacional em saúde na Atenção Básica do SUS passa, necessariamente, pela rearticulação dos recursos humanos existentes. Isso porque, como foi dito anteriormente, a densidade informacional proporcionada pelos objetos técnicos dos lugares só é ativada através da ação humana. Ao almejar uma transformação da concepção da saúde, perpassamos por uma transformação ascendente do próprio setor saúde, e nesse sentido os profissionais que trabalham nessa ponta da rede de atenção tornam-se peças fundamentais. Eles, em maior ou menor medida, estão no epicentro de uma interface entre a densidade comunicacional dos lugares e a atenção primária em saúde. Nesse sentido, torna-se imperativo a introdução de novas profissões, externas à divisão médica do trabalho, nas práticas cotidianas da Atenção Básica.

Vincular a atividade informacional à autonomia dos lugares significa torná-los conhecedores de si mesmos e de suas relações mais contingentes com o mundo e com outros lugares. Significa torná-los possuidores de estratégias de produção de informação e pautas políticas próprias.

Nesse cenário os agentes comunitários assumem um papel relevante e devem ser estimulados a produzir informação de forma livre, tanto com o auxílio das tecnologias da informação (de maneira mais abrangente que o atualmente exigido para os sistemas informacionais vigentes) quanto com o uso de metodologias alternativas como entrevistas, diário e realizações de grupos focais. Nesse sentido, a Cartografia da Ação (Ribeiro et al., 2002RIBEIRO, A. C. T. et al. Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 33-52, 2002.) poderia ser uma excelente ferramenta.

A atividade informacional de cada unidade básica de saúde deve ter flexibilidade para pensar o seu cotidiano, e pensar o cotidiano é pensar o lugar, é fazer emergir a ideia de situação, contraposta àquela de diagnóstico, pois enquanto este é um monólogo, a análise de situação pressupõe o outro e as circunstâncias. Podemos não escolher o mundo em que vivemos, mas temos o direito de escolher como vamos viver nele.

Em tempo, gostaríamos de reconhecer todos os esforços feitos pelo setor saúde que culminaram nas bases de estruturação do SUS, estabelecidas, principalmente, a partir do diagnóstico feito pelo movimento de Reforma Sanitária ao longo das décadas de 1970 e 1980.

Tomados pelos propósitos da revista Saúde e Sociedade, que deixa claro que o seu foco e escopo tem como um dos objetivos estimular o debate e a polêmica sob diferentes enfoques, o nosso propósito neste texto é de se contrapor às técnicas de territorialização (no caso específico tomamos apenas a atividade informacional) que vêm sendo consagradas pelo SUS. Em nosso entendimento essas técnicas padecem de, pelo menos, quatro equívocos de origem: comumente confundem território com área, essa confusão fica clara nos recortes das divisões "territoriais" propostas para operacionalização das ações do SUS: município, distrito sanitário, microárea, área de abrangência, território-domicílio. Chega-se mesmo a falar em território processo, como se fosse possível desvincular o território do processo, ou de região viva como se existisse uma região morta; confundem lugar, dimensão sociocultural múltipla do ponto de vista dos sentidos da ação, com local, reino do controle longínquo através da ação instrumentalizada da economia e da política; de modo geral, essas metodologias não se questionam sobre o caráter de Política Pública que o SUS encerra. As Políticas Públicas nasceram como alternativas ao planejamento tradicional e se fundamentam numa visão parcial e setorizada, antiterritorial, levando à crença de que o problema da saúde se resolva apenas no setor saúde. Nesse sentido seria preciso considerar também o cuidado com o lugar onde cada cidadão vive, não apenas lá onde ele procura o serviço médico-hospitalar; a descentralização centrada no município e o desprezo pela regionalização. Ao propor a descentralização de base municipal, deveríamos, a exemplo do diagnóstico relativo ao setor e aos serviços, fazer um diagnóstico geopolítico da questão municipal. Seria necessário nos perguntar: o que é o município no Brasil? Decorrente da falta desse diagnóstico, hoje temos uma política do SUS que é uma política federal para "execução" municipal. A saúde é um fenômeno, por natureza, regional, no entanto a desarticulação entre descentralização e regionalização é marca do SUS, vistas de fora (descentralização e regionalização) parecem processos completamente distintos. Mesmo fazendo parte dos princípios estruturantes das ações do Estado e das diretrizes do SUS, a regionalização é uma questão ainda por ser encarada. Ainda que tenha sido definida pela Constituição Federal de 1988 e reforçada pela Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS), em 2000, e pelo Pacto da Saúde, em 2006, a implantação da estratégia de regionalização é frágil, para dizer o mínimo, é um dos nós críticos do SUS, nos dizeres de Matus (2005MATUS, C. Teoria do jogo social. São Paulo: FUNDAP, 2005.).

Como já assinalamos, tomamos para esta reflexão apenas um dos aspectos da atividade informacional, com o intuito de exaltar a importância da análise territorial. Acreditamos que esta contribua para compreensão das relações entre saúde e lugar. Uma discussão mais aprofundada sobre a relação entre a geografia e as técnicas de territorizalização do SUS seria matéria para outros trabalhos.4 4 A esse respeito, uma série de pesquisas desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa Territorium (UFRN) busca aprofundar a análise das políticas de saúde pública a partir da compreensão do lugar e do processo de regionalização: Dantas e Aranha (2009), Dantas, Aranha e Feitosa (2012), Aranha (2010), Marques (2012), Feitosa (2013a, 2013b), Curioso (2011, 2013, 2014).

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  • 1
    "O acontecer hierárquico é um dos resultados da tendência à racionalização das atividades e faz-se sob um comando, uma organização, que tendem a ser concentrados e obriga-nos a pensar na produção de um sentido, impresso à vida dos homens e à vida do espaço. [...] Nesse caso temos a primazia das normas, não mais com a relevância da técnica, mas da política" (Santos, 2012SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2012., p. 140-141).
  • 2
    Tecnoesfera e Psicoesfera formam os "pilares com os quais o meio técnico-científico introduz a racionalidade no próprio conteúdo do território" (Santos, 2009SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2009., p. 51). Importante ainda lembrar que a "psicoesfera é fortemente dominada pelo discurso dos objetos, das relações que o movem e das motivações que os presidem" (Santos, 2009SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2009., p. 50), e ela também faz parte do meio geográfico, fornecendo regras objetivas da racionalidade ou do imaginário, mas ela é, por muitas vezes, o produto de uma sociedade mais ampla que o lugar. Kahil (1997KAHIL, S. P. Psicoesfera: a modernidade perversa. Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, n. 11, p. 217-220, 1997.) nos mostra que, no mundo moderno, diante da complementaridade, concorrência e antagonismo existente diante da diversidade de signos, significados e sentidos que a Tecnoesfera - mobiliadora do espaço - produz, é inevitável compreender os fenômenos observando a Psicoesfera - complemento da Tecnoesfera, que representa o modo de vida. A Psicoesfera é a materialização dos valores formadores de uma nova identidade social.
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    Lembramos que essa discussão passa necessariamente pelas questões da regionalização, da federação, das fronteiras e do entendimento do que é realmente um município no Brasil.
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    A esse respeito, uma série de pesquisas desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa Territorium (UFRN) busca aprofundar a análise das políticas de saúde pública a partir da compreensão do lugar e do processo de regionalização: Dantas e Aranha (2009DANTAS, A; ARANHA, P. R. Saúde na perspectiva da geografia nova. Revista Mercator, Fortaleza, v. 8, n. 16, p. 125-132, 2009.), Dantas, Aranha e Feitosa (2012DANTAS, A.; ARANHA, P. R.; FEITOSA, L. C. Da territorialização à regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA GEOGRAFIA DA SAÚDE, 4., 2012, Presidente Prudente. Anais... Presidente Prudente: Congresso Internacional de Geografia da Saúde, 2012, v. 1, p. 337-351.), Aranha (2010ARANHA, P. R. M. Do mundo como norma ao lugar como forma: o uso do território pela estratégia da saúde da família. 2010. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2010.), Marques (2012MARQUES, A. C. S. Território e saúde: uma análise sobre o município de Guarabira/PB. 2012. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.), Feitosa (2013aFEITOSA, L. C. A regionalização da saúde no Rio Grande do Norte: elementos para a compreensão da dinâmica dos lugares. 2013. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013a., 2013bFEITOSA, L. C. A efetividade do Plano Diretor de Regionalização do SUS no Rio Grande do Norte. Revista da ANPEGE, v. 9, n. 11, p. 21-26, 2013b.), Curioso (2011CURIOSO, R. O lugar em uma ficha: estudos geográficos do sistema de informação da atenção básica em Natal. 2011. Monografia (Graduação em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011., 2013CURIOSO, R. O prisma geográfico para a ação política na saúde pública brasileira. In: ENCUENTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 14., 2013, Lima. Anais... Lima: Observatório Geográfico de América Latina, 2013. Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal14/Geografiasocioeconomica/Geografiamedica/04.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2016.
    http://observatoriogeograficoamericalati...
    , 2014CURIOSO, R. Lugar, saúde e informação: os círculos de informação da atenção básica do SUS no contexto na disputa pelo conceito de saúde. 2014. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2015
  • Revisado
    20 Maio 2016
  • Aceito
    06 Set 2016
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