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A cultura do novo capitalismo

RESENHAS

Roberto Rafael Dias da SilvaI; Elí Teresinha Henn FabrisII

IDoutorando em Educação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes). E-mail: robertoddsilva@yahoo.com.br

IIDoutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Brasil. E-mail: efabris@unisinos.br

SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Richard Sennett tem se constituído como um dos mais instigantes analistas sociais contemporâneos. Temáticas como o trabalho ou as organizações sociais têm povoado seus intensos e produtivos estudos. O presente livro, A cultura do novo capitalismo, publicado no Brasil em 2006, é resultado das Conferências Castle, ciclo de palestras realizadas por Sennett na Universidade de Yale. Tais conferências tiveram a ética, a política e a economia como assuntos centrais.

O livro parte da perspectiva de que a contemporaneidade tem sido intensa em suas modificações nos modos de conceber a cultura. Essas modificações seriam marcadas pela crise das instituições e pelo crescimento das desigualdades econômicas. Nesse cenário, em que as instituições se fragmentam e as condições sociais se tornam instáveis, emerge um conjunto de desafios às subjetividades humanas. O primeiro desses desafios remete à ideia de tempo, ou a uma primazia do curto prazo. Quando as mudanças permanentes inviabilizam planejamentos de longo prazo, "o indivíduo pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se virar sem um sentimento constante de si mesmo" (SENNETT, 2006, p. 13). O segundo desafio está ligado ao talento, ou a como descobrir suas capacidades potenciais em uma cultura onde novas capacitações são exigidas a cada momento. O terceiro desafio refere-se a um processo de presentificação, isto é, de ter a capacidade de deixar o passado para trás. As modificações culturais desencadeadas no capitalismo contemporâneo implicam a busca de homens e mulheres ideais: "uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as habilidades potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas" (SENNETT, 2006, p. 14).

A descrição desse ideal cultural do novo capitalismo (SENNETT, 2006, p. 16) parte das experiências de pesquisa desenvolvidas pelo sociólogo desde a década de 1970 nos Estados Unidos. Em geral, o livro remete a três temáticas específicas: trabalho, talento e consumo. Para mobilizar sua analítica, Sennett organizou o livro em quatro capítulos, que tendem a aproximar-se das temáticas propostas para a compreensão da cultura do novo capitalismo. Neste texto, descreveremos brevemente cada uma das seções apresentadas pelo sociólogo e, ao final, discutiremos algumas produtividades dessas temáticas para as pesquisas contemporâneas em educação.

No primeiro capítulo, "Burocracia", Sennett descreve as modificações ocorridas nas instituições contemporâneas que produziram ressonâncias no mundo do trabalho. Tais ressonâncias emergiram em um tempo no qual as desigualdades se multiplicaram, seja pela desestabilização dos modelos clássicos de emprego, seja pelo processo de globalização. Para estabelecer essa análise, Sennett parte dos estudos de alguns sociólogos clássicos, como Marx e Schumpeter, mas atribui centralidade às preocupações de Max Weber, em especial, ao modo militarizado de compreender a organização capitalista desde o século XIX. Weber é um autor que permite analisar a política do capitalismo social, visto que, tal como observa o sociólogo, a burocracia se torna melhor modelo explicativo para esse capitalismo do que o mercado. "O tempo está no cerne deste capitalismo social militarizado: um tempo de longo prazo, cumulativo e, sobretudo, previsível. Esta imposição burocrática afetava tanto as regulações institucionais quanto os indivíduos" (SENNETT, 2006, p. 29).

A organização desse capitalismo social descrito por Weber tornava possível uma previsibilidade em relação ao tempo: as pessoas podiam fazer de suas vidas narrativas estáveis e planejar em longo prazo suas carreiras profissionais. Sob o regime da estabilidade, essa organização capitalista organizava-se tal como uma pirâmide racionalizada. "A pirâmide é 'racionalizada', ou seja, cada posto, cada parte tem uma função definida" (SENNETT, 2006, p. 34). Seguindo a análise de Sennett, nota-se que esse modelo da pirâmide dominou as organizações, entre elas, o Estado, ao longo do século XX. Outra metáfora weberiana posta em articulação a essa é a "jaula de ferro", uma vez que a burocracia, com sua estabilidade e solidez, foi planejada para sobreviver a quaisquer sublevações.

Com o final do século XX, três mudanças importantes nas organizações tenderam a deslocar os sólidos pilares do capitalismo social militarizado. A primeira mudança remete do poder gerencial ao acionário, ou seja, uma transferência de poder dos grandes burocratas institucionais para os investidores. A segunda mudança, em conexão com a anterior, é a preferência pelos resultados de curto prazo. Emerge a necessidade de mudanças permanentes, atualizações constantes e reengenharias – "reinventar-se continuamente ou perecer nos mercados" (SENNETT, 2006, p. 44). A terceira mudança está no desenvolvimento das novas tecnologias, fazendo instantâneas as comunicações em escala planetária. Essas três modificações serviram de condição para uma nova arquitetura institucional, diferente da sólida pirâmide do capitalismo social do século XX – emerge uma nova imagem: um tocador de MP3. O MP3 é caracterizado pela flexibilidade (seleciona músicas aleatoriamente), pela alta capacidade (armazena, em média, dez mil músicas) e pelas estratégias de controle (o planejamento das ações parte de uma unidade central de processamento). Essa nova geografia do poder, produzida a partir da arquitetura MP3, "evita a autoridade institucional e tem um baixo nível de capital social" (SENNETT, 2006, p. 77).

Em "O talento e o fantasma da inutilidade", segundo capítulo, Richard Sennett dá ênfase à questão do talento. Procura explorar a maneira como o "fantasma da inutilidade" articula-se com a questão da educação e da formação, partindo de algumas questões centrais: "que significa capacitação, ou, de maneira mais abrangente, talento? Como pode o fato de uma pessoa ser talentosa traduzir-se em valor econômico?" (SENNETT, 2006, p. 82). O fantasma da inutilidade assumiu sua primeira forma com o desenvolvimento das cidades, tendo sido explorado inicialmente por autores como David Ricardo e Thomas Malthus. Na cultura do novo capitalismo, essa ameaça é mobilizada por três forças: "a oferta global de mão-de-obra, a automação e a gestão do envelhecimento" (SENNETT, 2006, p. 84). A oferta global de trabalhadores remete às possibilidades do mercado de buscar talentos baratos. A automação remete à emergência contínua de novas tecnologias. A gestão do envelhecimento está na necessidade de formação/capacitação nas empresas.

Essa perspectiva de produção de algo novo vincula-se tanto ao setor público quanto ao privado. Isso produz uma ambivalência entre capacitação e inutilidade, o que encaminha Sennett a pensar os talentos individuais sob as formas da perícia e da meritocracia. Nos tempos do capitalismo social, a perícia marcava os processos de produção, isto é, através de autocrítica e autodisciplina, o trabalhador produzia artefatos qualificados como um fim em si mesmo, pelo prazer de fazer bem feito. Nas instituições de capitalismo flexível, a perícia não apenas é deslocada, como também ocupa o lugar de problema. Em instituições voltadas ao curto prazo, não há espaço para a perícia, emergindo a noção de meritocracia. Sob o modelo da meritocracia, ocorre uma equiparação entre talento e mérito, na medida em que, nesse modelo, o talento é visto como aptidão potencial. "Em termos de trabalho, o 'potencial' humano de uma pessoa define-se por sua capacidade de transitar de um tema a outro, de um problema a outro" (SENNETT, 2006, p. 108). Em síntese, Sennett argumenta que, nessas instituições, a gestão dos talentos é marcada pelo jogo ambivalente entre meritocracia e aptidão potencial.

A temática do consumo, seja nas estratégias de marketing, seja na produção das plataformas políticas, constitui o terceiro capítulo, "A política do consumo". O sociólogo argumenta que as práticas contemporâneas ligadas ao consumo se movimentam sob uma "paixão autoconsumptiva" (SENNETT, 2006, p. 128), ou melhor, uma paixão que se extingue em sua própria intensidade. Cabe ressaltar que tal mobilizador não se apresenta como um novo acontecimento na cultura do novo capitalismo, visto que tal acontecimento se movimenta em outros campos, como a publicidade ou a política.

Sennett explica que a multiplicação contemporânea das práticas de consumo está afastada de alguns entendimentos que posicionam o consumo como um simples produtor de exclusões sociais, como uma intensificação das estratégias publicitárias da indústria cultural ou como uma suposta fragilidade dos produtos fabricados. A questão é um pouco mais sutil, envolvendo objetivamente a produção de marcas e de potências que regulam a ação humana tanto no consumo quanto na política. A ideia de regulação não encaminha para imposições ou violências a um sujeito passivo, uma vez que ele é ativo nas tramas culturais do consumo do novo capitalismo. Logo, quando se argumenta sobre a formação de uma sociedade de consumidores não conseguimos recorrer à imagem de um sujeito que apenas responde às interpelações ou aos endereçamentos das grandes corporações.

Quando Richard Sennett remete ao consumo de marcas, entende-as no sentido de diferenciação de produtos construídos em plataforma. Os produtos das grandes indústrias, como exemplifica o sociólogo com as montadoras automobilísticas, são possibilidades de notar a construção de produtos construídos sobre uma mesma base, onde apenas pequenas nuances de estilo e performance os diferenciam. O outro processo indicado por Sennett é o consumo de potências, produzidas no sentido de buscas constantes e imediatas de hipervelocidades ou capacidades. Como exemplo desse processo, o autor indica os iPods, fenômeno do consumo contemporâneo, que armazenam aproximadamente dez mil músicas de três minutos.

O sociólogo explica, ainda nessa seção, que as mesmas lógicas que produzem subjetividades nas práticas de consumo também povoam as atitudes ligadas à política na contemporaneidade. Sennett aponta cinco maneiras pelas quais o consumidor-espectador-cidadão é produzido em direção a um estado de passividade na cultura do novo capitalismo. A primeira maneira está na produção das plataformas políticas, que são construídas de forma aproximada com as plataformas de produtos. A segunda maneira está na ênfase atribuída às diferenças, ancorada em práticas políticas articuladas permanentemente aos jogos do marketing. A terceira maneira mostra que a produção das políticas é marcada pela impaciência na obtenção de resultados, de modo que tendem a ignorar as necessidades humanas. A quarta maneira está no crédito atribuído às políticas de fácil utilização – ou, como mostra Sennett, "os cidadãos estão deixando de pensar como artesãos" (SENNETT, 2006, p. 156). A quinta e última maneira apresentada pelo sociólogo é a aceitação constante dos novos produtos políticos em oferta, ocasionada pelos problemas de confiança em relação aos partidos políticos, assim como pelo prevalecimento das ideias de curto prazo em matéria dos processos políticos.

Na quarta seção, "O capitalismo social em nossa época", Sennett propõe-se a examinar três características principais do capitalismo contemporâneo, não apenas estabelecendo uma crítica, mas também analisando proposições alternativas a esses problemas em nosso tempo. Os três valores críticos examinados pelo sociólogo foram a narrativa, a utilidade e a perícia. No que se refere à narrativa, o autor retoma que, nas instituições do novo capitalismo, os sujeitos são privados de planejar sua vida em longo prazo, o que impossibilita a estabilidade de uma narrativa. Sennett aponta que, na atualidade, três movimentos colaboram para a desarticulação desse valor: a criação de instituições paralelas (ou a ressignificação dos sindicatos), a partilha de empregos e os programas de renda básica. Quanto à utilidade, Sennett aponta para os modos pelos quais o fantasma da inutilidade se multiplica contemporaneamente. Entretanto, o sociólogo desloca o sentido de utilidade do trabalho formal e aponta que "sentir-se útil significa contribuir com algo de importância para os outros" (SENNETT, 2006, p. 173). Isso permite posicionar as participações voluntárias como alternativas de restabelecimento da utilidade dos sujeitos no novo capitalismo. O terceiro valor crítico apontado por Sennett é a perícia, uma qualidade inviável para as políticas públicas dessa nova ordem. Como explica o autor, a perícia restitui aos sujeitos um sentido de compromisso. Tal como um militante dos anos 1960, Richard Sennett finaliza a seção (e o livro) marcando a necessidade de reação coletiva aos valores predominantes nesse novo capitalismo, sendo possível "que a revolta contra essa cultura debilitada seja a próxima página que vamos virar" (SENNETT, 2006, p. 180).

De modo a finalizar esta resenha, apontamos algumas produtividades desse livro para as pesquisas contemporâneas em educação, pensando que, de certa forma, elas funcionarão como recomendações a pesquisadores nesse campo. A leitura da obra torna-se produtiva no entendimento das instituições emergentes nesse novo capitalismo, não mais alicerçadas nas pirâmides da burocracia descrita por Weber, mas interativas e flexíveis como um tocador de MP3. Com Sennett, talvez possamos pensar em escolas MP3, metáfora útil para pensar a escola e suas práticas neste tempo. Outra produtividade do livro está nos modos de gestão curricular da escola contemporânea, posicionados em aproximação do conceito de meritocracia descrito por Sennett, em detrimento da noção de perícia. Um pequeno exercício analítico mostra-nos a intensidade dos programas de resolução de problemas ou de gerenciamento de aprendizagem, estratégias essas que mostram estreitamente a vinculação entre talento e mérito, visibilizada pelo sociólogo. Por fim, recomendamos a utilização do texto como possibilidade de entendimento para as condições de possibilidade da educação nas tramas do capitalismo contemporâneo.

Texto recebido em 30 de junho de 2009.

Texto aprovado em 1º de março de 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Maio 2010
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