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Leônidas Deane: aventuras na pesquisa

Leônidas Deane: adventures in research

DEPOIMENTO

Leônidas Deane: aventuras na pesquisa

Leônidas Deane: adventures in research

Leônidas de Mello Deane. (18-3-1914, Belém do Pará; 30-1-1993, Rio de Janeiro). Formou-se na Faculdade de Medicina do Pará, em 1935. Com a criação do Instituto de Patologia Experimental do Norte (Ipen), em 1936, foi trabalhar com Evandro Chagas, de início em pesquisas sobre o calazar. Desde então, de maneira indissolúvel e nada banal, sua carreira esteve ligada à da dra. Maria Paumgartten Deane.

Em 1939, a maior epidemia de malária de todos os tempos no Brasil levou-o ao Rio Grande do Norte e Ceará, para o Serviço de Malária do Nordeste, no combate ao Anopheles gambiæ. Com o fim da campanha, em 1942, voltou ao Pará, engajando-se no recém-criado Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Em 1944, foi para os Estados Unidos, freqüentando as universidades Johns Hopkins e Michigan.

De volta ao Brasil, trabalhou como chefe da Divisão de Malária no Instituto de Malariologia do Rio de Janeiro. Em 1953, a convite de Samuel Pessoa, passou a lecionar na Faculdade de Medicina de São Paulo. As perseguições no Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina de São Paulo, após o golpe militar, e o exílio de sua filha Maria Luiza levaram-no ao Instituto de Medicina Tropical de Lisboa, em 1975. Logo depois transferiu-se para a Venezuela, onde permaneceu até 1979, retornando então ao Brasil, para chefiar o Departamento de Entomología do IOC.

O prof. Deane concedeu à Casa de Oswaldo Cruz, nos anos de 1987 e 1988, cerca de 27 horas de depoimento; nas centenas de páginas de transcrição, sua extraordinária verve — e a palavra é bem essa — aparece a cada momento. Manguinhos mostra aqui passagens onde ele fala de vivências da década de 1930, no trabalho com Evandro Chagas e na campanha contra o Anopheles gambiæ. Uma visão mais articulada destas duas experiências pareceu melhor do que a ambição de apresentar um 'relato de vida'. Mostramos também um outro traço de seu ecletismo: quatro de suas caricaturas, gênero em que era exímio, como o leitor verá.

Para os interessados em mais rigor e detalhes, a íntegra do depoimento do prof. Leônidas Deane está à disposição, no acervo de história oral da Casa de Oswaldo Cruz.

Dr. Deane, desde quando o senhor se interessa por mosquitos?

Eu já estava na faculdade e a malária era a principal doença que havia na Amazônia. Então todos nós éramos bastante voltados para a malária. E pensei que talvez fosse interessante ver a parte de transmissão de malária também, a parte de mosquito relacionada com a malária. Acontece que na rua em que eu morava, em Belém, quase defronte da minha casa, ficava a sede do serviço da Rockefeller. Eu soube que lá estava um americano chamado Henry Kumm, um bom entomologista que estava estudando os mosquitos da ilha de Marajó, por causa da febre amarela silvestre que tinha aparecido pouco tempo antes. Então pensei: "Quem sabe posso aprender alguma coisa com esse americano." Fui visitá-lo, expliquei que estava no terceiro ano de medicina e queria muito aprender a respeito de mosquitos, se ele não podia me mostrar alguma coisa. Ele disse: "Estou muito ocupado. Mas se você quiser vir aqui na hora do almoço... podemos conversar sobre mosquitos. Posso lhe mostrar nossa coleção. Se você gostar..." Fiz o que ele me sugeriu. Eu almoçava em 15, vinte minutos e passava o resto do tempo do almoço no laboratório do Henry Kumm. E aprendi sobre mosquitos com ele. Durante muitos meses, todos os dias eu lá estava com o Henry Kumm vendo os mosquitos.

O senhor diria que esse treinamento seu, a disciplina do estudo etc. tornou mais fácil para trabalhar depois no esquema da Rockefeller?

É lógico que isso me ajudou, porque sempre fui mais ou menos organizado. Mas trabalhei com o Evandro, que era muito desorganizado, porém um homem extraordinário. Era um homem de grande inteligência, que morreu com 35 anos. Mas não tinha esse tipo de organização que tinha a Rockefeller. Quando queria fazer qualquer coisa, era muito apressado, queria fazer logo, nem pensava muito em planificar.

E era um grande boêmio também...

Também. Mas, na parte de serviço, realmente foi quem nos deu esse gosto pelo trabalho no interior. Durante toda a minha formação na Faculdade de Medicina, eu era um citadino, eu era de Belém. Nunca tinha saído, nunca tinha me metido no mato. E Evandro então nos levou para viver no mato realmente. Meu irmão, eu, e depois a Maria também. Mas primeiro eu, meu irmão, o Neri Guimarães e o Otávio Mangabeira Filho, também aqui do Instituto Oswaldo Cruz.

E ele se adaptava bem?Porque a descrição, às vezes...

Ele ia na frente de tudo isso; ele dava o exemplo. A trajetória do Evandro como tropicalista começou a partir de uma descoberta feita pelo dr. Henrique Penna, um patologista do serviço de febre amarela. Examinando amostras de fígado obtidas por viscerotomia em pacientes do interior do Brasil, o dr. Henrique Penna verificou que, em 47 mil amostras, encontrara 41 conformações que atribuiu a leishmânias — portanto, seriam casos de calazar. Com essa observação, o Henrique Penna descobriu a existência de uma nova doença aqui no continente americano, a leishmaniose visceral americana. Foi um achado sensacional, porque mostrava que cerca de um por mil da população rural do Brasil tinha uma doença que era inteiramente desconhecida: o calazar! Isso foi em 1934.

Só dois anos depois, em 1936, o Evandro conseguiu suporte suficiente — aliás da parte do Aragão, que era diretor daqui do Instituto — para poder pesquisar o calazar do Novo Mundo. Obteve as fichas desses 41 casos que o Penna tinha diagnosticado por viscerotomia, post-mortem; e nessas fichas havia o endereço detalhado de cada caso. Os casos se estendiam do Pará até a Bahia. Então o Evandro foi para Sergipe, um dos estados mais atingidos e, logo no princípio — isso foi em 1936 —, encontrou o primeiro caso vivo de leishmaniose visceral desse grupo. Foi um rapazinho que ele trouxe para o Rio. Aliás, ele comprou esse rapaz da família: pagou cinqüenta mil-réis e eles permitiram que o rapaz fosse trazido para o Rio. Aqui no Rio, o Evandro fez um estudo muito detalhado da parte clínica e laboratorial desse caso.

Acontece que o Evandro considerava o Brasil como vários países; no Nordeste e na Amazônia o ambiente é tão diferente do Sul que ele achava que o Instituto Oswaldo Cruz sediado aqui não era suficiente, era preciso haver sucursais do instituto em diferentes regiões do Brasil, pelo menos no Nordeste e na Amazônia. E a sucursal da Amazônia ele obteve do governador do Pará, que então criou o Instituto de Patologia Experimental do Norte, Ipen, se não me engano, em 11 de novembro de 1936.

E para esse instituto, então, criou-se um corpo de pesquisadores e auxiliares. O diretor científico ficou sendo o Evandro Chagas nessa ocasião. Como assistentes, o governo nomeou logo um grupo de médicos recém-formados pela Faculdade do Pará. Entre os médicos estavam esse meu irmão, Gladstone, o Felipe Nery Guimarães, eu e um farmacêutico químico também do Pará, chamado Benedito Sá. E havia mais um, praticamente adolescente. Nós éramos bem jovens naquela ocasião. Basta dizer que o Evandro, o mais velho, tinha 32 anos. Do grupo que trabalhava com ele, uma parte eram esses de Belém, outra parte ele reuniu aqui no Rio. Convidou para trabalhar nesse serviço um rapaz recém-formado, Madureira Pará, o Otávio Mangabeira Filho, o Leoberto de Castro Ferreira e o Gustavo de Oliveira.

Essa vivência do mato deve ter sido muito aventuresca...

Para mim, essa é uma parte da vida da qual tenho gratas recordações, nossas primeiras experiências no mato. Porque éramos pessoas de cidade. Meu pai ficou muito escandalizado quando eu disse que ia trabalhar com o Evandro Chagas: "Mas você vai se meter no interior! Você tem possibilidade de ter um bom laboratório aqui." Eu respondi: "Mas esse tipo de trabalho deve ser muito mais interessante do que o que eu faço." E optei por um salário muito menor, para trabalhar com o Evandro no interior.

Dr. Deane, como foi o primeiro contato com o Evandro Chagas, como se desenvolveram as atividades do instituto?

O Instituto de Patologia Experimental do Norte foi criado pelo governador com a condição de se dedicar não somente ao calazar, mas também a outras doenças tropicais importantes daquela região, como a malária, a leishmaniose tegumentar, a amebíase, as parasitoses intestinais etc. Mas era natural que o calazar tivesse sido a primeira doença estudada pelo instituto. E foi com o calazar que o Evandro Chagas começou a trabalhar com a sua equipe. A primeira viagem foi feita em dezembro de 1936.

Essa primeira viagem foi a uma cidade chamada Abaeté, hoje Abaetetuba, porque os poucos casos de viscerotomia registrados no Pará tinham vindo daquele área. No mesmo dia da chegada a Abaeté fomos subir o rio Abaeté, que era o rio em cujas cabeceiras moravam os doentes detectados por viscerotomia. Mas ao chegarmos numa cachoeira o Evandro achou interessante parar, porque cachoeira, é ponto de parada de qualquer canoa que suba ou desça o rio. Seria uma boa oportunidade estacionar naquela cachoeira por alguns dias, examinando os pacientes que subiam ou desciam e tinham que puxar a canoa para a margem. Então ficamos nesse lugar, que se chamava Cachoeira do Rio Abaeté, e foi nosso primeiro contato com a selva. Com Evandro, armávamos nossas redes entre as árvores, nós que nunca tínhamos saído de Belém, sempre citadinos. E tivemos uma experiência bem especial, porque todos os ruídos — ruídos dos sapos, dos grilos etc. — para nós eram como se fossem feras. Imaginávamos onças e outros bichos desse tipo, porque não estávamos acostumados a dormir no mato. Nesses primeiros dias, dormimos com as redes armadas entre as árvores. O Evandro levava armas, cada um de nós tinha uma para se proteger dos bichos.

E o senhor sabia atirar?

Não, não sabia atirar. Nessa primeira noite nós não dormimos, eu e meu irmão; de vez em quando chamávamos, perguntando o que o outro estava vendo, sentindo ou ouvindo etc. Na manhã seguinte, quando meu irmão foi calçar sua bota, tinha uma cobra dentro dela. Começou assim.

Começou logo no segundo dia?

No segundo dia já tinha uma cobra dentro da bota! O Evandro achava tudo muito engraçado, porque era um sujeito muito corajoso. Realmente ele dava o exemplo para tudo, porque era um homem muito arrojado, audacioso, inclusive. Fazia questão de mostrar que não tinha medo de coisa nenhuma. Como eu disse, ele ia para essas viagens de bermudas, botas e o chapéu colonial. E naturalmente os outros apetrechos, como a máquina fotográfica e o microscópio de campo, que ele usava a tiracolo também.

Começamos a examinar os pacientes e fomos logo entrando em contato com várias doenças sobre as quais tínhamos pouca informação. Bouba, por exemplo, que não víamos muito no hospital de Belém, naqueles primeiros dias vimos logo vários casos, além de úlcera fagedênica tropical e outras coisas. Mas não vimos nenhum calazar, pois os casos de calazar eram nas cabeceiras do rio. Então resolvemos ir até lá, com o Evandro, naturalmente, dirigindo a coisa. Enfim chegamos nas cabeceiras, num lugar chamado Piratuba. Foi lá que encontramos os primeiros casos de calazar, vivos, da região amazônica. O que fazíamos de modo sistemático era examinar as pessoas, procurando gente com o baço grande. Naqueles que tinham baço grande, fazia-se a punção do baço para procurar a leishmânia.

O Evandro voltou muito contente porque a viagem tinha sido bem-sucedida e nos deu instrução para voltarmos a essa mesma região, fazendo conosco um programa, uma rotina de trabalho. Depois que ele veio para o Rio, passamos a freqüentar essa região todos os meses durante dois anos, passávamos mais ou menos metade do mês nesse local. E o Evandro vinha várias vezes durante o ano, para visitar a região e discutir conosco, nos orientar e avaliar o trabalho.

Nossa vida nessa ocasião era mais ou menos a seguinte: primeiro, as viagens de Belém para a região endêmica passaram a ser feitas em aviões do Correio Aéreo Nacional. Eram aviões da Primeira Guerra Mundial. Eram biplanos, monomotores, com lotação para um passageiro e um piloto. Para nos levar, o piloto fazia várias viagens de Belém até a cidade de Abaeté, onde o prefeito tinha mandado capinar uma área para os aviões poderem descer. Esses aviões tinham as asas de lona, evidentemente remendadas a esparadrapo. Nos levavam aos poucos, fazendo várias viagens por dia para a cidade de Abaeté. Aí nos concentrávamos na cidade e seguíamos para Piratuba, já por terra, por uma picada na floresta; eram 18 quilômetros.

Na nossa rotina de trabalho, primeiro morávamos numa das palhoças de um habitante da região, que nos cedia um quarto da casa dele, onde armávamos as redes e dormíamos. O Evandro tinha levado para lá duas barracas, duas tendas de lona. Eram só dois pedaços de lona, um dos quais cobria o refeitório e o outro, o laboratório. Então, durante dois anos dormimos na casa desse caboclo, comemos nessa barraca de lona e fizemos todos os exames de laboratório, as autópsias e tudo na outra barraca coberta de lona. Naturalmente que não havia banho, o banho era de igarapé, não havia nenhuma facilidade sanitária, a floresta era a nossa privada e a alimentação era principalmente caça, porque os locais viviam em grande parte de caça, bastante abundante nessa região.

Qual era a caça?

Lá tinha, por exemplo, paca, cutia, tatu, vários desses bichos. O pessoal nativo caçava e o Evandro fez uns preços para os bichos, a fim de que pudéssemos examiná-los também. Então comprávamos os bichos, tirávamos o material todo para exame e comíamos, quando eram comestíveis.

O meio de transporte das populações de um lugar para outro era através do rio?

Mais através do rio. Mas a questão é que descobrimos que o calazar era uma doença de terra firme e não existiam grandes vias aquáticas, somente riachos muito estreitos chegavam até lá.

E a reação da população com relação a essas técnicas, por exemplo, de punção no baço e a própria autópsia?

Se não fosse por uma pessoa audaciosa como o Evandro, acho que dificilmente teríamos persistido, porque no princípio era uma coisa bastante difícil. Os adultos não queriam, não se deixavam puncionar e também não queriam que se fizesse punção nos filhos. O Evandro insistia, lembrava os casos dos que tinham morrido diagnosticados por viscerotomia, tentava convencê-los de que fora aquela doença que não tinha sido tratada e por isso os garotos tinham morrido. Até que eles foram deixando fazer a punção. Não houve acidente, mas que houve uma certa irresponsabilidade de nossa parte...

Era isso que eu ia perguntar...

Nós éramos recém-saídos da faculdade, não tínhamos nenhuma experiência. O Evandro era muito audacioso também, porque queria encontrar os casos; então ele puncionava sistematicamente. Lógico que lá não existe cama, é só rede. As punções não podiam ser feitas em rede porque é muito difícil, tinham que ser feitas com as pessoas deitadas no chão ou então em pé. Eu me lembro que uma vez o Evandro puncionou um sujeito que estava bebendo cachaça num boteco, estava bastante bêbedo. E o Evandro: "Ah, esse tem baço grande, tem que puncionar. Precisamos puncioná-lo." E puncionou esse bêbado que estava quase caindo no meio do boteco...

Ele nem percebeu, não é?

Puncionou o baço dele! Pois bem. Então, se fazia punção de baço, depois preparava-se o material, as lâminas, e o levava para o laboratório. No laboratório corávamos o material, examinávamos e procurávamos a infecção. Depois de poucos dias começamos a verificar que havia cães positivos. Não se tinha idéia de que cachorro, na nossa região, pudesse ter calazar. Na Índia não há calazar canino, embora exista no Mediterrâneo. Não sabíamos como era entre nós, pensávamos que talvez não existisse calazar nos cachorros. Mas, ao examinar os cachorros por punção de fígado, começamos a encontrar cachorros positivos. Aí a nossa vida tornou-se muito mais complicada; examinar as pessoas era mais simples, mas examinar os cachorros não era fácil. Primeiro, porque havia raiva naquela região, então era preciso um certo cuidado. Depois, os donos, às vezes, preferiam que puncionássemos os garotos da casa do que os cachorros. Os cachorros geralmente eram muito importantes para eles, porque eram caçadores.

Como o Evandro achava que a doença era uma doença autóctone e tinha um reservatório silvestre, provavelmente vinha de um animal silvestre, começamos a examinar sistematicamente os mamíferos silvestres. Examinamos um número muito grande de mamíferos; eram caçados ou então comprados de caçadores. Examinávamos o sangue, fígado, baço, fazíamos o exame das vísceras. Passamos dois anos fazendo esse tipo de trabalho, meu irmão também.

Dr. Deane, encontramos uma documentação no arquivo do Evandro e vimos que vocês tinham uma atividade clínica muito importante, paralela a essa.

A parte clínica era secundária para nós. Fazíamos a parte clínica, primeiro, porque o Evandro queria ter uma idéia a respeito das doenças da região; segundo, porque era preciso tratar das pessoas para elas poderem nos ajudar, porque não podíamos ir lá só para fazer punção de baço sem dar remédios ao pessoal; então nós os examinávamos. Esse exame era feito mais pelo meu irmão, que era clínico — eu não gostava dessa parte. As pessoas eram examinadas e os casos que se podia diagnosticar eram tratados na medida do possível, também. Levávamos bastante remédio para as doenças mais comuns.

E na concepção do Ipen, dr. Deane, ele teve a preocupação de implantar algum serviço de saúde nessa área, devido às doenças endêmicas que lá existiam?

Ele se deteve muito mais na solução dos problemas de transmissão de doenças, começou a dar mais importância a isso do que à própria assistência médica. Ele achava que esta deveria ficar a cargo dos serviços de saúde locais, que talvez pudessem trabalhar com a cooperação científica do trabalho dele. Seu trabalho poderia orientar o pessoal do serviço de saúde. Mas ele era um clínico, e um bom clínico.

Professor, ele morreu muito cedo, num desastre de avião. Como foi o momento da morte dele? Como estavam os trabalhos? E depois, quais foram os efeitos disso?

Eu estava no Nordeste, mas ainda tinha gente trabalhando no Pará. A morte do Evandro, na verdade, foi um choque muito grande para o pessoal que trabalhava com ele, e aqueles que estavam trabalhando nos problemas que o Evandro tinha começado a resolver pararam durante algum tempo. Houve uma série de interrupções; não foram muitas, mas houve. Porque ele era um líder e fez uma falta muito grande.

Como o senhor vê, que importância teve o Ipen na prática sanitária? Ou seja, qual foi seu papel no avanço da ciência na saúde pública, já que foi um instituto pioneiro?

O papel principal do instituto foi o de ter feito um verdadeiro mapeamento das doenças da Amazônia. Antes do Instituto Evandro Chagas, tinha-se uma idéia muito superficial a respeito dos problemas sanitários da Amazônia. E o instituto então, realmente... Começou com o calazar. Mas o calazar era uma doença muito pouco importante em relação a outras, como, por exemplo, a malária, a leishmaniose tegumentar, as verminoses intestinais, a leptospirose, a filariose etc. Todas essas outras doenças, depois, entraram para o rol das pesquisas do Instituto Evandro Chagas; aí já passou a se chamar Evandro Chagas — ele foi Ipen só por poucos anos, quando Evandro Chagas morreu o instituto passou a se chamar Evandro Chagas.

Ainda tenho algumas perguntas. Olhando o material que tenho, vi que aconteceu uma série de incidentes com o senhor. Uma vez o senhor se inoculou involuntariamente, alguma coisa da leishmânia, não é?

Não, foi voluntariamente. Quando estávamos estudando leishmânias, não sabíamos ainda qual o transmissor. Sabíamos que o inseto sugava o cachorro com leishmânia, com calazar, e vimos que estes insetos eram principalmente Flebotomos longipalpis. Então pegamos alguns desses Flebotomos longipalpis, conservamos vivos, para depois examiná-los e ver se tinha leishmânia dentro deles e se podiam, portanto, se infectar no cachorro para depois transmitir para as pessoas. Estávamos o Otávio Mangabeira e eu, para dirimir as dúvidas. Examinamos os flebótomos alguns dias depois. Eu me lembro que começamos a examinar esses flebótomos às oito horas da noite; Mangabeira é que estava examinando. Éramos muito novos e aquilo era novidade, uma coisa que ninguém nunca tinha visto antes, ninguém sabia se este bicho era transmissor da leishmânia. Se eles pegavam, podiam ser transmissores também. Então tivemos a idéia de nos inocularmos para ver se na verdade aquelas leishmânias eram leishmânias de calazar. Diluímos o material de um daqueles flebótomos na seringa, eu injetei no braço dele e ele injetou no meu braço, para ver se pegávamos o calazar. Se pegássemos, estávamos confirmando que aquele inseto era transmissor do calazar. Sabíamos que a doença era curável...

Mas não pegaram a doença?

Não, nunca pegamos. Mas esse nosso trabalho nos valeu uma reprimenda do Evandro. Quando ele chegou na região, disse assim: "Vocês foram uns burros, porque se inocularam com a leishmânia, mas estão morando em área de leishmaniose. Foi uma experiência boba, sem nenhuma conseqüência. Se vocês me aparecessem com calazar, não podia garantir que estavam com calazar devido à injeção."

O senhor também pegou alastrim na época, não é?

É, peguei alastrim e... levei para minha casa. Toda a família pegou. Peguei colhendo sangue de doentes de alastrim, para ver como eles reagiam em relação às provas que se fazem para o calazar. Queríamos experimentar com o maior número de doenças possível. Quando apareceu um caso de alastrim, lá fui eu tirar sangue do caso de alastrim...

As doenças da região não davam medo?

Não, esse medo nós não tínhamos, era um negócio profissional. Numa dessas conferências eu falei nisso. Os pilotos que nos levavam para o interior ficavam apavorados quando tinham que dormir lá conosco para voltar no dia seguinte; usavam repelente, ficavam assustados. Quando estávamos voando, eles estavam muito bem e nós cheios de pavor dentro do avião. Aqueles aviõezinhos pequenos... de vez em quando caía um. Naquele tempo a aviação era muito mais atrasada do que hoje; queda de avião era muito freqüente. Mas viajamos sempre de avião, sempre com medo, sempre pensando: "Com esse avião, vamos chegar ao destino?"

O senhor acha que a leishmânia visceral era uma doença endêmica na região?

Devia ser. A leishmaniose se espalhou depois, quando houve uma expansão do flebótomo para outras áreas. Com essas várias empresas que estão entrando pela Amazônia, a paisagem mudou e se tornou melhor para o inseto do que era antes. Então ele entrou em várias áreas onde não existia anteriormente. Por isso, atualmente, a leishmaniose visceral é bem mais freqüente no Pará do que era naquela época. O ambiente se tornou melhor para o inseto. Porque ele é um flebótomo que só anda em floresta baixa. Se diminui a floresta, ele aumenta em número.

O senhor fez entomologia e parasitologia, não é?

Não, eu hoje faço parasitologia.

Hoje em dia, mas naquele começo de carreira...

Sempre foi Parasitologia. Não sou entomologista profissional. Eu me voltei para a entomologia porque era preciso que alguém conhecesse os insetos transmissores de doenças. Mas não sou entomologista. Entendo mais de protozoários do que de insetos — protozoários causadores de doenças. Mas entendo dos insetos como transmissores de doenças causadas pelos protozoários.

Acho que podemos encerrar esse período e o senhor pode contar como acabou saindo do Pará e se ligando à campanha do gambiæ.

A invasão do Anopheles gambiæ foi um fato muito importante. Em 1928, o Adolfo Lutz esteve em Natal para escolher o local para a construção de um leprosário. O Adolfo Lutz achava que a lepra era transmitida pelo mosquito. Então foi a Natal estudar que espécie de mosquito havia lá e, quem sabe, esses mosquitos podiam ser transmissores de lepra? Ele era um homem muito versátil, também entendia quase tudo de parasitología. De todos os cientistas do instituto, foi o mais versátil.

Pois bem, Adolfo Lutz esteve lá, verificou que estavam planejando fazer viagens transatlânticas — o ano era 1928 — e chamou a atenção do governo para a possibilidade da invasão no Brasil dos insetos vindos da África. Dois anos depois, essa profecia se realizou. Um americano da Fundação Rockefeller, Raymond Shannon, estava estudando febre amarela. Num domingo, para se divertir, fazer higiene mental, foi procurar mosquitos. E, com surpresa, encontrou mais ou menos umas duas mil larvas de um tipo de mosquito que não conhecia. Então foi pesquisar e verificou que era um mosquito africano, o Anopheles gambiæ.

Isso foi uma descoberta sensacional, porque os animais não passam de uma região para outra. Por exemplo, não há animais europeus nas Américas, exceto os que foram trazidos pelo homem. Quando falo em animais, refiro-me também a mosquitos e flebótomos, pulgas — todos esses bichos só se tornam cosmopolitas quando são parasitas do homem ou de algum animal doméstico. Fora isso, os animais estão restritos à sua região de origem.

Então, as espécies são próprias de cada continente. Um mosquito africano aqui no Brasil era um escândalo! Como é que pode, uma espécie africana no Brasil? Não era o primeiro, porque o Aedes aegypti, transmissor da febre amarela, já tinha vindo para cá no século passado. Mas esse novo mosquito africano tinha uma característica: não existe nenhum transmissor de malária tão importante, tão perigoso quanto o gambiæ. Porque é um mosquito que vive quase exclusivamente do homem, transmite facilmente de homem a homem, não liga para animais. Depois, é um mosquito que vive dentro das casas. O pessoal que entendia do assunto ficou alarmado.

Ele era conhecido na África, já era estudado pelos africanos?

Era muito conhecido. Era conhecido como o maior transmissor de malária na África e no mundo. O Shannon avisou a seu chefe, dr. Soper, deram alguma importância, mas não tanta, porque estavam todos voltados para a febre amarela. Tanto que o chefe de serviço disse: "Mas você, em vez de estar procurando febre amarela, vai procurar mosquito que não tem nada a ver com febre amarela!" (risos) O Shannon foi até criticado pelo seu chefe.

Agora, como é que surgiu esse Anopheles gambiæ?

Naquela ocasião só um avião tinha vindo ao Brasil e não parara em Natal. Naquele tempo, já havia dois anos que alguns avisos de guerra franceses — era um tipo de navio, muito rápido — estavam fazendo viagens entre Dacar e Natal, a fim de examinar as condições atmosféricas para os futuros vôos transatlânticos dos aviões. Como é que se soube? Porque foi no ancoradouro desses navios — e só lá — que o gambiæ foi encontrado.

Logo no princípio, como no Nordeste quase não existe malária, e como também é uma região seca, não tem temperaturas pesadas, o gambiæ não se manifestou. Mas no mesmo ano de 1930, quando o Shannon encontrou o gambiæ, houve uma epidemia de malária em Natal. Uma epidemia enorme! Basta dizer que, num bairro de 12 mil habitantes, dez mil tiveram malária. Um entomologista da Rockefeller, que estava passando por lá naquela ocasião, examinou os exemplares do gambiæ e encontrou 30% de mosquitos com malária, prontos para transmitir. Este é um índice incrível, porque geralmente é de 2%, 5% no máximo. Havia grande perigo para o Brasil. Mas naquele ano houve muita seca e a epidemia regrediu, também com a ação do governo. O pessoal se esqueceu do gambiæ. O combate foi feito só com higiene sanitária, aterrando as poças de água, jogando querosene nas poças; foi feito da maneira tradicional daquele tempo. Entre 1930 e 1937, o gambiæ silenciou. Durante os sete anos seguintes houve só casos esporádicos de malária ali. Até que veio um ano de mais chuvas, 1938, e formou-se uma porção de criadouros propícios ao Anopheles gambiæ; ele começou a se expandir e atingiu os rios Apodi e Açu no Rio Grande do Norte, depois entrou pelo Jaguaribe e no Jaguaribe, em 1938, causou a maior epidemia de malária que já houve no Brasil. Foram 14 mil mortos em oito meses de epidemia. Era uma epidemia tão intensa que as cidades do vale do Jaguaribe, naquele tempo, pareciam comunidades religiosas em que todo mundo andava de luto. Era uma coisa impressionante quando se descia naquelas cidades, a população toda de preto por causa da epidemia.

E a Rockefeller, como entra nisso?

Então a Rockefeller, em combinação com o governo brasileiro — porque parece que a coisa partiu da Rockefeller mesmo —, estudando o assunto, resolveu tentar erradicar o Anopheles gambiæ do Brasil. Os americanos estavam muito interessados nisso. Naquele tempo ainda não tinha começado a Segunda Guerra Mundial, mas eles já estavam prevendo qualquer coisa. E estavam com muito receio que de esse Anopheles gambiæ se espalhasse pelo Norte da América do Sul e chegasse ao canal do Panamá, por exemplo. Então resolveram investir não só em dinheiro, mas em know-how, mandando técnicos especializados para cá. E fizeram um convênio com o governo brasileiro, criando o Serviço de Malária do Nordeste, um serviço bastante autônomo, com uma burocracia muito reduzida, muito particularizada, sem desperdício, mas de um rigor tremendo, de uma disciplina militar.

Era um serviço muito disciplinado, que chegou a ter quatro mil pessoas, mas na verdade não tinha nem vinte americanos. Quase todos eram brasileiros mesmo, mas com uma disciplina quase militar. Todos os funcionários tinham que se barbear diariamente. Não se podia começar o serviço sem ter feito a barba. O serviço fornecia dois uniformes; eles tinham que ser lavados, tinham que estar limpos, os sapatos engraxados, os botões no lugar. Os salários eram muito altos. Basta dizer que um guarda-chefe ganhava mais do que o prefeito da cidade de Aracati, que era a sede do serviço. Então, todo mundo queria ser guarda do Serviço de Malária do Nordeste e não queria perder o emprego.

O rigor era tal que os microscopistas desse serviço contrataram vários garotos, adolescentes locais, ensinaram a reconhecer a larva do gambiæ, os adultos do gambiæ, distingui-los dos outros mosquitos. Um grupo de trabalhadores recolhia os mosquitos, ia guardando numas caixinhas e trazia para o laboratório. Essas equipes de rapazes e moças então examinavam e procuravam o gambiæ entre os mosquitos capturados. E eles tinham que, com cuidado, verificar se havia algum gambiæ entre eles. Se havia, tinham que registrar, para saber em que lugar tinha aparecido o gambiæ. Se erravam no diagnóstico do gambiæ, perdiam um dia de pagamento. Era uma pena muito séria porque, afinal de contas... Eu me lembro, estive no laboratório deles, onde uma moça verificava quinhentos mil exemplares por dia. Se ela errava um, se deixava passar um gambiæ, perdia um dia. Era um serviço muito duro mesmo, desumano, pode-se dizer. O mais engraçado é que nós, que éramos encarregados dos laboratórios, tínhamos que, naqueles tubinhos com larvas ou nas caixas com mosquitos adultos, colocar de vez em quando um gambiæ e marcar a caixa que tinha o gambiæ. Sabíamos que aquela caixa e aquele tubo tinham o gambiæ; portanto, prestávamos atenção para ver quem tinha deixado passar aquele gambiæ.

Uma armadilha!

Era uma armadilha, diariamente.

Dr. Deane, o Serviço de Malária do Nordeste tinha a sede principal em...

A sede principal era em Fortaleza.

Eram serviços que tinham toda a estrutura em Fortaleza ou lá era só a sede?

O Serviço de Malária do Nordeste tinha divisões. Tinha a Divisão Mossoró, que era no Rio Grande do Norte, Divisão Ipó, Iguatu, Cascavel e... não me lembro, mais umas duas ou três outras divisões. Havia um médico-chefe que tinha, por sua vez, um guarda-chefe geral, que tinha seis guardas trabalhando com ele. Tudo era feito militar. Tinha o tenente, o major, o capitão-major...

Qual foi o critério da divisão de área do serviço?

No princípio seria onde estava havendo malária. Tentou-se cobrir essa zona onde já estava havendo malária, para ver se de fato o gambiæ estava presente. Então faziam um serviço de identificação que abrangesse essa área onde estava havendo malária, para depois estabelecer um serviço de delimitação da área do gambiæ. Esse era um serviço especial e eu fui encarregado dele durante um ano. Às vezes era muito duro, porque era preciso saber até onde o gambiæ tinha chegado nas margens daqueles rios. Nós seguíamos o rio para verificar se o gambiæ não tinha ultrapassado aquele ponto ou se já estava num lugar mais acima. Isso nos obrigava a trabalhar desde o amanhecer até o anoitecer, sem nenhum conforto, andando a pé, em jumento e com toda a carga... Nesse tempo, eu tinha dois jumentos e quatro guardas comigo. Dois guardas trabalhavam num dia e descansavam no dia seguinte, enquanto os outros dois trabalhavam. Eu trabalhava todos os dias e meus guardas trabalhavam dia sim, dia não. Passávamos o dia nas poças d'água para procurar larva, para ver até onde o gambiæ tinha chegado. Uma vez começou a haver epidemia; então tive que seguir noventa quilômetros por esse rio, durante um mês, examinando diariamente as poças d'água, junto com esses guardas, a pé, vendo até que ponto o gambiæ tinha chegado. Isso significava dormir todos os dias em lugares diferentes. Quando o crepúsculo chegava, víamos alguma casa próxima e íamos dormir nessa casa. Dormíamos em redes armadas no alpendre ou nos depósitos de cereais, aqueles depósitos de milho. Uma situação bastante desconfortável e um ambiente infestado por parasito! Se usávamos uma rede local, era muito possível que no dia seguinte estivéssemos infestados de percevejos, porque lá havia muito percevejo. Era esse o trabalho de verificação da área de expansão do gambiæ.

E quando vocês chegaram, esse sistema já estava instalado?

Quando o Evandro Chagas soube do gambiæ, mandou meu irmão, Gladstone, depois a mim e a Maria, para ver alguma coisa a respeito desse mosquito lá no Ceará mesmo, em Aracati. E nós fomos. Tinha havido uma grande epidemia de malária, que começou em 1938, nós chegamos em 1939 e já tinham morrido quase 14 mil pessoas. O serviço já estava instalado, o laboratório já estava funcionando. Nós entramos, os três, diretamente para o laboratório do Serviço de Malária do Nordeste. Tinha chegado ao Nordeste um americano chamado Marshall Barber, um dos principais malariologistas americanos, que foi convidado pela Rockefeller para estudar essa epidemia do gambiæ, dar sugestões. Ele então ficou três meses no Ceará, trabalhando com a Rockefeller. E fomos incumbidos de trabalhar com ele. Quando chegamos, ficamos à disposição desse americano. Às seis horas da manhã ele já estava trabalhando. Era muito rigoroso, mas aprendemos muito com ele. O chefe do serviço, um americano chamado Fred Soper, sabia disso. Então nos disse: "Vocês vão trabalhar com o dr. Marshall. Ele é um homem que vocês vão ter dificuldade de acompanhar, porque anda muito depressa, trabalha desde a manhã até a noite. Não vai ser fácil trabalhar com ele. Depois, ele é uma pessoa que, pela idade, já é um pouco impaciente. Mas vocês devem tratá-lo como se ele fosse uma tia velha, milionária" (risos).

O Soper tinha senso de humor!

Ele tinha. Masr era um homem realmente muito crítico, reparava muito nas coisas. Queria que chegássemos no laboratório às seis da manhã. E nós, às seis da manhã, estávamos no laboratório mesmo. E, às vezes, ele já tinha examinado várias lâminas a essa hora. Ele reclamava muito, mas em poucos dias se acostumou conosco. E depois de algumas semanas de convívio ficou muito camarada também. Dizia: "Vocês são muito bons!"

Qual era o projeto, o objetivo dele?

Estudar os criadouros de mosquitos. Primeiro, descobrir onde esses mosquitos estavam se criando, quais eram as águas onde eles se criavam. Segundo, se esse mosquito era um mosquito criado só dentro de casa mesmo ou se estava picando muito as pessoas fora de casa; se eles se alimentavam dos animais, assim como do homem também.

A intenção era constatar detalhes do gambiæ que ainda não eram conhecidos?

Conhecia-se já o gambiæ na África, mas não se sabia como era... Existem várias variedades do gambiæ. Sabemos que são seis variedades, cada uma completamente diferente da outra. Então não se tinha idéia de como era o gambiæ no Brasil. O Marshall Barber era muito engenhoso, inventou várias técnicas para o estudo de malária.

E na relação dele com vocês, que eram iniciantes, havia também essa rigidez?

Havia. Mas isso tudo é para dizer que em 1939 ele não tinha muita confiança no sucesso do serviço. Tanto é que uma das sugestões dele foi que as rendeiras do Ceará fossem treinadas para fazer mosquiteiros, para distribuir a toda população.

Mas o Soper tinha muita confiança no Verde Paris, que era uma idéia do próprio Barber, e na aplicação de inseticida nas casas. Vocês sabem, quem primeiro tentou combater a malária através da luta contra o mosquito adulto foi Carlos Chagas, em 1905, aqui no porto de Santos. Ele verificou que o mosquito dava muito dentro de casa; então achou que matando o mosquito dentro de casa era possível acabar com a malária, coisa que não se fazia na época. Todo mundo combatia as larvas do mosquito fazendo drenagens e aterros ou colocando querosene nas águas. Era assim que se fazia o controle de malária. E o Carlos Chagas teve essa idéia de fazer o controle matando os mosquitos adultos. Mas isso foi esquecido. Só em 1934 é que Parke Davis e um sul-africano resolveram controlar a malária no Sul da África, aplicando piretro dentro das casas.

Em 1905, o Chagas obteve sucesso na experiência?

Teve sucesso, acabou com a epidemia de malária em Santos.

Nem mesmo o sucesso dele foi suficiente para que a inovação se difundisse?

Não, não foi. Foi uma coisa muito local, não teve repercussão fora do Brasil. E, no Brasil, todo o pessoal de Santos estava com a idéia de que se tinha que seguir as medidas tradicionais, como o antilarvário. O pessoal, principalmente o de saúde pública, tem muito medo de estar fazendo qualquer coisa errada. Eles acham que não sabem bem as coisas, que os cientistas é que sabem. Então têm medo de fazer qualquer coisa que não seja aquilo que está indicado nos manuais de trabalho.

Então a campanha contra o gambiæ começou com a presença desse americano, que apoiava os métodos sugeridos, sendo que um dos métodos fora descoberto por ele mesmo; o outro tinha uma base também já científica. Mas havia muita reação, tanto contra a utilização do Verde Paris nas águas quanto contra a aplicação de flit nas casas. Havia muita dificuldade no Nordeste para se poder implantar isso, não foi tão simples. O pessoal achava que aquele Verde Paris era veneno. Tem cara de veneno mesmo, é um pó verde que era jogado nas águas — o pessoal achava que os animais que bebiam aquela água morriam. E esse Barber, sabendo disso, uma vez resolveu ir a um desses lugares conosco e quis mostrar para o pessoal que isso não acontecia. Botou um pouco de Verde Paris num copo de água e ele mesmo, na frente dos donos da casa, bebeu aquela água com o Verde Paris, para mostrar que uma quantidade pequena não matava. Fez essa demonstração. Não queriam, achavam que não era remédio. Para começar, não acreditavam que a malária era transmitida por mosquito, aquilo para eles era bobagem.

Queria que o senhor comentasse uma afirmação do Barber, em que ele falava que a chegada do gambiæ era de importância comparável — em termos de mortalidade e da — possibilidade de adaptação do gambiæ ao continente americano — às grandes conflagrações e aos grandes problemas mundiais de saúde pública.

Naquele tempo se pensava assim. Pensava-se mesmo que era um problema muito sério. Hoje, como já temos conhecimento sobre os criadouros e os hábitos do bicho, acho que já temos as armas para impedir a coisa, estamos preparados para qualquer invasão. Se for dessa variedade, o gambiæ, já temos armas para impedir que ele se espalhe. Ele é um mosquito que não atravessaria a Amazônia, por exemplo, porque não cria em lugar sombreado, ao contrário do que se pensava naquela época. Naquela época, pensava-se que talvez ele fosse pouco a pouco chegando até o Piauí, depois Maranhão, Pará, entrando pelo Amazonas e pegando o canal do Panamá. Depois se constatou que isso não devia acontecer.

Para o senhor, para os técnicos que estavam envolvidos na campanha, como era esse clima de ser possível ou não a erradicação?

Quando trabalhávamos, achávamos que devia ser uma coisa muito difícil acabar com esse mosquito que existia por toda parte, aos milhares. Pegavam-se mil, mil e quinhentos mosquitos numa casa. Era uma peste! Como esse gambiæ pica só dentro de casa e não fora de casa, passávamos por aquelas praias nos arredores de Aracati e víamos a população dormindo na praia, marido, mulher e filhos. Faziam buracos na areia, escavavam e passavam a noite dormindo na praia; não podiam dormir dentro das casas por causa do gambiæ.

A idéia era de que vocês poderiam acabar com o surto epidêmico ou acreditavam que se podia erradicar o vetor?

O medo que tínhamos naquele tempo — e todo mundo tinha — é que o bicho estivesse já muito longe da área conhecida. E é por isso que existia esse serviço de delimitação da área onde me colocaram. Tinha-se medo que o gambiæ já tivesse passado por aqueles rios no verão, chegado a lugares muito distantes e depois começasse a se multiplicar longe da área conhecida, provocando epidemias. Mas havia muito medo que acontecesse alguma coisa desse tipo. Por isso é que a fiscalização era muito rigorosa. Todas as estradas de ferro e de rodagem, as poucas existentes naquela época, tinham, na saída da área endêmica, barracões que podiam ser fechados completamente e onde guardas aspergiam com inseticida cada carro que passava. Cada automóvel, cada trem, cada caminhão que passava era desinsetizado. Depois os aviões também passaram a ser, para evitar o transporte do gambiæ de uma área atacada para uma área ainda livre dele.

Então esse levantamento de que o senhor participou no início foi fundamental?

Não digo que foi fundamental, mas pelo menos encontrei o gambiæ em vários lugares onde não se sabia da existência dele. A cada vez que se encontrava o gambiæ num lugar, era preciso andar três quilômetros acima no leito dos rios. Se não se encontrasse mais nenhum nesses três quilômetros, deduziam que, provavelmente, não havia nada mais adiante.

Devido à capacidade de vôo do gambiæ?

Sim, a capacidade de vôo do gambiæ não era muito grande. Então imaginávamos que o cálculo de três quilômetros era razoável. Na área delimitada rios e riachos eram todos numerados, mapeados, todas as casas eram numeradas e mapeadas, todas as coleções de água também, cada poça d'água tinha um número. Cada guarda era responsável por uma légua quadrada diária e tinha seu próprio mapa. Naquele mapa ele tinha as casas, números tais e tais, as águas, números 1.512, 1.513, 1.514, 1.515, 1.516... Aquilo era responsabilidade dele. Cada grupo de seis guardas tinha a orientação de um guarda-chefe que, por sua vez, era responsável pelo trabalho dos seis. Tinha que fiscalizar constantemente. Havia um grupo de guardas que examinava as águas para procurar as larvas do gambiæ e outro que colocava o inseticida. Todos os dias os guardas tinham que preencher os boletins, mostrando, por exemplo, que o depósito 1.312, que estava negativo há três semanas, estava positivo naquele dia.

Mas esses depósitos de água não variavam com a chuva?

O mapa era refeito a cada semana. Durante a semana, o guarda tinha o itinerário dele. Sabia que no segundo dia ia ver tais e tais águas ou tais e tais casas. Na terça-feira, tais águas e tais casas. Na quarta-feira, a mesma coisa. O guarda-chefe sabia, na quinta-feira, onde iria encontrar o guarda trabalhando. Se ele não era encontrado no lugar onde tinha que estar na quinta-feira, era multado.

E havia muita rotatividade de pessoal?

Havia muita, mas muita rotatividade! No princípio, foi um pouco ruim, porque o pessoal treinava e depois saía porque não dava certo. Mas depois foi ficando um pessoal melhor, cada vez melhor, até que ficou gente muito boa, gente que depois foi para o Sesp aquele grupo excelente, de inteira confiança.

E não houve deslocamento de pessoas do Sul para o Nordeste, nesse nível de guardas?

Não tanto. Quase todos os guardas eram locais. Mas muitos guardas da febre amarela foram deslocados para a campanha do gambiæ porque a febre amarela estava sendo um problema secundário, o gambiæ era o problema principal. A Rockefeller também levou muitos funcionários da febre amarela de outros estados para trabalhar no gambiæ. A campanha do gambiæ começou com o pessoal auxiliar da febre amarela, que já tinha bastante treino e treinava os garotos contratados localmente para fazer o trabalho.

Então a febre amarela serviu como uma espécie de matriz para uma série de coisas?

Sim, foi muito importante mesmo. Foi um treinamento, uma grande disciplina antes de tudo, a grande disciplina do Serviço de Febre Amarela. Essa disciplina desumana, pode-se dizer, veio do Serviço de Febre Amarela.

O senhor falou do Barber, mas, entre os outros americanos, algum em especial chamou à sua atenção? O senhor conviveu com o Soper, por exemplo. Como era ele?

Soper era um sujeito interessante. Primeiro, era muito antipático pessoalmente, um sujeito que não ria. Rarissimamente se via o Soper rindo. Vivia sempre de cara muito fechada, muito desconfiado de tudo. Fiscalizava tudo; à primeira vista, não acreditava em coisa nenhuma, o sujeito tinha que provar que não era safado.

Esse período em que o senhor esteve por lá era o período do Padre Cícero, não era?

Houve episódios interessantes nesse período. Quando estávamos lá, o Padre Cícero tinha deixado como tradição a idéia de que o demônio vinha tentar provocar o fim do mundo. Ele viria primeiro sangrando a população. Depois, no ano seguinte, o diabo viria furando os olhos e no terceiro ano vinha matar todo mundo. Acontece que a nossa caminhonete tinha o número 666, que é o número do Apocalipse. Chegavam aqueles três camaradas, meu irmão, a Maria e eu, tirando sangue das pessoas — a primeira profecia do Padre Cícero. Nós estávamos tirando sangue para procurar malária, mas ficaram muito desconfiados conosco. Ameaçavam-nos de morte, não podíamos ir em tal vila porque o pessoal "vai receber vocês muito mal, podem matá-los". Então, às vezes, não podíamos ir a determinados lugares. Havia muita dificuldade. O pessoal também fugia quando chegávamos. Íamos a um sítio, por exemplo, não encontrávamos ninguém. Todo mundo tinha sabido da possibilidade da nossa vinda; iam embora, deixavam as casas vazias.

Que nem os cavaleiros do Apocalipse!

É. Houve dois episódios de besta-fera comigo. Um dia em Iguatu, no sul do Ceará, cheguei numa casinha onde só tinha uma mulher e umas meninas tremendo de medo. Eu estava com dois guardas e expliquei para elas que ia tirar sangue, não doía nada, ia tirar primeiro das crianças para mostrar que não doía; enfim, aquela conversa de sempre. Mas elas, nada. Tremendo, tremendo, uns olhos assustadíssimos. Perguntei por que estavam assim. O guarda foi falar com elas e me disse: "Elas dizem que estão com medo que o senhor seja o diabo. O senhor tem que provar que não é o diabo, tirando as botas para mostrar que não tem pés de cabra." Tirei as botas, meias etc. para mostrar que meu pé não era de cabra. Então elas me deixaram tirar o sangue.

Em Icó aconteceu a mesma coisa em outra casa e o guarda me disse o que elas estavam querendo que eu fizesse: tinha que fazer o sinal-da-cruz em frente do crucifixo. E ele acrescentou: "Elas disseram que, se o senhor não explodir com cheiro de enxofre, deixam o senhor tirar o sangue." Fiz o sinal-da-cruz diante do crucifixo, não explodi e elas deixaram tirar o sangue. Era desse nível a crendice do pessoal do interior, naquela zona fanatizada pelo Padre Cícero no sul do Ceará.

Havia interferência de políticos locais, coronéis?

Não. Eles queriam emprego para os amigos, mas os americanos não davam a mínima bola. Já se sabia, o pessoal dizia: "Não podemos. Os americanos não deixam." Todos escapavam assim. Qualquer pedido de nomeação, o pessoal dizia: "Não pode. Tem que passar pelo americano, ele não vai concordar. Não adianta pedir."

Quando vocês chegavam nas cidades, nos povoados pelo interior, havia alguma tática do tipo "vamos primeiro contatar o prefeito, depois o padre" ou essa coisa acontecia naturalmente?

Não, nada era oficial. Fazíamos isso no tempo do Evandro. Mas, depois, os americanos não estimulavam muito. Diziam que tínhamos que nos comportar muito bem, manter boas relações com as autoridades, mas não achavam que era necessário procurá-los, porque talvez não fossem ajudar, talvez até atrapalhassem o serviço.

O serviço também era responsável pela parte assistencial?

Era, eram os guardas medicadores. Um médico era o responsável por esses guardas. Porque havia guardas capturadores, que pegavam larvas e adultos, guardas identificadores, que identificavam o material, guardas larvicidas, que matavam as larvas, guardas de desinsetização das casas, guardas medicadores, e também os chamados guardas do serviço de epidemiologia, que eram os que tiravam sangue das pessoas para examinar. Os guardas medicadores também tinham que visitar um certo número de casas por semana. Toda semana visitavam aquelas casas; se tinha gente doente, eles os tratavam.

E tudo isso era feito pelo Serviço de Malária do Nordeste? Não havia participação dos serviços locais do estado?

Não, não havia. Era completamente separado. O serviço nem queria, com medo que atrapalhassem.

Dr. Deane, o senhor falou que estava nesse serviço de levantamento dos limites do gambiæ. O senhor ficou fazendo isso o tempo todo ou foi só numa época?

Não, fiquei nisso só no ano de 1939. Em 1940, fui para Aracati, entrei no laboratório. Mas em grande parte desse primeiro ano, depois que deixei de trabalhar com o Barber, fiquei fazendo isso.

A dra. Maria e o dr. Gladstone não foram, não é?

Não, quando o Barber saiu, Maria foi para o laboratório de Aracati, ficou cuidando da identificação dos mosquitos, das larvas e da criação do gambiæ. Estava fazendo uma colônia para estudar os hábitos do gambiæ em laboratório. Ficou encarregada dessa parte, fazia trabalho de laboratório.

E seu irmão também?

O Gladstone deixou logo, trabalhou só poucos meses lá. Depois veio para o Rio.

Dr. Deane, do ponto de vista da realidade africana e do Nordeste, quais são as diferenças que fazem com que na África seja muito difícil a erradicação do gambiæ?

Primeiro, porque lá é a própria terra do gambiæ. Depois, outra coisa importante, é que na África, mesmo agora, não existe nenhuma campanha com a mesma energia da campanha do gambiæ. Basta dizer que o Soper acabou com o gambiæ no Egito também. O Soper foi para lá com o grupo dele e erradicou o gambiæ do Egito também.

Isso foi logo depois do Nordeste?

Já foi no fim da guerra. No fim da Segunda Guerra, o gambiæ invadiu o Egito. O Soper foi para lá e o erradicou. De maneira que lá ele é erradicável também.

Essa experiência do gambiæ foi muito importante, depois, para assegurar a possibilidade de erradicação?

Foi, porque foi a primeira vez que um bicho foi erradicado do continente por medidas de saúde pública, e num tempo tão curto. A campanha do gambiæ é um exemplo internacional de controle de malária.

Como foi o final da campanha? Depois de um esforço muito grande, houve alguma festa, alguma comemoração?

Houve uma festa no dia 7 de setembro. Demagogicamente, diziam que era a segunda Independência do Brasil. Fizeram uma festa grande em Fortaleza, um jantar com o pessoal da chefia etc. Foi mais para o staff de administradores, os chefes, Paulo Antunes, por exemplo, o Soper, o Wilson.

E quem deu duro lá no interior não participou da festa?

Eu, pelo menos, não participei. E já estava em Fortaleza nessa época.

Não tem uma hora em que a pessoa se cansa de estudar mosquito e quer mais é matar tudo que é mosquito que aparece?

Não, não! Acho que não. Estamos sempre querendo saber mais!

Ficha técnica

Duração: 27 h.

Local: Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

Data: de 2.1.1987 a 16.6.1988.

Entrevistadores: Nara Britto, Paulo Gadelha,

Rosbinda Nuñes, Rose Goldschmidt.

Conferência de fidelidade: Lina de Faria.

Edição: Sergio Goes de Paula.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1994
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