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Experiência de pesquisa em uma região periférica: a Amazônia

A research experience in a peripheral region: the Amazon

Resumos

Este artigo é um depoimento a respeito de uma pesquisa em história social, mais tarde transformada em livro, realizada na década de 1980, na Amazônia. O objeto de estudo era o ciclo da borracha, com ênfase nas relações de produção estabelecidas entre seringueiros, aviadores e 'barões da borracha'. A metodologia empregada utilizou como fonte principal diversos arquivos, entre eles revistas, jornais e outras publicações da época, assim como a análise de documentos depositados em cartórios de Belém. O projeto inseria-se no quadro teórico da discussão sobre a validade explicativa da teoria da dependência. O artigo aponta para algumas limitações da abordagem então adotada, sem contudo desdenhar o significado que o estudo assumiu no levantamento de questões relativas à resistência dos seringueiros com relação à exploração de seu trabalho e à existência de correntes de opinião contraditórias entre a própria elite da borracha.

história do Brasil; Amazônia; ciclo da borracha; história social; pesquisa historiográfica


This article, which has been turned into a book, is the narration of a social history research work taken place in the Amazon region in the 1980's. The research studied the rubber cycle, emphasizing the relations among rubber workers, airplane pilots and the so-called 'rubber barons'. The main sources of information used in the study come from magazines, newspapers and other publications from that period of time, as well as documents from Belém City Hall archives. The project was part of a theoretical discussion on the explanatory validity of the theory of dependence. The article focus on the limitations of the approach used at the time, but it does not disregard the important contribution of the research, which brought up new issues on the rubber workers' resistance against the exploitation of their labor force, as well as on the existence of contradictory views among the members of the rubber elite themselves.

Brazilian history; Amazon region; rubber cycle; social history; historical documentation research


Experiência de pesquisa em uma região periférica: a Amazônia

A research experience in a peripheral region: the Amazon

Barbara Weinstein

Department of History

University of Maryland/College Park

bswein99@aol.com

WEINSTEIN, B.: 'Experiência de pesquisa em uma região periférica: a Amazônia'.História, Ciências, Saúde – Manguinhos,Rio de Janeiro, vol. 9(2):261-72, maio-ago. 2002.

Este artigo é um depoimento a respeito de uma pesquisa em história social, mais tarde transformada em livro, realizada na década de 1980, na Amazônia. O objeto de estudo era o ciclo da borracha, com ênfase nas relações de produção estabelecidas entre seringueiros, aviadores e 'barões da borracha'. A metodologia empregada utilizou como fonte principal diversos arquivos, entre eles revistas, jornais e outras publicações da época, assim como a análise de documentos depositados em cartórios de Belém. O projeto inseria-se no quadro teórico da discussão sobre a validade explicativa da teoria da dependência.

O artigo aponta para algumas limitações da abordagem então adotada, sem contudo desdenhar o significado que o estudo assumiu no levantamento de questões relativas à resistência dos seringueiros com relação à exploração de seu trabalho e à existência de correntes de opinião contraditórias entre a própria elite da borracha.

PALAVRA-CHAVE: história do Brasil, Amazônia, ciclo da borracha, história social, pesquisa historiográfica.

WEINSTEIN, B.: 'A research experience in a peripheral region: the Amazon'. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2):261-72, May-Aug. 2002.

This article, which has been turned into a book, is the narration of a social history research work taken place in the Amazon region in the 1980's. The research studied the rubber cycle, emphasizing the relations among rubber workers, airplane pilots and the so-called 'rubber barons'. The main sources of information used in the study come from magazines, newspapers and other publications from that period of time, as well as documents from Belém City Hall archives. The project was part of a theoretical discussion on the explanatory validity of the theory of dependence. The article focus on the limitations of the approach used at the time, but it does not disregard the important contribution of the research, which brought up new issues on the rubber workers' resistance against the exploitation of their labor force, as well as on the existence of contradictory views among the members of the rubber elite themselves.

KEYWORDS: Brazilian history, Amazon region, rubber cycle, social history, historical documentation research.

11moderno'. Um aspecto da teoria de dependência que eu e muitos outros jovens historiadores julgávamos especialmente problemático era o forte estruturalismo que ela representava. Aquela nos parecia uma forma um pouco mais sofisticada de determinismo econômico – as necessidades do capitalismo mundial iriam determinar e estruturar a história das áreas econômicas dos países subdesenvolvidos. É claro que, eventualmente, o paradigma da dependência desdobrou-se e gerou uma série de esquemas mais complexos (centro, periferia etc.), mas o estruturalismo continuava a ser o aspecto-chave da teoria. De certa forma, isso significava a morte do historiador. Qual a necessidade da pesquisa, de se investigar cuidadosamente uma série de conflitos, ou de se reconstruir um complicado processo histórico, quando o resultado era sempre totalmente previsível? Como aluna do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), pude declarar, em resposta a uma questão que surgiu por ocasião de uma das primeiras apresentações do projeto: "Tudo isso é de pouca importância, porque o grande capital sempre ganha." Contra essa perspectiva determinista, adotamos – eu e minha turma de historiadores norte-americanos, veteranos dos anos 1960, que estávamos trabalhando nessa linha – duas perspectivas alternativas. Uma delas era a economia política marxista, que, em vez de destacar as relações entre níveis diversos do sistema mundial, enfatizava as relações de produção, as articulações de diferentes modos de produção e o papel-chave do 'conflito de classes' na definição da natureza das relações de produção, inclusive na transição, ou não, para um modo de produção capitalista, com sua conseqüente proletarização da força de trabalho. Embora essa perspectiva também tivesse seus aspectos estruturalistas, ela abria espaço para algumas tendências novas na área da história e da antropologia Para uma versão simplista da teoria da dependência, ver Gunder Frank (1969). Para uma versão mais sofisticada, ver Cardoso et al. (1979). Sobre a teoria no plano mundial, ver Wallerstein (1974).

22 social. A outra perspectiva significava a ênfase nas classes populares, como agents ou protagonistas da história, e na resistência popular, como fator central dos processos históricos. Obviamente não havia nada de novo na idéia de 'resistência' per se. O diferente e importante, especialmente para meu estudo, era a redefinição ou a expansão do conceito de resistência para incluir não apenas revoltas, sublevações e atividades proto-revolucionárias, mas uma grande variedade de estratégias – culturais, sociais etc. – para fazer face à exploração ou evitar a proletarização. Essas formas cotidianas de resistência – referenciadas na obra de James Scott (1985, 1976) e de muitos outros – abriram um caminho para se articular a economia política marxista com os métodos da história social. Para uma crítica ao trabalho de Wallerstein, nesta linha, ver Stern (1988).

Abordagem teórica

O projeto de pesquisa que elaborei sobre a Amazônia do ciclo da borracha começou a tomar forma nos anos 1970. As questões levantadas no livro que resultoudapesquisa(Weinstein, 1993) hoje parecem relíquias da história antiga, e as referências teóricas – tanto as adotadas como as criticadas – eram características daquela época.

Em termos teóricos, o maior alvo de crítica, na ocasião, era a teoria da dependência, que tinha influência muito grande em toda a área da América Latina, articulada por teóricos latino-americanos, ou nos Estados Unidos, com a presença de Immanuel Wallerstein e seu conceito de 'sistema-mundial

33historiografia. Havia, naquela época, poucos estudos sérios sobre a história da Amazônia, justamente porque ela era tratada como uma região 'sem história': uma bela adormecida em quem a história deixava apenas pálidos traços. Para complicar ainda mais o quadro, a preservação da documentação pertinente à região era previsivelmente problemática, sobretudo para a época pós-colonial. Mas havia uma vantagem. Eu pretendia estudar o ciclo da borracha, e isso representava uma época de reconhecida importância, um período no qual 'algo aconteceu'. Existia uma narrativa bem conhecida sobre o período, que era, resumidamente, a seguinte: a demanda externa repentinamente criara um enorme mercado para a borracha natural produzida exclusivamente na Amazônia. Esse fenômeno, de um lado, gerou uma pequena classe de 'barões da borracha', que viviam como marajás, mandando suas camisas para lavar em Paris e acendendo charutos com notas de cem dólares, levando uma existência de luxo e consumindo mercadorias importadas, simbolizada pelo Teatro Amazonas, em Manaus. Por outro lado, havia uma massa de seringueiros miseráveis, semi-escravizados, desumanizados, tragicamente sacrificados no altar do capitalismo internacional. E, um dia, os estrangeiros descobriram que a borracha transplantada para a Ásia era mais barata, e tudo se Euclides da Cunha (1999) chamou literalmente a Amazônia de "terra sem história".

44 acabou. A tendência dos poucos estudos que existiam sobre o ciclo da borracha era a de tratar a época como uma anomalia, uma aberração que tinha pouco ou nada a ver com a história anterior, nem com a atualidade da Amazônia. A bela adormecida fora brevemente acordada pelo beijo do capital estrangeiro, só para voltar a dormir, logo que o príncipe achou outro lugar mais lindo e lucrativo para fazer seus investimentos. Para uma visão mais sofisticada desta narrativa, ver Furtado (1963). Ver também um dos primeiros trabalhos acadêmicos publicados nos Estados Unidos sobre o ciclo da borracha (Melby, 1942). Para a versão de tipo sensacionalista, ver Wolf (1936) e Collier (1968).

Reinterpretando a história da Amazônia

Em resumo, minha questão era: como introduzir essas novas perspectivas no estudo do ciclo da borracha na Amazônia? Para meus colegas que estavam pesquisando a história dos camponeses no Peru ou na Bolívia, ou os pequenos lavradores do Sul dos Estados Unidos, a 'aplicação', a relevância dessa abordagem era evidente (Mallon, 1983; Larson, 1988; Hahn, 1982).

Mas eu enfrentava uma 'região sem história', para usar a expressão de Euclides da Cunha, e sem

55aviadores/comerciantes como os próprios seringueiros –, para revelar o seu caráter ativo, e não completamente passivo ou equivocado, na história da época. Os 'aviadores' (de aviar) eram os fornecedores dos seringueiros.

66 completos. Havia uma exceção: o Bapp tinha uma excelente e quase completa coleção dos jornais na época, inclusive A Província do Pará e A Folha do Norte. Esses jornais formaram a coluna vertebral de meu projeto. Apesar de serem orientados para o meio urbano e político, era possível, com uma leitura cuidadosa, recolher vários tipos de dados sobre o tema pesquisado. As informações que recolhi não vinham tanto de artigos ou comentários bem elaborados – havia relativamente poucos documentos que tratassem do comércio da borracha –, mas das colunas de notícias comerciais, dos avisos de falecimento e da seção de protestos, que fornecem uma visão bem detalhada dos conflitos comerciais e agrários da época. Para diversificar o processo de trabalho, pesquisei também a biblioteca da Associação Comercial do Pará, que tinha um acervo quase completo dos relatórios da associação, desde 1870, e de uma revista mensal que começou a ser publicada nos últimos anos do boom da borracha. Consultei também a excelente documentação do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), que me deu acesso a todos os registros de terra do estado desde a primeira Lei Imperial de Terras. Finalmente, a parte da pesquisa que considero meu maior trunfo na busca de documentação inédita foi o uso dos materiais depositados nos cartórios de Belém – e isso em uma época na qual poucos historiadores, mesmo em São Paulo e no Rio de Janeiro, tinham usado tais fontes. Consultei especificamente dois tipos de cartório: o comercial e o civil, sobretudo o Cartório Chermont, um antigo tabelionato comercial que dispõe de uma coleção de escrituras públicas, a partir de cerca de 1880. Na verdade, as pessoas que trabalhavam no cartório mal sabiam da existência dessa documentação e certamente acharam muito estranho quando manifestei meu interesse em lidar com aqueles livros empoeirados, ou pior, guardados e esquecidos em um armário coberto de mofo. Mas essas escrituras – de formação e dissolução de casas comerciais, de concessão de empréstimos e de compra e venda – acabaram sendo essenciais para minha pesquisa. Elas permitiram-me reconstruir a história da vida comercial do Pará, inclusive os laços entre os vários grupos envolvidos no comércio da borracha, o que formava uma rede de alianças bastante complicada, a quantia de capital investido em várias fases do comércio, os padrões de endividamento, os investimentos que tendiam a ser lucrativos, os que fracassaram etc. O outro tipo de cartório foi o tabelionato civil, onde achei os inventários de bens deixados pelos comerciantes, políticos, seringalistas e fazendeiros da época. Esses inventários proporcionaram-me um retrato bastante claro dos padrões de herança, de acumulação e de dívida, tanto quanto do estilo de vida dos barões da borracha e de seus aliados. Atualmente o Arquivo Público do Estado do Pará, já separado da biblioteca pública, transformou-se bastante, encontrando-se mais bem organizado. Mas o aspecto forte do acervo continua sendo a documentação para o período colonial; os documentos relativos aos séculos XIX e XX, embora bem organizados e conservados, continuam sendo relativamente precários.

77especulativo. Tentei fazer uma análise fracamente especulativa sobre as relações entre os caboclos e os nordestinos (Weinstein, 1985).

Minha missão era complicar essa narrativa em dois sentidos. Primeiro, deveria inserir a história do ciclo da borracha na história geral da Amazônia e do Brasil. Segundo, teria de investigar o papel dos grupos regionais – tanto os

O processo de pesquisa

Durante a elaboração da pesquisa, enfrentei uma série de dificuldades que às vezes deixavam-me desanimada. Em primeiro lugar, tive de enfrentar o 'presentismo' da comunidade acadêmica da Amazônia, dominada por antropólogos, sociólogos, geógrafos e biólogos que, de certa forma, compartilhavam da visão da Amazônia como uma região sem história (ou apenas com uma história que começara muito tardiamente). Havia destacadas exceções, como o economista Roberto Santos, que estava para lançar o livro História econômica da Amazônia (1980) quando cheguei a Belém.

Em segundo lugar, tive de enfrentar a indiferença da comunidade acadêmica brasileira fora da Amazônia com relação aos estudos históricos sobre essa região 'periférica'. Um encontro com o já então famoso cientista social Francisco Weffort levou-me a perceber que eu estava estudando a 'periferia da periferia', na linguagem da época. Weffort estava como visitante na universidade em que eu fizera pós-graduação. Conversei com ele brevemente, no dia anterior ao da minha primeira partida para Belém. Quando mencionei a pesquisa (com a insegurança típica dos alunos de pós-graduação que estão em fase inicial de projeto), ele não manifestou qualquer entusiasmo e alertou-me que seria muito mais interessante fazer pesquisa em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

Havia uma certa ironia nisto. Quando eu esboçara pela primeira vez um tema para futura pesquisa, pretendia estudar as origens da classe trabalhadora em São Paulo, o que indicava a forte influência, em minha formação, do livro de E. P. Thompson (1964). Mas quando soubera que havia um historiador brasileiro pesquisando o mesmo assunto, desisti da idéia. Hoje entendo que havia espaço para muitas outras teses sobre o tema. Mas, na época, eu tentava evitar qualquer coisa que pudesse ter o sinal de 'imperialismo acadêmico' e achara problemático que uma norte-americana chegasse a São Paulo para pesquisar um tema que já estava sendo localmente investigado.

Foi naquele momento que minha orientadora, Emília Viotti da Costa, sugeriu como objeto de estudo o ciclo da borracha, acentuando que a indiferença à história da Amazônia não era universal entre os historiadores brasileiros. Respondi com muito entusiasmo à sugestão por uma série de razões, além das intelectuais – a crítica da teoria da dependência etc. –, já indicadas. Confesso que, desde a juventude, o 'exotismo' da região, que fazia parte de meu imaginário, por influência de filmes e romances, tinha um certo papel na decisão.

Mas o que pesou ainda mais foi minha certeza de que, com este projeto, eu não estaria 'invadindo' o território de historiadores brasileiros. Já sabia que a grande maioria dos historiadores no Brasil da época estava fazendo pesquisas no Rio de Janeiro e em São Paulo, e que poucos tinham recursos ou disposição para realizar estudos históricos na Amazônia.

Os 'desafios' enumerados eram de ordem profissional e política. No plano mais concreto, havia o grande problema da aparente falta de documentação, isto é, de documentação organizada e arquivada, sobretudo para a área de história social. A única solução para o problema foi utilizar uma grande variedade de fontes, e usá-las de maneira bastante criativa.

Antes de chegar ao Brasil, consultei várias fontes disponíveis nos Estados Unidos, entre elas a correspondência do consulado americano em Belém do Pará, crônicas de viajantes e a revista mensal da indústria norte-americana da borracha, India Rubber World, que acabou sendo uma das fontes mais importantes para meu estudo.

Chegando ao Brasil, fui primeiro ao Rio de Janeiro para pesquisar o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico. Consultei relatórios dos presidentes de província, crônicas de viajantes brasileiros, a correspondência de certos presidentes da República com o governador do Pará, livros da Guarda Nacional, mas essa fase do estudo acabou sendo um pouco frustrante. O único arquivo do Rio de Janeiro no qual encontrei material interessante – e não apenas para a história política – foi o do Itamarati, que guarda uma extensa correspondência entre representantes dos interesses estrangeiros na Amazônia e o governo brasileiro.

Nos arquivos de Belém do Pará

Logo no Pará, apesar das condições de pesquisa bastante incômodas, descobri diversas fontes importantes, além das completamente óbvias. De certa forma, a Biblioteca e Arquivo Público de Belém (Bapp, como era conhecido na época), onde eu esperava encontrar a grande maioria da documentação, revelou-se uma decepção. Tudo era muito desorganizado, sobretudo os documentos da época pós-colonial, e ficou difícil utilizar a documentação do estado. Havia relatórios de algumas repartições públicas, alguns álbuns e almanaques, as atas do Conselho Municipal e os anais da Câmara Estadual. Mas nem estes estavam

Como fazer história social da Amazônia

A despeito de todo esse material, um problema persistia: toda a documentação era muito útil para um estudo das elites da época, mas prestava-se muito pouco a um estudo dos seringueiros e de outras figuras das classes populares. Obviamente havia um artigo ou crônica aqui, um protesto ou um registro de terra ali, a desvelarem algum aspecto da vida dos seringueiros, em geral de forma bastante indireta. Como então compensar essa falta de documentação sobre os seringueiros, fosse ela produzida por eles próprios, fosse pelos que testemunhavam a vida social e cultural que eles levavam?

Uma das estratégias para lidar com o problema era a agora famosa 'leitura a contrapelo' (reading against the grain). Isso quer dizer usar a documentação produzida pela elite, mas lendo-a apesar da intenção de seu autor. A melhor fonte para essa estratégia era, sem dúvida alguma, a India Rubber World, em cujas páginas os empresários norte-americanos queixavam-se continuamente da qualidade da mão-de-obra na Amazônia e da impossibilidade de 'racionalizar' a produção da borracha silvestre.

Esses empresários compunham um retrato do seringueiro como preguiçoso, desonesto e inquieto. É evidente que não se podia levar esse retrato totalmente a sério. Mas o teor dos comentários era tão diverso do retrato tradicional do seringueiro como um ser semi-escravizado que não se podia deixar de notar a diferença. Seria esta simplesmente uma fachada para disfarçar as terríveis práticas dos barões da borracha?

Pouco a pouco, fui acumulando uma série de evidências – padrões de migração, queixas de diversos comerciantes, registros de terra, protestos e até estudos antropológicos – que me levaram a uma conclusão: a grande maioria dos seringueiros, apesar de explorados, mantinha um grau de mobilidade física e utilizava certas estratégias que limitavam o controle do seu tempo e a expropriação do excedente de seu trabalho pelos aviadores/comerciantes. Uma sub-região como o Putumayo peruano, onde a população indígena vivia sob um regime de terror durante os últimos anos do boom, era exceção (Taussig, 1991; Stanfield, 1998).Os seringueiros não eram semi-escravos, mas pequenos produtores explorados pelos aviadores por meio das relações de troca.

A essa altura é necessário admitir que uma leitura a contrapelo tem seus limites. Não que eu esperasse ouvir a 'voz autêntica' do seringueiro. Mas continuo a achar que uma das grandes lacunas de meu livro é a falta de informação sobre os trabalhadores, fora das relações materiais que estabeleciam. Como era a vida cultural deles? Sua vida sexual e familiar? Havia expressões mais nítidas dessa identidade do pequeno produtor? Quais as aspirações que tinham? Qual a natureza da relação entre os caboclos da região e os migrantes nordestinos? Todas essas perguntas ficaram sem resposta, a não ser de um ponto de vista

88resistir. O livro de Emília Viotti da Costa (1997) é um brilhante exemplo de um trabalho que continua atento às múltiplas formas de exploração e, ao mesmo tempo, reconhece a impressionante capacidade dos escravos para manter autonomia e modos de negociação com os donos do poder. Para um estudo que permanece insistindo na necessidade de se fazer a história dos explorados enfatizando-se a miséria, a alienação e a exploração, ver Gorender (1990).

Algumas conclusões

No sentido mais positivo, a pesquisa permitia-me construir um argumento que cumpriu os objetivos traçados no início deste depoimento. Não irei resumir aqui todos os argumentos do livro, que já se encontra traduzido para o português. Gostaria apenas de destacar alguns aspectos para deixar mais claro como elaborei os problemas históricos e historiográficos anteriormente citados.

Eu desejava inserir o ciclo da borracha na história mais ampla da Amazônia. Assim, por exemplo, mostrei que a borracha já dominava o comércio da região muitas décadas antes do boom e que havia uma certa corrente de resistência contra a extração do látex como principal atividade econômica da região. Essa 'resistência', ou essa crítica, não veio nem dos caboclos nem dos indígenas, mas de certos setores da classe dominante. As preocupações desses setores com relação ao comércio da borracha foram múltiplas.

Em primeiro lugar, havia uma forte corrente de opinião segundo a qual a coleta ou a extração não podia criar as condições para se construir uma sociedade 'civilizada'. Esse sistema de produção, que dependia de uma força de trabalho móvel, sem residência fixa, sem capacidade para introduzir melhoramentos e para construir uma vida familiar 'normal', não podia significar a fundação de uma sociedade estável e próspera. Em segundo lugar, com a memória da Cabanagem – a revolta popular dos anos 1830 – ainda bem viva entre as elites da região, havia uma campanha contra formas de produção que pudessem criar uma população excessivamente 'livre', isto é, sem supervisão e disciplina.

Havia uma tentativa séria de manter um 'corpo de trabalhadores' composto de homens não brancos e sem emprego fixo, abrangendo os habitantes empregados na 'coleta da seringa'. Evidentemente o caboclo que podia se sustentar coletando látex durante alguns meses do ano não estava disposto a trabalhar em troca de um ordenado diminuto nas fazendas das famílias tradicionais da região. E mais do que isso: a expansão do comércio da borracha criaria condições para uma presença maior de capital estrangeiro na região, uma potencialidade que sempre despertava reações ambivalentes dentro das classes dominantes da Amazônia (Weinstein, 1996).

Além de desvendar essas correntes de crítica, pude também mostrar que essas questões persistiam como um tipo de 'contradiscurso' durante todo o ciclo da borracha. Havia sempre um setor da elite regional que falava da prosperidade 'ilusória' propiciada pela borracha e que promovia o uso de verbas públicas para ampliar a colonização agrícola ou a pequena indústria. Esse 'contradiscurso' tinha seus próprios limites, mas ele mostra que a história do ciclo da borracha era bem mais complicada do que indicava a narrativa tradicional.

Tentei mostrar também que a imagem que existia sobre as elites da época era bastante distorcida e simplificada. Não havia, de um lado, os interesses estrangeiros, sempre perspicazes e dominantes, e, de outro, os barões da borracha, com sua vida de luxo estapafúrdio e mal preparados para enfrentar um colapso previsível. A rede de interesses comerciais foi bastante complexa, e muitas das casas aviadoras combinavam a presença de agentes de empresas no exterior, comerciantes que haviam recentemente migrado – especialmente de Portugal – e figuras conhecidas da elite tradicional da região. Isso significa que, na prática, não havia uma distinção fácil entre interesses externos e locais.

Ao mesmo tempo, houve diversas tentativas por parte dos interesses regionais no sentido de limitar o poder dos estrangeiros e para diversificar a economia local. Referindo-se a um dos mitos mais divulgados sobre o ciclo da borracha, os inventários dos comerciantes da época retratavam um estilo de vida absolutamente típico para os padrões das 'classes conservadoras' da época. Havia alguns palacetes mais extravagantes em Belém e em Manaus, mas o estilo de vida em geral não era nem um pouco 'excessivo' em termos dos padrões das famílias dessas classes. Existia uma certa tendência a comprar um número bem alto de navios a vapor, mas isso não contava como consumo conspícuo. Esta era considerada uma compra certa, confiável, que ampliava os investimentos e os ganhos de uma casa aviadora.

Quanto ao seringueiro, o livro oferece um retrato desse trabalhador/produtor que está muito distanciado da imagem criada na historiografia tradicional de um semi-escravo miserável, acorrentado pelas dívidas e imobilizado pelos capangas dos patrões. Minha tentativa de repensar o papel e a condição do seringueiro inicialmente produziu algumas dúvidas por parte de minha orientadora, Emília Viotti da Costa. Para ela, à primeira vista, a versão da relação entre o seringueiro e o aviador que eu vinha elaborando tendia a ser favorável ao comerciante. A historiografia 'crítica' brasileira da época supunha que simpatizar com os explorados significava sempre enfatizar e detalhar as formas de exploração. Eu não discordava completamente desse aspecto, mas recuperar uma corrente de 'militância' entre os seringueiros usando-se um conceito de resistência que não se limitava às greves ou a outros protestos coletivos tinha um significado muito mais forte e politicamente radical do que um estudo que meramente retratasse os seringueiros como vítimas incapazes de expressar qualquer forma de

99interior. Mas isso é fácil de ser dito agora. No período de pesquisa, esgotei rapidamente meus recursos pessoais, e financeiros, apenas com a pesquisa em Belém. Ao longo dos últimos 25 anos, surgiram algumas fontes novas de estudo dos seringueiros, como Yungjohann (1989). Dois excelentes trabalhos que utilizam métodos de história oral são Muratorio (1991) e Wolff (1999).

Novas questões

Cabe ainda mencionar que atualmente tenho algumas autocríticas e confesso que modificaria o livro caso fosse escrevê-lo hoje. Em primeiro lugar, seria preciso fazer um esforço muito maior para levantar a documentação sobre os seringueiros e sobre a cultura popular da região durante o ciclo da borracha. Seria necessário também recorrer mais à história oral, realizando entrevistas com descendentes dos habitantes das zonas da borracha, ou com os seringueiros que ainda sobrevivem. Cumpriria igualmente fazer um uso mais fértil do material folclórico da região e tentar utilizar os arquivos – por exemplo, a documentação jurídica – das cidades do

1010Amazônia. Naquela fase, contudo, eu ainda trabalhava com a noção de que, em última instância, os interesses materiais determinavam as perspectivas intelectuais e políticas. Não gostaria de exagerar ou estereotipar meu próprio trabalho – eu já insistia na existência de um grupo político na Amazônia da belle époque antecipando uma visão de modernidade e de 'civilização' que formava a base de uma crítica ao comércio da borracha, que não deveria ser reduzido a meros interesses materiais (embora tivesse relação com interesses de classe). Mas foi difícil elaborar essas idéias, porque, no auge da época da história social, ainda se considerava o 'discurso' como uma simples fachada para mistificar os 'verdadeiros interesses' dos interlocutores. Assim, em meu projeto, eu pretendia mostrar que a 'realidade' era diferente da narrativa tradicional. Não me interessava muito interrogar como essa narrativa fora construída. Hoje, esta seria uma questão de suma importância. Finalmente, um conceito teórico central do projeto era a questão da transição ou não para o capitalismo, definida em termos de 'relações de produção'. No livro, eu chegava à conclusão de que a própria resistência dos seringueiros aos processos de arregimentação/racionalização e a resistência dos aviadores locais ao domínio de estrangeiros seriam fatores importantes a impedir uma transformação estrutural da economia regional. Ainda considero a questão da 'transição' muito importante, mas não a vejo mais simplesmente em termos de relações de produção. Hoje, eu falaria antes do problema da modernidade e de uma transformação tanto cultural como O trabalho de Coelho (1999) é o mais importante exemplo desse modo de interpretação.

1111material. Atualmente, considero a própria natureza dessa transição um problema. Ela não é um processo fixo e previsível, distinguindo-se facilmente capitalismo de pré-capitalismo. Apesar de reconhecer a necessidade de crítica e autocrítica, gostaria de observar que não simpatizo com os trabalhos escritos por dois pesquisadores norte-americanos, Barham e Coomes (1996, 1994a, b) que têm criticado o meu livro do ponto de vista da teoria de 'escolha Sobre a transformação cultural, sobretudo do meio urbano, ver Coelho (1995) e Daou (2000).

1212racional'. Segundo eles, o sistema de extração e troca na Amazônia simplesmente obedeceu (e obedece) à lógica de uma sociedade em que os produtores estão espalhados e descentralizados. Este, com certeza, é um elemento na configuração das relações sociais. Mas, ao mesmo tempo, esse conceito rejeita qualquer noção de hierarquia historicamente construída, de desigualdade de poder ou de exploração, sem incluir as alternativas às relações existentes. Ele acaba representando um regresso à noção da Amazônia como uma sociedade com geografia, mas sem história. Esses autores não situam seus trabalhos no interior de uma abordagem de rational choice theory. Mas a interpretação que fazem encaixa-se quase perfeitamente no argumento produzido por Samuel Popkin (1979), uma obra pioneira dessa tendência teórica.

Em segundo lugar, em termos de pesquisa, caberia dar maior atenção às questões de representação, sobretudo trabalhar mais com a produção literária da época, inclusive com romancistas e cronistas que escreveram sobre a

Recebido para publicação em setembro 2001.

Aprovado para publicação em novembro 2001

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  • Stanfield, Michael Edward 1998 Red rubber, bleeding trees: violence, slavery and empire in Northwest Amazônia,  1850-1933 Albuquerque, University of Mexico Press.
  • Stern, Steve J. out. 1988 'Feudalism and capitalism, and the world-system in the perspective of Latin  America and the Caribbean'. American Historical Review, vol. 93, nş 3, pp. 829-72.
  • Taussig, Michael 1991 Shamanism, colonialism, and wild man: a study in terror and healing  Chicago, University of Chicago Press.
  • Thompson, E.P. 1964 The making of the English working class  Nova York, Pantheon.
  • Viotti da Costa, Emília 1997 Crowns of glory, tears and blood: the Demerara slave rebellion of 1823 Nova York, Oxford University Press.
  • Wallerstein, Immanuel 1974, 1980 The modern world system  Nova York, Academic Press, 2 vols.
  • Weinstein, Barbara 1996 'Before the boom: the Amazon rubber trade under the Empire'.  Em T. Szmrecsányi et al (org.), História econômica da Independęncia e do Império Săo Paulo, Hucitec/Fapesp, pp. 59-74.
  • Weinstein, Barbara 1993 A borracha na Amazônia: expansăo e decadęncia, 1850-1920  Săo Paulo, Hucitec/Edusp.
  • Weinstein, Barbara 1985 'Persistence of caboclo culture in the Amazon: the impact of the rubber trade,  1850-1920'. Em E. Parker (org.), The Amazon caboclo: historical and contemporary perspectives Studies in Third World Societies, nş 32, pp. 89-113.
  • Wolf, Howard et al 1936 Rubber: a story of glory and greed  Nova York, Covici Friede.
  • Wolff, Cristina S. 1999 Mulheres da floresta: uma história Alto Juruá, Acre, 1890-1945  Săo Paulo, Hucitec.
  • Yungjohann, John C. 1989 White gold: the diary of a rubber cutter in the Amazon, 1906-1916  Oracle, Synergetic Press.
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    moderno'.
    Um aspecto da teoria de dependência que eu e muitos outros jovens historiadores julgávamos especialmente problemático era o forte estruturalismo que ela representava. Aquela nos parecia uma forma um pouco mais sofisticada de determinismo econômico – as necessidades do capitalismo mundial iriam determinar e estruturar a história das áreas econômicas dos países subdesenvolvidos. É claro que, eventualmente, o paradigma da dependência desdobrou-se e gerou uma série de esquemas mais complexos (centro, periferia etc.), mas o estruturalismo continuava a ser o aspecto-chave da teoria.
    De certa forma, isso significava a morte do historiador. Qual a necessidade da pesquisa, de se investigar cuidadosamente uma série de conflitos, ou de se reconstruir um complicado processo histórico, quando o resultado era sempre totalmente previsível? Como aluna do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), pude declarar, em resposta a uma questão que surgiu por ocasião de uma das primeiras apresentações do projeto: "Tudo isso é de pouca importância, porque o grande capital sempre ganha."
    Contra essa perspectiva determinista, adotamos – eu e minha turma de historiadores norte-americanos, veteranos dos anos 1960, que estávamos trabalhando nessa linha – duas perspectivas alternativas.
    Uma delas era a economia política marxista, que, em vez de destacar as relações entre níveis diversos do sistema mundial, enfatizava as relações de produção, as articulações de diferentes modos de produção e o papel-chave do 'conflito de classes' na definição da natureza das relações de produção, inclusive na transição, ou não, para um modo de produção capitalista, com sua conseqüente proletarização da força de trabalho. Embora essa perspectiva também tivesse seus aspectos estruturalistas, ela abria espaço para algumas tendências novas na área da história e da antropologia
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    social.
    A outra perspectiva significava a ênfase nas classes populares, como
    agents ou protagonistas da história, e na resistência popular, como fator central dos processos históricos. Obviamente não havia nada de novo na idéia de 'resistência'
    per se. O diferente e importante, especialmente para meu estudo, era a redefinição ou a expansão do conceito de resistência para incluir não apenas revoltas, sublevações e atividades proto-revolucionárias, mas uma grande variedade de estratégias – culturais, sociais etc. – para fazer face à exploração ou evitar a proletarização. Essas formas cotidianas de resistência – referenciadas na obra de James Scott (1985, 1976) e de muitos outros – abriram um caminho para se articular a economia política marxista com os métodos da história social.
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    historiografia.
    Havia, naquela época, poucos estudos sérios sobre a história da Amazônia, justamente porque ela era tratada como uma região 'sem história': uma bela adormecida em quem a história deixava apenas pálidos traços. Para complicar ainda mais o quadro, a preservação da documentação pertinente à região era previsivelmente problemática, sobretudo para a época pós-colonial.
    Mas havia uma vantagem. Eu pretendia estudar o ciclo da borracha, e isso representava uma época de reconhecida importância, um período no qual 'algo aconteceu'. Existia uma narrativa bem conhecida sobre o período, que era, resumidamente, a seguinte: a demanda externa repentinamente criara um enorme mercado para a borracha natural produzida exclusivamente na Amazônia. Esse fenômeno, de um lado, gerou uma pequena classe de 'barões da borracha', que viviam como marajás, mandando suas camisas para lavar em Paris e acendendo charutos com notas de cem dólares, levando uma existência de luxo e consumindo mercadorias importadas, simbolizada pelo Teatro Amazonas, em Manaus. Por outro lado, havia uma massa de seringueiros miseráveis, semi-escravizados, desumanizados, tragicamente sacrificados no altar do capitalismo internacional. E, um dia, os estrangeiros descobriram que a borracha transplantada para a Ásia era mais barata, e tudo se
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    acabou.
    A tendência dos poucos estudos que existiam sobre o ciclo da borracha era a de tratar a época como uma anomalia, uma aberração que tinha pouco ou nada a ver com a história anterior, nem com a atualidade da Amazônia. A bela adormecida fora brevemente acordada pelo beijo do capital estrangeiro, só para voltar a dormir, logo que o príncipe achou outro lugar mais lindo e lucrativo para fazer seus investimentos.
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    aviadores/comerciantes
    como os próprios seringueiros –, para revelar o seu caráter ativo, e não completamente passivo ou equivocado, na história da época.
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    completos.
    Havia uma exceção: o Bapp tinha uma excelente e quase completa coleção dos jornais na época, inclusive
    A Província do Pará e
    A Folha do Norte. Esses jornais formaram a coluna vertebral de meu projeto. Apesar de serem orientados para o meio urbano e político, era possível, com uma leitura cuidadosa, recolher vários tipos de dados sobre o tema pesquisado.
    As informações que recolhi não vinham tanto de artigos ou comentários bem elaborados – havia relativamente poucos documentos que tratassem do comércio da borracha –, mas das colunas de notícias comerciais, dos avisos de falecimento e da seção de protestos, que fornecem uma visão bem detalhada dos conflitos comerciais e agrários da época.
    Para diversificar o processo de trabalho, pesquisei também a biblioteca da Associação Comercial do Pará, que tinha um acervo quase completo dos relatórios da associação, desde 1870, e de uma revista mensal que começou a ser publicada nos últimos anos do
    boom da borracha. Consultei também a excelente documentação do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), que me deu acesso a todos os registros de terra do estado desde a primeira Lei Imperial de Terras.
    Finalmente, a parte da pesquisa que considero meu maior trunfo na busca de documentação inédita foi o uso dos materiais depositados nos cartórios de Belém – e isso em uma época na qual poucos historiadores, mesmo em São Paulo e no Rio de Janeiro, tinham usado tais fontes.
    Consultei especificamente dois tipos de cartório: o comercial e o civil, sobretudo o Cartório Chermont, um antigo tabelionato comercial que dispõe de uma coleção de escrituras públicas, a partir de cerca de 1880. Na verdade, as pessoas que trabalhavam no cartório mal sabiam da existência dessa documentação e certamente acharam muito estranho quando manifestei meu interesse em lidar com aqueles livros empoeirados, ou pior, guardados e esquecidos em um armário coberto de mofo.
    Mas essas escrituras – de formação e dissolução de casas comerciais, de concessão de empréstimos e de compra e venda – acabaram sendo essenciais para minha pesquisa. Elas permitiram-me reconstruir a história da vida comercial do Pará, inclusive os laços entre os vários grupos envolvidos no comércio da borracha, o que formava uma rede de alianças bastante complicada, a quantia de capital investido em várias fases do comércio, os padrões de endividamento, os investimentos que tendiam a ser lucrativos, os que fracassaram etc.
    O outro tipo de cartório foi o tabelionato civil, onde achei os inventários de bens deixados pelos comerciantes, políticos, seringalistas e fazendeiros da época. Esses inventários proporcionaram-me um retrato bastante claro dos padrões de herança, de acumulação e de dívida, tanto quanto do estilo de vida dos barões da borracha e de seus aliados.
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    especulativo.
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    resistir.
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    interior.
    Mas isso é fácil de ser dito agora. No período de pesquisa, esgotei rapidamente meus recursos pessoais, e financeiros, apenas com a pesquisa em Belém.
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    Amazônia.
    Naquela fase, contudo, eu ainda trabalhava com a noção de que, em última instância, os interesses materiais determinavam as perspectivas intelectuais e políticas.
    Não gostaria de exagerar ou estereotipar meu próprio trabalho – eu já insistia na existência de um grupo político na Amazônia da
    belle époque antecipando uma visão de modernidade e de 'civilização' que formava a base de uma crítica ao comércio da borracha, que não deveria ser reduzido a meros interesses materiais (embora tivesse relação com interesses de classe). Mas foi difícil elaborar essas idéias, porque, no auge da época da história social, ainda se considerava o 'discurso' como uma simples fachada para mistificar os 'verdadeiros interesses' dos interlocutores.
    Assim, em meu projeto, eu pretendia mostrar que a 'realidade' era diferente da narrativa tradicional. Não me interessava muito interrogar como essa narrativa fora construída. Hoje, esta seria uma questão de suma importância.
    Finalmente, um conceito teórico central do projeto era a questão da transição ou não para o capitalismo, definida em termos de 'relações de produção'. No livro, eu chegava à conclusão de que a própria resistência dos seringueiros aos processos de arregimentação/racionalização e a resistência dos aviadores locais ao domínio de estrangeiros seriam fatores importantes a impedir uma transformação estrutural da economia regional. Ainda considero a questão da 'transição' muito importante, mas não a vejo mais simplesmente em termos de relações de produção. Hoje, eu falaria antes do problema da modernidade e de uma transformação tanto cultural como
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    material.
    Atualmente, considero a própria natureza dessa transição um problema. Ela não é um processo fixo e previsível, distinguindo-se facilmente capitalismo de pré-capitalismo.
    Apesar de reconhecer a necessidade de crítica e autocrítica, gostaria de observar que não simpatizo com os trabalhos escritos por dois pesquisadores norte-americanos, Barham e Coomes (1996, 1994a, b) que têm criticado o meu livro do ponto de vista da teoria de 'escolha
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    racional'.
    Segundo eles, o sistema de extração e troca na Amazônia simplesmente obedeceu (e obedece) à lógica de uma sociedade em que os produtores estão espalhados e descentralizados. Este, com certeza, é um elemento na configuração das relações sociais. Mas, ao mesmo tempo, esse conceito rejeita qualquer noção de hierarquia historicamente construída, de desigualdade de poder ou de exploração, sem incluir as alternativas às relações existentes. Ele acaba representando um regresso à noção da Amazônia como uma sociedade com geografia, mas sem história.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2002

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2001
    • Recebido
      Set 2001
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