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Carta do editor

CARTA DO EDITOR

Em fevereiro de 1917 ... começa a agonia de Oswaldo Gonçalvez Cruz. Junto a ti, em constante vigília, os familiares, os amigos mais chegados. ... É uma noite quente, uma noite de verão. No convento dos franciscanos de Petrópolis soam as nove badaladas. Na casa da rua Monte Caseros reina o silêncio, somente quebrado pela respiração estertorosa do doente.

De súbito, percebe-se um barulho que aos poucos vai aumentando: tambores, um alarido. Os familiares fecham precipitadamente as janelas; é inútil, os gritos ecoam agora sob a janela. ...

- Que barulho é esse? - perguntas, numa voz trêmula.

- É o Carnaval - dizem - um cordão tocando o Zé Pereira ...

Ele os interrompe:

- É uma manifestação

E é mesmo... Os gritos, as vaias...

Que no entanto ressoam cada vez mais longínquos. Já não vês, já não ouves... pouco a pouco vais entrando em coma. ... Às nove da noite de 11 de fevereiro de 1917 morres.

Com estas palavras, Moacyr Scliar remata a história do sanitarista brasileiro que ele retratou ficcionalmente em Sonhos tropicais, em 1992, e quatro anos depois, a vera, num livrinho bem torneado, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas. Pois em 27 de fevereiro de 2011, quando os tamborins soavam os primeiros acordes do carnaval que o terá exaurido, leitor, quando estiver lendo esta página, expirou o querido escritor gaúcho, que era também médico sanitarista e que fez dessa vocação o fermento de preciosos escritos, de cunho ficcional ou não, sobre a história da medicina, da saúde e do corpo. A majestade do Xingu (1977), por exemplo, formidável recriação da vida de Noel Nutels, médico e indigenista, judeu brasileiro nascido na Ucrânia, não longe do torrão natal dos pais do escritor, José e Sara Scliar, judeus russos que emigraram para o Brasil em 1904. Os dois títulos mencionados formam, com Manual da paixão solitária (2008), os livros mais incensados de Moacyr Scliar, por lhe terem valido três Prêmios Jabuti. Igualmente valorizado nos verbetes biográficos e obituários é O centauro no jardim (1980), um dos cem melhores livros de temática judaica, segundo lista organizada pelo National Yiddish Book Center.

Em 1962, ano em que se formou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS), Moacyr Scliar lançou seu primeiro livro, Histórias de um médico em formação. A carreira na profissão, iniciada no Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (Samdu) daquela capital, não foi tão prolífica quanto a do escritor que nos legou mais de setenta livros, entre romances, contos, crônicas e ensaios. Aí se incluem algumas leituras obrigatórias para quem frequenta com assiduidade as páginas desta revista: Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública (1987); Cenas médicas (1988, 2002); e sobretudo A paixão transformada (1998), em que reconta de maneira saborosa a história da medicina pelo ângulo da literatura e de alguns relatos médicos.

Moacyr Scliar tornou-se membro do Conselho Editorial de História, Ciências, Saúde - Manguinhos em 1997. Deu-nos ótimas sugestões e redigiu numerosos pareceres sem nunca se impacientar, sempre generoso nas sugestões feitas aos autores que vinham dar a estas páginas. Por isso, a tristeza que sentimos não é apenas pela perda do escritor admirável, definitivo, mas também do amigo que emprestou seu talento aos que 'tocam' e aos que leem esta revista.

Em 27 de fevereiro de 2011 o país foi ensombrado por outra perda irreparável, a do paraense Benedito José Viana da Costa Nunes. Reitero aqui o que disse ao publicarmos um de seus brilhantes ensaios, "O animal e o primitivo: os Outros de nossa cultura" (v.14, suplemento, p.279-290, dez. 2007): Benedito Nunes foi uma daquelas inteligências fulgurantes que, de tempos em tempos, riscam o firmamento intelectual brasileiro deixando atrás de si um pensamento original, inovador, capaz de modificar a percepção que os contemporâneos têm de seu tempo, de como ele chegou a ser o que é e do que pode vir a ser.

Um dos fundadores da Faculdade de Filosofia do Pará, fez mestrado na Sorbonne, em Paris, quando assistiu a cursos de Merleau-Ponty e Paul Ricoeur. Ensinou depois Literatura e Filosofia na Universidade Federal do Pará (UFPA) e em outras universidades do Brasil, da França e dos EUA. Com Maria Sylvia Nunes, sua mulher, e Angelita Silva, sua cunhada, foi fundador do Norte Teatro-Escola, posteriormente encampado pela UFPA. O intelectual paraense publicou grande número de artigos e resenhas em jornais regionais e de circulação nacional sobre filosofia e manifestações da cultura popular e erudita: cinema, dança, artes plásticas, literatura etc. Sua obra em livro foi inaugurada com Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger (1968). Vieram a seguir O dorso do tigre (ensaios literários e filosóficos; 1969); João Cabral de Melo Neto (1974); Oswald Canibal (1979); O tempo na narrativa (1988); O drama da linguagem, uma leitura de Clarice Lispector (1989); Introdução à filosofia da arte (1989); A filosofia contemporânea (1991); No tempo do niilismo e outros ensaios (1993).

Em 1998 Benedito Nunes aposentou-se como professor titular de Filosofia pela UFPA e recebeu o título de Professor Emérito. Veio a lume então Crivo de papel (ensaios literários e filosóficos); no ano seguinte, com Maria José Campos, organizou Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Em 2000 publicou Dois ensaios e duas lembranças e O Nietzsche de Heidegger. Em 2002 saiu Heidegger e Ser e Tempo. Com o romancista amazonense Milton Hatoum escreveu Crônica de duas cidades: Belém e Manaus (2006).

Benedito Nunes recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Estudos Literários em 1987 e novamente, em 2010, pela crítica literária A clave do poético. No mesmo ano a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra.

A perda de Benedito Nunes me dói intimamente: estive com ele e Maria Sylvia poucas vezes, mas o suficiente para guardar impressões ternas e fortes; admirei o intelectual pelo que li e ouvi, e sempre gostei imenso dos Nunes pelas histórias admiráveis, carinhosas, engraçadas que escutei nos almoços de minha família paraense, muito amiga deles, em ensolarados domingos em que se rememoravam outros tempos ensolarados.

Pois foi num domingo, quando os tamborins soavam os primeiros acordes do carnaval, que partiram Moacyr Scliar e Benedito Nunes, conversando, quem sabe, sobre chimarrão e açaí, sobre o avesso da vida, sobre nós, pobres mortais, obrigados a nos reinventarmos para tê-los como memória ou vivências, e seguirmos vivendo...

Jaime L. Benchimol

Editor científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 2011
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