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Álbum/Relatório das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência: registros da assistência médico-social na Região Carbonífera Catarinense, 1955-1957

Album/Report by the Pequenas Irmãs da Divina Providência: records of social and medical assistance in the coal-producing region of southern Santa Catarina, 1955-1957

Resumo

Na primeira metade do século XX, a Região Carbonífera Catarinense passou por um intenso processo de industrialização que impactou diretamente as diferentes formas de vida. Como resultado da exploração do carvão mineral, a região enfrentou uma série de problemas sanitários que dificultavam o próprio processo de acumulação do capital. Diante da incapacidade de o poder público atender às demandas sanitárias, o empresariado local estabeleceu parcerias com congregações religiosas femininas para prestar serviços assistenciais em suas vilas operárias. Como resultado dessa relação, as Pequenas Irmãs da Divina Providência produziram um álbum/relatório, composto por textos, desenhos e fotografias que retratam suas atividades assistenciais, entre 1955 e 1957, em uma das vilas da região.

Região Carbonífera Catarinense; Pequenas Irmãs da Divina Providência; assistência

Abstract

During the first half of the twentieth century, the coal-producing region of Santa Catarina state underwent intense industrialization that directly impacted various ways of life; various health problems emerged in the region as a result of coal mining and impeded economic progress. As the government was unable to meet health demands, local businesses established partnerships with female religious orders that provided assistance services in the villages where workers lived. As part of such a partnership, the Pequenas Irmãs da Divina Providência created an album of texts, drawings, and photographs as a report describing their activities from 1955 to 1957 in one such village in the region.

coal producing region of Santa Catarina; Pequenas Irmãs da Divina Providência; assistance

Localizada no sul de Santa Catarina, a Região Carbonífera Catarinense despontou no cenário econômico nacional com a expansão de suas atividades mineradoras a partir da década de 1930, momento em que o incipiente complexo industrial brasileiro também passava por um processo de reestruturação promovido pelo governo de Getúlio Vargas. Conforme afirma Alcir Lenharo (1986)LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986., junto a esse processo de industrialização, Vargas também iniciou um processo de valorização dos trabalhadores por meio de leis sociais que criavam elos entre o governo federal e as regiões urbano-industriais do país, elegendo-as como centros receptores de políticas de proteção ao trabalho, de urbanização e de assistência médico-social.

Segundo Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira (2018)SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Caridade e filantropia: elites, Estado e assistência à saúde no Brasil. In: Teixeira, Luiz Antônio; Pimenta, Tânia Salgado; Hochman, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. p.145-181., até o final do século XIX, e com reverberações no século XX, a assistência implicava uma gama multifacetada de ações que buscava minorar os impactos da pobreza sobre a vida da população. Em grande medida, tais ações eram organizadas por irmandades devocionais ou confrarias que procuravam atender a diversos tipos de necessidades, individuais ou coletivas, na tentativa de separar o mau pobre do bom pobre. Durante o início do século, e sob a influência do liberalismo político, a assistência brasileira foi reorganizada a partir de um modelo político calcado na descentralização e regionalização da ação pública. Assim, o protagonismo no campo assistencial ficou a cargo do poder político local, articulado a instituições filantrópicas e/ou indivíduos benfeitores que se multiplicaram em diferentes espaços do país impulsionados por certo humanismo de ordem religiosa, desencadeado pela carta encíclica Rerum Novarum (Sanglard, 2015SANGLARD, Gisele. Filantropia e política pública: Fernandes Figueira e assistência à infância no Rio de Janeiro na Primeira República. In: Sanglard, Gisele; Ferreira, Luiz Otavio et al. Filantropos da nação: sociedade, saúde e assistência no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p.133-148.). Assim, cabia à União apenas manutenção de órgãos reguladores da higiene nos portos, a instalação e administração de hospitais de isolamento e a atuação em momentos de calamidade pública.

Este modelo, descentralizado e liberal de assistência, foi paulatinamente perdendo espaço a partir da década de 1930, quando, respaldada pela política varguista, a União iniciou um contínuo processo de centralização conferindo a si maior controle sobre as ações de instituições assistenciais que se espalhavam pelo país (Chaves, 2013CHAVES, Cleide de Lima. A assistência à saúde no sertão baiano: as origens da Santa Casa de Misericórdia de Vitória da Conquista (1913-1932). In: Chaves, Cleide de Lima (org.). História da saúde e das doenças no interior da Bahia, séculos XIX e XX. Vitória da Conquista: Uesb, 2013.). No entanto, é importante ressaltar que tal organização da assistência, baseada em instituições filantrópico-caritativas, só perdeu força a partir da promulgação da Constituição de 1988, quando as políticas assistenciais foram entendidas como direitos de cidadania. Ou seja, durante boa parte do século XX, vigorou em todo o país um mix de público e privado nas ações assistenciais destinadas aos mais pobres.

Foi nesse contexto de extremas mudanças na ordem pública que a Região Carbonífera se destacou no cenário nacional, momento no qual as atividades mineradoras provocaram um profundo processo de ruptura com as formas tradicionais de vida, expondo as populações locais a uma nova dinâmica sociocultural ligada às atividades mineradoras capitalistas. Do conjunto de cidades que formam a Região Carbonífera Catarinense, a cidade de Criciúma foi aquela que sofreu maior impacto das atividades industriais, sendo metamorfoseada de um pequeno núcleo agrícola em uma cidade industrial dedicada às atividades extratoras de carvão mineral.

O rápido desenvolvimento da cidade, entre 1930 e 1960, proporcionado pelas atividades mineradoras, ocasionou também importantes mudanças na dinâmica das migrações locais. De diversas cidades vizinhas, inúmeras pessoas que até então haviam se dedicado exclusivamente às atividades agrícolas ou à pesca, se deslocaram para Criciúma em busca de emprego estável e da promessa de mudança de vida proporcionada pelo famoso ouro negro que se escondia no subsolo.

Atraídos por melhores salários e por horários fixos de trabalho, os colonos começaram a abandonar as propriedades agropecuárias, despovoando-as completamente e criando um novo e grave problema para a região: a falta de víveres de primeira necessidade (Boa Nova Junior, 1953BOA NOVA JUNIOR, Francisco de Paula. Problemas médico-sanitários da indústria carvoeira. Boletim [do Departamento Nacional de Produção Mineral], n.95, 1953., p.10).

No entanto, como afirmou o médico sanitarista Francisco de Paula Boa Nova Junior, em seu relatório ao Departamento Nacional de Produção Mineral, as ondas migratórias direcionadas à Criciúma asfixiaram as regiões agrícolas do seu entorno e trouxeram problemas de inúmeras ordens para a cidade. Sem as condições necessárias para a manutenção de uma cidade industrial, como serviços públicos de infraestrutura, saúde e educação, na década de 1940, Criciúma havia entrado em uma espécie de colapso urbano, transformando-se em um problema médico e socioambiental de difícil solução.

Se, por um lado, a possibilidade de trabalho fixo e com horários determinados representava um suposto avanço ao modo de vida anterior, por outro, os operários foram expostos a extenuantes rotinas de trabalho e obrigados a morar, junto com suas famílias, em vilas operárias construídas pelas mineradoras sobre o rejeito do carvão e sem as mínimas condições de salubridade, conforme relata Boa Nova Junior (1953BOA NOVA JUNIOR, Francisco de Paula. Problemas médico-sanitários da indústria carvoeira. Boletim [do Departamento Nacional de Produção Mineral], n.95, 1953., p.13):

Ao tempo de nossa chegada à Criciúma, em fins de 1944, contristador era o aspecto que a cidade oferecia no tocante às suas condições higiênicas e sanitárias, à mortalidade infantil e ao conforto oferecido aos seus habitantes. Sem rede de abastecimento d’água, sem esgotos, sem serviços de coleta de lixo, sem calçamento, e com uma iluminação elétrica precaríssima, fornecida por uma pequena usina pertencente a particulares, agravadas estas deficiências por secas prolongadas e pela dificuldade de aquisição de gêneros de primeira necessidade devido ao despovoamento das zonas agrícolas ... difíceis eram as condições de vida de toda a população.

De acordo com Margareth Rago (2014)RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014., esses complexos habitacionais foram muito característicos do capitalismo brasileiro da primeira metade do século XX e possuíam uma tripla finalidade: afastar o operariado do ciclo de atividades burguesas, construir um espaço higiênico e adequado ao mundo do trabalho, e fabricar uma massa de trabalhadores ordeiros e disciplinados. Segundo Leonardo Freire dos Santos (2020SANTOS, Leonardo Q.B. Freire dos. O Hospital Proletário João Pessoa: limites e possibilidades para a saúde do trabalhador (Paraíba, anos 1930). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.27, n.3, p.837-857, 2020., p.842), a preocupação dos capitalistas industriais com a saúde do seu conjunto de trabalhadores calcava-se mais na busca crescente de “valorização do valor” do que em ações de cuidados com o outro, “assim, a saúde do pobre poderia ser duplamente positiva: diminuía o risco de contágio e contribuía para o desenvolvimento econômico”.

Apesar de muito comuns na Região Carbonífera Catarinense, as vilas operárias de Criciúma e das cidades circunvizinhas possuíam pouca similaridade com suas homônimas presentes em outros estados. Construídas de maneira irregular sobre o solo piritoso, servidas por ruelas estreitas e lamacentas, sem observar as mínimas normas de higiene, esses locais de habitação rapidamente foram levados à estafa, tornando-se um problema médico-sanitário de difícil solução. O aspecto sombrio proporcionado pela visão das vilas operárias da Região Carbonífera Catarinense é narrado pelo deputado Jorge Lacerda (citado em Brasil, 31 jan. 1959BRASIL. CPI do Carvão. Diários do Congresso Nacional, p.964-954, 31 jan. 1959., p.946) em visita ao estado em 1948:

Testemunhei naquelas localidades, com viva emoção, o espetáculo constrangedor das casas dos mineiros, pequenas habitações de madeira enfileiradas, totalmente pretas, pois eram pintadas com piche. Na paisagem nenhum jardim, nenhuma flor. Carvão por toda parte: no chão, nos rostos, nas ruas, nas paredes, ... E naquele ambiente soturno, a lembrar sombrias necrópoles, crescem e multiplicam-se as famílias dos trabalhadores, sem que nenhuma providência, sequer, venha minorar as aflições desse estado de verdadeira penúria.

Nesse contexto médico-sanitário problemático, as congregações religiosas femininas ocuparam importante espaço no atendimento médico-assistencial à população local, priorizando especialmente aquelas atividades relacionadas à maternidade e à infância. A existência de muitas congregações religiosas femininas atuando na Região Carbonífera foi uma característica marcante de seu sistema de assistência. Seguindo os modelos existentes nas grandes zonas industriais do país, tanto a Igreja Católica Apostólica Romana quanto o empresariado, num movimento confluente de interesses, buscavam solidificar sua aproximação com a classe trabalhadora. Enquanto a Igreja buscava defender a fé católica frente à expansão de novas religiões, os patrões, diante do medo do comunismo, estavam interessados em adequar os trabalhadores ao mundo fabril por meio de uma assistência que minorasse os efeitos negativos do capitalismo. De acordo com Zanelatto, Trichês e Carola (2016), a cidade de Criciúma, devido à forte organização dos trabalhadores e a posterior criação do Sindicato dos Trabalhadores do Carvão, foi vista, durante muito tempo, como um foco de disseminação do pensamento comunista em Santa Catarina, contribuindo para a organização das elites locais em torno de um discurso anticomunista e de controle do operariado.

Assim, para dar conta de tal empreitada, ambos se utilizaram de um tipo mão de obra barata, especializada e de fácil inserção no meio popular, as congregações religiosas católicas femininas. Dito de outra maneira, a Igreja possuía um corpo de profissionais especializados no atendimento às populações pobres, enquanto os empresários tinham muitos trabalhadores a ser atendidos. Essa relação interdependente de interesses encontrou terreno fértil no Complexo Carbonífero por dois motivos. O primeiro estava relacionado ao modus operandi do próprio setor de exploração do carvão, que, para facilitar os trabalhos no interior das minas, melhor administrar e controlar o pessoal contratado, alocava seus trabalhadores em vilas operárias, tornando esses espaços urbanos alvos de fácil inserção da pastoral católica. O segundo motivo foi a rápida aceitação das congregações religiosas femininas junto ao operariado local, facilitado pelo próprio tipo de colonização da região, predominantemente europeia, com imigrantes italianos, alemães, poloneses e portugueses com fortes raízes ancoradas no catolicismo romano.

Apesar desse contexto favorável para a difusão de instituições católicas no sul de Santa Catarina, é preciso lembrar as diretrizes da própria Igreja, que desde o final do século XIX pregava a necessidade de disseminação do ideal de vida católico junto às populações operárias. Em 1891, por meio da carta encíclica Rerum Novarum, o papa Leão XIII (1991) aconselhava aos membros da Igreja católica que se fizessem presentes junto às populações pobres, intermediando as questões político-sociais entre trabalhadores, patrões e o Estado, fortalecendo, assim, seu papel como mediadores de conflitos no campo social. De acordo com as diretrizes contidas na carta encíclica:

Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo aqueles que estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida ... a Igreja, ... quer e deseja ardentemente que todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão operária a melhor solução possível (Leão XIII, 1991LEÃO XIII, papa. Carta Encíclica Rerum Novarum (Sobre a condição dos operários). São Paulo: Loyola, 1991., p.2-7).

No Brasil, a Ação Católica1 1 Ação Católica (AC) foi um movimento religioso que buscava alargar a ação dos leigos. Entre seus objetivos, a AC visava espraiar a influência da Igreja por meio de indivíduos leigos que, “transformados” em apóstolos, transmitiriam a mensagem católica a partir de uma posição próxima do corpo eclesiástico. Dentro da Ação Católica o leigo passaria a ocupar, também, o papel evangelizador, e não apenas receptor da ação eclesiástica. Ver: Maia, Sales (2018). já fomentava maior aproximação e debate com o operariado desde a década de 1920, mas a relação de proximidade com o povo só foi realmente concretizada em 1952, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Como porta-voz do catolicismo romano no país, a CNBB buscou adequar todas as circunscrições eclesiásticas do país a um movimento religioso mais progressista como resposta às preocupações do Vaticano com a fraca inserção e influência da Igreja junto às camadas populares. Com ideais mais próximos de uma renovação pastoral, a CNBB fomentou a interiorização e a expansão de ordens e congregações em diversos espaços geográficos do país, momento no qual se insere boa parte das instituições religiosas que se instalaram no Complexo Carbonífero Catarinense.

Predominantemente composta por mulheres, as congregações que atuaram na região se dedicaram às atividades tradicionais que envolviam o ensino formal e o serviço social, voltado para o atendimento à saúde. De acordo com José Oscar Beozzo (1983)BEOZZO, José Oscar. Decadência e morte, restauração e multiplicação das ordens e congregações religiosas no Brasil, 1870-1930. In: Azzi, Riolando. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983. p.85-129., as congregações religiosas femininas instaladas no Brasil tradicionalmente se dedicaram à instrução formal das elites; no entanto, o Sul do país se destacou por receber congregações também voltadas para o atendimento dos mais pobres, assumindo serviços hospitalares, asilos, centro de recolhimento de órfãos, entre outros. Além disso, conforme aponta o autor, numa sociedade extremamente conservadora, a vida religiosa no Brasil fomentou a maior participação das mulheres no contexto social, possibilitando novas vivências longe dos grandes centros urbanos, o que explica, em parte, a fundação de tantas congregações femininas no Brasil. É importante ressaltar que, entre 1930 e 1956, se instalaram no Complexo Carbonífero cinco congregações religiosas, que chegaram ao sul do estado por meio de contrato com empresas mineradoras a fim de exercer funções na área educacional, para as elites, e de assistência à saúde e social para as camadas populares. No Quadro 1 apresentamos alguns dos principais dados de cada uma das congregações femininas.

Quadro 1
Dados sobre as congregações religiosas que atuaram no Complexo Carbonífero Catarinense entre 1920 e 1960

Dentre as congregações femininas instaladas na Região Carbonífera, destacamos a atuação social das Pequenas Irmãs da Divina Providência, que, sob o carisma “Abandono à Divina Providência no serviço aos necessitados”, dedicou-se, nos primeiros anos de sua chegada a Criciúma, aos serviços de saúde e cuidados. Primeiramente instaladas na Vila Operária do Rio Maina, pertencente à Companhia Carbonífera Catarinense, as irmãs iniciaram seus trabalhos sociais a partir da Casa Assistencial São José, onde foram construídos um pequeno ambulatório e um dispensário de medicamentos que revendia os remédios a preços mais acessíveis. Nesse bairro, a princípio, os trabalhos contemplavam o atendimento aos casais, aos enfermos e noções de higiene e saúde materno-infantil. Um ano após sua chegada, e frente aos pequenos progressos obtidos no local, as religiosas, por meio de um convênio com o Serviço Social da Industria (Sesi) e com a Sociedade Carbonífera Próspera S.A., mudaram para a vila operária homônima à mineradora, fundando a Casa Assistencial Imaculada Conceição (Álbum/Relatório..., 1955-1957ÁLBUM/RELATÓRIO das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência. SESI, Criciúma/SC (Arquivo Central do Serviço Social da Indústria, Florianópolis). 1955-1957.).

Desenvolvendo trabalhos assistenciais na Vila Operária Próspera por quase dez anos, de 1955 a 1964, as Pequenas Irmãs da Divina Providência obtiveram boa aceitação e resultados no atendimento às famílias mineiras que ali viviam. Dedicando-se especialmente à atenção às mães e às crianças, por intermédio de visitas domiciliares, as irmãs iniciaram um processo de intervenção no cotidiano dessas populações visando especialmente à diminuição da mortalidade infantil. Esse trabalho assistencial priorizou a adequação das mulheres e meninas ao espaço doméstico por meio de cursos populares de economia doméstica, arte culinária, prendas domésticas, entre outros, que tendiam a instrumentalizar as mulheres a transformar sua casa em um espaço saudável e propício ao desenvolvimento de uma família sana e ordeira. A ideia era reverter situações como as relatadas em 1957, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito do Carvão, instalada pelo Parlamento Nacional com a finalidade de examinar as condições de vida e trabalho dos mineiros catarinenses:

É seguinte o aspecto das habitações: construída de madeira, sujas, mal conservadas e cheias de frinchas por onde os ventos reinantes rodopiam e pelas quais podemos divisar o interior ... se no verão tais casas têm condições de habitabilidade, como suportá-las assim esburacadas no rigoroso inverno de Santa Catarina quando muitas vezes é mister aquecimento artificial? Não possuem serviços sanitários, água encanada e esgoto. ... Só o fato de as casas não possuírem água e esgoto, marca o grau de pauperismo desses operários sujeitos eles e suas famílias, na falta de água potável e esgoto, a desinterias, tifo e verminoses (Brasil, 31 jan. 1959BRASIL. CPI do Carvão. Diários do Congresso Nacional, p.964-954, 31 jan. 1959., p.946).

Diante dessa situação precária, ao atender as famílias mineiras da Vila Operária Próspera, as Pequenas Irmãs da Divina Providência diversificaram sua atuação na tentativa de abarcar diferentes estágios da vida, priorizando, sobretudo, as questões materno-infantis. Visando à queda da mortalidade entre os recém-nascidos, foram instituídos os cursos de puericultura e enfermagem do lar, nos quais as mães eram introduzidas às noções básicas de saúde, reconhecimento de enfermidades, primeiro banho, higiene e dietética infantil. Para as crianças maiores eram realizadas atividades de lazer e sociais, como o coro infantil, clube de futebol, clube de meninas, criação de coelhos, plantio e cuidados de hortas, catequese, entre outras. Ao dirigir seus esforços à população infantil, o empresariado, por meio do trabalho assistencial das religiosas, buscava reverter a imagem negativa da cidade atrelada à mortalidade infantil. Concentrando a maioria das minas de carvão, bem como a maior parte das famílias operárias, o médico Manif Zacharias (20 maio 1957, p.1), afirmava que Criciúma era sempre lembrada, em diversas partes do país, pela existência de dois elementos comuns: “A terra, por suas particularidades: uma, o carvão, expressão de sua riqueza no subsolo; outra a elevada mortalidade infantil, traduzindo a miséria de seu povo”.

Pedagogia médico-sanitária às famílias operárias mineiras: o Álbum/Relatório das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência

Nos anos que permaneceram na Vila Operária Próspera, as Pequenas Irmãs da Divina Providência procuraram fazer com que o trabalho missionário envolvesse a família operária como um todo, buscando reeducá-la, especialmente por meio de uma forte atuação junto às crianças. Em suas incursões entre a população operária buscaram pormenorizar os processos interventivos aplicando estratégias diferenciadas para meninos e meninas, bem como para as mulheres, esposas dos operários, além de suas filhas. Podemos entender essa atuação na Vila Operária Próspera como uma espécie de pedagogia médico-sanitária, que se estendia aos trabalhadores das minas pela educação de suas famílias. As ações, diferenciadas e contínuas, procuravam abarcar distintos âmbitos da vida, da moral à higiene, da religião ao lazer, do cuidado à educação formal. Sintonizada com seu tempo, tal pedagogia somou-se a outras iniciativas socioassistenciais encampadas por médicos e filantropos que voltaram suas atenções para os operários e suas famílias, em especial para as condições da maternidade e infância.

O Álbum/Relatório das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência não é um relatório comum, a exemplo do que estamos acostumados a ver, pois se diferencia pelo suporte utilizado e pela forma como são apresentadas as atividades encetadas pela congregação. Faz uso de imagens, textos e desenhos confeccionados manualmente. Mede 63cm de comprimento por 58cm de largura. Possui capa feita de madeira e revestida por veludo bordô, onde se encontram impressos, em letras douradas, um pouco apagadas, os dizeres: Serviço Social da Indústria – Confederação Nacional da Indústria. Ambas as inscrições se encontram sobrepostas a engrenagens, em alusão à indústria e na tentativa de ilustrar a conexão simbiótica entre o Sesi e a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Se o tamanho e pompa da capa surpreendem, pelo fato de se tratar apenas de um relatório de atividades, ao abri-lo e folheá-lo encontramos importantes relatos e imagens que buscam representar o cotidiano da congregação religiosa naquele bairro. Cabe ainda ressaltar que, ao ser dirigido à diretoria do Sesi em Santa Catarina, o relatório, além de narrar as ações desenvolvidas pelas irmãs, tinha ainda por finalidade impressionar um dos principais financiadores de seu trabalho. Dessa forma, toda a pompa, o capricho e o esmero empenhados na confecção do relatório objetivavam criar uma narrativa impressionante e ilustrada que reafirmasse o papel singular da instituição religiosa naquela localidade.

O Álbum/Relatório foi elaborado a oito mãos e levou em torno de quatro meses para ser concluído, tendo a irmã Cláudia Freitas como sua principal organizadora. Apesar de não apresentar autoria, todos os textos, mais de 13, foram escritos por ela. As fotografias são da Foto Zappellini, um dos primeiros estúdios fotográficos da cidade de Criciúma. Os desenhos foram realizados pela irmã Fernanda Martins Cardoso; e as letras dos títulos, subtítulos e legendas pela irmã Maria Rodrigues Monteiro, ambas professoras (de artes e matemática, respectivamente) do Colégio Michel, estabelecimento particular de ensino criado pela congregação para atender à elite local.2 2 As informações pormenorizadas sobre a feitura do Álbum/Relatório foram registradas em entrevistas com irmã Cláudia concedidas a Giani Rabelo em 29 de outubro de 2003 e a Ismael Gonçalves Alves em 5 de outubro de 2007.

A forma como os subtítulos foram escritos foi mantida, ou seja, um ponto após cada letra, dando a ideia de que as letras foram bordadas nas páginas do Álbum/Relatório. Os pontos amarram, costuram e funcionam como uma amálgama que une diferentes elementos. Essa operação permeia todo o documento, havendo a tentativa constante de aproximar os diferentes segmentos, as diferentes culturas, os diferentes interesses de a “tríplice aliança”, composta por Carbonífera Próspera/Sesi, Igreja e operários.

Todo o cuidado, esmero e, principalmente, o tempo investido na elaboração do Álbum/Relatório nos fazem pensar a respeito do sentido que as freiras desejavam que os leitores atribuíssem às informações ali contidas, assim como a importância dada a seu suporte. Pode-se inferir que o cuidado na produção desse documento se tratava de uma estratégia, no sentido de torná-lo um objeto que pudesse oferecer aos leitores uma determinada leitura acerca das condições em que viviam as famílias na Vila Operária Próspera e do quanto era importante o trabalho das freiras no campo social, religioso, educacional e na área da saúde. Em outras palavras, o objetivo era aproximar a realidade enfrentada pelas famílias mineiras e o trabalho das freiras daqueles que os conheciam superficialmente, ou seja, os gerentes do Sesi, de modo a legitimar as ações e a reconhecer a instituição que as mantinha. Um relatório bem-feito e com ações bem apresentadas, demonstrando a necessidade e a importância do trabalho da congregação, certamente causaria impacto junto aos mantenedores e asseguraria a continuidade das atividades.

A materialidade do Álbum/Relatório leva a inferir que houve, também, a intenção de perpetuação da história do trabalho efetuado pelas freiras, sabendo-se que um documento com tais características dificilmente seria descartado. Cabe registrar que ele é único, pois não existe cópia, e, portanto, foi concebido pelo princípio da raridade, na tentativa de assegurar, de alguma forma, o lugar de legitimidade de todas as ações realizadas pelas freiras dessa congregação nos três primeiros anos dos 13 que a Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência permaneceu na Vila Operária Próspera. Vale lembrar, como alerta Roger Chartier (1992CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leitura. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238., p.213), que – mesmo havendo por parte do autor a construção de várias estratégias para garantir uma determinada forma de compreensão do texto, pois “o leitor é sempre visto pelo autor como necessariamente sujeito a um único significado, a uma interpretação correta e a uma leitura autorizada”, ou até mesmo que se conceba “a leitura como algo inscrito no texto, como um efeito automaticamente produzido pela própria estratégia da escrita específica da obra ou de seu gênero” (p.213) – não há uma leitura única, pois o texto não tem eficácia absoluta.

O Álbum/Relatório não percorreu o processo pelo qual passam os livros na sua trajetória histórica, como aponta o próprio Chartier (1992CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leitura. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238., p.220) ao afirmar que os livros “são manufaturados por copistas e outros artesões, por técnicos e outros engenheiros, por máquinas impressoras e outros tipos de máquinas”, mas passou por três pessoas que, de alguma forma, deixaram registradas suas marcas. Nesse caso, os lugares de autoria, edição e confecção coincidem.

Se, porém, de um lado o texto não tem eficácia absoluta, ou seja, a autoria não proporciona um sentido único para aquilo que produz, o leitor também não possui autonomia absoluta, pois sua liberdade está circunscrita a determinados tempo e espaço, a um campo de possibilidades. O texto, que é o objeto comunicante é interpelado pelo ato que o apreende, ou seja, a leitura. “Conduzido ou encurralado, o leitor encontra-se invariavelmente inscrito no texto, mas este, por sua vez, inscreve-se de múltiplas formas em seus diferentes leitores” (Chartier, 1992CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leitura. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238., p.215).

Se, no entanto, ao ler algo não podemos negar a relação de tensão entre o autor, representado pelo texto, e o leitor, que é o responsável pelo ato de apreender o texto, Chartier (1992CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leitura. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238., p.220) também adverte que “nenhum texto existe fora do suporte que lhe confere legibilidade; qualquer compreensão de um texto, não importa de que tipo, depende das formas com as quais ele chega até seu leitor”. Para ele, as obras adquirem significado por meio de um processo complexo que implica o exame da relação entre três polos, ou seja, o próprio texto, o objeto que o comunica e o ato que o apreende (p.220-221).

Uma particularidade do Álbum/Relatório sugere que apenas os textos não dariam conta de expressar todos os trabalhos desenvolvidos pelas religiosas. Daí a recorrência às ilustrações e às fotografias legendadas, além dos desenhos confeccionados manualmente, de forma apurada e artística. Chartier (1992CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leitura. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.211-238., p.213), mais uma vez, ao referir-se à cultura do objeto impresso, destaca as limitações impostas às imagens impressas. Para ele, as imagens não têm iguais significado e papel quando estão inscritas no texto. Nesses casos, constitui-se um meio para melhor garantir o controle do sentido a ser atribuído ao texto pelos leitores. Assim, as imagens só podem ser entendidas na relação complexa que estabelecem com suas legendas e os textos que as acompanham.

Além disso, é importante destacar que, assim como as fotografias em geral, no Álbum/Relatório também o objeto fotográfico está atravessado pela ciência, técnica e arte. A compreensão da fotografia como uma “prova” dos fatos, como a “verdade” ou como “reprodução” do real a acompanha desde sua invenção, no começo do século XIX.

A manipulação da imagem fotográfica praticamente nasceu com a própria fotografia não sendo, portanto, uma peculiaridade da era digital. Os fotógrafos de estúdio do século XIX já trabalham com técnicas de retoque para corrigir imperfeições e modificar características físicas de seus clientes. Segundo o pensador francês Roland Barthes (1915-1980), mesmo uma fotografia feita à altura dos olhos, com uma luz suave e sem distorções, é uma imagem construída com o propósito de parecer natural. Todas essas escolhas (enquadramento, tipo de luz, ponto de vista, cores, cenários etc.) constituem o que ele chama de ‘retórica da imagem’, pois são maneiras de conduzir o espectador a uma determinada interpretação. Dessa maneira, o naturalismo das imagens jornalísticas e publicitárias é, na verdade, um discurso construído arbitrariamente (Objetividade..., 2022OBJETIVIDADE fotográfica (verbete). In: Itaú Cultural. Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3912/objetividade-fotografica. Acesso em: 21 out. 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/...
).

Os estudiosos que se debruçaram sobre o modo de funcionamento da fotografia como sistema de expressão têm trazido a ideia de que esse suporte de imagem exprime suas mensagens sob a forma de construções visuais, que são sempre intencionais, interpretativas de uma determinada realidade. Mesmo os aspectos aparentemente técnicos da fotografia, como o enquadramento, a iluminação, a disposição das zonas de cinza, a determinação do ponto de foco, a velocidade de obturação, a resolução da perspectiva pelos vários tipos de lente, a densidade da emulsão de registro, o balanceamento das cores, e outros, não são arbitrários. A imagem é uma construção, uma expressão, um discurso visual que visa construir uma narrativa coerente e legitimadora de trajetórias individuais e/ou coletivas (Costa, jan. 1995COSTA, Maria Cristina Castilho. O objeto, o colecionador e o museu. Imaginário, n.2, p.38-99, jan. 1995., p.38).

Diante dessa dinâmica constitutiva e interpretativa, o Álbum/Relatório das Pequenas Irmãs da Divina Providência se torna uma importante fonte histórica para pensar os processos de assistência médico-sanitários instituídos nos diferentes estados da federação, ressaltando as diferenças e singularidades com relação a outros espaços. Por fim, este pequeno texto introdutório teve por finalidade situar os leitores sobre as condições de produção de um artefato cultural que busca apresentar/representar faces da assistência social e à saúde desenvolvidas na Região Carbonífera Catarinense. Gostaríamos de salientar que nosso propósito, aqui, é publicizar o que consideramos um documento singular sobre a história da assistência no Sul do Brasil, visibilizando o processo de interiorização e as práticas de cuidados difundidas fora da região Sudeste.

Álbum/ Relatório das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência (1955-1957). SESI, Criciúma/SC

Figura 1
Serviço Social da Indústria (SESI)/Confederação Nacional da Indústria (CNI)

Figura 2
Ajudar a ajudar-se

O grandioso lema do SESI “ajudar a ajudar-se” vem sendo realizado plenamente na Próspera, onde se conta com a valiosa cooperação do SNR. Vigário da Paróquia, Revmo. Pe. Standislau Cizeski, bem como dos eméritos diretores da Sociedade Carbonífera Próspera, Snrs. Sesostris R. Correa e Dr. Mário Balsini.

Ao ensejo da apresentação deste trabalho, as Pequenas Irmãs da Divina Providência agradecem a estes generosos colaboradores, formulando votos onipotentes, a fim de que estes símbolos “SESI e Sociedade Carbonífera Próspera” continuem, fortemente unidos, visando sempre à grandeza da nossa pátria, através do humilde, porém, magnífico trabalho do operário nas minas de carvão.


Figura 3
Reembolsável – Medicamentos

Farmácia

Origem: Logo à chegada das Irmãs, foi instalado o Reembolsável de medicamentos, vendendo os remédios pelo preço de custo. Desde o início foi boa a aceitação, dado o auxílio que vem prestando aos operários.

Desenvolvimento: com o decorrer do tempo, o Reembolsável tornou-se mais conhecido, podendo ser isto constatado através da estatística.

Atende-se qualquer pessoa, tendo-se assim a oportunidade de conhecer muitos problemas e resolvê-los na medida do possível.

É notável o número de encaminhamentos médicos que através do reembolsável têm sido feitos.

Benefícios: São inúmeros os benefícios provindos do Reembolsável. Benefício econômico, instrutivo e social. Para salientar a parte econômica, citaremos alguns exemplos: um vidro de Lutazol em nossa Farmácia custa Cr$ 38,00, na praça vende-se a Cr$ 90,00. Uma receita que no Reembolsável orçava em Cr$ 190,00, em uma das Farmácias da cidade custava Cr$ 310,00.

Horário: O horário estabelecido pelo SESI é o seguinte: das 8 às 11 e das 14 às 17 horas. Aos sábados das 8 às 11 horas.

Este horário existe, porém, só em tese, não sendo possível cumpri-lo, porquanto o Reembolsável é procurado com frequência, à noite, aos sábados e aos domingos.


Figura 4
Visitas domiciliares

Nas visitas domiciliares, as Irmãs têm oportunidade de se dedicar a muitos trabalhos, bem como, viver e sentir as necessidades do meio. Nestas visitas, fala-se da necessidade de cuidar da higiene das crianças e da casa, dos benefícios que traz a plantação de uma horta. Aconselha-se a esposa impaciente e descuidada que cuide bem do marido. Encaminha-se um casamento, um documento profissional e, sobretudo, procura-se educar.


Figura 5
No domínio da Higiene

O chuveiro:

Com a finalidade de acostumar as crianças ao banho ao menos semanal, pedimos ao Sr. Diretor da Companhia Carbonífera Próspera um chuveiro para as crianças, no que fomos atendidas com toda solicitude.

Instalado o chuveiro elétrico, nas proximidades da Escola, convidamos algumas crianças, que a princípio se mostram temerosas da “experiência”, mas depois fizeram boa propaganda.

O banho foi marcado, para todo sábado, às 14 horas. Os meninos de um lado e as meninas de outro. Observamos de perto, a sujeira, mormente das meninas. Tinha-se a impressão de que nunca haviam lavado os cabelos. Para penteá-las gastava-se boa dose de tempo e paciência.

Hoje o chuveiro é procurado com a alegria pela meninada que ali acorre, aos sábados, levando até crianças de colo e dizendo: – “deixa Irmã, meu irmãozinho tomar banho de chuveiro para ver como é bom?”. Também os operários utilizavam o chuveiro para higiene diária, ao voltarem encarvoados das minas.


Figura 6
Arte Culinária

Desenvolvimento

Origem – É conhecida de todos a base de alimentação da grande maioria dos habitantes da Próspera: pirão d’água, ou melhor, farinha de mandioca e água, misturados à hora de servir e peixe cozido. É este o prato que constitui alimento dos pobres operários que trabalham em serviço tão exaustivo e duro.

Sabemos que a pobreza não justifica isto, e sim o descuido, a lei do menor esforço. No intuito de corrigir em parte este lamentável erro, começamos a estudar a possibilidade de um pequeno Curso de Arte Culinária. Com o Grupo de Floristas fizemos uma pequena experiência, realizando um lauto almoço e o resultado foi magnífico. As moças davam mostras de que, até então, nunca haviam saboreado manjar tão delicioso. Chegando em casa, contaram às mães e vizinhas, tudo o que haviam feito e aprendido em um só almoço e isto valeu como eficaz propaganda. Aproveitamos o calor do entusiasmo para uma reunião com as senhoras, convidando-as para o pequeno Curso de Culinária que pretendíamos começar.

Início – A 16 de maio, iniciamos o Curso, com duas aulas semanais, no horário de 14 às 17 horas, na casa anexa ao Subposto do SESI. No entanto, vimos que estava prejudicando as donas de casa retê-las semanalmente por duas tardes inteiras. Passamos a dar somente uma aula por semana.

Execução do trabalho – cada aluna leva sua contribuição em víveres. Pronta as iguarias, arrumam a mesa e, satisfeitas, saboreiam o delicioso jantar.

Resultados – Não exageramos dizendo que os resultados observados até agora são esplêndidos. É difícil convencê-las, em dias de chuvas torrenciais, de que não podemos fazer os trabalhos. Nem falta d’água é motivo de “gazear” aula.

Já recebemos agradecimentos de alguns maridos, por intermédio das senhoras.

Número de alunas – atualmente são doze alunas, com boa frequência e aproveitamento. Começamos com oito.


Figura 7
Serviço Prático de Costura

Histórico

Fizemos no mês de abril de 1957 uma reunião com as senhoras a fim de convidá-las para o serviço de costura, que íamos começar.

Explicamos o motivo da reunião, as condições e regulamentos que deviam reger nosso trabalho. Foi estabelecido o número de 18 senhoras para começá-lo.

Uma das componentes do grupo ofereceu a sua casa para as aulas. Aceitamos com prazer, porquanto estava difícil a questão do local. A primeira aula foi bem concorrida comparecendo todas as candidatas que se inscreveram. Notava-se muito entusiasmo, embora mais tarde algumas desistissem.

O programa seria o seguinte:

1 – Cerzir e remendar;

2 – Camisa para homem;

3 – Calça para homem;

4 – Roupinha de criança;

5 – Vestidos;

6 – Bordados

Atualmente o grupo é composto de dez senhoras. O aproveitamento é satisfatório e a frequência é boa. Já terminaram três pares de fronha, fizeram alguns vestidos, roupinhas de criança e calças para homem.


Figura 8
Enfermagem Caseira

Curso de Enfermagem Caseira

Origem – Várias vezes fomos chamadas a domicílio em horas avançadas da noite, a fim de aplicar injeções em doentes graves.

Contra os nossos princípios de sair à noite, atendemos grande número de pessoas, nos casos mais urgentes.

Todavia não era possível continuar assim. Fazia-se necessário formar uma turma de colaboradores e, neste sentido, reunimos algumas senhoras expondo o nosso projeto de dar um pequeno curso de Enfermagem Caseira.

Início – Iniciamos em outubro de 1956. O que podíamos fazer em dois meses, levamos quase um ano, dada as inúmeras dificuldades que surgiram: falta de local, por exemplo. Um dia dava-se aula na varanda do Reembolsável, outro dia na sede provisória, quando chovia (e isto com frequência) recorríamos ao cômodo de despejo da nossa casa. Muitas vezes, no entanto, não podíamos ocupar nenhum destes lugares, e então perdia-se a aula.

Despesas, outra dificuldade. Comprar injeções durante todo o aprendizado, adquirir material etc.

Programa:

1 – Noções de higiene

2 – Injeção intramuscular

3 – Injeção endovenosa

4 – Esterilização

5 – Curativos

6 – Tomada de temperatura

7 – Ética da enfermeira

8 – Lavagem intestinal

O estrito necessário para atender aos inumeráveis chamados de injeções a domicílio e proporcionar mais socorro à Operária.

Exames finais – A pedido nosso o abalizado médico Dr. Raimundo Perez procedeu a um rigoroso exame das alunas, dando em seguida permissão a todas de exercer o trabalho em casa e a domicílio.

Cada Enfermeira tem em seu lar uma “caixa de urgência”, contendo o material e os medicamentos para socorro de urgência.

Benefícios – São satisfatórios os resultados obtidos do Pequeno curso de Enfermagem Caseira. As Enfermeiras atendem grande número de pessoas, mormente, à noite.

Para dar ideia da aceitação do trabalho, diremos que, uma delas, a senhora Amélia Amorim, aplica em média cinco injeções por dia. A senhora Rosa de Souza “especializou-se” em banho de recém-nascido, sendo grande sua freguesia.

Outro benefício haurido do Curso é a observação que as Enfermeiras fazem do doente e das suas necessidades, avisando-nos quando se faz mister a visita da Irmã.


Figura 9
Enfermagem a Domicílio

Figura 10
Casos individuais

Um operário chamou-nos à sua residência, na Corda Bamba, para fazer curativos no seio de sua esposa. Encontramos um ambiente horrível. Sujeira por todo canto. O recém-nascido de apenas 10 dias, já se achava contaminado pela “sapeca”. As outras quatro crianças inspiravam compaixão, tal aspecto imundo que apresentavam. A cama onde repousavam a mãe doente e o recém-nascido cheirava mal.

Oferecemos para dar banho nas crianças e limpar a casa, mas a Sra. F... recusou e prometeu que faria ela mesma o trabalho.

No dia seguinte, ao chegar, deparamos, com toda a família de roupa trocada sem passar e sem levar ao corpo nem uma gota d’água sequer. A distância não permitia uma visita diária a esta família. Contudo, fizemos o que foi possível para encaminhá-los na higiene e conseguimos que o Sr. N... plantasse uma horta.

Dois meses após a última visita, tivemos uma grande decepção. Encontramos o mencionado recém-nascido quase cego. Fazia mais de um mês que não abria mais os olhos, porque aquele pus provindo da “sapeca” não era retirado e foi colando as pálpebras até que a criança não pôde mais abrir os olhos.

Perguntamos à mãe, por que deixou chegar àquele extremo, ao que ela respondeu candidamente: “– A gente não dá conta de limpar! Limpa, limpa, limpa e torna a sujar...”. Apenas esta a razão de deixar a pobre criancinha, condenada à cegueira. Fizemos um tratamento em casa, com aplicação de pomada de penicilina. Oito dias após este tratamento, a criança abria os olhos e a melhora veio se processando paulatinamente.

Terminando o ensaio do Coro, pediu-nos uma entrevista a Sra X... e prontamente atendemos.

Entre soluços, contou-nos que há muito vem sofrendo horrivelmente os maus-tratos do marido, que, além de espancá-la por várias vezes, a havia expulsado de casa. Levou-a o ano passado para S. Paulo e após fazer uma série de desordens foi caçado pela policia.

Para livrar-se veio embora deixando-a no hotel sozinha com a filha de 2 anos.

Não podendo voltar, por falta de dinheiro, ficou servindo no hotel e, auxiliada pela proprietária deste, conseguiu voltar à casa dos pais em Criciúma.

No momento, prossegue, preciso arranjar um emprego a fim de manter minhas filhas, (agora são duas) porque sei que a qualquer hora ele me deixa novamente, ou manda-me para a casa de meus pais que são pobres e não podem sustentar-me. Ficamos de estudar o assunto.

Há tempo vínhamos pensando na necessidade de um Curso Supletivo feminino em nossa vila operária.

Procuramos algumas interessadas e propusemos o pagamento mensal de Cr$ 15,00. Eram ao todo oito alunas. Combinamos com a Sra. X... que aceitou maravilhada a feliz ideia e deu início às aulas com entusiasmo. As alunas, porém, não pagavam com precisão e a frequência era quase nula. Nesse ínterim, fomos visitadas pelas senhoras Zuleika Albrecht e Olga Woigt, respectivamente, diretora da D.S.S. e encarregada do Corte e Costura do SESI. Pedimos a ambas o apoio e colaboração para um movimento de tanta importância em nosso meio e incontinente procuraram elas o Sr. Prefeito Municipal.

A prefeitura deu caráter oficial ao nosso Curso Supletivo, fez um ordenado de Cr$ 1.200.00 para a Sra. X... e demos inicio às aulas no prédio da Escola Nova, gentilmente cedido pelo Sr. Diretor da Sociedade Carbonífera da Próspera.

Atualmente temos, entre senhoras e moças, quarenta alunas, assíduas e interessadas.

A Sra. X... revelou então o seu valor. Ótima professora, criteriosa, dedicada e compreensiva. No princípio deste ano, tomou a defensiva de uma boa soma de crianças que não conseguira vaga nas escolas.

Com o apoio da Prefeitura, formaram-se duas classes de primeiro ano, no salão paroquial da Próspera.

Lecionava para uma delas, sendo a outra ministrada pela Sra. Z...

A Sra. X... percebe agora Cr$ 2.800,00. Encerrou a casa, comprou móveis e uma boa máquina de costura e aprendeu a aplicar injeções.

É um ponto de apoio para nós quando precisamos de sua colaboração.

Este caso angustiante foi a chave que resolveu o sério problema da educação das senhoras e jovens operárias.

Após uma reunião com as mães, veio ter conosco a Sra. T... e disse que estava levando uma vida muito difícil, porquanto o seu marido é aposentado, o pagamento em atraso há cinco meses, com seis filhos para manter.

Além disto o marido é alcóolatra permanente, espanca os filhos, briga com a esposa e com a bebida gasta todo tostão que ela com sacrifício consegue economizar. Arrematando pedia a nossa colaboração no sentido de fazer ao menos um cômodo para onde pudesse transferir-se com a família e ficar livre do pesado aluguel, que vinha pagando de sua residência.

Após a narrativa, perguntamos qual a proposta que ela apresentava à Cia., que era a quem devíamos fazer o pedido. Respondeu-nos, que compraria o material de uma casa pequena, que estava sendo transferida da Corda Bamba para a Próspera, se para tanto dessem as suas economias. Indagamos ainda qual seria a mensalidade e quanto poderia dar de entrada.

Deixamos passar uns dias, durante os quais encontramos com a Sra. T... sem tocar no assunto. Apuramos que a mesma vinha fazendo roça, para dar subsistência aos filhos e ia a grande distância, comprar legumes e frutas para revender na cidade. Diante de tanto esforço solicitamos ao Sr. Diretor da Cia. a venda da casa, para ser colocada nas proximidades e assim facilitar o penoso trabalho da cliente.

A casa foi cedida, tendo a Sra. T... que providenciar o transporte. Para isto vendeu o cavalo que possuía e transportou a casa e, ambos, marido e mulher constituíram-na perto da roça.

Vivendo agora em lugar mais distante o marido está bebendo menos. Melhorou a alimentação de seus filhos, melhorando também o nível de vida.

Adquiriu uma vaquinha a qual vem contribuindo largamente para a boa nutrição.


AGRADECIMENTOS

Essa pesquisa obteve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e da Chamada Universal MCTIC/CNPq n.28/2018.

REFERÊNCIAS

  • ÁLBUM/RELATÓRIO das Atividades das Pequenas Irmãs da Divina Providência. SESI, Criciúma/SC (Arquivo Central do Serviço Social da Indústria, Florianópolis). 1955-1957.
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NOTAS

  • 1
    Ação Católica (AC) foi um movimento religioso que buscava alargar a ação dos leigos. Entre seus objetivos, a AC visava espraiar a influência da Igreja por meio de indivíduos leigos que, “transformados” em apóstolos, transmitiriam a mensagem católica a partir de uma posição próxima do corpo eclesiástico. Dentro da Ação Católica o leigo passaria a ocupar, também, o papel evangelizador, e não apenas receptor da ação eclesiástica. Ver: Maia, Sales (2018)MAIA, César Portantiolo; SALES, Lilian Maria Pinto. Ação Católica e modernidade religiosa: um debate sobre a autonomia do leigo. Debates do NER, v.19, n.34, p.155-182, 2018..
  • 2
    As informações pormenorizadas sobre a feitura do Álbum/Relatório foram registradas em entrevistas com irmã Cláudia concedidas a Giani Rabelo em 29 de outubro de 2003 e a Ismael Gonçalves Alves em 5 de outubro de 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2021
  • Aceito
    27 Jul 2021
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