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Uma história das leishmanioses em perspectiva global

A history of the leishmaniases from a global perspective

BENCHIMOL, Jaime Larry; JOGAS JR., Denis Guedes. Uma história das leishmanioses no Novo Mundo: fins do século XIX aos anos 1960. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Editora Fiocruz; Fino Traço, 2020. 790p.

Consideradas doenças negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde, as leishmanioses estão associadas a transformações socioambientais, tais como: o crescimento urbano sobre as áreas silvestres; as atividades econômicas em zonas onde ocorrem os reservatórios dos parasitas; e a persistência da pobreza entre as populações afetadas, expressa em condições precárias de habitação e em alta mobilidade. Cerca de um bilhão de pessoas vivem em regiões endêmicas, distribuídas por 98 países (segundo relatório de 2019), dos quais o Brasil tem posição de relevo, com 15.848 casos de leishmaniose cutânea (que abrange também a forma mucocutânea) reportados em 2019 e 2.529 de leishmaniose visceral (WHO, 2021). Junto com Sudão, Sudão do Sul, Eritreia, Somália, Índia, Etiópia e Quênia, concentra 90% dos casos mundiais de leishmaniose visceral, a forma mais grave e invasiva da doença. O país também integra o grupo responsável por 91% dos casos de leishmaniose cutânea reportados mundialmente (WHO, 2021).

No Brasil e nos demais países latino-americanos, as leishmanioses apresentam relevância histórica, além da epidemiológica, por terem magnetizado grupos de pesquisadores dedicados a desvendá-las sob os diversos aspectos. Apesar disso, a história desse conjunto de patologias provocadas pela mesma categoria de parasitas – protozoários do gênero Leishmania – permanecia quase tão negligenciada quanto a própria doença, até vir a lume, em 2020, Uma história das leishmanioses no Novo Mundo , a robusta obra dos historiadores Jaime Larry Benchimol e Denis Guedes Jogas Junior, publicada pelas editoras Fiocruz e Fino Traço. Primeiro de três volumes, o segundo será lançado neste ano, e o terceiro encontra-se em fase de escrita, o livro trata do percurso histórico das leishmanioses do final do século XIX até os anos 1960, conjuntura que dá início à análise do volume subsequente.

Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, Benchimol é historiador consagrado pelos estudos em história da pesquisa biomédica no Brasil, tendo publicado obras seminais sobre a reforma urbana do Rio de Janeiro no início do século XX; a história do Instituto Oswaldo Cruz; e sobre a febre amarela, temática que o projetou no cenário historiográfico; além da edição comentada das obras completas de Adolpho Lutz, coordenada com Magali Romero Sá. Denis Jogas Junior é autor de dissertação de mestrado e de tese de doutorado sobre a história da leishmaniose tegumentar americana, sendo que a tese foi orientada pelo próprio Benchimol e por Simone Petraglia Kropf, também pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz ( Jogas Jr., 2014JOGAS JR., Denis Guedes. Uma doença americana? A leishmaniose tegumentar na produção de conhecimento em medicina tropical (1909-1927) . Dissertação (Mestrado em História das Ciências e Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014. , 2019JOGAS JR., Denis Guedes. Leishmaniose tegumentar americana em perspectiva histórica e global (1876-1944) . Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019. ).

O resultado dessa colaboração é a densa e intrincada narrativa estruturada em nove capítulos que relatam a acidentada e complexa trajetória de estudos e o enfrentamento das leishmanioses, hoje distinguidas nas formas cutânea, mucocutânea e visceral. No entanto, cada uma dessas expressões sintomáticas teve nomenclaturas variadas, segundo suas características e regiões de incidência, como botão de Biskra, botão do Oriente, uta , espúndia, úlcera de Bauru, calazar. Conforme bem descrevem Benchimol e Jogas Junior, o agrupamento desse heterogêneo grupo de patologias deu-se nos marcos da bacteriologia e da medicina tropical, segundo os quais a correlação das manifestações patológicas com microrganismos específicos determinava a identidade das mesmas. No entanto, a observação dessa correlação e a certificação de se tratar do mesmo parasita envolveram complexas operações cognitivas que só puderam ser levadas a cabo graças à conectividade que reuniu grupos de estudiosos nas Américas, na Europa, na África e na Ásia. Nisso reside um dos grandes méritos do livro: a forma pela qual os autores documentam os densos diálogos entre pesquisadores que intercambiaram amostras biológicas, pacientes, organismos, conhecimentos divulgados em periódicos internacionais, em manuais, compartilhados nos encontros científicos frequentes no período sob análise ou ainda por cartas. Trata-se, assim, de uma excelente análise empírica de circulação de conhecimento científico que pode perfeitamente ser enquadrada como um estudo de história global, não obstante os autores concentrem o foco na América do Sul e mais particularmente no Brasil, e sejam concisos quanto às inspirações teóricas que modelam suas análises.

Eles demonstram as sinergias existentes entre as problemáticas científicas de diversas regiões, com achados sincrônicos, mesmo em casos nos quais não houve diálogos diretos. Nessas trocas e sinergias, a narrativa descortina uma complexa geografia do conhecimento científico ( Livingstone, 2003LIVINGSTONE, David N. Putting science in its place: geographies of scientific knowledge . Chicago: Chicago University Press, 2003. ), em que estruturas coloniais asseguraram a proeminência de personagens e instituições localizados nas sedes dos impérios, ao mesmo tempo que comunidades médicas locais alavancaram suas reputações a partir de observações e estudos da doença em suas zonas de atuação. A expertise obtida a partir desses estudos tornou-se a marca de excelência de grupos que atuaram fora dos eixos consagrados da ciência médica do período. O domínio desse conhecimento franqueou-lhes acesso a posições privilegiadas nessa cartografia, como os autores bem demonstram para o caso da leishmaniose tegumentar americana, que ocupou os latino-americanos, e para o da leishmaniose visceral, que os grupos reunidos por Evandro Chagas e, mais tarde, por Samuel Barnsley Pessôa, lograram tornar um signo de reconhecimento do potencial da ciência médica brasileira.

Benchimol e Jogas Junior enfrentam as complicadas agendas de pesquisa e as controvérsias científicas sobre a natureza das expressões das leishmanioses, a taxonomia dos parasitas e os modos de transmissão, cujos vetores são mosquitos – o que as integra no modelo conceitual erigido pela medicina tropical –, como também os reservatórios de animais não humanos. A complexidade do tema e as minúcias da narrativa exigem leitura atenta, mas a trama armada pelos autores compõe um enredo muito bem encadeado, com riqueza de dados sobre os vários personagens retratados. Ao mesmo tempo que detalham as trajetórias individuais, institucionais e o histórico das regiões que foram palcos dos estudos, Benchimol e Jogas Junior percorrem com fluência os contextos da saúde em escala nacional e internacional em suas interfaces com a política e a economia. Assim, fica claro para o leitor como certos processos – o imperialismo do início do século XX, o “endocolonialismo” das cabeças urbanas do Brasil sobre os “vastos sertões”, o desenvolvimentismo e a saúde internacional – emolduraram os enunciados médico-científicos sobre as leishmanioses.

Os pormenores com que os autores descrevem as observações, as etapas dos estudos, as técnicas, as controvérsias e os impasses desvelam como a ciência médica efetivamente foi praticada – os percalços de expedições a regiões de difícil acesso; as adversidades das rotinas de clínicos enfronhados naqueles rincões; as interações com pacientes e familiares assolados por patologias muitas vezes obscuras; como também a criatividade implicada nas soluções para questões práticas e enigmas epidemiológicos. Um ponto que merece ser sublinhado refere-se à forma como o livro retrata a interiorização da pesquisa e da assistência médica no Brasil, lançando luz sobre a institucionalização dos serviços de saúde em contextos regionais por vezes pouco detalhados pela historiografia.

Além de descreverem minuciosamente as paisagens e as dinâmicas socioambientais envolvidas na conformação dos espaços acometidos pelas leishmanioses, os autores flagram a formação de comunidades médicas e de instituições regionais para as quais aquelas doenças constituíram fontes de legitimação e de identidade socioprofissional. Nesse aspecto, o ponto alto da narrativa é a epidemia de leishmaniose visceral que acometeu o Ceará em 1953 e que se espraiou para os demais estados do Nordeste. Sem se restringirem ao volumoso manancial de fontes escritas, os autores também mobilizam depoimentos orais, alguns dos quais colhidos nas próprias regiões estudadas. No encalço dessas fontes trazem à cena a fabulosa figura do farmacêutico cearense Felizardo de Pinho Pessoa Filho, cujo relato é o fio condutor das deleitosas páginas que registram o cotidiano dos ofícios de cura nos interiores carentes de assistência médica e hospitalar, mas agitados pelas expressões locais das disputas coronelistas.

O livro recebeu o primeiro lugar do prêmio da Associação Brasileira das Editoras Universitárias na categoria Ciências da Vida em 2021, um reconhecimento da qualidade da obra, como também do bem-sucedido diálogo que os autores estabelecem entre a história e as ciências biomédicas.

Em vez de meramente preencher a lacuna da história de uma doença negligenciada pela historiografia, Uma história das leishmanioses no Novo Mundo representa um oportuno estudo de caso de circulação do conhecimento em perspectiva global pela destreza com que modula escalas de análise, entrelaça personagens, espaços e contextos, e registra a complexidade das operações de produção do conhecimento científico. Além de historiadores e cientistas sociais, a obra tem o potencial de despertar interesse entre profissionais da medicina, da saúde pública e das ciências da vida. Que venha logo o segundo volume!

REFERÊNCIAS

  • BENCHIMOL, Jaime Larry; JOGAS JR., Denis Guedes. Uma história das leishmanioses no Novo Mundo: fins do século XIX aos anos 1960 . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Belo Horizonte: Fino Traço, 2020.
  • JOGAS JR., Denis Guedes. Leishmaniose tegumentar americana em perspectiva histórica e global (1876-1944) . Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.
  • JOGAS JR., Denis Guedes. Uma doença americana? A leishmaniose tegumentar na produção de conhecimento em medicina tropical (1909-1927) . Dissertação (Mestrado em História das Ciências e Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2014.
  • LIVINGSTONE, David N. Putting science in its place: geographies of scientific knowledge . Chicago: Chicago University Press, 2003.
  • WHO, World Health Organization. The Global Health Observatory: explore a world of health data: leishmaniasis . Disponível em: https://www.who.int/data/gho/data/themes/topics/gho-ntd-leishmaniasis Acesso em: 26 fev. 2021.
    » https://www.who.int/data/gho/data/themes/topics/gho-ntd-leishmaniasis

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022
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