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Trópico e fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda

Resumo

De meados dos anos 1930, com Raízes do Brasil , a meados dos anos 1960, com O extremo Oeste , Sérgio Buarque de Holanda descreve um importante câmbio em seu entendimento sobre o espaço brasileiro. Inicialmente, em um diálogo muito próximo com Gilberto Freyre, o autor concebe o país a partir da noção de trópico, espaço fluido onde Portugal pode ser recriado pelo estreito vínculo com o oceano. Em Monções e Caminhos e fronteiras , o historiador desenvolve uma visão deliberadamente oposta àquela, na qual o país é concebido pela noção de fronteira, espaço áspero onde a plasticidade do adventício alcança o seu limite. Jaime Cortesão e sua tese da ilha-Brasil tornam-se os alvos invariáveis de crítica nessa etapa.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982; Gilberto Freyre (1900-1987; Jaime Cortesão (1884-1960; história; espaço

Abstract

From the mid-1930s, with Raízes do Brasil , to the mid-1960s, with O extremo Oeste , Sérgio Buarque de Holanda undergoes a significant change in his understanding of Brazilian space. Initially, in a close dialogue with Gilberto Freyre, the author conceives the country drawing on the notion of the tropics, a fluid space where Portugal could be recreated through the bond with the ocean. In Monções and Caminhos e fronteiras , the historian develops a deliberately opposed vision, conceiving the country from the notion of frontier, a rough space where a foreigner’s adaptability reaches its limit. In this phase, Jaime Cortesão and his thesis of Brazil-island became an invariable target of criticism.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982; Gilberto Freyre (1900-1987; Jaime Cortesão (1884-1960; history; space

Anos depois de viver em São Paulo, já prisioneiro de guerra em Lübeck, o historiador Fernand Braudel remonta às suas leituras brasileiras para redigir um luminoso balanço crítico da obra de Gilberto Freyre. O texto, enviado por carta a Lucien Febvre em abril de 1942 e publicado em Paris no ano seguinte, destaca o escritor pernambucano como principal nome da tradição ensaística de Euclides da Cunha a Paulo Prado e a Sérgio Buarque de Holanda. Reconhece na “geografia do passado” de Gilberto Freyre o mérito de revelar como uma intensa experiência oceânica soldara o Brasil à “imensidão marítima”, mas a critica por não abordar como, inversamente, o país se voltara às suas “profundezas continentais” perdido o ímpeto da vida atlântica ( Braudel, 1943BRAUDEL, Fernand. À travers un continent d’histoire: le Brésil et l’œuvre de Gilberto Freyre. Mélanges d’Histoire Sociale, v.4, p.3-20, 1943. , p.20). Era aos sedentários do litoral que o autor de Casa-grande & senzala dedicava “todos os tesouros de sua erudição e de suas interpretações. ... Assim, no fundo, por toda sua massa, a obra de Gilberto Freyre é um pleito em favor dos enraizados, dos estáveis” ( Braudel, 1943, pBRAUDEL, Fernand. À travers un continent d’histoire: le Brésil et l’œuvre de Gilberto Freyre. Mélanges d’Histoire Sociale, v.4, p.3-20, 1943. , p.8). Braudel observava ser necessário um “alargamento horizontal” (p.19) da perspectiva, incorporando os nômades, a população flutuante, os desbravadores de caminhos e tantos outros a quem o país devia sua extensão e unidade.

Longe do Brasil há cinco anos, o francês possivelmente não soubesse que essa sugestão de contar a história dos caminhantes já vinha sendo perseguida não por Gilberto Freyre, entrado em certa complacência com a própria a obra, mas por Sérgio Buarque de Holanda, insatisfeito com a sua. Em uma das últimas entrevistas que concedeu, publicada quarenta anos depois da recensão crítica de Braudel, Sérgio Buarque conta que o livro Monções , concluído em outubro de 1944 e publicado no ano seguinte, deu forma a uma ideia que já vinha sendo elaborada há algum tempo em ensaios menores: “Escrever ... uma espécie de Casa-grande & senzala ao avesso. Esse livro do Freyre faz o Brasil parecer estático; dominado pelo açúcar; olhando para o Atlântico; parado. Eu queria algo mais dinâmico, apontado para as minas, para o interior. Brasil em movimento” ( Holanda, 2009, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Todo historiador precisa ser um bom escritor. In: Martins, Renato (org.). Sérgio Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p.192-211. , p.205). Essa lembrança reflete bem o programa que o historiador paulista efetivamente começou a esboçar com um pequeno artigo já em 1939, isto é, quando o oficial de Exército Fernand Braudel ainda guarnecia a Linha Maginot. Ao procurar fazer um Casa-grande & senzala “ao avesso”, Sérgio Buarque – na expressão certeira do antigo integrante da missão universitária francesa a São Paulo – basculava a “geografia do passado” da solda oceânica para as vastidões continentais.

Nestas páginas, procuro discutir a noção de espaço de Sérgio Buarque e mostrar como sua obra, entre meados das décadas de 1930 e 1960, descreveu um movimento do “trópico” à “fronteira”. Em grandes linhas, quando é lançado em 1936, Raízes do Brasil está no círculo de influência de Casa-grande & senzala , publicado três anos antes. É seguindo largamente – embora não integralmente – uma formulação de Gilberto Freyre que Sérgio Buarque apresenta, em Raízes , tanto o problema central quanto a solução excepcional que moldarão a formação histórica do país: a adversidade do ambiente tropical à civilização europeia e a plasticidade com que, únicos entre os povos daquele continente, os portugueses conquistaram o trópico. Tropical é o espaço “fluido” onde Portugal e suas instalações ultramarinas podem ser recriados pelo estreito vínculo com o oceano. Nesse ambiente litorâneo não há, sequer se busca, comunhão com a terra. É, por definição, o desterro.

Inverter Casa-grande & senzala impunha quebrar a fôrma em que Raízes do Brasil fora vazado. O aludido artigo de 1939 inicia o “alargamento horizontal”, que Monções desenvolve e Caminhos e fronteiras e O e xtremo Oeste consumam. Nesses livros, a importância da formação continental do Brasil é deliberadamente afirmada contra a história ou sociologia da orla marítima que tinha seu baluarte em Gilberto Freyre. Dialogando agora com autores orientados para a terra – como Frederick Jackson Turner, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu e Sérgio Milliet –, Sérgio Buarque troca o sinal da noção de plasticidade a partir da segunda edição de Raízes . Em vez de produzir similitude, ou seja, de recriar a ambiência lusitana no trópico, a plasticidade conduz à diferença, vale dizer, cria uma sociedade especificamente brasileira à medida que se avança, no sertão, para além da raia de Tordesilhas. 1 1 Ao observar essas distintas acepções buarqueanas da plasticidade, beneficiei-me da tese clássica de Edmundo O’Gorman (1977) sobre a “invenção” geográfica e histórica da América. Fronteiriço é o espaço “áspero” onde a plasticidade alcança o seu limite. Jaime Cortesão torna-se um interlocutor privilegiado nesse momento em que Sérgio Buarque busca explicar a conquista do “coração” do continente sul-americano como fruto de uma expansão espontânea dos paulistas, os quais teriam chegado até onde o seu crescimento orgânico os levou, e não aonde a vontade imperial lusitana os teria inspirado a ir. Surgida no debate travado com o exilado português, essa distinção entre expansão autêntica e artificialidade geopolítica se tornará parte fundamental da discussão sobre fronteiras presente em Caminhos e fronteiras e prolongada em parte da História geral da civilização brasileira e no livro O extremo Oeste .

O enquadramento aqui proposto incide sobre dois pontos de vista mais ou menos bem estabelecidos na historiografia. Em primeiro lugar, contraria a tendência de imputar-se ao percurso intelectual de Sérgio Buarque certa autonomia em relação ao pensamento social brasileiro e, em especial, à reflexão de Gilberto Freyre (cf. Novais, 2005NOVAIS, Fernando. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. ). Na leitura apresentada à frente, não se encontrará na edição princeps de Raízes do Brasil nem tônica antilusitana (cf. Candido, 2006CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. ), que o autor só desenvolveria a partir de 1940; nem revolta contra o determinismo climático (cf. Dias, 1985DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: Dias, Maria Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. São Paulo: Ática, 1985. p.1-64. ), também uma opção posterior; nem, finalmente, crítica ao tradicionalismo de Freyre (cf. Bastos, 2016BASTOS, Elide Rugai. Um livro entre duas Constituintes. In: Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição crítica. Org. Pedro Meira Monteiro, Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p.405-410. ), tese aliás oriunda de uma releitura pelo próprio autor de um trecho de seu livro de estreia dirigido a Alceu Amoroso Lima (1932)LIMA, Alceu Amoroso. Política. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932. como se tivesse por alvo original o escritor pernambucano (cf. Holanda, 1967HOLANDA, Sérgio Buarque. Elementos básicos da nacionalidade: o homem. Rio de Janeiro: Presidência da República; Estado-Maior das Forças Armadas/Escola Superior de Guerra, 1967. , p.7). Terá mais peso uma perspectiva que assinala as convergências substantivas da argumentação do primeiro Raízes do Brasil com a de Casa-grande & senzala . 2 2 Richard Morse (1995 , p.53) observou certa vez que “os dois primeiros capítulos de Raízes do Brasil encaixam-se em muitas das ideias de Gilberto, embora seja difícil atribuir influência, dado o robusto manuscrito que Sérgio trouxe da Alemanha em 1931”. Esse manuscrito, intitulado “Teoria da América”, de paradeiro desconhecido, pode ter ocasionado uma “tentativa de mitologia” por parte de Sérgio Buarque, que em livro homônimo de 1979 o situa como uma espécie de origem mítica de Raízes do Brasil , associando o artigo de 1935 que prefigura o ensaio do ano seguinte a leituras da temporada alemã e deixando-o relativamente a salvo de correlações com o ambiente intelectual brasileiro. Diz, sobre o calhamaço da “Teoria da América”: “Dele tirei o essencial de um estudo histórico encomendado por Claudio Ganns para uma luxuosa revista nova. ... [C]hamou-se Corpo e alma do Brasil ” ( Holanda, 1979 , p.30). Ocorre que, tanto em “Corpo e alma do Brasil” como em Raízes do Brasil , Sérgio Buarque apresenta o “homem cordial” associando muito estreitamente sua propensão ao encurtamento das distâncias sociais à necessidade de intimidade surgida na zona de colonização escravocrata, de que fala Casa-grande e senzala (ver Feldman, 2016 , p.153-156), livro qualificado, no artigo, como “o ensaio mais sério e mais completo que já se tentou sobre a formação social do Brasil” ( Holanda, 2006 , p.402). Loas quase idênticas foram tecidas à Casa-grande em Raízes (ver Holanda, 1936 , p.105). Tem-se aí, portanto, uma razão para tratar com cautela o foco nas inspirações alemãs do autor de Raízes do Brasil em detrimento de suas leituras nacionais após voltar de Berlim (cf. Lima, 2008 ). Pois, a menos que não se considere a cordialidade uma parte “essencial” – porventura “a” parte essencial – do artigo de 1935 e do livro de 1936, é possível sugerir que essa ideia-síntese do legado colonial português era enunciada buscando respaldo no ensaio que Freyre publicou três anos depois do regresso de Sérgio Buarque. À luz dessas considerações, a reflexão de Morse aponta na direção correta, mas é insuficiente, dado não só haver influência como estender-se ela (pelo menos) até o quinto capítulo de Raízes . André Furtado (2018) reconstrói circunstância similar passando-se do texto ao contexto de Raízes do Brasil . Tudo isso sugeriria mais um desafio à compreensão da “escrita de si” do autor de Tentativas de mitologia (ver Carvalho, 2017 ). Esse ponto de vista, com sua antiguidade ( Ricardo, 1959)RICARDO, Cassiano. O homem cordial e outros pequenos estudos brasileiros. São Paulo: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1959. e suas controvérsias ( Rocha, 2005)ROCHA, João Cézar de Castro. O exílio do homem cordial: ensaios e revisões. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. , tem sido revisitado com proveito nos últimos anos (Venancio, Wegner, 2018; Sanches, 2021)SANCHES, Dalton. Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre: das competições literárias ao anátema histórico-ensaístico. História da Historiografia, v.14, n.35, p.255-285, 2021. . Nessa perspectiva, a “visão profundamente estática, beirando a estagnação, da história brasileira” que Ettore Finazzi-Agrò (2005, pFINAZZI-AGRÒ, Ettore. A trama e o texto: história com figuras. In: Pesavento, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.143-159. , p.147-148) identificou em Raízes – redirecionando a Sérgio Buarque, em certo sentido, a crítica de Braudel a Freyre – parece relacionar-se estreitamente ao aporte de Casa-grande & senzala . É essa a moldura dentro da qual procurarei delinear a noção de trópico na obra do autor paulista.

Em segundo lugar, o enquadramento apresentado aqui contrasta com as avaliações de que a preocupação espacial de Sérgio Buarque só se manifestaria em trabalhos posteriores a Raízes do Brasil (cf. Guimarães, 2008GUIMARÃES, Eduardo Henrique de Lima. A modernidade brasileira reconta as tradições paulistas. In: Monteiro, Pedro Meira; Eugênio, João Kennedy (org.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Eduerj, 2008. p.37-62. ) e de que, mesmo aí, sua noção de fronteira teria componentes sobretudo metafóricas (cf. Decca, 2006DECCA, Edgar Salvadori de. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil: decifra-me ou te devoro. Varia Historia, v.22, n.36, p.424-439, 2006. ) ou antropológicas (cf. Seabra, 2010SEABRA, Silvana. Vozes na fronteira: uma outra leitura para “Caminhos e fronteiras” de Sérgio Buarque de Holanda. Revista Iberoamericana, v.76, n.230, p.41-61, 2010. ). Quanto ao interesse espacial tardio, concordo com Laura de Mello Souza (2014SOUZA, Laura de Mello. Estrela da vida inteira. In: Holanda, Sérgio Buarque de. Monções. Org. Laura de Mello e Souza; André Sekkel Cerqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p.15-37. , p.28) que Sérgio Buarque de Holanda “contou entre os historiadores que procuraram deixar de lado o litoral e a ‘civilização’ ali criada para se ocupar da penetração território adentro”, mas não sem frisar que deixar o litoral de lado equivalia a abandonar a perspectiva de Raízes . Quanto aos sentidos da fronteira, registro que a dimensão dos escritos de Sérgio Buarque realçada no que segue é a propriamente espacial, à qual considerações antropológicas decerto se conjugavam, mas como parte de um esforço de explicação do processo de formação territorial brasileiro. Não só de expansão e hibridização fez-se esse processo, mas também de limites ao movimento e ao intercâmbio cultural. E justamente nesse ponto cumpre indicar como a divergência entre Sérgio Buarque e Jaime Cortesão, que já se buscou relativizar pela integração salomônica da perspectiva de cada um como prismas diversos de uma mesma questão (cf. Novais, 2012NOVAIS, Fernando. Prefácio a Jaime Cortesão ou “Encontro marcado”. In: Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, 2012. p.V-XXIV. ), parece remeter a uma diferença mais fundamental na forma de conceber as fronteiras e mesmo o espaço do país. Ao explorá-la, espero contribuir para recuperar do descaso o diálogo entre esses dois historiadores, reconhecendo honrosas exceções dos dois lados do Atlântico (Oliveira, F., 2010; Oliveira, T., 2013; Martins, 2017MARTINS, Renato. Tradição, modernidade e a história das Américas em “Visão do paraíso” (1946-1969). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. ) e reafirmando a importância do estudo da imbricação de história e geografia no pensamento social brasileiro (ver Lima, 1999LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; Iuperj, 1999. ; Maia, 2008MAIA, João Marcelo Ehlert. A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ).

As quatro seções à frente abordam a noção de trópico de Sérgio Buarque, o alargamento horizontal de sua geografia do passado, a lógica de formação territorial que procurou rechaçar e, por fim, a sua noção sobre a fronteira.

A conquista do trópico

O ovo de Colombo gilbertiano consistiu em uma operação simples, explica Evaldo Cabral de Mello (2002)MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002.: transformar a miscigenação de prejuízo em lucro. Essa troca genial dos dados do problema sociológico que havia décadas consumia a inteligência brasileira foi acompanhada, observo, por outra operação importante em Casa-grande & senzala , dessa vez no campo da geografia ou da meteorologia. Não se tratava exatamente de refutar o velho determinismo climático que estipulava a degeneração do homem na “zona tórrida” ou tropical, tese de origens remotas mas ainda presente no anátema de Euclides da Cunha (1907, pCUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. 2.ed. Porto: Empresa Literária e Tipográfica Editora, 1907. , p.168) sobre a “faixa tropical que nos malsina”. Casa-grande & senzala pretendeu, antes, abrir-lhe uma consagradora exceção: ao contrário dos povos do norte da Europa, cuja degeneração nessa zona dava por comprovada, os portugueses, com sua inigualável plasticidade, eram elevados à condição de povo singularmente apto, até vocacionado, a vencer as adversidades dessa parte do globo e a colonizá-la exitosamente. É este o outro horizonte de Gilberto Freyre: a reabilitação do trópico por e para aqueles capazes de colonizá-lo, salvando-se ao menos as terras da Coroa lusitana dos vaticínios daquela antiga “geografia moral” caluniadora da zona tórrida (Freyre, 1940, p.59).

“Os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam”, gabava o escritor pernambucano: “De formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de permanência” ( Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia e Schmidt, 1933. , p.16). A explicação estava nas “felizes predisposições” raciais, mesológicas e culturais geradas pela situação de “povo indefinido entre a Europa e a África” (p.2, 18). Em Portugal, a multissecular miscigenação de povos nórdicos e árabes, o clima amolecedor, mais africano que europeu, e o intenso hibridismo cultural haviam talhado um povo que se distinguia pela miscibilidade, aclimatabilidade e mobilidade, atributos condensados na noção de plasticidade. Tudo isso fazia dos trópicos “zonas naturais e congeniais de expansão” portuguesa ( Freyre, 1953FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas: introdução a uma possível lusotropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. , p.180), mas o Brasil fora um caso à parte, “prova definitiva daquela aptidão” ( Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia e Schmidt, 1933. , p.1). Diferentemente dos entrepostos que fundara com intuito comercial na Índia e na África, aqui o imperialismo lusitano transmudara-se inesperadamente em “atividade agrária e sedentária nos trópicos” (p.xviii). A partir desse momento, o português “tornou-se luso-brasileiro: o fundador de uma nova ordem econômica e social” (p.xviii).

A página inicial de Raízes do Brasil descortina ao leitor o mesmo horizonte da de Casa-grande & senzala . Destaca-se o “fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e subtropical” ( Holanda, 1936, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.3). Está-se, naturalmente, em presença do “estilo econômico” de Sérgio Buarque, e não mais da “prosa derramada” de Gilberto Freyre ( Monteiro, 2000)MONTEIRO, Pedro Meira. Raízes rurais da família brasileira: um diálogo a partir de “Raízes do Brasil” e “Sobrados e mucambos”. In: Miranda, Maria do Carmo (org.). Que somos nós? 60 anos de “Sobrados e mucambos”. Recife: Massangana, 2000. p.147-169. . Mas há, também, menor necessidade de insistir e de polemizar, pois quem trata do excepcionalismo tropical luso em 1936 pode fazê-lo com mais sobriedade do que quem o reabilitava em 1933 contra juízos ainda frescos como o de Euclides acerca da “incapacidade do mestiço para progredir ... num meio físico como o do Brasil tropical” ( Freyre, 1944, pFREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. , p.61). Se Freyre tinha que sustentar esse excepcionalismo pela primeira vez – elaborando, ao que parece, uma intuição de Manuel de Oliveira Lima (1922, pLIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência, 1821-1822. Caieiras, SP: Melhoramentos, 1922. , p.34) –, Sérgio Buarque (1936, p.3) já podia tratar aquela aptidão única – “vivemos uma experiência sem símile” – como um dado da realidade.

O “eco” de Casa-grande & senzala , corretamente captado no primeiro parágrafo de Raízes do Brasil ( Rocha, 2005, pROCHA, João Cézar de Castro. O exílio do homem cordial: ensaios e revisões. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. , p.111), estendia-se, na verdade, a toda a discussão colonial do livro, isto é, até o quinto capítulo. Toda essa parte está perpassada pela noção de trópico e pelo aporte de Gilberto Freyre, que gostaria agora de circunscrever. O capítulo dois, “Trabalho e aventura”, é de especial relevância, “a começar pelo emprego do & para reunir os dois opostos” ( Pesavento, 2005, pPESAVENTO, Sandra. Cartografias do tempo: palimpsestos na escrita da história. In: Pesavento, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.17-79. , p.56), tão ao gosto do autor de Casa-grande & senzala , e, a seguir, pelo fato de Sérgio Buarque acompanhar muito de perto o esquema explicativo daquele ensaio para esclarecer como uma cultura trazida de longe havia sido mantida em um “ambiente muitas vezes desfavorável e hostil” ( Holanda, 1936, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.3). Desde logo, em uma narrativa de excepcionalismo:

Pioneiros da conquista do trópico para a civilização, tiveram os portugueses, nessa proeza, a sua maior missão histórica. E, sem embargo de tudo quanto se possa e deva alegar contra a sua obra, forçoso é reconhecer que foram não somente os portadores efetivos, como os portadores naturais dessa missão. Nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas à linha equinocial, onde os homens depressa degeneram, segundo o conceito generalizado na era quinhentista ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.19).

O excepcionalismo explica-se pelo espírito de aventura, de alguma maneira decorrente de Portugal provir de uma “região indecisa entre a Europa e a África” ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.4), e a aventura é logo posta em equivalência a uma “extraordinária plasticidade social” (p.27). Esse espírito plástico e aventureiro será o “elemento orquestrador por excelência” da conjunção de raças e culturas no clima tropical (p.24), caracterizando os portugueses pelos atributos da aclimatabilidade e da miscibilidade. A capacidade de aceitar “o que lhes sugeria o ambiente” permitiu-lhes enfrentar “com denodo as asperezas e as resistências da natureza” (p.26, 24). A capacidade de entrar em “contato íntimo e frequente com a população de cor”, isto é, com os indígenas e os negros, explica como o português “americanizava-se ou africanizava-se, conforme fosse preciso” (p.38). Nisto a razão de os lusos terem sido “inexcedíveis”: “Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma destreza que ainda não encontrou segundo exemplo na história” (p.25). Ao recriar o meio no trópico, a plasticidade gerava similitude: “Nem o contato e a mistura com as raças aborígenes fizeram-nos tão diferentes de nossos avós de além-mar como gostaríamos de sê-lo” (p.15).

Essa recriação se dava não por um prolongamento intransigente da pátria, à espanhola, mas pelo que Gilberto Freyre (1940FREYRE, Gilberto. Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Recife: Edição do Autor, 1940. , p.23-24) mais tarde chamou, talvez (agora ele) com Raízes do Brasil em mente, uma “esplêndida aventura de dissolução”: “Dissolvendo-se sempre noutros povos, a ponto de parecer ir perder-se nos sangues e nas culturas estranhas. Mas comunicando-lhes sempre ... seus motivos essenciais de vida ... Aventura de dissolução acompanhada de gosto de rotina”. Pois era esta a conclusão de Sérgio Buarque sobre o colonizador aventureiro e plástico: “Sua fraqueza foi sua força” ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.37). Cumpre sublinhar o significado dessa frase no contexto da referência anterior à “linha equinocial”. Havendo mencionado no começo do capítulo dois o preconceito quinhentista sobre a zona tórrida, que ilustrara com uma passagem do cosmógrafo francês André Thevet que sugeria a perda de robustez do homem no trópico ( Lestringant, 1997LESTRINGANT, Frank. Le Brésil d’André Thevet. In: Thevet, André. Les singularités de la France Antarctique. Paris: Chandeigne, 1997. p.7-40. , p.335 nota), Sérgio Buarque agora o encerrava citando um velho historiador do domínio holandês no Brasil: “Era corrente, na Europa do século XVII, a crença de que ‘além do Equador não existe nenhum pecado’. Barléu, que menciona o ditado, comenta-o, dizendo: ‘Como se a linha que divide os dois hemisférios também separasse a virtude do vício’” ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.36 nota). Registre-se como essas passagens punham o Brasil de Sérgio Buarque naquele espaço “além-da-linha” de que fala Carl Schmitt (2003)SCHMITT, Carl. The nomos of the Earth in the international law of the “jus publicum europaeum”. New York: Telos Press, 2003. , referindo-se à substituição da raia pela qual os reinos ibéricos pretenderam dividir o mundo entre si em Tordesilhas pela “linha de trégua” surgida com a ascensão das potências protestantes. Linha que separava a Europa, empenhada em regular e limitar a guerra, de um “ultramar” cujas terras só podiam ser distribuídas – esvaziada a autoridade arbitral do Papa – pela lei do mais forte. Thevet e Barléu fazem sentir o paradoxo de que fraqueza e vício fossem trunfos lusitanos nesse ultramar abandonado ao estado de natureza.

A epígrafe do capítulo “Trabalho & aventura”, uma passagem de Salustiano sobre os primeiros povoadores de Roma, sugere a “fluidez” da conquista do trópico e, ao mesmo tempo, certa contenção espacial no processo: “É incrível dizer-se como, depois que os reuniu uma única muralha, tão facilmente se ligaram” (citado em Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.17). De fato, a colonização é sempre “antes de tudo litorânea e tropical” ( Holanda, 1936, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.68). Na redoma litorânea, o português sedentariza-se, não lhe importando muito “povoar e conhecer mais do que as terras marginais do Atlântico” (p.79). Isso só reforça a natureza mercantil de seu imperialismo. A própria atividade rural é menos agricultura que lavoura, com mais desfrute da terra que zelo por ela.

Mesmo ao longo do século XIX, de acordo com Sérgio Buarque, não houve grande variação nessa circunstância. Veja-se o tema da cordialidade. O homem cordial nascera na casa-grande, filho do patriarcado litorâneo (ver nota 1). Todo o drama de sua absorção na intimidade da vida familiar, que o incapacitava para a impessoalidade da vida pública, desenrola-se a partir do avanço da urbanização, sobretudo após a abolição da escravatura. Mas essa transição palpitante da vida brasileira, essa mudança “de um polo a outro” ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.43), do rural ao urbano, era um deslocamento dentro do círculo espacial do trópico, litorânea a vida tanto nas fazendas quanto nas cidades. As referências ao mundo formado pelos latifúndios sertanejos ou ao momento novo da história com a expansão bandeirante, movimento que “não tinha as suas raízes do outro lado do oceano” (p.72), eram pontuais e não alargavam essa narrativa.

Quando já estava empenhado em superar a geografia litorânea de Raízes do Brasil , Sérgio Buarque forneceu algumas chaves importantes para a compreensão de seu raciocínio sobre o desterro. Ao dizer a que não se propunha no prefácio de Monções , o autor registrou seu desinteresse pelo estudo de uma sociedade naquilo em que fosse “somente conservadora de um legado tradicional nascido em clima estranho” ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.7). Já em 1939, “Caminhos e fronteiras” apresentava a seguinte formulação:

Os demais sítios povoados não passam de simples manchas dispersas ao longe da marinha, mal plantados na terra e quase independentes dela. Situam-se em paragens melhor acomodadas à arribada de navios do que de bom acesso ao interior, como se sua existência estivesse exclusivamente voltada para o outro lado do Atlântico. Aqui procuram os portugueses provocar um ambiente adaptado às suas tradições nacionais e à sua experiência africana e asiática. O processo evolui graças à importação da cana-de-açúcar. A cultura da cana gerou o engenho. E o engenho chamou o negro. Essa a moldura em que se apresenta nos seus matizes vários a colonização portuguesa em uma larga extensão da costa. Mais tarde ela poderia servir como padrão a quase todas as instalações duráveis de europeus no trópico ( Holanda, 1939HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Revista do Brasil, v.3, n.9, p.14-20, 1939. , p.14).

Em vez de adaptar-se à terra, sofrendo os incômodos de embrenhar-se nas profundezas continentais, o português provocara um ambiente à beira-mar que, frequentado pelas esquadras e frotas que o conectavam aos demais entrepostos de um império marítimo global, adaptava-se às tradições do reino, aos confortos e luxos trazidos dali e do Oriente e à mão de obra africana necessária para uma forma de produção trazida “pronta e acabada” das ilhas atlânticas ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.26; ver Pesavento, 2005PESAVENTO, Sandra. Cartografias do tempo: palimpsestos na escrita da história. In: Pesavento, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.17-79. , p.57). Era isso o desterro mencionado na página inicial de Raízes do Brasil: “Trazendo de países distantes as nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo e timbrando em manter tudo isso em um ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em nossa terra” ( Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.3). Não há paradoxo algum (cf. Rocha, 2005ROCHA, João Cézar de Castro. O exílio do homem cordial: ensaios e revisões. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. ; cf. Rouanet, 2006ROUANET, Sérgio Paulo. Desterrados na própria terra. O Estado de S. Paulo, 22 out. 2006. ), antes coerência, em afirmar o transplante exitoso da cultura europeia para o trópico e em constatar a circunstância do desterro, iniciada, cumpre precisar, logo no começo da colonização (cf. Feldman, 2016FELDMAN, Luiz. Clássico por amadurecimento: estudos sobre “Raízes do Brasil”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2016. ). Tampouco há, no desterro, um sentido de condenação. O exílio não é o desterro, mas sim a terra. Como se lia n’ Os sertões: “A terra é o exílio insuportável” ( Cunha, 1903CUNHA, Euclides da. Os sertões (campanha de Canudos). 2.ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Laemmert, 1903. , p.143).

A metáfora do enraizamento costuma ser entendida como identidade com a terra, mas em Raízes do Brasil designava a vida sedentária no litoral, dependente do oceano. A metáfora apropriada das raízes do Brasil seria a da casa-grande e da senzala e, por extensão, da ordem fundada por elas. Mas se Casa-grande & senzala admitia algum apego do colonizador pela terra, Raízes do Brasil insistia em sua completa vinculação ao mar. Não via dificuldades com um modo de vida “quase independente da terra” e com “suas raízes do outro lado do oceano”. O trópico era a “similitude” ( Bastos, 1998)BASTOS, Cristiana. Tristes trópicos e alegres luso-tropicalismos: das notas de viagem em Lévi-Strauss e Gilberto Freyre. Análise Social, v.23, n.146-147, p.415-432, 1998. , a semelhança globalizada entre os sítios povoados na América, na África e na Ásia, interligados pelo império marítimo e orquestrados pelo mesmo espírito plástico. Enraizar-se e desterrar-se eram o mesmo. O ideal da identidade própria só podia ser dado pelo contato com a terra, mas este só surgia no movimento. Era preciso abandonar Raízes para alcançar as verdadeiras raízes.

Linha de feitorias e mundo agreste

Os anos imediatamente seguintes ao lançamento de Raízes do Brasil guardam indicações importantes sobre o caminho tomado por Sérgio Buarque. Em 1937, Gilberto Freyre lança Nordeste , onde sustenta que a civilização do açúcar fora “mais criadora” que a das minas e a da fronteira, tendo, aliás, originado e protegido o “transbordamento de esforço” representado pelo bandeirismo ( Freyre, 1937FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. , p.220, 30). Uma das primeiras respostas ao livro foi uma resenha de Sérgio Milliet (1937)MILLIET, Sergio. Nordeste. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v.23, p.39-45, 1937. , para quem a civilização da cana era associada ao luxo e à permanência, em contraste com a mobilidade e a pobreza da civilização paulista. Isso o leva a criticar Freyre por tratar o “brasileiro em geral” em função das características do homem do Nordeste. O resenhista aponta a limitação da tese de Nordeste ao espaço tropical: “De duas uma: ou [Freyre] abstrai do conceito nacional todo o território situado ao sul da linha tropical ou nega aos seus habitantes o direito ao uso da nacionalidade brasileira” ( Milliet, 1937MILLIET, Sergio. Nordeste. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v.23, p.39-45, 1937. , p.45; ver também Milliet, 18 nov. 1936, p.4). Em 1938, Milliet publica Roteiro do café , com novas críticas à generalização de Freyre e defendendo a tese de que o Brasil teve “formações sociais regionais” ( Milliet, 1941MILLIET, Sergio. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 3.ed. São Paulo: [s.n.], 1941. (Coleção Departamento de Cultura, v.25.) , p.155). No mesmo livro, que será reeditado em 1939 e 1941, endossa a leitura de Raízes do Brasil (já resenhado por ele) sobre o português como um colonizador infenso “ao trabalho duro e lento da terra” (p.126-127).

Em março de 1939, quando publica o artigo “Caminhos e fronteiras”, Sérgio Buarque dificilmente desconhecia as críticas a Freyre por parte de seu amigo Milliet. Nesse artigo, Sérgio Buarque segue a linha de Milliet, contrapondo fixidez e opulência nordestinas a movimento e penúria paulistas e circunscrevendo o raio sociológico do trópico à “sociedade constituída no litoral e principalmente no litoral do Nordeste” ( Holanda, 1939HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Revista do Brasil, v.3, n.9, p.14-20, 1939. , p.14). Falava menos, é verdade, em diversidade regional do que em contraste do litoral com o sertão, duas “paisagens igualmente significativas” (p.14). Mas depreende-se de sua argumentação que a tese de Freyre não se aplicava necessariamente a todo o país. Note-se que Milliet (1941MILLIET, Sergio. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 3.ed. São Paulo: [s.n.], 1941. (Coleção Departamento de Cultura, v.25.) , p.126) não era citado em momento algum, talvez por cautela de não endossar Roteiro do café , onde se explicava o desamor lusitano pela agricultura por motivos “de ordem racial, como sugere Sérgio Buarque de Holanda”.

Sérgio Buarque busca com esmero a formulação canônica dessa nova perspectiva. Já havia sido bastante sugestiva a imagem dos “caminhos e fronteiras”, cujo contraste com o par “casa-grande e senzala” dificilmente seria casual em um escritor tão cioso. Em Monções , de 1945, encontra as palavras justas para enunciar a mudança – mais até que alargamento – de horizonte de sua obra, que repetirá ipsis litteris na abertura de Caminhos e fronteiras , de 1957, e, com algumas alterações, de O extremo Oeste , obra inacabada escrita a partir de 1965 (ver Holanda, 2014a, p.286 nota). Como apontou Robert Wegner (2016)WEGNER, Robert. A montanha e os caminhos: Sérgio Buarque de Holanda entre Rio de Janeiro e São Paulo. Revista Brasileira de História, v.36, p.111-133, 2016. , o trecho-chave de sua nova geografia reitera os termos do artigo de 1939 sobre o litoral, citados há pouco, e afirma em seguida:

Vencida, porém, a escabrosidade da Serra do Mar, sobretudo na região de Piratininga, a paisagem colonial já toma um colorido diferente. Não existe aqui a coesão externa, o equilíbrio aparente, embora muitas vezes fictício, dos núcleos formados no litoral nordestino, nas terras do massapê gordo, onde a riqueza agrária pode exprimir-se na sólida habitação do senhor de engenho. A sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso mantém-se, por longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou de imaturidade, que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a população nativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade, que cria indivíduos sedentários ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.12-14, 1957, p.I-II; cf. Holanda, 2014b, p.33-34).

A ordem da casa-grande é “fictícia”. Não havia mais lugar para a diplomacia de 1939 quando as “paisagens” litorânea e sertaneja eram colocadas em pé de igualdade. Monções abre a perspectiva de contraposição entre uma sociedade artificial e decadente à beira-mar e um mundo opulento e vibrante no sertão, habitado por uma raça mestiça diversa dos lusos-brasileiros do litoral. Gilberto Freyre não era nomeado, mas era contra sua visão que Monções se lançava – e não só Monções . A mobilidade, ausente de Raízes do Brasil , tornava-se um fator importantíssimo quando projetada sobre (a história) (d)o continente. São Paulo é apresentada, nesse contexto, não somente como “centro de um minucioso sistema de estradas, expandindo-se em todos os rumos do sertão e da costa” ( Holanda, 1939HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Revista do Brasil, v.3, n.9, p.14-20, 1939. , p.14), mas como fruto do excepcional deslocamento espacial necessário para superar-se a faixa litorânea.

Inverter Casa-grande & senzala impunha, na verdade, solapar suas bases em todas as frentes. Após Freyre (1940, pFREYRE, Gilberto. Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Recife: Edição do Autor, 1940. , p.82) criticar, em junho de 1940, os “ilustres ensaístas e sociólogos srs. Sérgio Buarque de Holanda e ... Sérgio Milliet” por negarem ao português qualquer aptidão agrícola, o paulista não se pejará de criticar abertamente – pela primeira vez, salvo engano – as teses do colega. Em artigos de outubro e novembro de 1940, explica que a leitura de Milliet fora “imprecisa” no quesito racial, mas reconhece-se em causa comum com ele ao reiterar o ponto da inaptidão agrária do colonizador, relativiza o excepcionalismo luso ao notar qualidades similares nos franceses e chega a insinuar limitações nos ensaios de Freyre, “mal compostos” (Holanda, 2011a, p.191, 193). Quatro anos depois, em Cobra de vidro , inverte a fórmula sobre o valor da plasticidade lusa na formação nacional: “Sua força foi sua fraqueza” ( Holanda, 1944, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo: Livraria Martins, 1944. , p.76). Em artigo de 1946, observa que, tendo descoberto a falsidade das “velhas superstições que tinham por incompatível a zona tórrida com a civilização europeia” (Holanda, 2011a, p.287), o português não soubera tirar partido dessa sua vanguarda no Brasil. Em 1950, dispara a seta envenenada de que, em certos historiadores, “a imaginação é devoradora e consome toda a documentação” (Holanda, 2011b, p.25). Em Visão do paraíso , nota que a fervorosa reabilitação do trópico era um exagero compensatório, do Brandônio dos Diálogos das grandezas do Brasil a frei Vicente na História do Brasil – e, como discernirá o leitor das entrelinhas, ao “lusotropicalismo” de Freyre, então em seu auge ( Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Tese (Livre docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1958. ; cf. Freyre, 1953)FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas: introdução a uma possível lusotropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. .

À vista disso, não surpreende que as revisões de Raízes do Brasil em 1948 e 1956 tenham resultado na supressão de trechos que se escoravam em vários aspectos da tese de Casa-grande & senzala – climáticos, raciais, paisagísticos, linguísticos e litúrgicos (cf. Holanda, 1936, pHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.3, 28n, 62, 104n, 105). Na perspectiva do ideal de identidade com a terra, o desterro, antes uma descrição relativamente incontroversa do primado da sociedade litorânea, passa a manifestar uma perplexidade fundamental de Raízes com algo que Os sertões identificara décadas mais cedo como a “anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha” ( Cunha, 1903, pCUNHA, Euclides da. Os sertões (campanha de Canudos). 2.ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Laemmert, 1903. , p.81). E é significativo que logo na sequência dessa passagem Euclides enaltecesse a importância específica da Serra do Mar na história nacional: “Transposta a montanha – arqueada como a precinta de pedra de um continente – era um isolador étnico e um isolador histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral” (p.82). Enfrentar e vencer o penoso caminho serra-acima constituía “exceção” (Holanda, 2011b, p.240) na história litorânea brasileira, mas era deixar para trás o desterro e transformar o sedentarismo litorâneo em uma forma de vida antagônica aos valores autênticos gerados no contato íntimo com a terra. Mais ainda, era a possibilidade de um novo perfil étnico, como já ficará claro.

O primeiro Raízes do Brasil admitia “tudo quanto se possa e deva alegar” contra a obra dos portugueses no trópico sem, por isso, deixar de desenhar com traços fortes sua eficácia (portadores “efetivos” da missão colonizadora). Revisado em 1948, o livro vem a público com uma longa digressão no fim do quarto capítulo sobre a “paisagem de decadência” lusitana durante a expansão ultramarina e mesmo antes dela ( Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.164). Contra as tintas épicas de Camões n’ Os lusíadas , por exemplo, o autor recomendava a reflexão de Diogo do Couto, no Soldado prático , sobre porque se “deita mais a perder os grandes impérios” (citado em Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.163). Esse novo panorama do capítulo quatro contrapõe-se ao cenário vivaz de bandeirantismo composto em uma longa nota agora acrescentada ao fim do mesmo capítulo. Era todo um “mundo opulento e vasto” ( Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.191) que se revelava por obra e graça dos paulistas, em contraste à mera “linha de fortalezas e feitorias de dez mil milhas de comprido” (Tawney citado em Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.192), definição que acentuava a natureza oceânica e comercial do império colonial lusitano. Junto ao argumento anterior de que nunca houvera agricultura, isso reforçava a afirmação já de 1936 de que a obra lusa no Brasil “teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização” ( Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.152; ver Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.80). A diferença relativamente marginal com Casa-grande & senzala em 1936 tornava-se uma divergência considerável em 1948. A obra tropical lusa não era uma colônia assentada na ordem de casas-grandes que cultivavam a terra, mas uma linha de feitorias que a devastava.

Nessa oposição da linha costeira ao mundo interior, que trazia para a edição revista de Raízes do Brasil as profundezas continentais que faltavam à princeps , Sérgio Buarque ia transferindo o protagonismo da história brasileira para a sociedade do interior, como fizera antes dele Capistrano de Abreu ( Schwartz, 1997SCHWARTZ, Stuart. A house built on sand: Capistrano de Abreu and the history of Brazil. In: Abreu, João Capistrano de. Chapters of Brazil’s colonial history, 1500-1800. Oxford: Oxford University Press, 1997. p.XVII-XXXIV. ). À medida que se afastava de Gilberto Freyre, pensador da expansão marítima, ia desenvolvendo um diálogo criativo com pensadores da terra. Isso ocorre não só com Euclides, mas também com Capistrano, cuja imagem de uma “época do couro” ( Abreu, 1907ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: M. Orosco, 1907. , p.128) no sertão ensejará a bonita metáfora da adaptabilidade em Monções , também repetida nos livros seguintes:

Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do que em outras capitanias, a ação colonizadora realiza-se aqui por um processo de contínua adaptação a condições específicas do ambiente americano. Por isso mesmo não se enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao contrário, a padrões rudes e primitivos: espécie de tributo exigido para um melhor conhecimento e para o [ sic ] posse final da terra. Só muito aos poucos, embora com extraordinária consistência, consegue o europeu implantar num país estranho algumas formas de vida que já lhe eram familiares no Velho Mundo. Com a consistência do couro, não a do ferro ou do bronze, dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do solo ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.12-14).

Já se demonstrou que a “tese da fronteira” do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner inspirava esse argumento sobre o colono estrangeiro que abre mão de seu modo de vida, assimila usos e costumes indígenas e só lentamente introduz formas de vida estrangeiras ao seu novo ambiente, gerando, ao fim, uma cultura original ( Wegner, 2000WEGNER, Robert. A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. ). E, de fato, após tomar contato com The frontier in American history , em 1941, o paulista não só começa a cogitar da possibilidade de um “Turner brasileiro” ( Holanda, 2018HOLANDA, Sérgio Buarque de. Linhas gerais da história brasileira. Insight Inteligência, n.83, p.21-23, jul.-set. 2018. , p.22) como chega à conclusão de que a tese turneriana tinha até maior validade para o Brasil que para os Estados Unidos. O bilinguismo tupi-português e a adoção dos métodos indígenas de viação fluvial sugeriam que o europeu “transigiu, em tudo, com os processos indígenas” ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.202), em um grau que, pelos critérios de Turner (1920)TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. New York: Henry Holt, 1920. , só se atingiria com escândalo nos Estados Unidos.

Note-se, nisso, como o foco na adaptação do modo de vida europeu ao ambiente americano – e não mais na adaptação do ambiente americano ao modo de vida europeu – envolve a troca de sinal da plasticidade: no trópico, ela produzia similitude; na fronteira, produz diferença. Essa noção sobressai no Raízes do Brasil de 1948: “Na capacidade para amoldar-se a todos os meios, em prejuízo, muitas vezes, de suas próprias características raciais e culturais, revelou o português melhores aptidões de colonizador do que os demais povos” ( Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.192). A rusticidade da sociedade paulista, onde faltavam meios estáveis de sobrevivência como no Nordeste, forçava a mobilidade para o interior. Mas, se o domínio sobre o sertão não se poderia consumar sem a ajuda do indígena, com ela os portugueses “não poderiam sobreviver em estado puro” (p.191). Em Caminhos e fronteiras , dirá: “Essas paragens criaram uma raça em muitos pontos mais próxima do bugre do que do europeu” ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.145; ver Holanda, 1949HOLANDA, Sérgio Buarque de. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu Paulista, v.13, separata, p.176-290, 1949. , p.280). Esta a transformação crucial, de europeus em americanos, em citação de Georg Friederici: “Todo o vasto sertão do Brasil foi descoberto e revelado à Europa, não por europeus, mas por americanos” (citado em Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.191-192).

As profundezas continentais, embora opulentas, logo se revelam “penosas e hostis” ( Holanda, 1949HOLANDA, Sérgio Buarque de. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu Paulista, v.13, separata, p.176-290, 1949. , p.183), ameaçado o homem por “frechas”, “feras” e “febres” ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.202). O longo trato da realidade sertaneja e a mestiçagem ensinam aos paulistas como tirar suas formas de subsistência da harmonia com o meio animal e vegetal e os tornam conquistadores com a “marca do chamado selvagem” dentro de si, e, portanto, dotados de “poderosos vínculos” com a “nova terra” ( Holanda, 1949HOLANDA, Sérgio Buarque de. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu Paulista, v.13, separata, p.176-290, 1949. , p.180). É tão completa sua adaptação, naquele sentido de aceitar formas de vida primitivas, que os paulistas desenvolvem o “sentimento de comunidade e até parentesco com o resto dos seres naturais” e a “perfeita integração no mundo traiçoeiro e agreste” ( Holanda, 1949HOLANDA, Sérgio Buarque de. Índios e mamelucos na expansão paulista. Anais do Museu Paulista, v.13, separata, p.176-290, 1949. , p.227). Em resumo, a plasticidade conduz o caminhante que se embrenha para muito além da linha de Tordesilhas a um modo de vida absolutamente autêntico: “O verdadeiro manancial de energias ativas”, diz-se, não estava nos costumes comedidos do litoral, mas “nos instintos obscuros, nas inclinações muitas vezes grosseiras, nos interesses frequentemente imorais que animavam o bandeirante devassador dos sertões” (p.180-181).

De um lado, artificialidade e decadência da faixa litorânea; de outro, vida orgânica e perfil étnico próprio no mundo do sertão. É armado com esses pressupostos que Sérgio Buarque explicará a expansão espontânea dos paulistas no continente.

As fronteiras naturais

O autor influente e prolífico que Sérgio Buarque privilegiará como interlocutor sobre esse processo é o português Jaime Cortesão. Pelo início da década de 1950, quando debatem na imprensa após Sérgio Buarque questionar sua tese sobre o “mito da ilha-Brasil”, Cortesão é o único estrangeiro já admitido no corpo docente do Instituto Rio Branco, onde leciona cartografia e formação territorial. Não é esta a ocasião de reconstituir o debate entre os dois (ver Oliveira, 2010OLIVEIRA, Francisco Roque de. Método geográfico, cartografia e geopolítica: a propósito da reedição da “História do Brasil nos velhos mapas” de Jaime Cortesão. Anais de História de Além-Mar, v.11, p.225-246, 2010. ), mas observo que a iniciativa parece vir sempre de Sérgio Buarque não só na controvérsia pela imprensa em 1952, como na sua fermentação desde algum tempo antes (ver as publicações simultâneas n’ O Estado de S. Paulo em 1948: Cortesão, 1964a; Holanda, 2011a) e na retomada unilateral do antagonismo em anos posteriores. Pela altura de 1958, por exemplo, Sérgio Buarque já pretendia dar sobrevida à sua posição no debate tornando-a parte e mesmo título de um livro, como se depreende da lista de obras em sua tese de livre-docência ( Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Tese (Livre docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1958. ), que dava como “no prelo” Tentativas de mitologia: estudos brasileiros , livro vindo a lume (sem esse subtítulo) 21 anos depois ( Holanda, 1979HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. ). Visão do paraíso também mencionava criticamente a ideia da ilha-Brasil e, em 1960, mesmo ano da morte do professor Cortesão, Sérgio Buarque voltava à carga no capítulo “A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul”, parte da História geral da civilização brasileira sob sua direção. Cerca de cinco anos depois, escrevendo O extremo Oeste , confere destaque logo na abertura, após reproduzir o trecho inicial de Monções e de Caminhos e fronteiras , à tese da ilha-Brasil, a qual depois toma como mote para toda a discussão do segundo capítulo do livro, “A conquista do extremo Oeste”. Ou seja, feita a indefectível crítica a Gilberto Freyre, Jaime Cortesão vinha como interlocutor preferencial (para o diálogo com Afonso Taunay, ver Schneider e Martins, 2019SCHNEIDER, Alberto Luiz; MARTINS, Renato. A expansão paulista em Afonso de Taunay e Sérgio Buarque de Holanda. Revista de História, n.178, p.1-27, 2019. ).

Sérgio Buarque e Jaime Cortesão tinham, de fato, visões diversas sobre as causas e os efeitos da expansão a oeste da raia de Tordesilhas. O professor exilado a explicava como fruto da iniciativa consciente de sertanistas de São Paulo e de Belém do Pará, concomitante à de cartógrafos e diplomatas do reino, com vistas a corrigir a amputação que o tratado de 1494 impusera à unidade geográfica da América portuguesa, pressentida desde o século XVI pela imagem mítica do Brasil como uma ilha banhada, de um lado, pelas águas do Atlântico e, de outro, pelas bacias do Prata e do Amazonas, cujos braços se encontrariam em um grande lago no centro do continente (Cortesão, 1964a, 1964b, 1971). O historiador paulista, por sua vez, explicava o alargamento da silhueta geográfica do país como consequência imprevista, que a diplomacia do reino soube converter em trunfo negociador no Tratado de Madri, do estabelecimento de uma grande linha de circulação e ocupação do interior por bandeirantes e monçoeiros, paulistas cujas jornadas ao sertão cada vez mais remoto eram uma fuga da pobreza que os acometia em Piratininga em busca dos “reservatórios” de mão de obra indígena para a lavoura, especialmente a oeste do rio Paraná, e, com o tempo, do enriquecimento na mineração matogrossense ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , 1946HOLANDA, Sérgio Buarque de. As “Monções”. In: Taunay, Afonso et al. Curso de bandeirologia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações, 1946. p.125-146. , 2014bHOLANDA, Sérgio Buarque de. “O extremo Oeste”. In: Souza, Laura de Mello; Cerqueira, André Sekkel (org.). Capítulos de expansão paulista. Parte 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2014b. p.19-196. ).

Em 1952, Sérgio Buarque intuíra o seu alvo principal na tese de Cortesão: “A noção dos chamados ‘limites naturais’ não a encontro em nenhum dos seus escritos, mas é evidente que ela preside, para ele, aquela noção de unidade [geográfica]” ( Holanda, 1979HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. , p.72-73). Em 1958, porém, ele já conhece um texto de 1934 em que o português, apesar de doutrinariamente contrário ao determinismo geográfico ( Oliveira, 2017OLIVEIRA, Francisco Roque de. A “Ilha Brasil” de Jaime Cortesão: ideias geográficas e expressão cartográfica de um conceito geopolítico. Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Sociales, v.22, n.1191, p.1-31, 2017. ), havia feito um uso qualificado da expressão “fronteiras naturais” para tratar da margem esquerda do Prata-Paraná-Paraguai e da borda oeste do planalto ( Cortesão, 1971CORTESÃO, Jaime. O ultramar português depois da Restauração. Lisboa: Portugália, 1971. , p.101, 195; ver Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Tese (Livre docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1958. , p.172 nota). Em 1960, no texto sobre a Colônia do Sacramento, Sérgio Buarque já fala em “mito das ‘fronteiras naturais’” ( Holanda, 2007HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. , p.369), como se estivesse indo à essência do “mito da ilha-Brasil”. Ou seja, Sérgio Buarque tem em sua alça de mira uma lógica de fronteiras naturais em que a natureza teria fornecido, sobretudo por rios e lagos, balizas autoevidentes para separar as possessões ibéricas na América. Nessa leitura, duas diferenças entre sua abordagem e a de Jaime Cortesão avultavam, uma histórica, outra antropológica.

Em matéria de concepção histórica, Jaime Cortesão parece pressupor uma predestinação lusitana a ocupar todo o território que veio a ser o Brasil, ao passo que Sérgio Buarque defende uma história aberta à contingência. Lia-se em Cortesão (1964a, p.99): “A história do Brasil permanecerá, em grande parte, um caos de fatos incoerentes, se não admitirmos que à intuição e logo ao conhecimento daquela unidade correspondeu, quer da parte da metrópole, quer dos luso-brasileiros, uma política unitária”. E em Sérgio Buarque: “Desse jeito a multiplicidade dos pequeninos incidentes históricos, não raro discrepantes entre si, passa a adquirir ampla moldura ... e, clareados de uma luz que parece vinda de cima, recebem ... a inteligibilidade que antes lhes faltava”(Holanda, 2014b, p.106). Em matéria antropológica, Jaime Cortesão (1964b) fala em um tipo de plasticidade para os sertanistas que, ao fim e ao cabo, gera similitude, e não diferença. Reconhece que o paulista irmanou-se “pouco a pouco com a terra” (p.212), e até que “Americanizou-se. Diferenciou-se” (p.138), mas a linha geral do seu argumento sempre volta à similitude. A mestiçagem do português com o tupi, facilitada pela “similitude” de culturas, pois eram ambas “tipicamente expansionista[s]” ( Cortesão, 1955CORTESÃO, Jaime. A fundação de São Paulo, capital geográfica do Brasil. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1955. , p.126), resultara em um híbrido que funde “a mobilidade e a inquietação de nômade à disciplina e ao sentido imperial do espaço, do português” (Cortesão, 1964b, p.202).

Essas vertentes confluíam para uma diferença sobre o horizonte mental dos sertanistas. Em Jaime Cortesão, o colono conhece tão bem quanto o reinol o interesse do império português, ao passo que em Sérgio Buarque o adventício conhece melhor do que o metropolitano o interesse da colônia brasileira. Naquele, escrevendo em 1948: o bandeirismo luso-tupi é “iluminado a espaços, como os faróis circulatórios, pelos relâmpagos duma fé, duma moral e consciência política superiores” (Cortesão, 1964b, p.228); neste, em 1954: “Em meados do século XVII, os filhos e netos dos colonizadores haviam aprendido, no Novo Mundo, a conhecer suas necessidades, a medir suas forças e a empregá-las segundo seu interesse e sua conveniência, que nem sempre correspondiam aos da Metrópole” ( Holanda, 2002HOLANDA, Sérgio Buarque de. A contribuição italiana para a formação do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. , p.89). Assim, em Jaime Cortesão, um sentido móvel e imperial congênito permitia a sucessivas gerações de colonos colaborar deliberamente com a revisão de Tordesilhas – e dava ao império eficácia nas mais recônditas brenhas continentais. Um quadro bem diverso do de Sérgio Buarque, em que frases como a de que os americanos haviam revelado o sertão aos europeus ressaltavam o “elemento de diferenciação política relacionado à terra” ( Galli, 2015GALLI, Carlo. Janus’s gaze: essays on Carl Schmitt. Durham: Duke University Press, 2015. , p.114). Ao citar Friederici no debate pela imprensa em 1952, o paulista é acusado de “nacionalismo tupi” ( Cortesão, 1952CORTESÃO, Jaime. Introdução ao debate sobre a ilha-Brasil. Diário de Notícias, 13 jul. 1952. , p.1).

Assistia-se, com efeito, ao debate de um “homem da colônia” ( Russell-Wood, 2009RUSSELL-WOOD, Anthony. Sulcando os mares: um historiador do império enfrenta a Atlantic History. História, v.28, n.1, p.17-70, 2009. ) com um historiador da expansão ultramarina. E Sérgio Buarque talvez pudesse ter lançado mão de uma variante da epígrafe de Salustiano contra Jaime Cortesão: “É incrível dizer-se quão facilmente se expandiram”. Pois creio ser esta, no fundo, a premissa das “fronteiras naturais” às quais atribui centralidade na reflexão do historiador português, apenas para negá-las in toto: um espaço “fluido”, em que as inegáveis dificuldades da expansão terão que ser superadas porque a história assim o quer e porque os sertanistas conservam na alma os interesses do império mesmo sob as maiores privações. Contra a imagem de um território de limites autoevidentes, cuja progressiva ocupação é facilitada por necessidades históricas e atenuantes antropológicas, Sérgio Buarque apresentava um espaço “áspero”, em que os resultados da árdua expansão eram incertos e a adesão irrestrita à cultura nativa era uma questão de vida ou morte.

Essa concepção tinha duas implicações relevantes. Uma delas era pôr em xeque visões que separavam geográfica e também culturalmente o Brasil de sua vizinhança. A imagem do Brasil como uma ilha “que se destaca bem claramente do restante da América do Sul” ( Holanda, 1979HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. , p.78) desagradava um Sérgio Buarque atento à “indiferença” ( Holanda, 1955HOLANDA, Sérgio Buarque de. Le Brésil dans la vie americaine. In: Le Nouveau Monde et l’Europe. Rencontres Internationales de Genève, t.9. Neuchâtel: Les Éditions de la Baconnière; Unesco, 1955. p.55-75. , p.74) dos brasileiros quanto à América espanhola. Essa antiga preocupação dará o tom do projeto editorial que Sérgio Buarque encabeçará na História geral da civilização brasileira , em que se emprega uma série de comparações com o passado de outros países latino-americanos para diluir as singularidades do processo de formação político brasileiro ( Furtado, 2018FURTADO, André Carlos. Das fortunas críticas e apropriações: ou Sérgio Buarque de Holanda, historiador desterrado. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. ; ver Nicodemo, 2013NICODEMO, Thiago. A obra derradeira e inacabada de Sérgio Buarque de Holanda. Almanack, Guarulhos, n.5, p.206-211, 2013. ). Tudo isso estava em desacordo com um Brasil insular. Quiçá a tese da ilha-Brasil figurasse, para Sérgio Buarque, como uma ressurgência extemporânea do que Visão do paraíso observara ser um “romantismo insular” legado pelas grandes navegações, cujo traço distintivo, de Camões a More, era a conversão da “auréola poética” inspirada pela visão de ilhas solitárias no oceano em “resplendor místico” ( Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Tese (Livre docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1958. , p.304).

A outra implicação, só aparentemente contraditória com a primeira, era divergir de certa corrente de opinião platina determinada a mostrar que o engrandecimento territorial português na América do Sul, epitomizado no Tratado de Madri, se devera não a vitórias militares, mas à astúcia diplomática. Era a velha ideia de que a “sinuosidade excepcional” dos estadistas de Lisboa, herdada pelos do Rio de Janeiro, contrastaria com as escassas “virtudes guerreiras superiores” dos homens de armas luso-brasileiros (Holanda, 2014b, p.109), encampada até mesmo em Raízes do Brasil (ver a imagem do “gigante cheio de bonomia superior” em Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.143). Já o barão do Rio Branco se batera contra essa opinião (ver Paranhos, 1902PARANHOS, José Maria da Silva. Anotações. In: Schneider, Louis. A Guerra da Tríplice Aliança: Império do Brasil, República Argentina e República Oriental do Uruguai contra o governo da República do Paraguai (1864-1870). t.1. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902. p.1-329. , p.49 nota), e Sérgio Buarque apresenta-se agora como seu continuador, notando que, em sua encarnação mais recente, essa corrente interpretativa recorrera a nada menos que à tese da ilha-Brasil para reforçar o argumento de que a expansão territorial fora decidida antes pela pena que pela espada. Sérgio Buarque quer desfazer incompreensões tanto d’além quanto d’aquém mar, a tese da ilha-Brasil tanto como fonte de glória lusitana na conquista territorial da América (na acepção de Cortesão) quanto como labéu paulista na mesma atividade (em certa acepção hispano-americana).

O coração do continente

Para os vocacionados ao movimento, vencer a escabrosidade da Serra do Mar era só a primeira etapa no longo percurso rumo à posse final da imensa terra. A partir de Monções , Sérgio Buarque estudará longamente a “expansão luso-brasileira nos sertões ocidentais” ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.184), e em especial a incorporação do que hoje são o Mato Grosso do Sul e o Mato Grosso no contexto das perigosas jornadas fluviais de monçoeiros paulistas em busca das riquezas das minas de Cuiabá. A escolha do tema não é avulsa. A conquista dessa região equivale, diz ele em capítulo da coletânea Curso de bandeirologia , à “integração no mundo de nossa cultura de todo o imenso território que constitui o coração deste continente sul-americano” ( Holanda, 1946HOLANDA, Sérgio Buarque de. As “Monções”. In: Taunay, Afonso et al. Curso de bandeirologia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações, 1946. p.125-146. , p.145). A metáfora é repetida em Monções , Visão do paraíso e O extremo Oeste .

Como e com quais dificuldades, então, os sertanistas moveram a fronteira para além da raia de Tordesilhas e tomaram posse do áspero coração da América do Sul? A grande barreira à expansão paulista no século XVIII pelo que então se conhecia como campos do Guairá e do Xerez não foi urdida pelos poderes estabelecidos da América Espanhola (protagonistas na história de Cortesão), mas sim, diz Sérgio Buarque, por uma letal aliança indígena de paiaguás e guaicurus, só até certo ponto fomentada pelas autoridades coloniais espanholas. Caminhos e fronteiras dá a medida da resistência que aguardava os paulistas na região e do tipo de guerra que travaram; O extremo Oeste elabora a dimensão militar da plasticidade paulista; e um capítulo da História geral sobre a Colônia do Sacramento, onde a expansão paulista falha, dá a contraprova da narrativa. Um símbolo de toda essa narrativa estaria em Monções , nas canoas que enveredaram pelos cursos fluviais brasileiros até alcançar o centro da terra sul-americana.

Retomemos do fim da segunda seção deste artigo. A “perfeita integração” dos paulistas no “mundo traiçoeiro e agreste” envolveu o aprendizado de técnicas também traiçoeiras e fraudulentas de caça, em que o sertanista “procura quase nivelar-se aos bichos e até às árvores da floresta a fim de enganar e melhor destruir sua presa” ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.79-80). Ocorre que esses meios de subsistência eram igualmente válidos na luta pela sobrevivência, o que fazia da tática militar um prolongamento da técnica venatória. Conduzir hostilidades sem se expor e lutar com ferocidade animalesca eram expressões do “gênero de guerra adequado a este país” (p.146). Mas este nada tinha em comum com o tipo de guerra limitada, conduzida entre tropas regulares, que se praticava na Europa do século XVIII. Diferentemente desse conflito concebido como um duelo, regido por códigos inflexíveis e pela paridade moral dos combatentes, no cenário de guerra colonial de Caminhos e fronteiras “a batalha só ocorre entre inimigos mortais” ( Strauss, 2007STRAUSS, Leo. Notes on Carl Schmitt, “The concept of the political”. In: Schmitt, Carl. The concept of the political. Chicago: Chicago University Press, 2007. p.97-122. , p.121; ver Schmitt, 1963SCHMITT, Carl. Interpretación europea de Donoso Cortés. Madrid: Rialp, 1963. , p.88). Leo Strauss diz essas palavras para referir-se à ideia de conflito em Donoso Cortés, e elas vêm ao caso. Querendo enfatizar o grau de inimizade do conflito no sertão, Sérgio Buarque afirma: “Nosso homem rústico está, muitas vezes, longe de pertencer, como certas burguesias citadinas, à ‘raça discutidora’ de Donoso Cortez [ sic ]” ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.143). A citação faz pensar que, longe do destino de “servidão” que o grande reacionário espanhol reservava às raças discutidoras na carta de 1852 a que se referia Sérgio Buarque, o sertanejo estaria próximo às “raças guerreiras” agraciadas com o “império” ( Cortés, 1855CORTÉS, Juan Donoso. Carta inédita al director de la “Revue des Deux Mondes” en refutación de un artículo de Mr. Albert de Broglie. In: Cortés, Juan Donoso. Obras de don Juan Donoso Cortés, marqués de Valdegamas. t.5. Org. Gavino Tejado. Madrid: Imprenta de Tejado, Editor, 1855. p.209-234. , p.230).

Era logo após citar essa carta de Donoso, em que se enaltecia “o que a guerra tem de fecundo” ( Cortés, 1855CORTÉS, Juan Donoso. Carta inédita al director de la “Revue des Deux Mondes” en refutación de un artículo de Mr. Albert de Broglie. In: Cortés, Juan Donoso. Obras de don Juan Donoso Cortés, marqués de Valdegamas. t.5. Org. Gavino Tejado. Madrid: Imprenta de Tejado, Editor, 1855. p.209-234. , p.230), que Sérgio Buarque exaltava o “gênio militar” com que os temíveis paulistas foram “dilatando no continente o mundo da língua portuguesa” ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.145). Essa expansão e o desbravamento de “terras incultas” qualificavam-se como “bons serviços” (p.145) dos bandeirantes. A “agressividade turbulenta” destes “chegou a ter”, acrescenta o autor, “uma função positiva e, ao cabo, necessária” (p.102; cf. Schwarcz, Monteiro, 2023, p.14). Todo esse raciocínio de Caminhos e fronteiras , que já estava em “Índios e mamelucos na expansão paulista”, de 1949, contrasta fortemente com o panorama de decadência lusitana traçado em 1948 na revisão de Raízes do Brasil . Nada na “raça guerreira” e no “império” que ela ia erguendo terra adentro remonta à ociosa nobreza portuguesa que, havendo desaprendido a arte da guerra e colocado “escrivães em lugar de soldados” (Couto citado em Holanda, 1948HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. , p.164), nas palavras do Soldado prático , pusera a perder o império marítimo lusitano. Em Visão do paraíso , Sérgio Buarque terá o requinte de afirmar que a crítica devastadora do holandês Hugo Grócio ao império oriental, em De iure praedae , também era válida ao ocidental, sobretudo no fato de os portugueses se pautarem antes pela “perfídia” que pela violência, pois, tendo idêntica “malícia” à dos espanhóis, eram mais fracos e covardes, usando “a máscara de paz e da amizade” para perpetrar crimes “mais terríveis” ( Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Tese (Livre docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1958. , p.354-355; cita-se Grócio, 2006GRÓCIO, Hugo. Commentary on the law of prize and booty. Ed. Martine Julia van Ittersum. Indianapolis: Liberty Fund, 2006. , p.260). Registre-se, no mais, como essas colocações situam-se nas antípodas da visão do Gilberto Freyre lusotropical sobre a eficácia e a moralidade do imperialismo português (ver Feldman, 2021FELDMAN, Luiz. Da concepção imperial de Gilberto Freyre. Luso-Brazilian Review, v.58, n.1, p.145-178, 2021. ).

É bastante significativo que, nesse contexto, o historiador paulista tenha começado a imaginar o sertão como uma imensidão marítima devassada pelos herdeiros da arrojada mareagem oriental, os monçoeiros paulistas:

Os agentes e protagonistas desse movimento partiam de um porto habitado – Araritaguaba – para atingirem, cinco meses depois, outro porto – Cuiabá – tendo atravessado uma área vasta e erma como o oceano. A fazenda do Camapoã, situada a meio do caminho, é uma ilha onde o navegante vai buscar refresco e repouso. E se sucede serem as canoas assaltadas por índios bravios, o mais provável é que esses assaltos partam do feroz gentio Paiaguá, os piratas do Taquari e do Paraguai ( Holanda, 1946HOLANDA, Sérgio Buarque de. As “Monções”. In: Taunay, Afonso et al. Curso de bandeirologia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações, 1946. p.125-146. , p.143, 1957, p.177).

Superada a foz do rio Coxim, “cabo tormentoso da navegação do Cuiabá” ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.160), cessava o assédio anfíbio dos paiaguás, destros canoeiros, e iniciava o “país do gentio cavaleiro” (p.162), isto é, dos guaicurus, os quais, em uma versão revista de Monções , Sérgio Buarque dirá serem os responsáveis pela “insularidade” (Holanda, 2014a, p.339) em que as minas mato-grossenses foram mantidas pela maior parte do século XVIII.

Falar nesses indígenas como piratas era usar o conceito máximo de inimizade ( Schmitt, 2003SCHMITT, Carl. The nomos of the Earth in the international law of the “jus publicum europaeum”. New York: Telos Press, 2003. , p.65) para descrever a “intolerância mortal” (Holanda, 2014b, p.73) que lhes devotavam os paulistas. E era também descrever o ambiente mais antagônico imaginável àquela paz pérfida entre a casa-grande e a senzala, rechaçando as proximidades e as fraternidades fáceis que Gilberto Freyre e Jaime Cortesão faziam decorrer da miscigenação. Todo esse panorama evoca a observação do Nomos da Terra sobre a visão ancestral do mar como “impérvio à lei humana e à ordem humana, ou seja, um campo livre para testes de força. É esse o sentido da delimitação de linhas de trégua” ( Schmitt, 2003SCHMITT, Carl. The nomos of the Earth in the international law of the “jus publicum europaeum”. New York: Telos Press, 2003. , p.181). Não há mais como relativizar a vigência da lei do mais forte no ultramar pelo excepcionalismo da colonização tropical lusa, em que fraqueza era força. Estava-se, por inteiro, naquele “além-da-linha” – da equinocial e da de Tordesilhas – em que só a adaptação plena ao ambiente traiçoeiro e o abandono das convenções europeias, inclusive sobre a guerra, podia assegurar ao adventício sua sobrevivência. Contra a fixidez da casa senhorial e litorânea, a mobilidade das canoas que surcavam o continente (ver, a propósito, Schmitt, 1962SCHMITT, Carl. Diálogos: diálogo de los nuevos espacios; diálogo sobre el poder y el acceso al poderoso. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1962. ). As raízes formavam-se nos caminhos terrestres e fluviais, na navegação metafórica e literal do sertão e na inscrição lenta e violenta de uma ordem – de um império, diria Donoso Cortés – na terra.

Em O extremo Oeste , Sérgio Buarque cita com aprovação A arte da guerra , de Maquiavel, cuja lição seria útil para a compreensão da conquista do Mato Grosso. No livro, o florentino exaltara os antigos romanos pela sabedoria de “preparar o corpo para o desconforto e o ânimo para o destemor” (Maquiavel, 2006, p.224). É esse, parece-me, o valor máximo da “raça soturna” ( Holanda, 1945HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1945. , p.145) dos paulistas, aquele que possibilitou sua expansão orgânica, colada à terra. A ocupação dos antigos campos do Guairá e do Xerez pelos paulistas não teria sido efetiva “se a seu favor não militasse o contínuo exercício dos caminhos agrestes e a aprendizagem segura dos recursos de que o próprio índio se valia ante os embaraços da natureza ou a malícia dos inimigos” (Holanda, 2014b, p.68). Souberam, por um lado, acomodar-se “melhor à rudeza de algumas brenhas ainda indômitas” do que seus concorrentes “hispano-guaranis” (p.193, 189), os quais, desafeiçoados a caminhar longas distâncias a pé, não podiam tirar vantagem de sua destreza de cavaleiros nas regiões pantanosas, deixando o espaço aberto à fixação paulista. Por outro lado, os monçoeiros lograram sustentar sua posição contra os paiaguás, aprimorando sua adaptabilidade em uma estratégia naval mais adequada para fazer frente à agilidade e violência de seus inimigos. Os bandeirantes andando a pé, os monçoeiros adotando as canoas monóxilas, todos convencendo-se da “insuficiência do armamento civilizado” (p.68) e da imperiosa adaptação ao indígena: assim alcançou-se a “ocupação efetiva do Brasil Central” (Holanda, 2014a, p.325).

Essa discussão almejava, como disse, pôr abaixo a noção da inferioridade militar brasileira. Ao fazê-lo, porém, Sérgio Buarque ia ao extremo de querer eliminar “o mais leve indício” ( Holanda, 2007HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. , p.370) de que Portugal alguma vez se tivesse inspirado pela ideia das fronteiras naturais. Afirma contra Cortesão (2006)CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. t.2. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. – e com erro, a julgar por Luís Ferrand de Almeida (1973ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Colónia do Sacramento na época da sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973. , p.318) e Synesio Sampaio Goes Filho (2021, p.116) – que o Tratado de Madri se embasara exclusivamente na “noção mais profana” do uti possidetis ( Holanda, 2007HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. , p.372). Na prática, Sérgio Buarque reduzia a diplomacia lusitana a fixar na letra do tratado o fato – integralmente devido à ação paulista – da posse territorial. O uti possidetis emergia como coroação jurídica da expansão orgânica. Alexandre de Gusmão, que para Cortesão (2006)CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. t.2. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. é o diplomata consumado que soubera conjugar uti possidetis e fronteiras naturais para obter um resultado na mesa de negociação em Madri melhor do que indicavam as condições objetivas no terreno sul-americano, em Sérgio Buarque de Holanda (2007)HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. surge como um estadista hábil, mas que meramente identificara a melhor forma de consumar um fato.

Sérgio Buarque contrapunha, ao menos desde uma conferência em 1948, movimentos impostos pelas “necessidades mais rudimentares de uma população” a “limites artificiosos ditados por conveniências diplomáticas” (Holanda, 2011a, p.505). É assim que analisaria o fado da praça forte lusitana instalada em 1680 na margem esquerda do Prata, a Colônia do Sacramento. Embora soldados paulistas tivessem sido enviados para fundá-la, na margem daquele estuário não eram “senhores dos segredos da terra” nem “habituados a todas as suas privações” ( Holanda, 2007HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. , p.387). A “aventura platina” não fora “um esforço verdadeiramente espontâneo”, mas sim uma ação artificial da metrópole, alheia “à evolução interna da América portuguesa” (p.386-388). A efetividade da expansão territorial estava sujeita à velha lógica organicista, em que a lei interna de um organismo, no caso a cultura paulista, precisava de um ambiente externo que lhe desse sustento. Só assim podia haver espontaneidade, isto é, a “capacidade de crescer a partir de si mesmo e ... de adaptação às condições de vida” ( Eugenio, 2010EUGENIO, João Kennedy. Um ritmo espontâneo: o organicismo em “Raízes do Brasil” e “Caminhos e fronteiras” de Sérgio Buarque de Holanda. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. , p.350). Se os fatores geopolíticos já soavam artificiais onde a expansão era orgânica, muito mais o seriam onde faltavam “poderosos vínculos” com a terra: “Obtida não pelas armas, mas pela força de contingências internacionais, é em geral fora da América, nos campos de batalha e nos tratados diplomáticos do Velho Mundo, que se decide a conservação daquele trato de terra em mãos lusitanas” ( Holanda, 2007HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a expansão no extremo Sul. In: Holanda, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. t.1, v.1: Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. p.351-395. , p.388). As mesmas razões, em suma, que explicavam a conquista do “coração” da América portuguesa explicarão a perda de sua extremidade quando as circunstâncias assim o decidirem.

Estamos, aqui, no âmago da noção de fronteira de Sérgio Buarque, exposta na justificativa do título de Caminhos e fronteiras:

Se o aceno ao caminho, ‘que convida ao movimento’, quer apontar exatamente para a mobilidade característica, sobretudo nos séculos iniciais, das populações do planalto paulista ..., o fato é que essa própria mobilidade é condicionada entre elas e irá, por sua vez, condicionar a situação implicada na ideia de ‘fronteira’. Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados ( Holanda, 1957HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. , p.VI; destaques no original).

Já se disse que, em Sérgio Buarque, o território brasileiro é construído menos pelos assentamentos do que pelo movimento ( Vangelista, 2005VANGELISTA, Chiara. “Sua vocação estaria no caminho”: espaço, território e fronteira. In: Pesavento, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.107-142. ). É verdade, mas o movimento tinha um limite, não natural, devido a alguma estipulação artificial, e sim orgânico, marcado pela extensão exata da porosidade dos homens de Piratininga ao meio. A fronteira esbate-se, no sentido preciso da atenuação de contrastes, enquanto há plasticidade, e afirma-se onde ela acaba. Aí marcam-se os confins do império territorial dos soturnos paulistas.

Considerações finais

Em Raízes do Brasil , o mar gerava similitude. Era o desterro no trópico, uma circunstância que decorria logicamente de o Brasil ser um dos pontos de apoio, na orla atlântica da América do Sul, de um império marítimo global. Àquela altura, “penetrar na raiz dos problemas” podia ser, para Sérgio Buarque, expor a formação sedentária do país, mas não equivalia a ser “radicalmente crítico na sua maneira de analisar noções e conceitos na moda, como patriarcalismo, raça, tradição lusitana etc.” ( Candido, 1980CANDIDO, Antonio. As “Tentativas de mitologia” de Sérgio Buarque de Holanda. O Escritor, v.1, n.6, 1980. ). Procurei mostrar, nestas páginas, que a virada crítica do autor contra essa visão fluida de mundo, que passa a ser vista como um exílio litorâneo de costas para a realidade do sertão, é indissociável de sua virada espacial em direção às profundezas continentais. A partir do artigo “Caminhos e fronteiras” e de Monções , passando pela revisão de Raízes , por “Índios e mamelucos na expansão paulista”, pelo debate sobre a ilha-Brasil, pelo livro Caminhos e fronteiras , por Visão do paraíso e pelo estudo da Colônia do Sacramento até O extremo Oeste , a terra gera diferença. É a aspereza da fronteira, enfrentada pelos caminhantes que afastam o Brasil de uma existência ultramarina e vão criando, inclusive no sentido geográfico, o seu perfil próprio. Ao longo dessa trajetória, o foco na mobilidade – e nos seus limites – tornará possível a abordagem radical do sedentarismo. Contra a atmosfera de intimidade pérfida do trópico, que só pretensamente edificaria alguma ordem, a educação moral da robustez (apregoada por Maquiavel) frente às inimizades mortais (decantadas por Donoso Cortés), marca da fronteira levada para muito além das linhas e convenções europeias pelos navegadores do continente. Sérgio Buarque abandonava a sociedade “cordial” à beira-mar para abordar a telúrica, surgida na conquista do “coração” da terra. Daí viria a vida autêntica do país, aí deveriam estar postos os tesouros da sua inteligência.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece a Evaldo Cabral de Mello, Synesio Sampaio Goes Filho, Robert Wegner, Francisco Roque de Oliveira, Raphael Carvalho, Tiago Serras Rodrigues e três pareceristas anônimos pelas críticas e sugestões, isentando-os, todavia, de qualquer responsabilidade pelo conteúdo deste trabalho. As visões contidas neste artigo são expressas a título pessoal e não buscam representar as do Ministério das Relações Exteriores.

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NOTAS

  • 1
    Ao observar essas distintas acepções buarqueanas da plasticidade, beneficiei-me da tese clássica de Edmundo O’Gorman (1977)O’GORMAN, Edmundo. La invención de América: investigación acerca de la estructura histórica del Nuevo Mundo y del sentido de su devenir. 2.ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1977. sobre a “invenção” geográfica e histórica da América.
  • 2
    Richard Morse (1995MORSE, Richard. Balancing myth and evidence: Freyre and Sérgio Buarque. Luso-Brazilian Review, v.32, n.2, p.45-57, 1995. , p.53) observou certa vez que “os dois primeiros capítulos de Raízes do Brasil encaixam-se em muitas das ideias de Gilberto, embora seja difícil atribuir influência, dado o robusto manuscrito que Sérgio trouxe da Alemanha em 1931”. Esse manuscrito, intitulado “Teoria da América”, de paradeiro desconhecido, pode ter ocasionado uma “tentativa de mitologia” por parte de Sérgio Buarque, que em livro homônimo de 1979 o situa como uma espécie de origem mítica de Raízes do Brasil , associando o artigo de 1935 que prefigura o ensaio do ano seguinte a leituras da temporada alemã e deixando-o relativamente a salvo de correlações com o ambiente intelectual brasileiro. Diz, sobre o calhamaço da “Teoria da América”: “Dele tirei o essencial de um estudo histórico encomendado por Claudio Ganns para uma luxuosa revista nova. ... [C]hamou-se Corpo e alma do Brasil ” ( Holanda, 1979HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. , p.30). Ocorre que, tanto em “Corpo e alma do Brasil” como em Raízes do Brasil , Sérgio Buarque apresenta o “homem cordial” associando muito estreitamente sua propensão ao encurtamento das distâncias sociais à necessidade de intimidade surgida na zona de colonização escravocrata, de que fala Casa-grande e senzala (ver Feldman, 2016FELDMAN, Luiz. Clássico por amadurecimento: estudos sobre “Raízes do Brasil”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2016. , p.153-156), livro qualificado, no artigo, como “o ensaio mais sério e mais completo que já se tentou sobre a formação social do Brasil” ( Holanda, 2006HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil. In: Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição comemorativa. Org. Ricardo Benzaquen de Araújo; Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.399-420. , p.402). Loas quase idênticas foram tecidas à Casa-grande em Raízes (ver Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. , p.105). Tem-se aí, portanto, uma razão para tratar com cautela o foco nas inspirações alemãs do autor de Raízes do Brasil em detrimento de suas leituras nacionais após voltar de Berlim (cf. Lima, 2008LIMA, Luiz Costa. Sérgio Buarque de Holanda: Visão do paraíso. In: Monteiro, Pedro Meira; Eugênio, João Kennedy (org.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campina: Editora Unicamp; Rio de Janeiro: Eduerj, 2008. p.519-533. ). Pois, a menos que não se considere a cordialidade uma parte “essencial” – porventura “a” parte essencial – do artigo de 1935 e do livro de 1936, é possível sugerir que essa ideia-síntese do legado colonial português era enunciada buscando respaldo no ensaio que Freyre publicou três anos depois do regresso de Sérgio Buarque. À luz dessas considerações, a reflexão de Morse aponta na direção correta, mas é insuficiente, dado não só haver influência como estender-se ela (pelo menos) até o quinto capítulo de Raízes . André Furtado (2018)FURTADO, André Carlos. Das fortunas críticas e apropriações: ou Sérgio Buarque de Holanda, historiador desterrado. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. reconstrói circunstância similar passando-se do texto ao contexto de Raízes do Brasil . Tudo isso sugeriria mais um desafio à compreensão da “escrita de si” do autor de Tentativas de mitologia (ver Carvalho, 2017CARVALHO, Raphael Guilherme de. “Tentativas de mitologia” (1979): escrita de si e memória de Sérgio Buarque de Holanda. Estudos Históricos, v.30, n.62, p.701-720, 2017. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2020
  • Aceito
    15 Fev 2021
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