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Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot

RESENHAS

Adriane Luisa Rodolpho* * Bolsista Capes ProDoc.

Escola Superior de Teologia — Brasil

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 241 p.

Hoje em dia, quando elaboramos ou lemos a resenha de um livro, poucos se perguntam sobre essa prática. Ora, Peter Burke nos informa — entre outras coisas — que as resenhas surgem no século XVII em revistas como o Journal des Savants (Paris) e a Philosofical Transactions, da Royal Society de Londres, durante a década de 1660. A narrativa de Burke é permeada por informações desse gênero e relatos que tornam a leitura bastante instigante.

Neste seu livro, Peter Burke nos leva a uma viagem pela sociologia do conhecimento através de cidades e épocas diferenciadas. O marco inicial de seu recorte temporal é a invenção da prensa tipográfica por Gutemberg em 1450, símbolo igualmente de uma nova época, a Idade Moderna. A linguagem do autor é didática, apontando para a organização de sua exposição sobre a(s) construção(ões) do conhecimento em seus variados contextos. Um tema amplo como esse é abordado por Burke na forma de pequenos ensaios, e os capítulos da obra organizados em temáticas específicas. As origens desses ensaios são conferências realizadas pelo autor e que resultaram no original publicado em 2000 (A Social History of Knowledge from Gutenberg to Diderot) em Cambridge, onde o autor é professor. Nas suas palavras:

[ ] o livro tenta uma história social informada pela teoria, as teorias "clássicas" de Émile Durkheim e de Max Weber tanto quanto as formulações mais recentes de Foucault e de Bordieu. Os capítulos II e III oferecem uma espécie de sociologia do conhecimento retrospectiva, o capítulo IV, uma geografia do conhecimento, o capítulo V, uma antropologia. O sexto discute a política do conhecimento, o sétimo, sua economia, o oitavo adota uma orientação mais literária, e a coda levanta algumas questões filosóficas. (p. 18-19).

Segundo o recorte de Burke, sua análise estende-se até o século XVIII (Diderot), com o panorama do conhecimento referendado pela Enciclopédia.1 1 A Enciclopédia foi um empreendimento levado a cabo por uma equipe de eruditos, como D'Alembert e Diderot, em 1750. Em formato de verbetes, discorria sobre os conhecimentos teóricos e empíricos disponíveis na época. Apesar de circunscrever seu interesse à Europa moderna, Burke trata também de diferentes contextos onde outras formas de imprensa existiam, como a China e o Japão; igualmente o Islã é por vezes evocado, sobretudo no contexto da institucionalização do saber tal como nas madrasas muçulmanas (escolas corânicas junto às mesquitas).

O que interessa a Burke é mais exatamente o que a modernidade entendia à época por conhecimento. Para tal, o contexto histórico é aqui relembrado: difusão da imprensa, descobertas não apenas de novos mundos mas também das ciências e tecnologia, a reforma protestante, as cidades e os circuitos de um saber propriamente acadêmico — "formas dominantes de conhecimento, particularmente aquele possuído pelos intelectuais europeus" (p. 24) — são seguidos e analisados com maestria pelo autor.

Acompanhemos o autor em seus primeiros capítulos. A figura do intelectual e as instituições de produção do conhecimento são seus suportes em sua explanação histórica. Inicialmente uma discussão sobre alguns conceitos se impõe, e Burke é extremamente cuidadoso com relação à utilização dos termos. Para ele, os intelectuais são aqui entendidos como

grupos sociais cujos membros se consideravam "homens de saber" (docti, eruditi, savants, Gelehrten), ou "homens de letras" (literati, hommes de lettres). Neste contexto, lettres quer dizer cultura e não literatura (donde a necessidade do adjetivo em belles-lettres). (p. 26).

Burke retoma as modificações histórico-sociais que delineiam cada vez com mais precisão a "vida de estudos como carreira" (p. 29). A partir dos mosteiros e da instalação das universidades foram se formando grupos de estudiosos leigos e religiosos medievais, que serão cada vez mais requisitados nesse início dos tempos modernos. O número de estudantes nos séculos XVI e XVII aumenta consideravelmente, e os professores universitários distinguem-se de outros grupos. O ideal de autonomia é seguido por inúmeros intelectuais que vão exercer suas funções como membros assalariados de academias ou sociedades científicas. A política igualmente absorve os letrados, e as funções de secretários, bibliotecários, conselheiros são cada vez mais necessárias no contexto de Estados centralizados.2 2 Também os dirigentes dos Estados — como Filipe II da Espanha — passam a ter uma carga de trabalho burocrático acentuada. Na Suécia, o fim do século XVI foi chamado de época do "poder dos secretários" (p. 30). Criam-se então redes de informações ligando esses grupos de eruditos entre si.

A discussão sobre institucionalização do saber é aprofundada no terceiro capítulo, que versa sobre o papel inovador ou reprodutor do conhecimento. Nele Burke caracteriza a universidade medieval como transmissora de saberes, e as disputas entre diferentes teses seriam a exemplificação disto. Entretanto, em função do contexto singular do início da Idade Moderna Burke retoma três movimentos culturais: o Renascimento, a Revolução Científica e o Iluminismo. O "processo de inovação intelectual" (p. 39) é seguido pelo autor a partir dos humanistas, passando pela "nova filosofia" do século XVII, mecânica ou natural. A pesquisa propriamente dita aparece nessa época, e as instituições de fomento como sociedades e academias terão papel importante no desenvolvimento daquele "processo de inovação cultural". Com a alfabetização e a divulgação da imprensa os locais de encontro de intelectuais ampliam-se, e a discussão toma lugar dentro e fora da universidade.

Assim como o binômio inovadores—guardiães da tradição é analisado por Burke, no quarto capítulo o autor aproxima-se de sua geografia do conhecimento, discutindo o "lugar do conhecimento: centros e periferias". Importa aqui a circulação e a cooperação internacional entre essa rede de letrados, e as cidades vão desempenhar importante papel como locais de encontros e troca de informações. Nas palavras do autor trata-se de: "uma distribuição espacial do conhecimento, dos lugares em que o conhecimento foi descoberto, guardado ou elaborado, e também daqueles para os quais era difundido" (p. 56). O movimento seguido por Burke é o das periferias em direção à Europa, e a centralização do conhecimento em algumas cidades como Paris, Londres e Roma obedece a uma igualmente centralização de poder dos Estados. Da mesma forma o olhar para fora desses limites permite perceber a amplitude dos contatos com outros lugares como o Oriente, por exemplo; entretanto, Burke acentua o aspecto de que o processamento do conhecimento é feito na Europa.3 3 Como exemplos o autor aponta para a importância das companhias de exploração, como a Companhia das Índias Orientais e Ocidentais.

A classificação e sistematização do conhecimento a partir de categorias culturais européias são objetos do capítulo seguinte, onde o autor aborda "a classificação do conhecimento: currículos, bibliotecas e Enciclopédia". Burke chama esse seu capítulo de antropologia do conhecimento porque, segundo ele, os antropólogos, desde Durkheim, levaram a sério as categorias de classificação de outras e diferentes realidades sociais. Inicialmente, observa-se o ideal do polímata, do sábio exercendo suas competências em variados domínios: história, biologia, matemática, etc.4 4 O termo deriva de Polyhistor, um "guia de conhecimento da época" de Daniel Morhof, 1688 (p. 33, 81). O conhecimento geral e as referências ao terrain, campo, domaine são ilustrativas da imagem do intelectual dessa época. A idéia do conhecimento como uma grande árvore cheia de ramificações igualmente traduz a noção da "apresentação da cultura como se fosse natureza" (p. 82), ou seja, a concepção da organização naturalizada de uma ordem classificatória arbitrária. Com o passar do tempo, o ideal do polímata vai cedendo lugar ao do intelectual especializado, e a imagem da árvore do conhecimento cede lugar a outra imagem, abstrata, de sistema. Burke parte então para a análise de três subsistemas: os currículos, as bibliotecas e as enciclopédias.

A noção do conhecimento como algo passível de ser acumulado, melhorado e aperfeiçoado é exemplificada pelo título do livro de Francis Bacon, O Avanço do Conhecimento, de 1605. Sobre esse aspecto, Burke nos diz:

[ ] o ideal acadêmico moderno poderia ser visto como a rotinização dessas aspirações dos séculos XVII e XVIII. A inovação intelectual, mais que a transmissão da tradição, é considerada uma das principais funções das instituições de educação superior e, assim, espera-se que os candidatos aos graus mais elevados façam "contribuições ao conhecimento". (p. 105)

Os "processos de coleta, armazenamento, recuperação, uso e supressão de diferentes tipos de informação" (p. 110) por parte das duas grandes organizações à época — Igreja e Estado — são o objeto do sexto capítulo. Nele o autor aborda a crescente centralização de poder nos Estados e igualmente a de documentos e livros em prédios construídos especificamente para o armazenamento e consulta pública desse material, como arquivos e bibliotecas, nos principais centros urbanos europeus. A burocratização dos Estados, as sucessivas medidas de controle das informações, os mapeamentos, os questionários e relatos de expedições, o surgimento da estatística são alguns fatores analisados por Burke. O autor recheia seu texto de narrativas peculiares, como, por exemplo, quando comenta as reações da população francesa ao censo de 1663: "contar as famílias e gado é escravizar o povo" (p. 127). A censura aos livros era realizada tanto pela Igreja quanto pelos Estados, numa tentativa de evitar a leitura de determinadas obras; nesse sentido as listas de livros que compunham o índex de livros proibidos da Igreja Católica são exemplos.

As relações que a circulação comercial entreteve com o mercado de produção e distribuição do conhecimento são analisadas no sétimo capítulo. Três centros editoriais são escolhidos pelo autor para exemplificar historicamente esses processos de consumo: Veneza para o século XVI, Amsterdã no XVII e Londres no século XVIII. A enorme massa de informações disponíveis não provém exclusivamente de livros, mas igualmente de jornais e revistas. A comercialização das informações vai de par com a noção de informação como mercadoria. Revistas cultas divulgando conhecimentos de tipo acadêmico e outros periódicos circulavam fornecendo pela primeira vez resenhas de livros. As obras de referência, as bibliografias, os dicionários e as enciclopédias igualmente são exemplos do que doravante serão objetos de leitura extensiva: consulta e leitura fracionada. A analogia que o autor usa para esse tipo de leitura na contemporaneidade é a de "surfar pela Internet". Outras modificações surgem igualmente, como a organização em capítulos, notas, índices e sumários.

Os leitores ou consumidores recebem atenção do autor no capítulo oitavo. As modificações na tônica das formas de leitura se contrapõem, e a prática da leitura intensiva — uma obra lida em sua totalidade, do início ao fim — é combinada com a leitura mais superficial e fragmentada. Burke cita os termos utilizados nos títulos de vários livros de referência: "castelo", "compêndio", "corpus", "catálogo", "floresta" ou ainda "tesouro". Outra discussão refere-se à organização da grande massa de livros a serem classificados por tema ou ordem alfabética, cada vez mais freqüente durante o século XVII. Ao final do capítulo Burke traça um paralelo entre as maneiras de ler nos séculos XVI e XVII, a partir do exemplo de Montaigne e de Montesquieu.

A consciência de contradições entre as informações disponíveis é o tema do último capítulo do livro, onde o autor vai discutir os critérios de confiabilidade dos conhecimentos. Para ele a ascensão de ceticismos é um traço marcante dos tempos modernos. O caráter de provisoriedade do conhecimento se traduz mesmo nos títulos dos trabalhos, como os "ensaios". O método geométrico e o empirismo são apresentados como tentativas de contornar o período de 1680 a 1715, conhecido como "a crise da consciência européia", "crise intelectual da reforma" ou ainda, "crise do conhecimento". A idéia que fica é a da necessidade da complementaridade e comunicação entre os intelectuais, já que "o conhecimento universal já não está ao alcance do homem", como dizia o verbete "gens de lettres" da Enciclopédia.

Além de um texto bem estruturado e interessante, a obra de Burke ainda é apresentada com belas gravuras e imagens. Sem dúvida essa é uma obra de interesse para todos aqueles que trabalham com o conhecimento, em suas academias e universidades, pesquisando, lendo ou escrevendo resenhas.

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    Bolsista Capes ProDoc.
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    Enciclopédia foi um empreendimento levado a cabo por uma equipe de eruditos, como D'Alembert e Diderot, em 1750. Em formato de verbetes, discorria sobre os conhecimentos teóricos e empíricos disponíveis na época.
  • 2
    Também os dirigentes dos Estados — como Filipe II da Espanha — passam a ter uma carga de trabalho burocrático acentuada. Na Suécia, o fim do século XVI foi chamado de época do "poder dos secretários" (p. 30).
  • 3
    Como exemplos o autor aponta para a importância das companhias de exploração, como a Companhia das Índias Orientais e Ocidentais.
  • 4
    O termo deriva de
    Polyhistor, um "guia de conhecimento da época" de Daniel Morhof, 1688 (p. 33, 81).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
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