Acessibilidade / Reportar erro

HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 182 p.

HOBSBAWM, Eric. . Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 182 p.

A obra Globalização, democracia e terrorismo, do historiador Eric Hobsbawm, publicada no ano de 2007, é uma compilação de diversas palestras e conferências proferidas pelo autor no período compreendido entre os anos 2000 e 2006. Isso justifica a linguagem fluida e um certo tom de informalidade no modo de exposição das ideias na obra.

É evidente que, por ser um historiador, toda a análise do autor é contextualizada historicamente e ele molda sua narrativa na exposição de eventos concretos e acontecimentos que inclusive pôde vivenciar, já que nasceu no início do século XX, atravessou esse século e faleceu no ano de 2012. Disso já se pode supor a rica contribuição e contemporaneidade de toda a obra de Hobsbawm, aqui representada pelo livro objeto desta resenha.

A primeira parte do livro lança um registro histórico bem delimitado que demonstra a perenidade dos impérios e esboça a ação dos Estados Unidos da América na empreitada de erigir um império global sob a falaciosa justificativa de “democratizar” ou “humanizar” outros Estados.

Ao tratar das perspectivas da democracia no século XXI, o autor demonstra nítido ceticismo quanto ao modelo democrático amplamente disseminado entre os países de tradição liberal. Indica o apoio da maioria, a hegemonia do poder estatal, a aceitação da autoridade desse poder e sua aptidão exclusiva para prestar determinados serviços como premissas da política democrática, e demonstra que elas têm perdido a validade. Dentre os motivos da deterioração dessas premissas, apresenta: a) a perda do monopólio da força militar, já que armamentos e instrumentos de destruição estão facilmente acessíveis a grupos dissidentes; b) a fragilização dos pilares do governo estável, como a lealdade voluntária dos cidadãos ao Estado e a disposição de obediência desses cidadãos ao poder estabelecido; c) o enfraquecimento do poder do Estado pelo retorno a ideais ultraliberais, verificando-se a desregulamentação de mercados, a substituição de serviços públicos por privados com aumento de privatizações e a ampliação da crença de que o setor privado pode satisfazer necessidades que o Estado não pode ou que pode satisfazê-las de forma mais eficaz. O autor indica que o vazio gerado pelo enfraquecimento do Estado é preenchido pela soberania do mercado que, assim, encontra espaço para substituir o papel mobilizador do cidadão na política democrática, passando o consumidor a ocupar o lugar do cidadão.

Esse conjunto de fatores, como o autor examina, afeta diretamente a democracia, que passa a não encontrar legitimação real perante o povo. Isso ocasiona o declínio de movimentos e mecanismos de articulação coletiva dos pobres e a redução do interesse na participação política e nas eleições. Além disso, são problemas mais imediatos para a democracia a convivência com outras forças que não pode controlar e a falência ou ineficácia do sistema representativo, que vem reforçada pela manipulação da opinião pública pela mídia e também pela voracidade dos desejos do mercado de consumo.

Após esboçar esse panorama de declínio da política democrática, Hobsbawm critica o intento de países poderosos, especialmente os Estados Unidos, de disseminar a democracia pelo planeta como um projeto de reordenamento global. Ele adverte que essa é uma empreitada perigosa, pois se pretende aplicá-la de modo universal, objetivando solucionar problemas transnacionais sob um único paradigma. Além disso, para se concretizar, a democracia necessita de unidades como os Estados nacionais, não podendo projetar-se globalmente, pois incompatível com sua forma de institucionalização. Também lembra que os próprios países poderosos não veem na democracia um modelo hábil a resolver seus próprios problemas internos e, ainda assim, pretendem levar esse projeto a um plano universal.

O autor também aponta as razões geralmente utilizadas para justificar a disseminação da democracia por meio de exércitos estrangeiros, que seriam a popularidade da democracia, com preferência a regimes democráticos aos não democráticos; a globalização, que eleva interesses humanos a nível universal; e a recaída à anarquia e à carnificina em diversas partes do mundo, de modo a exigir a intervenção de potências como os Estados Unidos, militarmente fortes e estáveis. Os Estados Unidos, aliás, seriam os protagonistas dessa expansão, pois se trataria de um modelo a ser seguido, institucionalizado sob a forma de estado de direito e protetor da liberdade, detentor de empresas competitivas, de eleições democráticas e guardião do sufrágio universal.

Hobsbawm também trata do terrorismo, concatenando reflexões que teve ao final da década de 1990. Ele expõe o aumento da violência tanto política quanto social e chama a atenção para a ampliação também de uma violência política não oficial que geralmente provoca uma contraviolência do Estado, geralmente mais intensa. O autor também tenta apontar as razões desse aumento da violência, destacando os seguintes pontos: a) processo de barbarização que se acentuou a partir da Primeira Guerra Mundial; b) enfraquecimento dos Estados, especialmente a partir do final da década de 1960 com perda do monopólio do poder, de recurso e também de legitimidade perante o povo; c) crescente anomia nos centros urbanos; d) disseminação da cultura da droga e posse privada de armas; e) justificativa moral para a barbárie por meio do fortalecimento de ideologias próprias, vendo cada um a sua própria causa como tão justa e a do outro como tão terrível a ponto de não apenas justificar, mas de exigir a reação necessária ao combate da causa oposta. Registra, ainda, que o aumento da barbárie tem sido contínuo e que desde a década de 1960 houve três grandes surtos de violência e contraviolência, a saber: 1º) renascer do que chamou de “neoblanquismo”, fenômeno basicamente adstrito à Europa Ocidental, consistente na tentativa de certos grupos armados de derrubar regimes ou atingir objetivos de cunho nacional-separatista; 2º) violência de caráter precipuamente étnico e religioso com surgimento do homem-bomba; 3º) violência política global, principalmente pela postura da política americana e estabelecimento de um movimento terrorista que opera, conscientemente, em nível transnacional.

A respeito dos novos movimentos de grupos violentos ou terroristas, o autor observa que se trata de pequenas minorias que atuam também em pequenos grupos constituídos em geral por membros mais cultos e de melhor condição social comparativamente a outros membros do grupo social a que pertencem. No entanto, alerta para a enorme mobilização dos governos que as ações desses pequenos grupos conseguem provocar, inclusive desencadeando o processo global de “guerra contra o terror” a partir de setembro de 2001, após o conhecido ataque ao World Trade Center nos Estados Unidos. Apesar da incapacidade desses grupos de provocar algum efeito sobre as rotinas e estruturas dos governos dos países estáveis, a resposta desses países às ações desses grupos é extremamente violenta e em muito supera os ataques sofridos. Como prova da fraqueza desses grupos, o autor salienta que, apesar do impacto e da gravidade do ataque terrorista às Torres Gêmeas, os Estados Unidos não sofreram nenhum abalo em suas relações internacionais e tampouco em suas estruturas internas, de maneira que esses grupos são um sintoma, e não agentes significativos da história. E como atuam em países estáveis, sem apoio relevante da população, não são, na verdade, um problema militar, mas sim policial, e que sob essa perspectiva deve ser combatido. O autor arremata seu pensamento assinalando que o maior perigo não é o provocado pelos homens-bomba, mas pela ação dos Estados, particularmente dos EUA, que utilizam esses acontecimentos, inclusive explorando ao máximo a sua publicidade, para porem em prática seus interesses de expansão global.

O autor prossegue tratando do tema “a ordem pública em uma era de violência”, abordado em uma conferência proferida no ano de 2006, a mais recente do livro, onde expõe o aumento da violência pública a nível mundial, destacando que a “desordem pública”, mesmo a provocada pela ação terrorista, não precisa de grandes recursos, nem de altas tecnologias. Ainda a respeito da ordem pública, cita a quebra, pelos indivíduos, de regras morais e de convenções sociais e o enfraquecimento das relações no seio da família, o que estaria gerando pessoas menos educadas, inclusive podendo-se verificar um aumento da delinquência juvenil a partir da segunda metade da década de 1960. Também indica a crise do modelo de Estado nacional territorial e a perda do monopólio não apenas da força armada, mas também das leis do Estado sobre outras leis de cunho religioso ou costumeiro. Menciona, ainda, a diminuição da lealdade que os cidadãos depositam no Estado e a redução da disposição de fazer o que ele lhes pede, o que impossibilitaria, por exemplo, a formação atual de um exército voluntário de pessoas dispostas a matar e morrer por seu país, como ocorreu nas duas primeiras guerras mundiais. Igualmente, o autor ressalta a menor disposição dos cidadãos em cumprir espontaneamente a lei, que é cumprida não pela confiança na norma, mas pelo temor de punição, e, ainda, a dificuldade que os Estados passam a ter de controlar aquilo que ocorre em seus territórios pelo aumento da circulação de bens e pessoas proporcionado pela globalização.

Esses problemas atinentes à ordem pública, na visão de Hobsbawm, podem ser mais bem controlados pela inteligência, e não pelo uso da força, ainda que isso demande mais recursos financeiros, devendo-se buscar um equilíbrio entre a confiança, a inteligência e o uso da força. Vê-se, pois, que o autor não afasta o uso da força no controle social, mas defende sua utilização de forma racional.

Quanto à confiança que o cidadão deve depositar nas forças do Estado para que vigore a ordem pública, o autor chama a atenção, mais uma vez, para o fato de que os próprios Estados exploram o medo das pessoas, como, por exemplo, pela proclamação da “guerra contra o terror”, despertando o “medo irracional” e gerando nelas ainda mais desconfiança. Alerta que essa guerra contra o terror só existe no plano metafórico, pois o suposto “inimigo” não tem capacidade de abalar quem o ataca, não tem nem mesmo capacidade de implementar um contra-ataque à altura. Não se trata, portanto, de uma guerra, mas, no máximo, de um problema de ordem pública muito grave. O autor demonstra sua preocupação com o uso das forças armadas (exércitos) em tempos que não são de guerra, defendendo que a garantia do que a sociedade entende como “lei e ordem” deve ser feita pela polícia, e não por exércitos. Anota que a ação de grupos terroristas hoje é mais alarmante não pela ação estratégica ou política que eles sejam capazes de implementar, mas pela gravidade e amplitude dos massacres que eles podem realizar, situação reforçada pelos armamentos altamente letais hoje existentes aos quais eles podem ter acesso.

Ao final da obra, sob o título “O império se expande cada vez mais”, está o capítulo oriundo de palestra proferida pelo autor em 2003. Nela, Hobsbawm enfatiza a situação mundial atual que não tem precedentes na história, onde tudo está interligado e, rapidamente, todos sofrem as consequências de eventos novos, destacando a importância da tecnologia no mundo de hoje, especialmente o seu domínio na esfera militar. Ainda assim, os Estados nacionais são consolidados e precisam de apoio popular para se manterem.

Quanto ao projeto imperial americano, observa que nenhum dos impérios que existiram na história teve a pretensão de dominação global e nenhum se acreditava invulnerável. Sustenta que os Estados Unidos possuem uma enorme população e um amplo território, além de serem detentores de vasto poder militar. O autor observa que essa força militar é usualmente justificada pela proteção aos direitos humanos e adverte que poucas coisas são tão graves quanto impérios que tentam implementar seus próprios interesses sob o pretexto de fazer um “favor” à humanidade. Aponta que os Estados Unidos têm pequenos triunfos como a expansão global de sua cultura e da língua inglesa. Mas registra que o principal triunfo no momento é de natureza militar, pois eles não têm competidores à altura nesse setor. E, a nível internacional, o risco desse projeto imperialista é a desestabilização do mundo, como se pode ver no exemplo do Oriente Médio. A ação da política imperial-armamentista americana enfraquece os mecanismos de manutenção da ordem nos lugares onde atua, situação que é piorada pela ausência de um organismo internacional capaz de refrear suas empreitadas.

De maneira muito lúcida e atenta, calcada sobretudo naquilo que o autor analisou e viveu durante a história do século XX e início do XXI, ele acena para o risco do imperialismo dos direitos humanos e para o apoio que outros países poderiam conferir aos Estados Unidos sob a justificativa de eliminar injustiças. Alerta para a gravidade do surgimento de um poder que, a despeito de não compreender o que acontece no mundo e nas diversas sociedades, tem força para nelas intervir militarmente caso suas decisões políticas estejam em desacordo com o ideal americano. Aponta a inexistência no momento atual de um poder hábil a competir com os Estados Unidos, como havia na época da União Soviética e, assim, as ações imperialistas americanas não estão mais limitadas pelo medo da reação de uma outra força. E, na falta do medo que limitava suas ações, o autor expõe a necessidade de que o interesse próprio esclarecido e a cultura ocupem esse vazio.

O primor da obra de Hobsbawm e especialmente desse trabalho é o desvelamento do mundo a partir dos eventos históricos examinados de maneira sóbria e crítica. Pela contemplação de fatos e ações concretas, o autor consegue desmistificar muitas das crenças que sustentam o mundo liberal contemporâneo, como a democracia e o próprio discurso de proteção dos direitos humanos. Aponta a falibilidade dos pilares em que se apoiam os governos autointitulados democráticos, demonstrando que o modelo político por eles adotado não vem sendo capaz de enfrentar os dilemas sociais e de conter a violência e a barbárie, que se mostram cada vez mais severas. Apesar disso, o discurso democrático e sobretudo de proteção dos direitos humanos, carregado de falsas perspectivas e expectativas, é propagado universalmente como ideal a ser alcançado. Esse mesmo discurso, aliado à “guerra ao terror”, também é utilizado para fundamentar a implantação de um projeto americano nitidamente imperialista de dominação política do mundo. E tudo isso temperado pela soberania do mercado, pela manipulação da opinião pública tanto pela seletiva mídia mundial quanto pela ação dos próprios governos, gerando um cenário de instabilidade político-social às vezes não tão perceptível, mas que, sem dúvida, é grande colaborador para a crise da ordem pública e o aumento da violência verificados no correr do último século e início do século XXI.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br