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Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio

Resumos

Este trabalho discute o significado do "perspectivismo" ameríndio: as idéias, presentes nas cosmologias amazônicas, a respeito do modo como humanos, animais e espíritos vêem-se a si mesmos e aos outros seres do mundo. Essas idéias sugerem uma possibilidade de redefinição relacional das categorias clássicas de "natureza", "cultura" e "sobrenatureza" a partir do conceito de perspectiva ou ponto de vista. Em particular, argumenta-se que a antinomia entre duas caracterizações do pensamento indígena: de um lado, o "etnocentrismo", que negaria os predicados da humanidade aos humanos de outros grupos; de outro, o "animismo", que os estenderia a seres de outras espécies, pode ser resolvida se se considerar a diferença entre os aspectos espirituais e corporais dos seres.


This study discusses the meaning of Amerindian "perspectivism": the ideas in Amazonian cosmologies concerning the way in which humans, animals, and spirits see both themselves and other world beings. Such ideas suggest the possibility of a redefinition of the classical categories of "nature", "culture", and "supernature" based on the concept of perspective or point of view. The study argues in particular that the antinomy between two characterizations of indigenous thought - on the one hand "ethnocentrism", which would deny the attributes of humanity to humans from other groups, and on the other hand "animism", which would extend such qualities to beings from other species - can be resolved if one considers the difference between the spiritual and corporal aspects of beings.


ARTIGOS

Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio

Eduardo Viveiros de Castro

RESUMO

Este trabalho discute o significado do "perspectivismo" ameríndio: as idéias, presentes nas cosmologias amazônicas, a respeito do modo como humanos, animais e espíritos vêem-se a si mesmos e aos outros seres do mundo. Essas idéias sugerem uma possibilidade de redefinição relacional das categorias clássicas de "natureza", "cultura" e "sobrenatureza" a partir do conceito de perspectiva ou ponto de vista. Em particular, argumenta-se que a antinomia entre duas caracterizações do pensamento indígena: de um lado, o "etnocentrismo", que negaria os predicados da humanidade aos humanos de outros grupos; de outro, o "animismo", que os estenderia a seres de outras espécies, pode ser resolvida se se considerar a diferença entre os aspectos espirituais e corporais dos seres.

ABSTRACT

This study discusses the meaning of Amerindian "perspectivism": the ideas in Amazonian cosmologies concerning the way in which humans, animals, and spirits see both themselves and other world beings. Such ideas suggest the possibility of a redefinition of the classical categories of "nature", "culture", and "supernature" based on the concept of perspective or point of view. The study argues in particular that the antinomy between two characterizations of indigenous thought – on the one hand "ethnocentrism", which would deny the attributes of humanity to humans from other groups, and on the other hand "animism", which would extend such qualities to beings from other species – can be resolved if one considers the difference between the spiritual and corporal aspects of beings.

El ser humano se ve a sí mismo como tal. La Luna, la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin embargo, como un tapir o un pecarí, que ellos matan (Baer 1994:224).

Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz (Deleuze 1988:16).

Introdução

O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua "qualidade perspectiva" (Århem 1993): trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e nãohumanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos1 1 O presente trabalho resulta de um diálogo com Tânia Stolze Lima, que escreveu paralela e sincronicamente um artigo sobre o perspectivismo na cosmologia juruna (Lima 1996). Por esse motivo, não incluí no que se segue exemplos ou considerações tomados de sua rica etnografia (Lima 1995). Esperamos poder em breve combinar nossos respectivos estudos sobre o perspectivismo em uma publicação de maior fôlego. Agradeço a Peter Gow, Aparecida Vilaça, Philippe Descola, Michael Houseman e Marcio Goldman pelas sugestões que deram em fases diferentes de elaboração do material que ora apresento. . Os pressupostos e conseqüências dessa idéia são irredutíveis (como mostrou Lima 1995:425-438) ao nosso conceito corrente de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem, a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre relativismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente transportabilidade das partições cosmológicas que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa.

Tal crítica, no caso presente, impõe a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de "Natureza" e "Cultura": universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos. Esse reembaralhamento etnograficamente motivado das cartas conceituais leva-me a sugerir a expressão "multinaturalismo" para designar um dos traços contrastivos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias "multiculturalistas" modernas: enquanto estas se apóiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas — a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e dos significados —, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A "cultura" ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a "natureza" ou o objeto a forma do particular.

Essa inversão, talvez demasiado simétrica para ser mais que especulativa, deve se desdobrar em uma interpretação fenomenológica plausível das categorias cosmológicas ameríndias, que determine as condições de constituição dos contextos relacionais designáveis como "natureza" e "cultura". Recombinar, portanto, mas para em seguida dessubstancializar, pois as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais — elas não designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista.

Como está claro, penso que a distinção natureza/cultura deve ser criticada, mas não para concluir que tal coisa não existe (já há coisas demais que não existem). O "valor sobretudo metodológico" que Lévi-Strauss lhe atribuiu (1962b:327) é aqui entendido como valor sobretudo comparativo. A florescente indústria da crítica ao caráter ocidentalizante de todo dualismo tem advogado o abandono de nossa herança conceitual dicotômica, mas as alternativas até agora se resumem a desideratos pósbinários um tanto vagos; prefiro, assim, perspectivizar nossos contrastes contrastando-os com as distinções efetivamente operantes nas cosmologias ameríndias.

Perspectivismo

O estímulo inicial para esta reflexão são as numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos —, é profundamente diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem.

Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predadores). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura — vêem seu alimento como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos etc.). Esse "ver como" se refere literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de todo modo, os xamãs, mestres do esquematismo cósmico (Taussig 1987:462-463), dedicados a comunicar e administrar essas perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou tornar inteligíveis as intuições.

Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. Teríamos então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. A noção de "roupa"2 2 Atestada entre os Makuna (Århem 1993), os Yagua (Chaumeil 1983:125- 127), os Piro (Gow inf.pess.), os Trio (Rivière 1995) ou os Alto-Xinguanos (Gregor 1977:322; Viveiros de Castro 1977:182). Essa noção é provavelmente pan-americana, tendo um grande rendimento simbólico, por exemplo, na cosmologia kwakiutl (Goldman 1975:62-63, 124-125, 182-186, 227-228). é uma das expressões privilegiadas da metamorfose — espíritos, mortos e xamãs que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais —, um processo onipresente no "mundo altamente transformacional" (Rivière 1995:201) proposto pelas ontologias amazônicas.

Esse perspectivismo e transformismo cosmológico pode ser divisado em várias etnografias sul-americanas, mas em geral é objeto de comentários concisos3 3 Ver, para alguns exemplos entre muitos: Weiss (1969:158) — Campa; Baer (1994:102, 119 224) — Matsiguenga; Grenand (1980:42) — Wayãpi; Viveiros de Castro (1992a:68) — Araweté; Osborn (1990:151) — U'wa. , e parece ser muito desigualmente elaborado. Ele se acha também, e ali com um valor talvez ainda mais pregnante, nas culturas das regiões boreais da América do Norte e da Ásia, e entre caçadorescoletores tropicais de outros continentes4 4 Ver, por exemplo, Saladin d'Anglure (1990) — Inuit; McDonnell (1984) e Nelson (1983) — Koyukon, Kaska; Tanner (1979) e Scott (1989) — Cree; Goldman (1975) — Kwakiutl; Howell (1984) e Karim (1981) para os Chewong e Ma'Betisék da Malásia; para a Sibéria, Hamayon (1990). . Na América do Sul, as cosmologias do noroeste amazônico mostram os desenvolvimentos mais completos (ver Århem 1993; e no prelo, em quem a descrição que precede foi largamente inspirada; Reichel-Dolmatoff 1985; Hugh-Jones 1996). Mas são as etnografias de Vilaça (1992) sobre o canibalismo wari' e de Lima (1995) sobre a epistemologia juruna que trazem as contribuições diretamente afins ao presente trabalho, por ligarem a questão dos pontos de vista não-humanos e da natureza posicional das categorias cosmológicas ao conjunto mais amplo de manifestações de uma economia simbólica da alteridade (Viveiros de Castro 1993)5 5 As noções de "perspectiva" e "ponto de vista" têm um papel central em textos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicação era ali, principalmente, a dinâmica intra-humana, e seu significado quase sempre analítico e abstrato (Viveiros de Castro 1992a:248-251, 256-260; 1996a). Os estudos de Vilaça e, sobretudo, o de Lima mostraram-me que era possível generalizar em extensão e compreensão essas noções. .

Algumas observações gerais são necessárias. O perspectivismo não engloba, via de regra, todos os animais (além de englobar outros seres); a ênfase parece ser naquelas espécies que desempenham um papel simbólico e prático de destaque, como os grandes predadores, rivais dos humanos, e as presas principais dos humanos — uma das dimensões centrais, talvez mesmo a dimensão fundamental, das inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e presa (Vilaça 1992:49-51; Århem 1993:11-12). De outro lado, nem sempre é claro que se atribuam almas ou subjetividades a cada indivíduo animal, e há exemplos de cosmologias que negam aos animais pós-míticos a capacidade de consciência (Overing 1985:249 e ss.; 1986:245-246), ou alguma outra distinção espiritual (Viveiros de Castro 1992a:73-74; Baer 1994:89). Entretanto, a noção de espíritos "senhores" dos animais ("mães da caça", "mestres dos queixadas" etc.) é, como se sabe, de enorme difusão no continente. Esses espíritos-mestres, claramente dotados de uma intencionalidade análoga à humana, funcionam como hipóstases das espécies animais a que estão associados, criando um campo intersubjetivo humanoanimal mesmo ali onde os animais empíricos não são espiritualizados.

Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado original de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia6 6 "[— O que é um mito?] — Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda" (Lévi-Strauss e Eribon 1988:193, tradução minha). . Os mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. A diferenciação entre "cultura" e "natureza", que Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos exanimais7 7 A noção de que o "eu" (os homens, os índios, minha tribo) que distingue é o termo historicamente estável da distinção entre o "eu" e o "outro" (os animais, os brancos, os outros índios) aparece tanto no caso da diferenciação interespecífica como no da separação intra-específica, como se pode ver nos diferentes mitos ameríndios de origem dos Brancos. Os outros foram o que somos, e não, como entre nós, são o que fomos. E assim se percebe quão pertinente pode ser a noção de "sociedades frias": a história existe sim, mas é algo que só acontece aos outros. . Em suma, "o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição" (Descola 1986:120).

Esta é uma distinção — entre a espécie humana e a condição humana — que se deve guardar. Ela tem uma conexão evidente com a idéia das roupas animais a esconder uma "essência" espiritual comum, e com o problema do sentido geral do perspectivismo. Por ora, registremos apenas uma de suas incidências etnográficas mais importantes: a humanidade passada dos animais se soma à sua atual espiritualidade oculta pela forma visível para produzir um difundido complexo de restrições ou precauções alimentares, que ora declara incomestíveis certos animais miticamente consubstanciais aos humanos, ora exige a dessubjetivação xamanística do animal antes que se o consuma (neutralizando seu espírito, transubstanciando sua carne em vegetal, reduzindo-o semanticamente a outros animais menos próximos do humano)8 8 Ver Viveiros de Castro (1978); Crocker (1985); Overing (1985; 1986); Vilaça (1992); Århem (1993); Hugh-Jones (1996), entre muitos outros. , sob pena de retaliação em forma de doença, concebida como contrapredação canibal levada a efeito pelo espírito da presa tornada predador, em uma inversão mortal de perspectivas que transforma o humano em animal.

Convém destacar que o perspectivismo ameríndio tem uma relação essencial com o xamanismo, de que é ao mesmo tempo o fundamento teórico e o campo de operação, e com a valorização simbólica da caça. A associação entre o xamanismo e o que poderíamos chamar de "ideologia venatória" é uma questão clássica (ver Chaumeil 1983:231-232; Crocker 1985:17-25). Sublinho que se trata de importância simbólica, não de dependência ecológica: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juruna (que além disso praticam mais a pesca que a caça) não diferem muito dos caçadores do Canadá e Alasca, no que diz respeito ao peso cosmológico conferido à predação cinegética, à subjetivação espiritual dos animais e à teoria de que o universo é povoado de intencionalidades extrahumanas dotadas de perspectivas próprias9 9 A importância da relação venatório-xamanística com o mundo animal, em sociedades cuja economia é baseada na horticultura (e na pesca mais que na caça), suscita problemas interessantes para a história cultural da Amazônia (Viveiros de Castro 1996b). . Nesse sentido, a espiritualização das plantas, meteoros ou artefatos me parece secundária ou derivada diante da espiritualização dos animais: o animal é o protótipo extra-humano do Outro, mantendo uma relação privilegiada com outras figuras prototípicas da alteridade, como os afins (Erikson 1984:110-112; Descola 1986:317-330; Århem no prelo)10 10 Registre-se, entretanto, que nas culturas da Amazônia Ocidental, e particularmente naquelas que fazem largo uso de alucinógenos, a personificação das plantas parece ser pelo menos tão importante quanto a dos animais. . Ideologia de caçadores, esta é também e sobretudo uma ideologia de xamãs, na medida em que são os xamãs que administram as relações dos humanos com o componente espiritual dos extra-humanos, capazes como são de assumir o ponto de vista desses seres e, principalmente, de voltar para contar a história. Se o multiculturalismo ocidental é o relativismo como política pública, o xamanismo perspectivista ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica.

Animismo

O leitor terá advertido que meu "perspectivismo" evoca a noção de "animismo", recentemente recuperada por Descola (1992; no prelo), para designar um modo de articulação das séries natural e social que seria o simétrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda conceitualização dos não-humanos é sempre referida ao domínio social, o autor distingue três modos de objetivação da natureza: o totemismo, onde as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre natureza e cultura é de tipo metafórico e marcada pela descontinuidade (intra e interséries); o animismo, onde as "categorias elementares da vida social" organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais, definindo assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e cultura, fundada na atribuição de "disposições humanas e características sociais aos seres naturais" (Descola no prelo:99); e o naturalismo, típico das cosmologias ocidentais, que supõe uma dualidade ontológica entre natureza, domínio da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões separadas por uma descontinuidade metonímica. O "modo anímico" seria característico das sociedades onde o animal é "foco estratégico de objetivação da natureza e de sua socialização" (Descola 1992:115), como na América indígena, reinando soberano naquelas morfologias sociais desprovidas de segmentação interna elaborada. Mas ele pode se apresentar em coexistência ou combinação com o totemismo, ali onde tais segmentações existem, como no caso dos Bororo e seu dualismo aroe/bope (Descola no prelo:99)11 11 Ou, acrescentaríamos, dos Ojibwa, onde a coexistência dos sistemas totem e manido (Lévi-Strauss 1962a:25-33), que serviu de matriz para a oposição geral entre totemismo e sacrifício (Lévi-Strauss 1962b:295-302), se deixa interpretar diretamente no quadro da distinção totemismo/animismo. Para uma discussão conjunta dos pares totemismo/sacrifício e aroe/ bope, ver Viveiros de Castro (1991:88, 91, nota 11). .

Essas idéias se inserem em um modelo de "ecologia simbólica" ainda em elaboração, que não posso aqui discutir como ele mereceria12 12 A proposta de Descola vem-se somar a várias manifestações de insatisfação com a ênfase unilateral na metáfora e na lógica totêmico-classificatória que marca a concepção lévi-straussiana do pensamento selvagem. Para ficarmos no âmbito americanista, evoquem-se, por exemplo: a recusa do privilégio da metáfora por Overing (1985), em favor de um literalismo relativista que parece se apoiar na noção de crença; a teoria da sinédoque dialética como anterior e superior à analogia metafórica, proposta por Turner (1991), autor que, como outros especialistas (Seeger 1981; Crocker 1985), tem procurado contestar as interpretações do dualismo natureza/cultura jê-bororo em termos de uma oposição estática, privativa e discreta; ou a retomada, por Viveiros de Castro (1992a), do contraste entre totemismo e sacrifício à luz do conceito deleuziano de devir, que procura dar conta da centralidade dos processos de predação ontológica nas cosmologias tupi, bem como do caráter diretamente social (e não especularmente classificatório) da interação das ordens humana e extra-humana. . Comentarei apenas, mas tomando-o em um sentido algo diferente do original, o contraste entre animismo e naturalismo. (O totemismo me parece um fenômeno heterogêneo, antes classificatório que cosmológico: ele não é um sistema de relações entre natureza e cultura, como os outros dois modos, mas de correlações puramente lógicas e diferenciais.)

O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social. O naturalismo está fundado no axioma inverso: as relações entre sociedade e natureza são elas próprias naturais. Com efeito, se no modo anímico a distinção "natureza/ cultura" é interna ao mundo social, humanos e animais estando imersos no mesmo meio sociocósmico (e neste sentido a "natureza" é parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distinção "natureza/cultura" é interna à natureza (e neste sentido a sociedade humana é um fenômeno natural entre outros). O animismo tem a "sociedade" como pólo não-marcado, o naturalismo, a "natureza": esses pólos funcionam, respectiva e contrastivamente, como a dimensão do universal de cada modo. Animismo e naturalismo são, portanto, estruturas hierárquicas e metonímicas (o que os distingue do totemismo, estrutura metafórica e eqüipolente).

Em nossa ontologia naturalista, a interface sociedade/natureza é natural: os humanos são aqui organismos como os outros, corpos-objetos em interação "ecológica" com outros corpos e forças, todos regulados pelas leis necessárias da biologia e da física; as "forças produtivas" aplicam as forças naturais. Relações sociais, isto é, relações contratuais ou instituídas entre sujeitos, só podem existir no interior da sociedade humana. Mas quão "não-naturais" — este seria o problema do naturalismo — são essas relações? Dada a universalidade da natureza, o estatuto do mundo humano e social é instável, e, como mostra a história do pensamento ocidental, perpetuamente oscilante entre o monismo naturalista (de que a "sociobiologia" é um dos avatares atuais) e o dualismo ontológico natureza/cultura (de que o "culturalismo" é a expressão contemporânea). A afirmação deste último dualismo e seus correlatos (corpo/mente, razão pura/razão prática etc.), porém, só faz reforçar o caráter de referencial último da noção de natureza, ao se revelar descendente em linha direta da oposição entre natureza e sobrenatureza. A Cultura é o nome moderno do Espírito — recorde-se a distinção entre as Naturwissenschaften e as Geistwissenschaften —, ou pelo menos o nome do compromisso, ele próprio instável, entre a Natureza e a Graça. Do lado do animismo, seríamos tentados a dizer que a instabilidade está no pólo oposto: o problema ali é administrar a mistura de humanidade e animalidade dos animais, e não, como entre nós, a combinação de cultura e natureza que caracteriza os humanos; a questão é diferenciar uma "natureza" a partir do sociomorfismo universal.

Mas é de fato possível definir o animismo como uma projeção de diferenças e qualidades internas ao mundo humano sobre o mundo nãohumano, como um modelo "sociocêntrico" onde categorias e relações sociais são usadas para mapear o universo (Descola no prelo:97)? Esta interpretação analógica é explícita em algumas glosas da teoria: "if totemic systems model society after nature, then animic systems model nature after society" (Århem no prelo:211). O problema aqui, obviamente, é o de evitar uma indesejável proximidade com a acepção tradicional de "animismo", ou com a redução das "classificações primitivas" a emanações da morfologia social (Descola no prelo:97); mas é também o de ir além de outras caracterizações clássicas da relação sociedade/natureza, como a de Radcliffe-Brown13 13 Ver Radcliffe-Brown (1952:130-131) que, entre outros argumentos interessantes, distingue os processos de personificação das espécies e fenômenos naturais (o que "permite conceber a natureza como se fosse uma sociedade de pessoas, fazendo dela uma ordem social ou moral"), como os que se acham entre os Esquimós ou Andamaneses, dos sistemas de classificação das espécies naturais, como os que se acham na Austrália, e que configuram um "sistema de solidariedades sociais" entre homem e natureza — isto evoca obviamente a distinção animismo/totemismo de Descola, bem como o contraste manido/ totem explorado por Lévi-Strauss. .

Ingold (1991; 1992; no prelo) mostrou como os esquemas de projeção analógica ou de modelização social da natureza escapam do reducionismo naturalista apenas para caírem em um dualismo natureza/cultura que, ao distinguir entre uma natureza "realmente natural" e uma natureza "culturalmente construída", revela-se como uma típica antinomia cosmológica viciada pela regressão ao infinito. A noção de modelo ou metáfora supõe a distinção prévia entre um domínio onde as relações sociais são constitutivas e literais e outro onde elas são representativas e metafóricas. Em outras palavras, a idéia de que humanos e animais estão ligados por uma socialidade comum depende contraditoriamente de uma descontinuidade ontológica primeira. O animismo, interpretado como projeção da socialidade humana sobre o mundo não-humano, não passaria da metáfora de uma metonímia, permanecendo cativo de uma leitura "totêmica" ou classificatória.

Entre as questões que restam a resolver, portanto, está a de saber se o animismo pode ser descrito como um uso figurado de categorias do domínio humano-social para conceitualizar o domínio dos não-humanos e suas relações com o primeiro. Isto redunda em indagar até que ponto o "perspectivismo", que é um como corolário etno-epistemológico do "animismo", exprime realmente um antropomorfismo analógico, isto é, um antropocentrismo. O que significa dizer que os animais são pessoas?

Outra questão: se o animismo depende da atribuição aos animais das mesmas faculdades sensíveis dos homens, e de uma mesma forma de subjetividade, isto é, se os animais são "essencialmente" humanos, qual afinal a diferença entre os humanos e os animais? Se os animais são gente, por que não nos vêem como gente? Por que, justamente, o perspectivismo? Cabe também perguntar se a noção de formas corporais contingentes (as "roupas") pode ser de fato descrita em termos de uma oposição entre aparência e essência (Descola 1986:120; Århem 1993:122; Rivière 1995; Hugh-Jones 1996).

Por fim, se o animismo é um modo de objetivação da natureza onde o dualismo natureza/cultura não vigora, o que fazer com as abundantes indicações a respeito da centralidade dessa oposição nas cosmologias sulamericanas? Tratar-se-ia apenas de mais uma "ilusão totêmica", se não de uma projeção ingênua de nosso dualismo ocidental? É possível fazer um uso mais que sinóptico dos conceitos de natureza e cultura, ou eles seriam apenas "rótulos genéricos" (Descola no prelo:95) a que Lévi-Strauss recorreu para organizar os múltiplos contrastes semânticos das mitologias americanas, contrastes estes irredutíveis a uma dicotomia única e massiva?

Etnocentrismo

Em um texto muito conhecido, Lévi-Strauss observava que, para os selvagens, a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, concepção que se exprimiria exemplarmente na grande difusão de auto-etnônimos cujo significado é "os humanos verdadeiros", e que implicam assim uma definição dos estrangeiros como pertencentes ao domínio do extra-humano. O etnocentrismo não seria privilégio dos ocidentais, portanto, mas uma atitude ideológica natural, inerente aos coletivos humanos. O autor ilustra a reciprocidade universal de tal atitude com uma anedota:

"Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de inquérito para investigar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que aprisionavam, a fim de verificar, por uma demorada observação, se seus cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação" (Lévi-Strauss 1973a:384, tradução minha).

Lévi-Strauss extrai dessa parábola a célebre moral: "O bárbaro é, antes de mais nada, o homem que crê na existência da barbárie". Alguns anos depois, ele iria recontar o caso das Antilhas, mas dessa vez sublinhando a assimetria das perspectivas: em suas investigações sobre a humanidade do Outro, os brancos apelavam para as ciências sociais, os índios, para as ciências naturais; e se os primeiros concluíam que os índios eram animais, os segundos se contentavam em desconfiar que os brancos fossem divindades (Lévi-Strauss 1955:82-83). "À ignorance égale", diz o autor, a última atitude era mais digna de seres humanos.

A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe-se que nada permite concluir que os índios estivessem imputando uma potencial divindade aos brancos: podiam apenas estar querendo saber se eram espíritos malignos, não deuses. De qualquer modo, o ponto geral é simples: os índios, como os invasores europeus, consideram que apenas o grupo a que pertencem encarna a humanidade; os estrangeiros estão do outro lado da fronteira que separa os humanos dos animais e espíritos, a cultura da natureza e da sobrenatureza. Matriz e condição de possibilidade do etnocentrismo, a oposição natureza/cultura aparece como um universal da apercepção social.

No tempo em que Lévi-Strauss escrevia essas linhas, a estratégia para se vindicar a plena humanidade dos selvagens era a de mostrar que eles faziam as mesmas distinções que nós: a prova de que eles eram verdadeiros humanos é que consideravam que somente eles eram humanos verdadeiros. Como nós, eles distinguiam a cultura da natureza, e também achavam que Naturvölker são os outros. A universalidade da distinção cultural entre Natureza e Cultura atestava a universalidade da cultura como natureza do humano. Em suma, a resposta à questão dos investigadores quinhentistas era positiva: os selvagens têm alma.

Agora, tudo mudou. Os selvagens não são mais etnocêntricos, mas cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque se distinguem do animal, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos somos nós, que opomos humanos e animais de um modo que eles nunca fizeram: para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico. Os ameríndios não somente passariam ao largo do Grande Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade, como sua concepção social do cosmos (e cósmica da sociedade) antecipa as lições fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em condições de assimilar (Reichel-Dolmatoff 1976). Antes se observava a recusa, por parte dos índios, de conceder os predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados muito além das fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria "ecosófica" (Århem 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites de nosso objetivismo14 14 O próprio Lévi-Strauss ilustra essa última atitude, em um esplêndido parágrafo de sua homenagem a Rousseau: "Começou-se por separar o homem da natureza, e por constituí-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua característica mais inquestionável, a saber, que ele é antes de mais nada um ser vivo. A cegueira diante dessa propriedade comum abriu caminho para todos os abusos. Nunca como agora, ao cabo dos quatro últimos séculos de sua história, pôde o homem ocidental se dar conta de como, ao se arrogar o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo à primeira tudo aquilo que negava à segunda, ele abria um ciclo maldito, e que a mesma fronteira, constantemente recuada, servia-lhe para afastar homens de outros homens e para reivindicar, em benefício de minorias cada vez mais restritas, o privilégio de um humanismo que já nasceu corrompido, por ter ido buscar no amor-próprio seu princípio e seu conceito" (Lévi-Strauss 1973b:53, tradução minha). . Antes, era preciso contestar a assimilação do pensamento selvagem ao animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, mostrando que o totemismo afirmava a distinção cognitiva entre o homem e a natureza; agora, o neo-animismo se revela como reconhecimento da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos, humanos e não-humanos. Contra a hybris moderna, os "híbridos" primitivos e amodernos (Latour 1991).

Duas antinomias, portanto, que são de fato uma só: ou os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de humanidade, e opõem "totemicamente" natureza e cultura; ou eles são cosmocêntricos e anímicos, e não professam tal distinção, sendo modelos de tolerância relativista, ao postular a multiplicação de pontos de vista sobre o mundo. Em suma: ou fechamento sobre si, ou "abertura ao outro" (Lévi-Strauss 1991:16).

Penso que a solução para essas antinomias não está em escolher um lado, sustentando, por exemplo, que a versão mais recente é a correta e relegando a outra às trevas pré-pós-modernas. Trata-se mais bem de mostrar que tanto a "tese" como a "antítese" são verdadeiras (ambas correspondem a intuições etnográficas sólidas), mas que elas apreendem os mesmos fenômenos sob aspectos distintos; e também de mostrar que ambas são falsas, por se referirem a uma concepção substantivista das categorias de Natureza e Cultura (seja para afirmá-las ou para negá-las) inaplicável às cosmologias ameríndias.

A primeira coisa a considerar é que as palavras ameríndias que se costumam traduzir por "ser humano", e que entram na composição das tais autodesignações etnocêntricas, não denotam a humanidade como espécie natural, mas a condição social de pessoa, e, sobretudo quando modificadas por intensificadores do tipo "de verdade", "realmente", funcionam (pragmática quando não sintaticamente) menos como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posição de sujeito; são um marcador enunciativo, não um nome. Longe de manifestarem um afunilamento semântico do nome comum ao próprio (tomando "gente" para nome da tribo), essas palavras mostram o oposto, indo do substantivo ao perspectivo (usando "gente" como o pronome coletivo "a gente"). Por isso mesmo, as categorias indígenas de identidade coletiva têm aquela enorme variabilidade contextual de escopo característica dos pronomes, marcando contrastivamente desde a parentela imediata de um Ego até todos os humanos, ou mesmo todos os seres dotados de consciência; sua coagulação como "etnônimo" parece ser, em larga medida, um artefato produzido no contexto da interação com o etnógrafo. Não é tampouco por acaso que a maioria dos etnônimos ameríndios que passaram à literatura não são autodesignações, mas nomes (freqüentemente pejorativos) conferidos por outros povos: a objetivação etnonímica incide primordialmente sobre os outros, não sobre quem está em posição de sujeito. Os etnônimos são nomes de terceiros, pertencem à categoria do "eles", não à categoria do "nós"15 15 Uma transformação da recusa de auto-objetivação onomástica acha-se naqueles casos ou momentos em que, quando o coletivo-sujeito se toma como parte de uma pluralidade de coletivos análogos a si, o termo auto-referencial significa " os outros", sendo usado primordialmente para identificar os coletivos de que o sujeito se exclui. A alternativa à subjetivação pronominal é uma auto-objetivação igualmente relacional, onde "eu" só pode significar "o outro do outro": ver o achuar dos Achuar, ou o nawa dos Pano (Taylor 1985:168; Erikson 1990:80-84). A lógica da auto-"etnonímia" ameríndia exigiria um estudo específico. Para outros casos ilustrativos, ver: Vilaça (1992:49-51); Price (1987); Viveiros de Castro (1992a:64-65). Para uma análise iluminadora de um caso norte-americano semelhante aos amazônicos, ver McDonnell (1984:41-43). . Isso é consistente, aliás, com uma difundida evitação da auto-referência no plano da onomástica pessoal: os nomes não são pronunciados por seus portadores, ou em sua presença; nomear é externalizar, separar (d)o sujeito.

Assim, as auto-referências de tipo "gente" significam "pessoa", não "membro da espécie humana"; e elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que está falando, e não nomes próprios. Dizer então que os animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas; é atribuir aos não-humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de "agência" que definem a posição de sujeito. Tais capacidades são reificadas na "alma" ou "espírito" de que esses não-humanos são dotados. É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um ponto de vista. As "almas" ameríndias, humanas ou animais, são assim categorias perspectivas, deíticos cosmológicos cuja análise pede menos uma psicologia animista ou uma ontologia substancialista que uma teoria do signo ou uma pragmática epistemológica (Viveiros de Castro 1992b; Taylor 1993a; 1993b)16 16 Ver o que diz Taylor (1993b:660) sobre o conceito jívaro de wakan, "alma": "Essencialmente, wakan é autoconsciência [ ] uma representação da reflexividade [ ] Wakan é, portanto, comum a muitas entidades, e de forma nenhuma um atributo exclusivamente humano: há tantos wakan quanto coisas a que se possam, contextualmente, atribuir reflexividade." .

Todo ser a que se atribui um ponto de vista será assim sujeito, espírito; ou melhor, ali onde estiver o ponto de vista, também estará a posição de sujeito. Enquanto nossa cosmologia construcionista pode ser resumida na fórmula saussureana: o ponto de vista cria o objeto — o sujeito sendo a condição originária fixa de onde emana o ponto de vista —, o perspectivismo ameríndio procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito quem se encontrar ativado ou "agenciado" pelo ponto de vista17 17 "Tal é o fundamento do perspectivismo. Ele não exprime uma dependência perante um sujeito definido previamente; ao contrário, será sujeito aquele que aceder ao ponto de vista [ ]" (Deleuze 1988:27, tradução minha). . É por isso que termos como wari' (Vilaça 1992), dene (McDonnell 1984) ou masa (Århem 1993) significam "gente", mas podem ser ditos por — e portanto ditos de — classes muito diferentes de seres; ditos pelos humanos, denotam os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, guaribas ou castores, eles se auto-referem aos queixadas, guaribas ou castores.

Sucede que esses não-humanos colocados em perspectiva de sujeito não se "dizem" apenas gente; eles se vêem morfológica e culturalmente como humanos, conforme explicam os xamãs. A espiritualização simbólica dos animais implicaria sua hominização e culturalização imaginárias; o caráter antropocêntrico do pensamento indígena, assim, pareceria inquestionável. Mas creio que se trata de algo completamente diferente. Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição de sujeito, apreende-se sob a espécie da humanidade. A forma corporal humana e a cultura — os esquemas de percepção e ação "encorporados"18 18 Traduzo a forma inglesa to embody e seus derivados, que hoje gozam de uma fenomenal popularidade no jargão antropológico (ver Turner 1994), pelo neologismo "encorporar", visto que nem "encarnar" nem "incorporar" são realmente adequados. em disposições específicas — são atributos pronominais do mesmo tipo que as autodesignações acima discutidas. Esquematismos reflexivos ou aperceptivos, tais atributos são o modo mediante o qual todo sujeito se apreende, e não predicados literais e constitutivos da espécie humana projetados metaforicamente sobre os não-humanos. Esses atributos são imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele. O ser humano — naturalmente — goza da mesma prerrogativa, e portanto, como diz a enganadora tautologia em epígrafe, "vê-se a si mesmo como tal". Isto significa dizer que a Cultura é a natureza do Sujeito; ela é a forma pela qual todo sujeito experimenta sua própria natureza. O animismo não é uma projeção figurada do humano sobre o animal, mas equivalência real entre as relações que humanos e animais mantêm consigo mesmos. Se, como observamos, a condição comum aos humanos e animais é a humanidade, não a animalidade, é porque "humanidade" é o nome da forma geral do Sujeito.

Multinaturalismo

Com isso podemos ter descartado o antropomorfismo analógico, mas parece que apenas para assumir o relativismo. Pois, essa cosmologia dos múltiplos pontos de vista não implicaria que "cada perspectiva é igualmente válida e verdadeira", e que "não existe uma representação do mundo correta e verdadeira"? (Århem 1993:124).

Mas esta é justamente a questão: a teoria perspectivista ameríndia está de fato afirmando uma multiplicidade de representações sobre o mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceber que é o inverso que se passa: todos os seres vêem ("representam") o mundo da mesma maneira — o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais impõem as mesmas categorias e valores que os humanos sobre o real: seus mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos xamãs, chefes, espíritos Se a Lua, as cobras e as onças vêem os humanos como tapires ou pecaris, é porque, como nós, elas comem tapires e pecaris, comida própria de gente. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, os não-humanos vêem as coisas como "a gente" vê. Mas as coisas que eles vêem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca pubando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial

O relativismo (multi)cultural supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma radical diversidade objetiva. Uma só "cultura", múltiplas "naturezas" — o perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação.

Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista (e um ponto de vista não é senão diferença) não está na alma, pois esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte — a diferença é dada pela especificidade dos corpos. Isso permite responder às perguntas: se os não-humanos são pessoas e têm almas, em que se distinguem dos humanos? E por que, sendo gente, não nos vêem como gente?

Os animais vêem da mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologia — quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos —, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário A morfologia, a forma visível dos corpos, é um signo poderoso dessas diferenças de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma aparência de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de "corpo", portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas.

A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal. Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes. Assim, se a "cultura" é a perspectiva reflexiva do sujeito objetivada no conceito de alma, pode-se dizer que a "natureza" é o ponto de vista do sujeito sobre os outros corposafecções; se a Cultura é a natureza do Sujeito, a Natureza é a forma do Outro enquanto corpo, isto é, como objeto para um sujeito. A cultura tem a forma auto-referencial do pronome-sujeito "eu"; a natureza é a forma por excelência da "não-pessoa" ou do objeto, indicada pelo pronome impessoal "ele" (Benveniste 1966a:256).

Se o corpo é o que faz a diferença aos olhos ameríndios, então se compreende por que os métodos espanhóis e antilhanos de averiguação da humanidade do outro, na anedota narrada por Lévi-Strauss, mostravam aquela assimetria. Para os europeus, tratava-se de decidir se os outros tinham uma alma; para os índios, de saber que tipo de corpo tinham os outros. O grande diacrítico, o marcador da diferença de perspectiva para os europeus é a alma (os índios são homens ou animais?); para os índios, é o corpo (os europeus são homens ou espíritos?). Os europeus não duvidavam que os índios fossem corpos; os índios, que os europeus tivessem almas (animais e espíritos também as têm). O que os índios queriam saber era se o corpo daquelas "almas" era capaz das mesmas afecções que os seus — se era um corpo humano ou um corpo de espírito, imputrescível e proteiforme. Em suma: o etnocentrismo europeu consiste em negar que outros corpos tenham a mesma alma; o ameríndio, em duvidar que outras almas tenham o mesmo corpo.

O estatuto do humano no pensamento ocidental é, como sublinhou Ingold (1994a; 1994b:3-5), essencialmente ambíguo: de um lado, a humanidade (humankind) é uma espécie animal entre outras, e a animalidade é um domínio que inclui os humanos; de outro, a humanidade (humanity) é uma condição moral que exclui os animais. Esses dois estatutos coabitam no conceito problemático e disjuntivo de "natureza humana". Dito de outro modo, nossa cosmologia postula uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica (ou seja, sobrenatural, passando do grego ao latim) entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza, a segunda, das ciências da cultura. O espírito é o grande diferenciador ocidental: é o que nos sobrepõe aos animais e à matéria em geral, o que nos singulariza diante de nossos semelhantes, o que distingue as culturas. O corpo, ao contrário, é o grande integrador: ele nos conecta ao resto dos viventes, unidos todos por um substrato universal (o ADN, a química do carbono etc.) que, por sua vez, remete à natureza última de todos os corpos materiais19 19 A prova a contrario da singularidade do espírito em nossa cosmologia está em que, quando se quer universalizá-lo, não há outro recurso — a sobrenatureza estando hoje fora do jogo — senão o de identificá-lo à estrutura e funcionamento do cérebro. O espírito só pode ser universal (natural) se for corpo. . Em contrapartida, os ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo, a segunda, no perspectivismo: o espírito (que não é aqui substância imaterial, mas forma reflexiva) é o que integra; o corpo (que não é substância material, mas afecção ativa) o que diferencia.

Os muitos corpos do espírito

A idéia de que o corpo aparece como o grande diferenciador nas cosmologias amazônicas — isto é, como aquilo que só une seres do mesmo tipo na medida em que os distingue de outros — permite retomar sob nova luz algumas questões clássicas da etnologia regional.

Assim, o tema já antigo da importância da corporalidade nas sociedades amazônicas (Seeger et alii 1979) ganha um fundamento cosmológico. É possível, por exemplo, entender melhor por que as categorias de identidade — individuais, coletivas, étnicas ou cosmológicas — exprimem- se tão freqüentemente por meio de "idiomas" corporais, em particular pela alimentação e pela decoração corporal. A pregnância simbólica universal dos regimes alimentares e culinários — do "cru e o cozido" mitológico e lévi-straussiano à idéia dos Piro de que sua "comida legítima" é o que os faz, literalmente, diferentes dos Brancos (Gow 1991); das abstinências alimentares definidoras dos "grupos de substância" do Brasil Central (Seeger 1980) à classificação básica dos seres em termos de seu regime alimentar (Baer 1994:88); da produtividade ontológica da comensalidade, semelhança de dieta e condição relativa de presa-objeto e predador-sujeito (Vilaça 1992) à onipresença do canibalismo como horizonte "predicativo" de toda relação com o outro, seja ela matrimonial, manducatória ou guerreira (Viveiros de Castro 1993) —, essa universalidade manifesta justamente a idéia de que o conjunto de hábitos e processos que constituem os corpos é o lugar de emergência da identidade e da diferença.

O mesmo se diga do intenso uso semiótico do corpo na definição da identidade pessoal e na circulação dos valores sociais (Turner 1995). A conexão entre tal sobre-exploração do corpo (particularmente de sua superfície visível) e o recurso restrito, no socius amazônico, a objetos capazes de servir como suporte de relações — isto é, uma situação onde a troca social não é mediada por objetivações materiais como as que caracterizam as economias do dom ou da mercadoria — foi sagazmente destacada por Turner, que mostrou como o corpo humano deve então aparecer como o protótipo do objeto social. Mas a ênfase ameríndia na construção social do corpo não pode ser tomada como culturalização de um substrato natural, e sim como produção de um corpo distintivamente humano, entenda-se, naturalmente humano. Tal processo parece exprimir menos a vontade de "desanimalizar" o corpo por sua marcação cultural que a de particularizar um corpo ainda demasiado genérico, diferenciando-o dos corpos de outros coletivos humanos tanto quanto de outras espécies. O corpo, sendo o lugar da perspectiva diferenciante, deve ser maximamente diferenciado para exprimi-la completamente.

O corpo humano pode ser visto como lugar de confrontação entre humanidade e animalidade, mas não porque carregue uma natureza animal que deve ser velada e controlada pela cultura (Rivière 1995). Ele é o instrumento fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo tempo o objeto por excelência, aquilo que se dá a ver a outrem. Não por acaso, então, a objetivação social máxima dos corpos, sua máxima particularização expressa na decoração e exibição ritual, é ao mesmo tempo sua máxima animalização (Goldman 1975:178; Turner 1991; 1995), quando eles são recobertos por plumas, cores, grafismos, máscaras e outras próteses animais. O homem ritualmente vestido de animal é a contrapartida do animal sobrenaturalmente nu: o primeiro, transformado em animal, revela para si mesmo a distintividade "natural" do seu corpo; o segundo, despido de sua forma exterior e se revelando como humano, mostra a semelhança "sobrenatural" dos espíritos. O modelo do espírito é o espírito humano, mas o modelo do corpo é o corpo animal; e se do ponto de vista do sujeito a cultura é a forma genérica do "eu" e a natureza a do "ele", a objetivação do sujeito para si mesmo exige a singularização dos corpos — o que naturaliza a cultura, isto é, a encorpora —, enquanto a subjetivação do objeto implica a comunicação dos espíritos — o que culturaliza a natureza, isto é, a sobrenaturaliza. A problemática ameríndia da distinção Natureza/Cultura, nesses termos, antes de ser dissolvida em nome de uma comum socialidade anímica humano-animal, deve ser relida à luz do perspectivismo somático.

É importante observar que esses corpos ameríndios não são pensados sob o modo do fato, mas do feito. Por isso a ênfase nos métodos de fabricação contínua do corpo (Viveiros de Castro 1979), a concepção do parentesco como processo de assemelhamento ativo dos indivíduos (Gow 1989; 1991) pela partilha de fluidos corporais, sexuais e alimentares — e não como herança passiva de uma essência substancial —, a teoria da memória que inscreve esta na "carne" (Viveiros de Castro 1992a:201- 207), e mais geralmente uma teoria do conhecimento que o situa no corpo (McCallum 1996). A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito: não há mudança "espiritual" que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades. Por isso ainda, se a distinção entre corpo e alma tem uma evidente pertinência nessas cosmologias, ela não pode ser interpretada como uma descontinuidade ontológica. Enquanto feixes de afecções e sítios de perspectivas mais que organismos materiais, os corpos têm alma, como as almas e espíritos, aliás, têm corpo. A concepção dual (ou plural) da alma humana, muito difundida na Amazônia indígena, distingue entre uma alma (ou almas) do corpo, registro reificado da história do indivíduo, precipitado da memória e do afeto, e uma "alma verdadeira", pura singularidade subjetiva formal, marca abstrata da pessoa (por exemplo, Viveiros de Castro 1992a:201-214; McCallum 1996). De outro lado, as almas dos mortos e os espíritos que habitam o universo não são entidades imateriais, mas outros tantos tipos de corpo dotados de propriedades — afecções — sui generis. A distinção ameríndia entre alma e corpo não é uma distinção substantiva, mas algo que parece remeter a uma "epistemologia ontologizada" (Taylor 1993a:444-445). Com efeito, corpo e alma, assim como natureza e cultura, não correspondem a substantivos, entidades auto-subsistentes ou províncias ontológicas, mas a pronomes ou perspectivas fenomenológicas.

O caráter performado mais que dado do corpo, concepção que exige que se o diferencie "culturalmente" para que ele possa diferenciar "naturalmente", tem uma evidente conexão com a metamorfose interespecífica, possibilidade afirmada pelas cosmologias ameríndias. Não devemos nos surpreender com um pensamento que põe os corpos como grandes diferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua transformabilidade. Nossa cosmologia supõe a distintividade singular dos espíritos, mas nem por isso declara impossível a comunicação (embora o solipsismo seja um problema constante) ou desacredita da transformação espiritual induzida por processos como a educação e a conversão religiosa; na verdade, é precisamente porque os espíritos são diferentes que a conversão se faz necessária (os europeus queriam saber se os índios tinham alma para poder modificá-la). A metamorfose corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeu da conversão espiritual20 20 A raridade de exemplos inequívocos do tema da possessão espiritual no complexo xamanístico ameríndio parece derivar da prevalência do tema complementar, a metamorfose corporal. Os clássicos problemas da catequese e conversão dos ameríndios também poderiam receber alguma luz a partir daí; as concepções indígenas de "aculturação" parecem focalizar mais a incorporação e encorporação das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo) que a assimilação espiritual (lingüística, religiosa etc.). Virar Branco é assumir um corpo de Branco; a mente não interessa muito, pois não difere senão no manifestar afecções corporais distintivas. Mais uma vez, recordemos a anedota de Lévi-Strauss. . Do mesmo modo, se o solipsismo é o fantasma que ameaça perenemente nossa cosmologia — traduzindo o medo de não nos reconhecermos em nossos "semelhantes", por eles não o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos espíritos —, a possibilidade da metamorfose exprime o temor oposto, o de não se poder mais diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de se ver o humano que insiste sob o corpo animal que se come. Donde a importância do complexo de proibições ou precauções alimentares associadas à potência espiritual dos animais, a que fiz menção páginas atrás. O fantasma do canibalismo é o equivalente ameríndio do problema do solipsismo: se este deriva da incerteza de que a semelhança natural dos corpos garanta a comunidade real dos espíritos, aquele suspeita que a semelhança dos espíritos possa prevalecer sobre a diferença real dos corpos, e que todo animal que se come permaneça, apesar dos esforços xamanísticos para sua dessubjetivação, humano. O que não impede, naturalmente, que tenhamos entre nós solipsistas mais ou menos radicais, como os relativistas, nem que várias sociedades ameríndias sejam deliberada e mais ou menos literalmente canibais.

A noção de metamorfose está diretamente ligada à doutrina das "roupas" animais, a que já me referi. Como conciliar essa idéia de que o corpo é o sítio da perspectiva diferenciante com o tema da aparência e da essência, sempre evocado para interpretar o animismo e o perspectivismo? Aqui me parece haver um equívoco importante, que é o de tomar a "aparência" corporal como inerte e falsa, a "essência" espiritual como ativa e verdadeira (ver as observações decisivas de Goldman 1975:63). Nada mais distante, penso, do que os índios têm em mente ao falarem dos corpos como "roupas". Trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo. Estamos diante de sociedades que inscrevem na pele significados eficazes, e que utilizam máscaras animais (ou pelo menos conhecem seu princípio) dotadas do poder de transformar metafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no contexto ritual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes de um corpo outro21 21 Peter Gow (inf.pess.) afirma que os Piro concebem o ato de vestir uma roupa como um animar a roupa. A ênfase seria menos, como entre nós, no fato de cobrir o corpo que no gesto de encher a roupa, ativá-la. Em outras palavras, vestir uma roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste. . As roupas animais que os xamãs utilizam para se deslocar pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras de carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as "roupas" que, nos animais, recobrem uma "essência" interna de tipo humano não são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afecções e capacidades que definem cada animal. É verdade que aparências enganam (Rivière 1995) — mas, no caso, raramente. Minha impressão é que as narrativas ameríndias que tematizam as "roupas" animais mostram mais interesse no que essas roupas fazem do que no que escondem22 22 Rivière (1995:194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro que a roupa é menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de onça. Diz o mito: "O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa. Roupa para pegar anta, roupa para pegar queixada [ ] roupa para pegar cutia. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras." Ora, os jaguares não mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferentes, eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adaptadas às suas funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só importam, as garras, instrumento de sua função. . Além disso, entre um ser e sua aparência está o seu corpo, que é mais que esta — e as mesmas narrativas mostram como as aparências são sempre "desmascaradas" por um comportamento corporal inconsistente com elas. Em suma: não há dúvida que os corpos são descartáveis e trocáveis, e que "atrás" deles estão subjetividades formalmente idênticas à humana. Mas essa idéia não é semelhante à nossa oposição entre aparência e essência; ela manifesta apenas que a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na equivalência subjetiva dos espíritos.

Um outro tema clássico da etnologia sul-americana que poderia ser interpretado nesse quadro é o da descontinuidade sociológica entre os vivos e os mortos (Carneiro da Cunha 1978). A distinção fundamental entre os vivos e os mortos passa pelo corpo e não, precisamente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que prevalece como diferenciador sobre a comum "animação" dos vivos e dos mortos. As cosmologias ameríndias dedicam igual ou maior interesse à caracterização do modo como os mortos vêem o mundo que à visão dos animais, e, como no caso destes, comprazem-se em sublinhar as diferenças radicais em relação ao mundo dos vivos. Os mortos, a rigor, não são humanos, estando definitivamente separados de seus corpos. Espírito definido por sua disjunção com um corpo humano, um morto é então atraído logicamente pelos corpos animais; por isso, morrer é se transformar em animal (Pollock 1985:95; Vilaça 1992:247-255; Turner 1995:152), como é se transformar em outras figuras da alteridade corporal, os afins e os inimigos. Dessa forma, se o animismo afirma uma continuidade subjetiva e social entre humanos e animais, seu complemento somático, o perspectivismo, estabelece uma descontinuidade objetiva, igualmente social, entre humanos vivos e humanos mortos. (As religiões fundadas no culto de ancestrais parecem fazer a postulação inversa: a identidade espiritual atravessa a barreira corporal da morte, os vivos e os mortos são semelhantes na medida em que manifestam o mesmo espírito — ancestralidade sobre-humana e possessão espiritual, de um lado, animalização dos mortos e metamorfose corporal, do outro...)

Após ter examinado o componente diferenciante do perspectivismo ameríndio, resta-me atribuir uma "função" cosmológica à unidade transespecífica do espírito. É aqui, penso, que se pode propor uma definição relacional de uma categoria, a de "sobrenatureza", hoje em descrédito, mas cuja pertinência me parece inquestionável23 23 Ver Taylor (1993a:445) e Descola (no prelo). As críticas destes autores à noção de "sobrenatureza" são legítimas, mas sob a condição de se aplicarem igualmente às noções de "natureza" e "cultura", tão ocidentalistas e reificadoras quanto aquela; se é possível dar a estas últimas um significado puramente sinóptico, como quer e faz Descola, não vejo por que não se pode fazer o mesmo com a primeira. Além disso, a releitura pragmático-comunicativa do mundo dos espíritos proposta por Taylor para os Achuar (1993a) equivale a uma definição de "sobrenatureza" do mesmo tipo que as que proponho aqui para "cultura","natureza", e agora para "sobrenatureza". . À parte seu uso muito cômodo para rotular domínios cosmográficos de tipo "hyper-ouranios", ou para definir uma terceira categoria de entidades intencionais — pois decididamente há vários seres nas cosmologias indígenas que não são nem humanos nem animais (refiro-me aos "espíritos") —, essa noção pode servir para designar um contexto relacional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta tanto da intersubjetividade característica do mundo social como das relações "interobjetivas" com os corpos animais.

Seguindo a analogia com a série pronominal (Benveniste 1966a; 1966b), vê-se que, entre o "eu" reflexivo da cultura (gerador do conceito de alma ou espírito) e o "ele" impessoal da natureza (marcador da relação com a alteridade somática), há uma posição faltante, a do "tu", a segunda pessoa, ou o outro tomado como outro sujeito, cujo ponto de vista serve de eco latente ao do "eu". Penso que esse conceito pode auxiliar na determinação do contexto sobrenatural. Contexto anormal no qual o sujeito é capturado por um outro ponto de vista cosmológico dominante, onde ele é o "tu" de uma perspectiva não-humana, a Sobrenatureza é a forma do Outro como Sujeito, implicando a objetivação do eu humano como um "tu" para este Outro. O contexto "sobrenatural" típico no mundo ameríndio é o encontro, na floresta, entre um homem — sempre sozinho — e um ser que, visto primeiramente como um mero animal ou uma pessoa, revela-se como um espírito ou um morto, e fala com o homem (a dinâmica dessa comunicação é muito bem analisada por Taylor 1993a). Esses encontros podem ser letais para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividade não-humana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser da mesma espécie que o "locutor": morto, espírito ou animal. Quem responde a um "tu" dito por um não-humano aceita a condição de ser sua "segunda pessoa", e ao assumir por sua vez a posição de "eu" já o fará como um não-humano. A forma canônica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em intuir subitamente que o outro é "humano", entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o interlocutor, transformando-o em presa, isto é, em animal. Apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder a própria condição de sujeito24 24 Boa parte do trabalho xamanístico, como dissemos, consiste em dessubjetivar os animais, isto é, em transformá-los em puros corpos naturais capazes de serem consumidos sem dano; em contrapartida, o que define os espíritos é precisamente o serem incomestíveis; isto os transforma em comedores por excelência, isto é, em antropófagos. Dessa forma, é comum que os grandes predadores sejam a forma predileta de manifestação dos espíritos, e é compreensível que, para os animais de presa, os humanos sejam vistos como espíritos, que os espíritos e os animais predadores nos vejam como animais de presa, e que os animais tidos por incomestíveis sejam assimilados a espíritos (Viveiros de Castro 1978). As escalas de comestibilidade da Amazônia indígena (Hugh-Jones 1996) deveriam, assim, incluir no seu pólo negativo os espíritos. .

À guisa de conclusão, observo que o perspectivismo ameríndio conhece um lugar, geométrico por assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e exacerbada: o mito, que se reveste então do caráter de discurso absoluto. No mito, cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma (como humana), e entretanto age como se já manifestando sua natureza distintiva e definitiva (de animal, planta ou espírito). De certa forma, todos os personagens que povoam a mitologia são xamãs, o que, aliás, é explicitamente afirmado por algumas culturas amazônicas. Ponto de fuga universal do perspectivismo cosmológico, o mito fala de um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as afecções, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo — meio cujo fim, justamente, a mitologia se propõe a contar.

Notas

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Recebido em 10 de junho de 1996

Aprovado em 24 de junho de 1996

Eduardo Viveiros de Castro é etnólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional/UFRJ. Autor, entre outros trabalhos, de From the Enemy's Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society. E-mail: eviveiros@ax.ibase.org.br

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  • WEISS, Gerald. 1969. The Cosmology of the Campa Indians of Eastern Peru. Tese de Doutoramento, University of Michigan.
  • 1
    O presente trabalho resulta de um diálogo com Tânia Stolze Lima, que escreveu paralela e sincronicamente um artigo sobre o perspectivismo na cosmologia juruna (Lima 1996). Por esse motivo, não incluí no que se segue exemplos ou considerações tomados de sua rica etnografia (Lima 1995). Esperamos poder em breve combinar nossos respectivos estudos sobre o perspectivismo em uma publicação de maior fôlego. Agradeço a Peter Gow, Aparecida Vilaça, Philippe Descola, Michael Houseman e Marcio Goldman pelas sugestões que deram em fases diferentes de elaboração do material que ora apresento.
  • 2
    Atestada entre os Makuna (Århem 1993), os Yagua (Chaumeil 1983:125- 127), os Piro (Gow inf.pess.), os Trio (Rivière 1995) ou os Alto-Xinguanos (Gregor 1977:322; Viveiros de Castro 1977:182). Essa noção é provavelmente pan-americana, tendo um grande rendimento simbólico, por exemplo, na cosmologia kwakiutl (Goldman 1975:62-63, 124-125, 182-186, 227-228).
  • 3
    Ver, para alguns exemplos entre muitos: Weiss (1969:158) — Campa; Baer (1994:102, 119 224) — Matsiguenga; Grenand (1980:42) — Wayãpi; Viveiros de Castro (1992a:68) — Araweté; Osborn (1990:151) — U'wa.
  • 4
    Ver, por exemplo, Saladin d'Anglure (1990) — Inuit; McDonnell (1984) e Nelson (1983) — Koyukon, Kaska; Tanner (1979) e Scott (1989) — Cree; Goldman (1975) — Kwakiutl; Howell (1984) e Karim (1981) para os Chewong e Ma'Betisék da Malásia; para a Sibéria, Hamayon (1990).
  • 5
    As noções de "perspectiva" e "ponto de vista" têm um papel central em textos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicação era ali, principalmente, a dinâmica intra-humana, e seu significado quase sempre analítico e abstrato (Viveiros de Castro 1992a:248-251, 256-260; 1996a). Os estudos de Vilaça e, sobretudo, o de Lima mostraram-me que era possível generalizar em extensão e compreensão essas noções.
  • 6
    "[— O que é um mito?] — Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda" (Lévi-Strauss e Eribon 1988:193, tradução minha).
  • 7
    A noção de que o "eu" (os homens, os índios, minha tribo) que distingue é o termo historicamente estável da distinção entre o "eu" e o "outro" (os animais, os brancos, os outros índios) aparece tanto no caso da diferenciação interespecífica como no da separação intra-específica, como se pode ver nos diferentes mitos ameríndios de origem dos Brancos. Os outros foram o que somos, e não, como entre nós, são o que fomos. E assim se percebe quão pertinente pode ser a noção de "sociedades frias": a história existe sim, mas é algo que só acontece aos outros.
  • 8
    Ver Viveiros de Castro (1978); Crocker (1985); Overing (1985; 1986); Vilaça (1992); Århem (1993); Hugh-Jones (1996), entre muitos outros.
  • 9
    A importância da relação venatório-xamanística com o mundo animal, em sociedades cuja economia é baseada na horticultura (e na pesca mais que na caça), suscita problemas interessantes para a história cultural da Amazônia (Viveiros de Castro 1996b).
  • 10
    Registre-se, entretanto, que nas culturas da Amazônia Ocidental, e particularmente naquelas que fazem largo uso de alucinógenos, a personificação das plantas parece ser pelo menos tão importante quanto a dos animais.
  • 11
    Ou, acrescentaríamos, dos Ojibwa, onde a coexistência dos sistemas
    totem e
    manido (Lévi-Strauss 1962a:25-33), que serviu de matriz para a oposição geral entre totemismo e sacrifício (Lévi-Strauss 1962b:295-302), se deixa interpretar diretamente no quadro da distinção totemismo/animismo. Para uma discussão conjunta dos pares totemismo/sacrifício e
    aroe/
    bope, ver Viveiros de Castro (1991:88, 91, nota 11).
  • 12
    A proposta de Descola vem-se somar a várias manifestações de insatisfação com a ênfase unilateral na metáfora e na lógica totêmico-classificatória que marca a concepção lévi-straussiana do pensamento selvagem. Para ficarmos no âmbito americanista, evoquem-se, por exemplo: a recusa do privilégio da metáfora por Overing (1985), em favor de um literalismo relativista que parece se apoiar na noção de crença; a teoria da sinédoque dialética como anterior e superior à analogia metafórica, proposta por Turner (1991), autor que, como outros especialistas (Seeger 1981; Crocker 1985), tem procurado contestar as interpretações do dualismo natureza/cultura jê-bororo em termos de uma oposição estática, privativa e discreta; ou a retomada, por Viveiros de Castro (1992a), do contraste entre totemismo e sacrifício à luz do conceito deleuziano de devir, que procura dar conta da centralidade dos processos de predação ontológica nas cosmologias tupi, bem como do caráter diretamente social (e não especularmente classificatório) da interação das ordens humana e extra-humana.
  • 13
    Ver Radcliffe-Brown (1952:130-131) que, entre outros argumentos interessantes, distingue os
    processos de personificação das espécies e fenômenos naturais (o que "permite conceber a natureza como se fosse uma sociedade de pessoas, fazendo dela uma ordem social ou moral"), como os que se acham entre os Esquimós ou Andamaneses, dos
    sistemas de classificação das espécies naturais, como os que se acham na Austrália, e que configuram um "sistema de solidariedades sociais" entre homem e natureza — isto evoca obviamente a distinção animismo/totemismo de Descola, bem como o contraste
    manido/
    totem explorado por Lévi-Strauss.
  • 14
    O próprio Lévi-Strauss ilustra essa última atitude, em um esplêndido parágrafo de sua homenagem a Rousseau: "Começou-se por separar o homem da natureza, e por constituí-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua característica mais inquestionável, a saber, que ele é antes de mais nada um ser vivo. A cegueira diante dessa propriedade comum abriu caminho para todos os abusos. Nunca como agora, ao cabo dos quatro últimos séculos de sua história, pôde o homem ocidental se dar conta de como, ao se arrogar o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo à primeira tudo aquilo que negava à segunda, ele abria um ciclo maldito, e que a mesma fronteira, constantemente recuada, servia-lhe para afastar homens de outros homens e para reivindicar, em benefício de minorias cada vez mais restritas, o privilégio de um humanismo que já nasceu corrompido, por ter ido buscar no amor-próprio seu princípio e seu conceito" (Lévi-Strauss 1973b:53, tradução minha).
  • 15
    Uma transformação da recusa de auto-objetivação onomástica acha-se naqueles casos ou momentos em que, quando o coletivo-sujeito se toma como parte de uma pluralidade de coletivos análogos a si, o termo auto-referencial significa "
    os outros", sendo usado primordialmente para identificar os coletivos de que o sujeito se exclui. A alternativa à subjetivação pronominal é uma auto-objetivação igualmente relacional, onde "eu" só pode significar "o outro do outro": ver o
    achuar dos Achuar, ou o
    nawa dos Pano (Taylor 1985:168; Erikson 1990:80-84). A lógica da auto-"etnonímia" ameríndia exigiria um estudo específico. Para outros casos ilustrativos, ver: Vilaça (1992:49-51); Price (1987); Viveiros de Castro (1992a:64-65). Para uma análise iluminadora de um caso norte-americano semelhante aos amazônicos, ver McDonnell (1984:41-43).
  • 16
    Ver o que diz Taylor (1993b:660) sobre o conceito jívaro de
    wakan, "alma": "Essencialmente,
    wakan é autoconsciência [ ] uma representação da reflexividade [ ]
    Wakan é, portanto, comum a muitas entidades, e de forma nenhuma um atributo exclusivamente humano: há tantos
    wakan quanto coisas a que se possam, contextualmente, atribuir reflexividade."
  • 17
    "Tal é o fundamento do perspectivismo. Ele não exprime uma dependência perante um sujeito definido previamente; ao contrário, será sujeito aquele que aceder ao ponto de vista [ ]" (Deleuze 1988:27, tradução minha).
  • 18
    Traduzo a forma inglesa to
    embody e seus derivados, que hoje gozam de uma fenomenal popularidade no jargão antropológico (ver Turner 1994), pelo neologismo "encorporar", visto que nem "encarnar" nem "incorporar" são realmente adequados.
  • 19
    A prova a
    contrario da singularidade do espírito em nossa cosmologia está em que, quando se quer universalizá-lo, não há outro recurso — a sobrenatureza estando hoje fora do jogo — senão o de identificá-lo à estrutura e funcionamento do cérebro. O espírito só pode ser universal (natural) se for corpo.
  • 20
    A raridade de exemplos inequívocos do tema da possessão espiritual no complexo xamanístico ameríndio parece derivar da prevalência do tema complementar, a metamorfose corporal. Os clássicos problemas da catequese e conversão dos ameríndios também poderiam receber alguma luz a partir daí; as concepções indígenas de "aculturação" parecem focalizar mais a incorporação e encorporação das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo) que a assimilação espiritual (lingüística, religiosa etc.). Virar Branco é assumir um corpo de Branco; a mente não interessa muito, pois não difere senão no manifestar afecções corporais distintivas. Mais uma vez, recordemos a anedota de Lévi-Strauss.
  • 21
    Peter Gow (inf.pess.) afirma que os Piro concebem o ato de vestir uma roupa como um
    animar a roupa. A ênfase seria menos, como entre nós, no fato de cobrir o corpo que no gesto de encher a roupa, ativá-la. Em outras palavras, vestir uma roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste.
  • 22
    Rivière (1995:194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro que a roupa é menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de onça. Diz o mito: "O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa. Roupa para pegar anta, roupa para pegar queixada [ ] roupa para pegar cutia. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras." Ora, os jaguares não mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferentes, eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adaptadas às suas funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só importam, as garras, instrumento de sua função.
  • 23
    Ver Taylor (1993a:445) e Descola (no prelo). As críticas destes autores à noção de "sobrenatureza" são legítimas, mas sob a condição de se aplicarem igualmente às noções de "natureza" e "cultura", tão ocidentalistas e reificadoras quanto aquela; se é possível dar a estas últimas um significado puramente sinóptico, como quer e faz Descola, não vejo por que não se pode fazer o mesmo com a primeira. Além disso, a releitura pragmático-comunicativa do mundo dos espíritos proposta por Taylor para os Achuar (1993a) equivale a uma definição de "sobrenatureza" do mesmo tipo que as que proponho aqui para "cultura","natureza", e agora para "sobrenatureza".
  • 24
    Boa parte do trabalho xamanístico, como dissemos, consiste em dessubjetivar os animais, isto é, em transformá-los em puros corpos naturais capazes de serem consumidos sem dano; em contrapartida, o que define os espíritos é precisamente o serem
    incomestíveis; isto os transforma em
    comedores por excelência, isto é, em antropófagos. Dessa forma, é comum que os grandes predadores sejam a forma predileta de manifestação dos espíritos, e é compreensível que, para os animais de presa, os humanos sejam vistos como espíritos, que os espíritos e os animais predadores nos vejam como animais de presa, e que os animais tidos por incomestíveis sejam assimilados a espíritos (Viveiros de Castro 1978). As escalas de comestibilidade da Amazônia indígena (Hugh-Jones 1996) deveriam, assim, incluir no seu pólo negativo os espíritos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Out 1996

    Histórico

    • Recebido
      10 Jun 1996
    • Aceito
      24 Jun 1996
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