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Lévi-Strauss nos 90 voltas ao passado

Resumos

Este artigo responde às críticas formuladas por Christian Delacampagne e Bernard Traimond em "A Polêmica Sartre/Lévi-Strauss Revisitada. Nas Raízes das Ciências Sociais de Hoje", publicado em Les Temps Modernes 596 (novembro-dezembro de 1997). Para fazê-lo, recorda inicialmente o caráter relativo da oposição entre "sociedades frias" e "sociedades quentes". Em seguida, refuta a tese de que Maurice Merleau-Ponty, sob a capa de um elogio, teria dirigido críticas veladas ao autor. Finalmente, reconhecendo o afastamento da antropologia de hoje em face das posições do autor, admite, sem se pronunciar sobre o valor desse movimento, que temas de ar sartriano ressurgem nos antropólogos contemporâneos.


This article replies to the critique formulated by Christian Delacampagne and Bernard Traimond in "The Sartre/ Lévi-Strauss Polemic Revisited: At the Roots of Today's Social Sciences," published in Les Temps Modernes 596 (Nov-Dec 1997). Firstly, the author reminds us of the relative nature of the opposition between "cold societies" and "hot societies". This is followed by a challenge to the thesis that Maurice Merleau-Ponty made a veiled attack on his work under the guise of a tribute. Finally, the author recognizes the distance between current anthropology and his own positions and - without pronouncing on the value of this development - admits to the resurgence of Sartrean-inspired themes among contemporary anthropologists.


Lévi-Strauss nos 90

Em 1998, estão sendo comemorados os 90 anos de Claude Lévi-Strauss, e Mana não poderia deixar de registrar de alguma forma a data. Optamos por uma entrevista inédita, e Eduardo Viveiros de Castro, que se encontrava na Europa, escreveu ao autor falando de nosso interesse. Lévi-Strauss respondeu pronta e cortesmente, dizendo que, na sua idade, temia e evitava as entrevistas, mas teria prazer em conversar, sem que disso devesse resultar uma entrevista. Quando do encontro, entretanto, após leve insistência, concordou que a conversa fosse gravada e publicada. Pediu apenas que não lhe fosse mandada ¾ "surtout pas ça!..." ¾ a transcrição.

A conversa foi gravada no dia 15 de maio, no Collège de France. Ao receber o entrevistador em seu gabinete, no Laboratoire d'Anthropologie Sociale, Lévi-Strauss tinha em mãos a resposta que havia pouco publicara em Les Temps Modernes ao artigo de Christian Delacampagne e Bernard Traimond, "A Polêmica Sartre/Lévi-Strauss Revisitada. Nas Raízes das Ciências Sociais de Hoje"* * N. T. - Les Temps Modernes, 596, novembro/dezembro de 1997. . Desde o início da entrevista referiu-se a essa resposta, que, assim, constitui seu acompanhamento obrigatório.

Em seu artigo, Delacampagne e Traimond pretendem responder às críticas dirigidas por Lévi-Strauss a Sartre em 1962, no último capítulo de O Pensamento Selvagem. Para isso:

1. Afirmam que a defesa sartriana da superioridade da razão dialética sobre a razão analítica deriva da necessidade de "acompanhar o movimento graças ao qual as ciências sociais acabaram por atingir sua autonomia metodológica".

2. A respeito da "oposição entre sociedades históricas e sociedades sem história", sustentam que foi "o ponto de vista de Sartre que triunfou", ou seja, que a própria etnologia contemporânea recusaria essa "grande partilha", afirmando que toda realidade social é histórica.

3. Negam que Sartre tenha sustentado uma oposição hierárquica entre o "pensamento selvagem" e o "pensamento racional".

4. Lembram o fato de que, para Sartre, o pensamento científico deve estar em continuidade com a experiência vivida.

5. Tentam demonstrar que o artigo de Maurice Merleau-Ponty, "De Mauss a Claude Lévi-Strauss"** ** N. T. - Eloge da la Philosophie. Paris: Gallimard, 1960. , ao contrário das aparências, consistiria em uma crítica velada aos principais pressupostos do pensamento levistraussiano.

6. Concluem que a antropologia contemporânea estaria, sob todos os aspectos, muito mais próxima da filosofia sartriana que do estruturalismo.

Lévi-Strauss, acreditando que o artigo "desfigura a tal ponto o que eu disse e escrevi durante cinqüenta anos", diz ter-se sentido "obrigado a pedir a hospitalidade" de Les Temps Modernes a fim de "colocar as coisas no lugar".

Mana publica agora a tradução inédita da resposta-esclarecimento de Lévi-Strauss e a entrevista por ele concedida a Eduardo Viveiros de Castro. Trata-se, pensamos, não de uma homenagem ¾ o que seria pretensioso ¾, mas de oferecer aos nossos leitores um "dom" de um dos maiores pensadores do século.

Lévi-Strauss nos 90 voltas ao passado* * Publicado originalmente em Les Temps Modernes, 598, março/abril de 1998, com o título "Retours en Arrière".

Claude Lévi-Strauss

O artigo de Christian Delacampagne e Bernard Traimond, "A Polêmica Sartre/Lévi-Strauss Revisitada", publicado em Les Temps Modernes, de novembro/dezembro de 1997, desfigura a tal ponto o que eu disse e escrevi durante cinqüenta anos, que me sinto obrigado a pedir a hospitalidade da revista para colocar as coisas no lugar.

A confusão mais grave, a meu ver, diz respeito à noção de povos sem história. Segundo os autores do artigo, as críticas dirigidas atualmente contra tal noção visariam a mim em primeiro lugar.

Meu opúsculo Raça e História foi, no entanto, amplamente consagrado a demonstrar que a pretensa história estacionária (repetitiva, dirá Sartre), sina das sociedades que os antropólogos estudam, é uma noção ilusória: efeito da perspectiva etnocêntrica a partir da qual nós nos colocamos para avaliar culturas muito diferentes da nossa, cuja linha de desenvolvimento nada significa para nós (Lévi-Strauss 1973:395-401).

No mesmo ano, em um artigo intitulado "A Noção de Arcaísmo em Etnologia", recusei o emprego do termo "primitivo" para designar povos aos quais se concederia, dizia eu, "o exorbitante privilégio de ter durado e de não ter história". Acrescentei: "Um povo primitivo não é um povo atrasado ou retardado [...] tampouco um povo sem história, embora o desenrolar desta nos escape"; e mais adiante: "O antropólogo, dedicado ao estudo de sociedades vivas e atuais, não deve esquecer que para serem assim, é preciso que elas tenham vivido, durado e portanto mudado (Lévi-Strauss 1958:114, 115, 126, ênfases no original).

Esses dois textos datam de 1952. Pode-se acreditar que eles não tenham chamado a atenção de Sartre, já que, em Critique de la Raison Dialectique, publicado em 1960, ele considera como dado que "a etnografia nos fez conhecer sociedades sem história"; que as sociedades, que ele chama de atrasadas, são "classificadas acertadamente pelos etnógrafos como sociedades sem história"; e ele evoca o "difícil problema dos povos sem história" (difícil porque, tendo posto a raridade na origem da história, é embaraçoso para ele que povos vítimas da raridade, mais do que outros, sejam, no entanto, acredita ele, sem história; retornarei a isto) (Sartre 1960:160, 203, 216, 217)1 1 Todas as referências aludem à 1 a edição. .

Imputar a mim a mesma concepção errônea implica um equívoco sobre o sentido e o alcance da distinção que propus fazer entre "sociedades frias" e "sociedades quentes". Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza, não as coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes subjetivas que as sociedades adotam diante da história, às maneiras variáveis com que elas a concebem. Algumas acalentam o sonho de permanecer tais como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. É claro que elas se enganam: essas sociedades não escapam mais da história do que aquelas ¾ como a nossa ¾ a quem não repugna se saber históricas, encontrando na idéia que têm da história o motor de seu desenvolvimento. Nenhuma sociedade pode, portanto, ser dita absolutamente "fria" ou "quente". São noções teóricas, e as sociedades concretas deslocam-se no correr do tempo, em um sentido ou em outro, sobre um eixo cujos pólos nenhuma delas jamais ocupará.

Depois de ter salientado que sociedades outrora frias se aquecem quando a história as traga e as arrasta (como se observa nas duas Américas, onde os povos indígenas, assumindo seu passado, descobrem que têm interesses comuns e se agrupam em nações para defendê-los), eu me perguntei se, nesse fim de século, nossas próprias sociedades não mostravam sinais perceptíveis de esfriamento:

"Às nossas sociedades, responsáveis ou vítimas de tragédias horríveis, aterrorizadas pelos efeitos da explosão demográfica, o desemprego, as guerras e outros males, um apego renascente ao patrimônio, o contato que se esforçam para retomar com suas raízes [...] dariam a ilusão, como a outras civilizações ameaçadas, que elas podem ¾ de maneira totalmente simbólica, é óbvio ¾ contrariar o curso da história e suspender o tempo" (Lévi-Strauss 1983a:9-10)2 2 Um historiador do parentesco na França antiga emprega, assim, apropriadamente, os conceitos de sociedade fria e sociedade quente, "inspirando-nos evidentemente", ele acrescenta, "na distinção teórica de Lévi-Strauss", para opor dois modos de transmissão de bens, ilustrados, um sobretudo pelo campesinato que "busca perpetuar um equilíbrio ao longo de gerações sucessivas"; o outro, pela nobreza que favorece "o processo de concentração fundiária de modo a impulsionar a mudança de relações de força entre linhagens". Ele mostra também como essas políticas sucessórias evoluíram no tempo (Nassiet 1977:146-148, 127-190). .

Quando, portanto, em uma página da Critique, Sartre (1960:203) formula a hipótese de que a rejeição da história poderia ter sido decidida por sociedades que formaram o projeto prático de não se desenvolver e de se manter em um estado de equilíbrio, ele está bem mais próximo de minha posição do que suspeitam os autores do artigo. Com, todavia, três restrições cuja importância não é pequena.

1. Essa hipótese implica que as sociedades em questão saíram efetivamente da história, que elas pararam de uma vez por todas, reduzidas, doravante, a uma existência repetitiva até que a nossa própria história venha tirá-las dali. Para mim, ao contrário, apesar dos esforços conscientes ou inconscientes dessas sociedades para enganar e evitar a história, esta não se interrompe, continua a afetá-las. Simplesmente, essa história não é a nossa e nós não a percebemos.

2. Devido à sua teoria da raridade, Sartre representa as sociedades que os antropólogos estudam como "sociedades atrasadas que sofrem mais do que outras com a penúria ou com a supressão sazonal das fontes alimentares, [onde o homem] vive para trabalhar da manhã à noite [...] sobre uma terra ingrata e ameaçadora" (Sartre 1960:203). Visão fantasmagórica a ser relegada, é claro, ao celeiro das banalidades românticas, sobretudo desde que Sahlins (que os autores do artigo não temem invocar) demonstrou que os caçadores e coletores ilustram ainda hoje uma idade de abundância em que algumas horas de trabalho, não necessariamente diário, bastam para suprir as necessidades de uma família.

3. O que Sartre concebe como uma recusa da história, longe de transformar o homem em "ser mirrado e disforme", deveria, antes, nos incitar a colocar, depois do Rousseau, do Discurso sobre a Origem da Desigualdade, a questão de saber se tal estado não era "melhor para o homem", já que "o exemplo dos selvagens, quase todos encontrados neste ponto, parece confirmar que o gênero humano fora feito para nele permanecer para sempre." Não serei categórico, mas se perguntarmos a que tipo de humanidade a palavra disformidade se aplica com mais justeza, não seria a de hoje, doente por seu gigantismo e por seu apetite destruidor?

Passarei mais rapidamente pela acusação de materialismo transcendental, pois concordarão comigo que os devaneios filosóficos aos quais cedi de tempos em tempos têm um lugar bem modesto em meus escritos.

Segundo os autores do artigo, a distinção entre razão dialética e razão analítica, retomada de seus antecessores por Sartre, tem, na Crítica, uma função estratégica: permitir que as ciências sociais atinjam, enfim, sua autonomia metodológica.

Eu acreditava que a coisa estava feita desde Auguste Comte e que Durkheim e sua escola, Boas e a sua, tivessem aperfeiçoado sua demonstração.

De minha parte, escrevi As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), principalmente com o objetivo de separar a interpretação dos fatos sociais de todo naturalismo. Mantive essa direção contra a sociobiologia (Lévi-Strauss 1983b:cap. II). Mais recentemente, em um texto publicado em tradução italiana, me opus a teorias em moda nos Estados Unidos e que tiveram um certo eco na França, colocando diretamente em relação a sexualidade feminina e a origem da sociedade (Lévi-Strauss 1995). Ninguém pode acusar-me de complacência para com os inventores de pretensos atalhos entre as ciências humanas e as ciências naturais.

Todavia, a diferença entre elas, de direito para Sartre, é para mim apenas de fato. A distância que as separa é tão grande que um método sadio incita a julgá-la intransponível (provisória ou definitivamente, mas, então, por razões diferentes daquelas salientadas por Sartre).

Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que se tivermos a menor crença em nossa capacidade de conhecer alguma coisa do mundo (se não, não se pode dizer mais nada), sabemos que o homem faz parte da vida, a vida da natureza e a natureza do cosmos. Daí minha asserção de que as ciências do homem têm por objetivo último "reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas", cuja "feição voluntariamente brutal" (Lévi-Strauss 1962: 327) me apressei em salientar. Para prevenir a crítica de querer explicar o superior pelo inferior, acrescentei que se tal unificação pudesse se realizar, ela revelaria, à medida do seu progresso, que alguma coisa que se parece com o pensamento já existe na vida, e que alguma coisa que se parece com a vida já existe na matéria inorgânica. Não acredito, aliás, que se chegue a isso daqui a séculos ou mesmo milênios, pois isso suporia que, sem contradição, fosse possível a um sujeito pensante e vivente apreender o pensamento ou a vida enquanto objeto.

Não obstante, são os avanços nessa direção, devidos à ciência, que, mesmo se ínfimos e sem esperança de serem concluídos, podem fornecer o alimento mais propício à reflexão. Sobre esta, um monismo de princípio exerce uma influência reguladora. Ele a põe ao abrigo daquilo que, retomando por minha conta uma fórmula de Sartre, eu chamaria "um dualismo que corre o risco de conduzir a algum espiritualismo disfarçado" (Sartre 1960:131).

Procurando fazer com que uma caricatura passasse por meu retrato, os autores do artigo expõem-se a um risco: a comparação com o retrato atentamente pintado por Merleau-Ponty. Foi-lhes preciso, portanto, sustentar que os elogios de Merleau-Ponty dissimulavam críticas. É possível acreditar nisso?

O artigo "De Mauss a Claude Lévi-Strauss", publicado pela primeira vez na Nouvelle Revue Française, no 82, outubro de 1959 (Elogio da Filosofia é de 1953), republicado em 1960, em Signes, é a cópia fiel do "Memorial para a criação de uma cátedra de Antropologia Social" lido por Merleau-Ponty diante da Assembléia dos professores do Collège de France, no dia 30 de novembro de 19583 3 Ele suprimiu seis linhas do início e acrescentou, no fim, duas páginas, resumindo a seção "Projeto de Ensino" do memorial que eu havia redigido, conforme o costume, ao me lançar candidato. Enfim, e de acordo com uma regra não escrita, ele não me nomeava, a não ser como "o estudioso em quem eu penso". . Se ele tivesse críticas a fazer ¾ e, ainda mais, reveladoras de "divergências fundamentais" ¾, pode-se estar certo de que não teria escolhido uma ocasião em que utilizava de todo o seu crédito para convencer uma opinião que permanecia em parte hostil.

De fato, e contrariamente ao que os autores do artigo imaginam, a exposição de Merleau-Ponty, fiel às leis do gênero, é uma montagem: ele corta, reemprega, resume, parafraseia meus livros e artigos com tanta preocupação de exatidão que, para cada frase, cada linha às vezes, posso citar a passagem à qual ele se refere. Eis alguns exemplos, escolhidos dentre as supostas "críticas".

Onde Merleau-Ponty me elogia por não separar a estrutura do vivido, por não substituir o real pelo modelo, é um atrevimento dizer que, na verdade, ele me critica! Tanto assim que, citando Goldstein (o que não poderia desagradá-lo), eu mesmo afirmara que "existe uma íntima correlação entre a preocupação com o detalhe concreto, própria à descrição etnográfica, e a validade e a generalidade que reivindicamos para o modelo construído segundo ela" (Lévi-Strauss 1958:307-308).

Tampouco falta audácia aos autores do artigo quando, unicamente pelo fato de, um dia, Alexandre Koyré ter-me reunido com Roman Jakobson, inferem que devo ao primeiro "uma parte de minhas referências epistemológicas". Ignoro o que querem dizer com isso, mas lembrando que "o conhecimento é um vaivém entre experiência e conceito", Merleau-Ponty não expressava um desacordo entre nós, muito pelo contrário: se ele menciona Galileu, é em alusão a um texto onde denominei de "método galileano" o que a antropologia deve seguir para determinar as leis das variações concomitantes, "em lugar de se limitar, à maneira aristotélica, às simples correlações indutivas". Eu o precisava, noutra parte, ao escrever: "A contradição [que se poderia ver] entre a observação etnográfica, sempre concreta e individualizada, e as pesquisas estruturais, às quais se imputa, freqüentemente, um caráter abstrato e formal [...], se dissipa assim que se compreende que esses caracteres antitéticos [...] correspondem a duas etapas da pesquisa" (Lévi-Strauss 1958:332).

Isso quanto à relação entre indução e dedução. Mas como também diz Merleau-Ponty, "a verdade da sociologia generalizada não tira nada daquela da microssociologia". O movimento de vaivém que ele evoca, depois de ter afastado o vivido, deve logo trazê-lo de volta. Insisti nisso várias vezes: "A única garantia [...] que um fato total corresponda à realidade [...] é que ele seja apreensível em uma experiência concreta [...]. Nunca podemos estar certos de ter atingido o sentido e a função de uma instituição se não formos capazes de reviver sua incidência sobre uma consciência individual" (Lévi-Strauss 1950:XXVI). E para concluir sobre a microssociologia: "O antropólogo utiliza um 'macrotempo' e um 'microtempo'; um 'macroespaço' e um 'microespaço'" (Lévi-Strauss 1958:319).

Ao escrever que "a antropologia não é uma especialidade definida por um objeto particular, as sociedades 'primitivas'", e sim "uma maneira de pensar, a que se impõe quando o objeto é 'outro' e exige que nós mesmos nos transformemos", Merleau-Ponty (1960:150) não opõe, como se gostaria de fazer acreditar, sua própria concepção à minha: ele se torna, simplesmente, meu intérprete. As pesquisas antropológicas, eu mesmo escrevera, "consistem em um conjunto de procedimentos de investigação tornados menos necessários pela condição própria a certas sociedades, do que pela condição particular na qual nos encontramos diante de sociedades sobre as quais não pesa nenhuma fatalidade especial. Nesse sentido, a antropologia poderia ser definida como uma técnica de exílio" (Lévi-Strauss 1958:132, ênfases no original).

E, dizia eu, é preciso ir ainda mais longe, pois "não se trata apenas de se elevar acima dos valores próprios à sociedade ou ao grupo do observador, mas sim de seus métodos de pensamento. O antropólogo não deve, portanto, apenas calar seus sentimentos, ele modela novas categorias mentais" (Lévi-Strauss 1958:398, ênfases no original). Em relação às outras ciências sociais, eu mostrava que a originalidade da antropologia não está em um objeto particular. Ela consiste em se colocar em um nível onde mesmo os fenômenos mais estranhos "conservam uma significação humana"; e eu me prevalecia ¾ o que não me acontece com freqüência ¾ da caução de Sartre, para quem "a sociologia dos primitivos [...] estuda [...] verdadeiros conjuntos significantes" (Lévi-Strauss 1958:398-399).

Pode-se imaginar um único instante em que Merleau-Ponty pensou estar me ensinando que as sociedades exóticas não são objeto exclusivo da pesquisa antropológica, e que podemos nos tornar "os antropólogos de nossa própria sociedade"? Ele tinha à sua frente meu Memorial (1958a), onde lia: "Sempre aquém e além do humanismo tradicional, a antropologia consegue, sem querer, dotá-lo de instrumentos de conhecimento que a experiência prova ser possível aplicar com sucesso ao estudo de todas as sociedades, inclusive à nossa" (Lévi-Strauss 1958a:18).

Ele sabia também (e lembrava implicitamente) que Lucien Febvre, aos olhos de quem eu não era um inimigo da história, me confiara alguns anos antes a direção do primeiro estudo etnográfico de um vilarejo francês, e que resultaria em uma obra publicada sob meus cuidados, recentemente reeditada, e tornada um clássico (Bernot e Blanchard 1953)4 4 Ver, também, o estudo de espírito menos etnográfico de Clément e Xydias (1955), que dirigi na mesma época e nas mesmas condições. .

Quando Merleau-Ponty escreve que se trata, para a antropologia, de construir um "sistema de referência geral onde possa ter lugar o ponto de vista do indígena, o ponto de vista do civilizado e os erros de um sobre o outro [...], experiência ampliada que se torna acessível a homens de outro país e de outro tempo", longe de me criticar, ele parafraseia meus textos e chega até a tomar emprestadas minhas palavras5 5 "Ampliar uma experiência [...] que se torna acessível [...] a homens de outro país e de outro tempo" (Lévi-Strauss 1958:23). .

Eu disse e repeti isso servindo-me dos mesmos ou de outros termos: "Formular um sistema aceitável tanto para os indígenas mais longínquos quanto para seus próprios concidadãos e contemporâneos" (Lévi-Strauss 1958:396-397). Ou ainda: "Para compreender um fato social, é preciso apreendê-lo totalmente, ou seja, de fora, como uma coisa [...] da qual, entretanto, faz parte a apreensão subjetiva [...] que dele faríamos se, inelutavelmente homens, vivêssemos o fato como indígenas, em lugar de observá-lo como antropólogos" (Lévi-Strauss 1950:XXVIII). Eu poderia multiplicar os exemplos.

Deverei lembrar, enfim, àqueles que suspeitam que ignoro que "a experiência histórica pode ser, como a experiência física, descrita de maneiras diferentes" (Delacampagne e Traimond 1997:24), que a reflexão "relativista" de Bohr sobre a semelhança que a descrição dos fenômenos nas ciências físicas e humanas oferece, citada por Merleau-Ponty, já o havia sido por mim, em dois artigos publicados em 1953 e 1954, incluídos em Antropologia Estrutural, de onde ele só precisava retomá-la? Mais tarde, em O Pensamento Selvagem (mas já em um artigo de 1949) eu me estendi sobre essa relatividade da consciência histórica. Foi a segunda vez ¾ contra Sartre, será que esqueceram? ¾ em que eu reconhecia os direitos dessa relatividade. Quase sem paradoxo, ela podia nos persuadir, dizia eu, que "a Revolução Francesa, tal como dela se fala, não existiu" (Lévi-Strauss 1958:23; 1962:342).

Delacampagne e Traimond tiveram razão de lembrar que, como Merleau-Ponty, eu tenho uma dívida para com a Gestaltpsychologie. Isso devia nos aproximar. Merleau-Ponty tirou muitas lições da obra de Kurt Goldstein, que eu conheci em Nova York durante a guerra, e esse encontro me marcou. Em compensação, uma nota reveladora da Crítica trai o incômodo de Sartre diante "daqueles que, como Goldstein, tentam (com razão ou sem ela) encarar os seres organizados como totalidades." Pois isso é o mesmo, prossegue ele, que "tentar mostrar" que a vida é dialeticamente irredutível à matéria inorgânica "que, no entanto, a engendrou" (Sartre 1960:130, nota 1). Deixando a ambição fenomenológica de lado, Merleau-Ponty e eu estávamos, em alguns aspectos, mais próximos um do outro do que ele e Sartre.

Após retificar tantas inexatidões, sinto-me mais à vontade para conceder aos autores do artigo o ponto que eles fizeram um esforço bem inútil para demonstrar. Sim, temas de ar sartriano ressurgem nos antropólogos contemporâneos. Isso pode ser explicado, em primeiro lugar, como a repercussão sobre o plano local de um fenômeno muito difundido na vida intelectual: o forte retorno do que se convencionou chamar de filosofia do sujeito. Considerando mais especialmente a antropologia, esse retorno (que não deve ser exagerado) me aparece como efeito da desordem que atinge alguns antropólogos quando sentem que seu objeto empírico se furta.

Há uns dez anos, em visita a uma grande universidade americana, onde, em meados do presente século, ainda estavam ativos alguns dos mais célebres antropólogos de nosso tempo, eu estranhava que seus sucessores fossem tão pouco atentos em manter viva essa tradição. "Mas, me responderam, os índios não querem saber mais de nós." E é um fato que os povos indígenas são, doravante, parte interessada em uma história tornada comum e que questiona a própria noção de alteridade.

Pressentindo-se ociosos, os antropólogos vão, então, bater em outras portas. Eles procuram com o que se ocupar junto à filosofia, à psicanálise ou à literatura, correndo o risco de deixar sua disciplina se perder em um magma que, na falta de encontrar para ela uma definição positiva, é denominada ¾ no modo apofático, diriam os teólogos ¾ pós-estruturalismo ou pós-modernismo.

É nos departamentos de língua e literatura inglesas que proliferam, nos Estados Unidos, os cultural studies aos quais Renato Rosaldo, que Delacampagne e Traimond (1997:28-29) elevam às nuvens, convida os antropólogos a se abrirem. Ele situa seus estudos sob a égide, não de Sartre, que ele não menciona, mas de Foucault e Gramsci; e os descreve (traduzo palavra por palavra essa prosa) como "uma reconceituação tornada necessária pela emergência de conceitos analíticos tais como gênero, raça e sexualidade, que têm sua origem nos movimentos sociais das feministas e seus aliados, grupos racializados, historicamente subordinados e seus aliados, gays, lésbicas e seus aliados" (Rosaldo 1994:525). Eis o destino que, do outro lado do Atlântico, alguns prometem à antropologia, e cujas versões edulcoradas já são oferecidas por aqui.

Não convidarei o leitor a se perguntar se se deve ver nisso um progresso ou um recuo; limitar-me-ei a reconhecer que esta é a situação. Para constatá-la, descrevê-la, apresentá-la de maneira favorável, se quisessem, nada obrigava os autores do artigo a mascarar as idéias e os fatos.

Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro

Revisão técnica: Marcio Goldman e Silvia Nogueira

Notas

Resumo

Este artigo responde às críticas formuladas por Christian Delacampagne e Bernard Traimond em "A Polêmica Sartre/Lévi-Strauss Revisitada. Nas Raízes das Ciências Sociais de Hoje", publicado em Les Temps Modernes 596 (novembro-dezembro de 1997). Para fazê-lo, recorda inicialmente o caráter relativo da oposição entre "sociedades frias" e "sociedades quentes". Em seguida, refuta a tese de que Maurice Merleau-Ponty, sob a capa de um elogio, teria dirigido críticas veladas ao autor. Finalmente, reconhecendo o afastamento da antropologia de hoje em face das posições do autor, admite, sem se pronunciar sobre o valor desse movimento, que temas de ar sartriano ressurgem nos antropólogos contemporâneos.

Abstract

This article replies to the critique formulated by Christian Delacampagne and Bernard Traimond in "The Sartre/ Lévi-Strauss Polemic Revisited: At the Roots of Today's Social Sciences," published in Les Temps Modernes 596 (Nov-Dec 1997). Firstly, the author reminds us of the relative nature of the opposition between "cold societies" and "hot societies". This is followed by a challenge to the thesis that Maurice Merleau-Ponty made a veiled attack on his work under the guise of a tribute. Finally, the author recognizes the distance between current anthropology and his own positions and - without pronouncing on the value of this development - admits to the resurgence of Sartrean-inspired themes among contemporary anthropologists.

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    N. T. -
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  • *
    Publicado originalmente em
    Les Temps Modernes, 598, março/abril de 1998, com o título "Retours en Arrière".
  • 1
    Todas as referências aludem à 1
    a edição.
  • 2
    Um historiador do parentesco na França antiga emprega, assim, apropriadamente, os conceitos de sociedade fria e sociedade quente, "inspirando-nos evidentemente", ele acrescenta, "na distinção teórica de Lévi-Strauss", para opor dois modos de transmissão de bens, ilustrados, um sobretudo pelo campesinato que "busca perpetuar um equilíbrio ao longo de gerações sucessivas"; o outro, pela nobreza que favorece "o processo de concentração fundiária de modo a impulsionar a mudança de relações de força entre linhagens". Ele mostra também como essas políticas sucessórias evoluíram no tempo (Nassiet 1977:146-148, 127-190).
  • 3
    Ele suprimiu seis linhas do início e acrescentou, no fim, duas páginas, resumindo a seção "Projeto de Ensino" do memorial que eu havia redigido, conforme o costume, ao me lançar candidato. Enfim, e de acordo com uma regra não escrita, ele não me nomeava, a não ser como "o estudioso em quem eu penso".
  • 4
    Ver, também, o estudo de espírito menos etnográfico de Clément e Xydias (1955), que dirigi na mesma época e nas mesmas condições.
  • 5
    "Ampliar uma experiência [...] que se torna acessível [...] a homens de outro país e de outro tempo" (Lévi-Strauss 1958:23).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      Out 1998
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