Resumo
Introdução:
as formas contemporâneas de trabalho escravo trazem impactos diferenciados à saúde desses trabalhadores, necessitando haver desenvolvimento de práticas de cuidado emancipatório.
Objetivo:
analisar as dimensões teórico-práticas do processo saúde-doença-cuidado e da emancipação dos(as) trabalhadores(as) em cenário de escravização.
Métodos:
trata-se de ensaio que problematiza aspectos teórico-conceituais das relações saúde-trabalho-escravidão, destacando a relevância da ampliação da noção de trabalhador para além das relações de assalariamento.
Resultados:
o artigo apresenta revisão crítica das experiências brasileiras de apoio à emancipação de trabalhador(a)s em situação de escravidão e leitura crítica do “Fluxo nacional de atendimento às vítimas do trabalho escravo”, ressaltando o desafio premente de desenvolver novos caminhos de cuidado em saúde e o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde do trabalhador, especialmente para os momentos pós-resgate de trabalhadores, de modo a superar o risco de reescravização e reduzir vulnerabilidades sociais.
Conclusão:
o processo social de luta contínua para ampliar e fortalecer as estratégias emancipatórias requer o protagonismo e organização de trabalhadores, conectando as lutas sindicais, sociais, de gênero e raça como lutas por liberdade e dignidade. Lutas por saúde que promovam a construção de territórios livres de trabalho escravo, contendo conjunto de ações para assegurar condições básicas de vida digna e exercício da liberdade.
Palavras-chave:
escravização; saúde do trabalhador; atenção à saúde
Abstract
Introduction:
contemporary forms of slave labour have different impacts on occupational health, requiring new and emancipatory care practices.
Objective:
to analyze the theoretical and practical dimensions of the health-disease-care process and workers’ emancipation in a context of enslavement.
Methods:
this essay problematizes theoretical and conceptual aspects of the health-work-slavery relationship, emphasizing the importance of broadening the concept of worker beyond wage-earning relations.
Results:
the article presents a critical review of Brazilian experiences in supporting the emancipation of enslaved workers and a critical reading of the ‘National Flow of Assistance to Victims of Slave Labor,’ highlighting the pressing challenge of developing new health care routes and the role of the Brazilian Unified Health System (SUS) and of the workers’ health, especially for post-rescue moments, to overcome the risk of re-enslavement and reduce social vulnerabilities.
Conclusion:
the continuous struggle to expand and strengthen emancipatory strategies requires the leadership and organisation of workers, connecting unions, social, gender and racial struggles as struggles for freedom and dignity. Fights for health that promote the construction of territories free from slave labor, containing a set of actions to ensure basic conditions for a dignified life and the exercise of freedom.
Keywords:
enslavement; occupational health; healthcare
Introdução
O desenvolvimento de estratégias de atenção integral à saúde de trabalhadores(as) (ST) submetidos(as) ao trabalho escravo contemporâneo (TEC) é um dos grandes desafios do campo da ST na atual conjuntura. As transformações do mundo do trabalho, a retirada de direitos, o aumento da pobreza e da desigualdade social têm ampliado a exploração e a imposição de jornadas exaustivas, condições degradantes, mecanismos de servidão e coerção em diferentes formas de escravização11. Gomes AC, Guimarães Neto RB. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: FGV; 2018.), (22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47..
Diante desse cenário, a produção teórico-prática relativa às dimensões do processo saúde-doença-cuidado e da emancipação de trabalhadores(as) vulneráveis e resgatados da escravização - esta última entendida como um processo de transformação da dominação e das condições de possibilidade das violências e sujeições para prover maior grau de autonomia, participação política, integração social e reconhecimento de direitos dessa população trabalhadora22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47.), (33. Melo R. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. Cad CRH. 2011;24(62):249-62. - ainda está aquém da demanda específica dessa realidade44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cien Saude Coletiva. 2016;21(12):3927-36. Se faz necessário fortalecer, aprofundar e disseminar experiências de análise-intervenção que visem superar a desatenção histórica a esses grupos sociais e fortalecer a luta pela erradicação do trabalho escravo contemporâneo44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cien Saude Coletiva. 2016;21(12):3927-36.
Nessa direção, para subsidiar a ampliação de estratégias brasileiras, este artigo analisa dimensões teórico-práticas do processo saúde-doença-cuidado e da emancipação desses trabalhadores(as) no cenário nacional. Trata-se de um ensaio teórico que traz à tona aspectos teórico-conceituais das relações saúde-trabalho-escravidão, chamando atenção para a importância de um alargamento da noção de trabalhador, além de apresentar uma breve revisão das experiências de apoio à sua emancipação e uma leitura crítica do recém lançado “Fluxo de atendimento às vítimas do trabalho escravo” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64., ressaltando o desafio premente de desenvolver novos caminhos de cuidado, especialmente para os momentos pós-resgate de trabalhadores, de modo a superar o risco de reescravização e reduzir vulnerabilidades sociais.
Historicidade e diversidade do trabalho escravo
Desde a colonização do Brasil até a atualidade, as relações sociais e as riquezas geradas em todos os setores e ciclos econômicos da história nacional foram marcadas por algum tipo de escravização, decorrentes dos níveis de exploração na divisão internacional do trabalho nas diferentes fases do capitalismo, em diversas cadeias produtivas globais77. Figueira RR. Séculos de escravidão e tráfico humano legais e ilegais. In: Paixão C, Cavalcanti TM, organizadores. Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr. 2017, p. 75-94.), (88. Leão LHC, Vasconcellos LCF. Nas trilhas das cadeias produtivas: reflexões sobre uma política integradora de vigilância em saúde, trabalho e ambiente. Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):107-21..
Essas explorações atravessam tanto o período da escravidão legal quanto o pós-abolicionismo, e abrangem a exploração de indígenas, a expropriação de africanos(as) e a escravização por dívidas nos ciclos da borracha - no período da expansão neocolonialista para o centro-oeste brasileiro nas frentes agropecuárias e mineração. Elas remontam também ao uso de imigrantes empobrecidos e de mulheres em serviços domésticos e/ou sexuais44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (77. Figueira RR. Séculos de escravidão e tráfico humano legais e ilegais. In: Paixão C, Cavalcanti TM, organizadores. Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr. 2017, p. 75-94.), (88. Leão LHC, Vasconcellos LCF. Nas trilhas das cadeias produtivas: reflexões sobre uma política integradora de vigilância em saúde, trabalho e ambiente. Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):107-21. e a subalternização/exclusão de populações pobres, negras, remanescentes de quilombos, entre outros.
Ademais, o processo de abolição da escravatura no Brasil se deu em um cenário de ausências de reparações jurídicas, econômicas e sociais que contribuíssem para uma real emancipação das populações outrora escravizadas99. Gomes F, Schwarcz LM. Apresentação. In: Dicionário de Escravidão e Liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das letras. 2018. p. 17-48.. Essa realidade histórica, calcada no patriarcalismo, na ideologia senhoril-colonial originada no mercantilismo e na monarquia europeia com posterior associação entre liberalismo econômico e escravidão1010. Mercadante P. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1980., marcou profundamente as relações sociais de produção no Brasil, que seguem visivelmente assentadas em desigualdades sociais, hierarquias político-econômicas elitistas, no latifúndio e no racismo estrutural44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (77. Figueira RR. Séculos de escravidão e tráfico humano legais e ilegais. In: Paixão C, Cavalcanti TM, organizadores. Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr. 2017, p. 75-94..
Seria equivocado afirmar que o trabalho escravo colonial fora superado por uma transição linear para o trabalho livre, porque mesmo no Brasil pós-abolicionista diferentes relações de trabalho se assemelhavam às práticas escravocratas11. Gomes AC, Guimarães Neto RB. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: FGV; 2018.), (1111. Mattos H. Prefácio. In: Cooper F, Scott R, Jarvis H. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2005. p. 13-38.. Vinte e oito anos após a abolição da escravatura, por exemplo, o sanitarista Belisário Pena, em suas missões pelo interior do país, identificou situações laborais que eram “praticamente a escravidão” (11. Gomes AC, Guimarães Neto RB. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: FGV; 2018.. Ele foi um dos pioneiros na descrição dessas condições peculiares, que seriam chamadas de TEC e/ou trabalho análogo ao de escravo, porque, naquele momento, homens e mulheres legalmente livres experienciavam situações laborais muito violentas, cuja proximidade com a escravidão legalizada era inegável. Isso explica o fato de que após a retirada da palavra “escravo” do Código Penal brasileiro pós-1888, essa palavra retorne sob a expressão “trabalho análogo ao de escravo” no artigo 149 do CP de 194011. Gomes AC, Guimarães Neto RB. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: FGV; 2018.), (1212. Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. 1940 dez 31 [citado em 12 ago. 2022];1:23911..
Muitas relações de trabalho similares seguiam se manifestando no Brasil na mineração, nas carvoarias e na agropecuária durante as décadas seguintes. Algumas passaram a ser denunciadas por militantes e movimentos sociais do campo, a exemplo de Dom Pedro Casaldáliga, em 1971, e da Comissão Pastoral da Terra. Diferentes movimentos sociais passaram a combater essas práticas sistematicamente, impelindo o Estado Brasileiro a reconhecer oficialmente a existência do TEC no início da década de 19901313. Plassat X. Trabalho escravo: uma incessante queda de braço. In: Leão LHC, Leal CRF, organizado. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV. 2021. p. 273-92..
Durante essa década, inclusive, a luta de movimentos sociais, agentes do executivo e do judiciário levou a uma ampliação do conceito de trabalho escravo do Código Penal Brasileiro. A constatação e descrição das condições de alimentação, moradia, ritmo, intensidade e extensão das atividades, violências, cerceamentos, desproteção e descuido com saúde de trabalhadores(as) demonstraram que suas vidas eram abertamente ameaçadas e postas em risco naquelas situações de trabalho. Novos elementos então se tornaram definidores do TEC, de modo que uma nova redação foi dada ao artigo 149 do Código Penal de 1940 pela Lei 10.803 de 11 de dezembro de 20031414. Brasil. Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet], 2003 dez 12 [citado em 5 jul. 2022];1:1..
Essa categoria sociopolítica, “trabalho análogo ao de escravo”, foi construída por luta social memorável e é uma conquista brasileira, porque ampliou a caracterização do fenômeno a partir das realidades laborais observadas empiricamente no país. Ela demonstra que o TEC não é resquício de relações pré-capitalistas ou de propriedade sobre outro, nem sinônimo de trabalho precário, informal ou de situação marginal ao sistema econômico, mas se caracteriza como relações de trabalho específicas, tipificadas por um dos seguintes marcadores: trabalho forçado, servidão por dívida, jornada exaustiva e/ou condições degradantes1414. Brasil. Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet], 2003 dez 12 [citado em 5 jul. 2022];1:1..
Tal categoria é inovadora também no debate científico internacional porque, ao ampliar o leque de reconhecimento das condições de escravização para além do cerceamento da liberdade e trabalho compulsório, expande as possibilidades de emancipação social22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47.. A literatura internacional dedicada ao tema explicitamente utiliza a categoria “escravidão moderna”, que, além de bem problemática, não oferece qualquer consenso sobre sua definição22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47.. Tal expressão é um termo guarda-chuva para cobrir vários fenômenos que foram objeto de normatização durante o século XX por parte de organizações internacionais, como as convenções sobre trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), abolição das formas de escravidão das Nações Unidas, proibição de tráfico humano, entre outras. O tema é parte da pauta política e institucional mundial e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que, na meta 8.7, define a necessidade de “tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas” (1515. IPEA. Cadernos ODS. ODS 8: promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos. Brasília, DF; 2019) (p. 11). Estima-se, inclusive, que existam 50 milhões de pessoas em situação de escravidão globalmente1616. ILO. Global estimates of modern slavery: forced labour and forced marriage. Geneva; 2022.. No Brasil, em 2023, foram encontrados 1.443 trabalhadores em condições análogas a de escravo e, desde 1995, 61.711 trabalhadores foram resgatados1717. Portal da Inspeção do Trabalho. Radar SIT. Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil [Internet]. Brasília, DF; [2018] [citado em 16 set. 2023]. Disponível em: https://sit.trabalho.gov.br/radar/
https://sit.trabalho.gov.br/radar/...
.
Importante destacar que a categoria brasileira “trabalho análogo ao de escravo” traz à tona a concepção de escravização como subtração da dignidade humana e não apenas privação da liberdade, abrindo, assim, perspectiva mais crítica em relação às interpretações marcadamente liberais desses termos: “escravidão moderna”, “nova escravidão”, “trabalho forçado”, “trabalho não-livre”, “tráfico humano” e “servidão por dívida”. Abre, ainda, novas possibilidades de reconhecer a variedade de gradações no espectro de relações de trabalho que geralmente não são classificadas como trabalho forçado, escravidão moderna e tráfico de pessoas, mas que ocorrem em condições absolutamente exaustivas e degradantes ao consumirem energias mentais e corporais dos trabalhadores, acelerando o desgaste e aumentando o grau de indignidade, humilhação social e imobilidade22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47.), (44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (1818. Zimmerman C, Hossain M, Watts C. Human trafficking and health: a conceptual model to inform policy, intervention and research. Soc Sci Med. 2011;73(2):327-35..
Todas essas formas de subsunção, coerção, controle e subordinação da força de trabalho humana desafiam o campo da ST a incorporar abordagens capazes de expandir as modalidades de análise e fortalecer as práticas de atenção e de ação sociopolítica em direção à emancipação social. Isso requer um alargamento das próprias noções de “trabalhador” que circulam nesse campo, posto que, hegemonicamente, foram marcadas pela sedução do conceito moderno industrial de trabalho assalariado livre1919. Mendes R, Dias EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Rev. Saúde Públ. 1991;25(5):341-9.. Esse conceito é estreito para captar a diversidade de situações laborais que operam fora do nexo de assalariamento que, inclusive, imperaram na história humana e seguem vigentes. Uma abordagem mais ampla da categoria “trabalhador(a)”, portanto, contribui para superar a invisibilidade de inúmeros trabalhadores(as) submetidos às relações de escravidão contemporânea no sistema capitalista atual.
Estudiosos da teoria crítica e economistas2020. Linden MVD. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Unicamp; 2013.), (2121. Honneth A. Labour, a brief history of a modern concept. Philosophy. 2022;97(2):149-67. argumentam que a categoria trabalho/trabalhador na modernidade tendeu a excluir uma imensidão de serviços e atividades, a exemplo do trabalho de mulheres e diversos ramos de serviços. Mais ainda, Linden2020. Linden MVD. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Unicamp; 2013.) afirma que carecemos de uma perspectiva histórica capaz de integrar a escravidão e tantas outras formas de trabalho existentes fora do nexo do salário, entendendo-as não como etapas superadas do passado remoto pelas formas de assalariamento “livres”, mas como elemento presente que alcança enorme grupo de “trabalhadores subalternizados” (2020. Linden MVD. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Unicamp; 2013.. Historicamente, a regra foi a existência de uma imensidão de trabalhadores subalternizados ocupantes de diferentes escalas entre escravidão e trabalho livre. Afinal, não é o trabalho escravo que se configura exceção na história, mas o assalariado.
Nesse sentido, Fraser2222. Fraser N. Expropriation and exploitation in racialized capitalism: a reply to Michael Dawson. Critical Historical Studies, 2016;3(1):163-78., a partir de outro referencial, também destaca a necessidade de se reconhecer tanto a figura do(a) trabalhador(a) cidadão livre e explorável quanto do sujeito dependente expropriado. O ponto central a ser ressaltado é que essas formas de expropriação do corpo, exploração da força de trabalho livre e tipos de escravização coabitam de modo complexo e se intensificam na contemporaneidade, sendo determinadas, em última instância, pelas características do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.
O reconhecimento dessa realidade favorece a superação da invisibilidade social de parcelas inteiras dessa ampla gama de trabalhadores(as) negligenciada em suas necessidades de saúde. Na construção da ST no Brasil, inclusive, um conjunto de atividades socialmente úteis, não remuneradas, mas responsáveis pela manutenção da esfera da produção nem sempre foi levada em conta. Isso porque o trabalhador típico mais considerado fora o proletariado, majoritariamente composto por grupos sociais de homens “livres” (para vender sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção), geralmente classe urbana, industrial e sindicalizada, deixando em segundo plano a realidade mais ampla e complexa de trabalhadoras(es) em diferentes serviços e contextos de escravização.
O campo teórico-prático da ST e o Sistema Único de Saúde (SUS), portanto, têm o desafio de dar atenção à essa ampla e diversificada população trabalhadora em diferentes situações, a exemplo das práticas de trabalho não pagas na agricultura em troca de benesses; do trabalho de crianças e adolescentes sobre o controle de gangues e tráfico de drogas; das meninas de regiões mais pobres ‘dadas’ para famílias mais abastadas para trabalhar em atividades domésticas não pagas, sem horário determinado e com múltiplas funções; das mulheres idosas expropriadas em serviços domésticos; das mulheres exploradas sexualmente em prostíbulos e traficadas para fora do país com promessas falsas; de eventuais trabalhos forçados em instituições que privam a liberdade; das interseções entre trabalho de crianças e adolescentes em exposição a riscos ambientais-ocupacionais; das formas de expropriação de comunidades quilombolas, indígenas, acampadas; além da quantidade de serviços cotidianos exercidos em condições extenuantes e degradantes para a dignidade humana22. Zanin V, Leão LHC. Ação coletiva para emancipação de trabalhadores em contextos de trabalho forçado e escravidão: a estratégia de organização nas cadeias produtivas. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos Caminhos para Erradicar o Trabalho Escravo Contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 119-47.), (44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95..
Saúde-trabalho como condição social de liberdade e dignidade
Essa desatenção precisa ser superada porque as formas de TEC representam a negação do direito à saúde enquanto condição social de liberdade e dignidade. A saúde enquanto direito se vincula à noção de dignidade humana, porque esta é condição própria, inalienável e inerente a todo ser humano, devendo ser reconhecida, respeitada e protegida frente a quaisquer ameaças à integridade pessoal e coletiva2323. Conforti LP. Direito fundamental de não ser escravizado no Brasil. Belo Horizonte: RTM, 2022.. Da mesma forma, se vincula à noção de liberdade, não no sentido de apenas resguardar a possibilidade de ir e vir, mas de ampliar a capacidade de se autodeterminar, se associar e cooperar com outros e com a sociedade, nos moldes de uma “liberdade social” (2424. Honneth A. O sofrimento da indeterminação: uma atualização da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Singular/Esfera Pública; 2007. para além do sentido de uma liberdade individualista atomizada neoliberal. Esses fundamentos sobre a saúde, além de superarem reducionismos dos modelos biomédicos hegemônicos, evidenciam que a escravização se coloca como sua antítese, pois opera exatamente em oposição à liberdade e à dignidade humana. Afinal, na escravização percebem-se relações de poder, modos de dominação, exploração e sujeição geradores de riscos ocupacionais, jornadas extenuantes, violências física, psicológica e/ou sexual (controle e abusos), bem como a degradação das condições humanas de vida (abrigo, comida, vestimenta, acesso a água, renda etc.) (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.), (2525. Patterson O. Slavery and Social Death: a comparative study. Cambridge: Harvard University Press: 1982.), (2626. Leão LHC, Zanin V. Saúde, trabalho e escravidão: tipologia da produção acadêmica internacional e problematizações para novas pesquisas. In: Figueira RR, Prado AA, Mota MP, organizadores. Escravidão Ilegal: migração, gênero e novas tecnologias em debate. Rio de Janeiro: Mauad; 2022. p. 383-403..
O processo social da escravização representa alto risco ao bem-estar coletivo e traz repercussões na saúde física e psíquica das vítimas, os efeitos, portanto, são devastadores em diferentes graus de severidade e tipos de manifestação2626. Leão LHC, Zanin V. Saúde, trabalho e escravidão: tipologia da produção acadêmica internacional e problematizações para novas pesquisas. In: Figueira RR, Prado AA, Mota MP, organizadores. Escravidão Ilegal: migração, gênero e novas tecnologias em debate. Rio de Janeiro: Mauad; 2022. p. 383-403.. Trata-se de um processo de alto grau de desgaste, dada a intensidade da exposição às condições degradantes somada à ausência de atenuantes aos perigos, violências, riscos de acidentes e mortes, bem como oportunidades de reposição de energias, minando o corpo pela espoliação de suas forças44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cien Saude Coletiva. 2016;21(12):3927-36), (2727. Mbembe A. Necropolitics. Public Culture, 2003.15(1):11-40..
No TEC, são negadas aos trabalhadores as condições básicas de alimentação, moradia, renda, terra, tratamento digno, transporte, água, acesso a serviços médico-hospitalares etc. Se saúde é também a capacidade de poder trabalhar em condições dignas, ter moradia adequada para restabelecer suas forças, opções de lazer, poder se alimentar, transitar com liberdade etc., os casos de escravização representam a negação dessas possibilidades. Os condicionantes da saúde desses trabalhadores expressam um quadro de deterioração da vida, que deflagra grave problema de saúde pública. Como garantir a saúde desses trabalhadores nos contextos em que lhes são negadas condições básicas de vida digna e liberdade?
Considerando que as formas de adoecer e morrer de grupos sociais são circunscritas pela sua inserção em determinadas condições de vida/trabalho2828. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec, 1989., é preciso reconhecer que os(as) trabalhadores(as) em situação de TEC compõem um coletivo com processos de determinação, necessidades e condições de saúde específicas e, consequentemente, demandam atenção dos profissionais e serviços de saúde de forma singular.
A defesa do direito à saúde desses trabalhadores implica no fortalecimento e ampliação da atenção aos vulneráveis e resgatados da escravidão; proteção e expansão da liberdade e da dignidade como elementos fundantes do direito à saúde; e mobilização de meios para superar dialeticamente o TEC em práticas emancipatórias, a partir da realidade concreta das experiências das vítimas e de suas vivências como sujeitos sociais interessados e comprometidos com a mudança dessa realidade social.
O SUS e o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas do Trabalho Escravo
No processo de escravização-emancipação e saúde-doença-cuidado existem variadas etapas: vulnerabilidade, aliciamento, transporte, exploração, fuga/denúncias, fiscalização de ambientes de trabalho, resgate de trabalhadores, acesso a direitos, programas e benefícios, atenção às necessidades de saúde, recuperação e reinserção social, entre outras.
A experiência brasileira de combate ao TEC conta com diferentes estratégias preventivas, repressivas e recuperadoras, direcionadas a quebrar o ciclo de escravização em diferentes pontos desse processo. Entretanto, embora existam experiências, iniciativas e projetos de apoio aos trabalhadores em contextos de TEC, mobilizadas por Organizações da Sociedade Civil, Movimentos Sociais e setores do Estado, as práticas mais específicas para o momento pós-resgate ainda carecem de maior ampliação em termos de política pública.
A complexidade do desafio de desenvolvimento de cuidados integrais e emancipadores, que reduzam o risco de reescravizações e auxiliem na superação das vulnerabilidades de escravizados(as), implica no fortalecimento e expansão dessas práticas socioinstitucionais antiescravidão já existentes no tecido social brasileiro.
Os Planos Nacionais de Enfrentamento ao TEC de 2003 e 2008, por exemplo, foram importantes conquistas nessa direção, porque delinearam e impulsionaram ações tanto de prevenção e repressão quanto de atendimento às necessidades das vítimas do trabalho escravo2929. OIT. Plano nacional para a erradicação do trabalho escravo. Brasília, DF; 2003.), (3030. Brasil. II Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Brasília, DF: Presidência da República, 2008..
Nesse quesito, ganha destaque a atuação da Comissão Pastoral da Terra em diversas frentes, entre elas no acolhimento de escravizados, com a campanha “De olho aberto para não virar escravo” e na produção-disseminação de informação sobre violência no campo enquanto vigilância popular da escravidão3131. Leão LHC, Ribeiro TAN. Popular Surveillance of Contemporary Slavery. Physis. 2021;31(1):e310125..
Outras experiências de amparo aos trabalhadores e comunidades vulneráveis ofertam formação cidadã, técnico-profissional e elevação educacional aos trabalhadores(as) resgatados e vulneráveis ao TEC, integrando políticas para evitar (re)escravizações. É o caso dos Projetos Ação Integrada, do Movimento Ação Integrada, atuante nos estados Mato Grosso, Bahia e Rio de Janeiro; bem como da Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão. Com diferentes modalidades de atividades, esses projetos articulam as Superintendências Regionais do Trabalho e universidades (entre outros setores do Estado), o Terceiro Setor, o Ministério Público do Trabalho, movimentos sociais e comunidades vulneráveis3232. Costa PTM. Por um modelo nacional de prevenção do trabalho escravo? Desafios e conflitos na nacionalização do projeto Ação Integrada. Soc estado. 2020;35:837-60..
Do ponto de vista da educação para a prevenção, Organizações Não Governamentais (ONGs), como a Repórter Brasil - especialmente com o programa “Escravo, nem pensar” -, têm exercido papel importante junto ao setor de Educação de estados e municípios de alta incidência do TEC. A presença de ONGs, Fóruns populares de combate ao TEC e Centros de Direitos Humanos, como o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, do Maranhão, também são relevantes referências ao promoverem encontros entre trabalhadores resgatados, para que possam compartilhar suas experiências entre si, gerar maior autonomia, valorização de seus saberes, prevenção de novos aliciamentos e apoio mútuo3333. Repórter Brasil. Escravo nem pensar [Internet]. São Paulo; [2012] [citado 2022 ago 15]. Disponível em: https://escravonempensar.org.br/livro/#1.
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Considerando a importância da questão da terra no processo emancipador, outras iniciativas focalizam a regularização e acesso à terra para trabalhadores(as) resgatados(as), para oportunizar o desenvolvimento de cadeias produtivas locais com trabalho digno e práticas agroecológicas, a exemplo da experiência do Assentamento Nova Conquista, em Monsenhor Gil, no Piauí3434. Ribeiro TGA. Trabalho escravo e o dever implementação de políticas públicas de prevenção e assistência às vítimas. In: Paixão C, Cavalcanti TM, organizadores. Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr; 2017. p. 272-88.. As experiências de agroecologia frente ao modelo agropredador são alternativas promissoras de geração de outras relações de trabalho potencializadoras da saúde, do cuidado com a natureza e produção de alimentos saudáveis3535. Castro FP, Freitas LM. Agroecologia: territórios livres do trabalho escravo. In: Leão LHC, Leal CRF, organizadores. Novos caminhos para erradicar o trabalho escravo contemporâneo. Curitiba: CRV; 2021. p. 59-70.. A questão da terra no contexto do enfrentamento das determinações do TEC é fundamental não apenas para os(as) resgatados(as), mas para outros grupos de trabalhadores(as) sem-terra, acampados e/ou assentados, bem como povos tradicionais e originários sob ameaça de expropriação e migrantes, exatamente porque experimentam a injustiça dessa condição social impulsionadora da reprodução da escravização.
Do ponto de vista legal, é digna de atenção uma das principais medidas criadas para a proteção às vítimas do trabalho escravo no Brasil no momento pós-resgate: a Lei n. 10.608, de 20 de dezembro de 2002, que assegura o Seguro-Desemprego Especial para os(as) trabalhadores(as) resgatados(as) da escravidão3636. Brasil. Lei no 10.608, de 20 de dezembro de 2002. Altera a Lei no 7.998, de 11 de janeiro de 1990, para assegurar o pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo. Diário Oficial da União [internet], 2002 dez 23 [citado em 21 jun. 2022];1:1.. Ela foi responsável pelo amparo de mais 45.000 trabalhadores resgatados no país e também contribuiu para registrar dados sobre a ocorrência e características da escravidão, disponíveis no “Observatório da erradicação do trabalho escravo e do tráfico de pessoas” (3737. Plataforma SmartLab. Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Brasília, DF: [2019] [citado em 29 ago 2022]. Disponível em: http://observatorioescravo.mpt.mp.br
http://observatorioescravo.mpt.mp.br...
- importante acervo brasileiro para dimensionar o problema e dar base para formuladores de políticas.
Recentemente, foi publicado também a Portaria nº 3.484, de 6 de outubro de 2021, que trata do “Fluxo nacional de atendimento às vítimas do trabalho escravo no Brasil” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64. fruto do trabalho conjunto da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), das Comissões Estaduais e Municipal de São Paulo (COETRAES e COMTRAE-SP), da OIT-Brasil e de outras entidades públicas e da sociedade civil.
O objetivo é “promover atendimento especializado e sistematizado às vítimas de trabalho escravo por meio da atuação integrada e organizada de sua rede de proteção” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64. (p. 62), definindo práticas necessárias, providências e responsabilidades a partir de três eixos de ações: “Da denúncia ao planejamento”, “Resgate” e “Pós-resgate”.
O eixo “Da denúncia ao planejamento” abrange a recepção e triagem de denúncias de escravização e organização de fiscalização para resgate de trabalhadores(as). Os responsáveis imediatos seriam o Sistema Ipê de recepção de denúncias do trabalho escravo, o Disque 100, 190, 191, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal, a CPT, as COETRAES, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) e/ou a Superintendência Regional do Trabalho (SRT) “de forma coordenada com demais órgãos públicos [...]”66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 62).
O eixo dois diz respeito ao resgate de trabalhadores e envolve a fiscalização de locais de trabalho para a retirada dos trabalhadores das condições de escravização. O papel central ressaltado é o da “Inspeção do trabalho” do Ministério do Trabalho, em articulação com a COETRAE, e da assistência social, para proceder à emissão de guias de Seguro Desemprego e de Comunicação de Acidente de Trabalho (esse último quando for o caso), obtenção de dados para contato com os trabalhadores e encaminhamento para “atendimento emergencial de saúde”, além de providencias para abrigo emergencial e transporte de retorno ao lugar de origem66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 63).
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é ressaltado como tendo importante papel na articulação da proteção social, acolhida aos resgatados, além de busca pela inserção em benefícios e serviços locais, como saúde, geração de renda, formação profissional e nas regiões de origem da pessoa. Isso envolveria outros órgãos responsáveis por providenciar documentação civil, assessoria jurídica, encaminhamentos para Delegacias de Defesa Institucional e de Imigração e Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF) para “recolhimento de subsídios para eventual propositura de ação judicial” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 63).
O terceiro eixo, o pós-resgate de trabalhadores(as), se refere à “fase de atendimento e acompanhamento dos atendimentos realizados na fase anterior” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 62), etapa que envolveria órgãos de assistência social - como a CONATRAE, a Polícia Federal, entre outros - e a Sociedade Civil, para a identificação das necessidades dos resgatados, encaminhamento para acolhimento institucional, inserção em benefícios e para políticas e serviços de assistência social, atenção às famílias, emissão de documentação civil, atendimento no local de origem, acompanhamento das vítimas, judicialização das demandas, monitoramento dos resgatados e para “encaminhar para outras políticas públicas, como saúde, emprego e educação” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 63).
Essa portaria representa um avanço, no sentido de o Estado buscar dar mais respostas à demanda social complexa de atenção às populações vulneráveis e egressas, estabelecendo parâmetros organizativos, ações mínimas requeridas e responsabilizando atores e setores governamentais para sua efetivação, através de práticas multisetoriais, interinstitucionais e em colaboração com a sociedade civil.
Em que pese esse avanço, se faz necessário chamar a atenção para o lugar do SUS nesse processo e para o patrimônio da saúde pública em termos de vigilância, atenção, educação, prevenção e promoção da saúde de trabalhadores.
As formas de TEC não são responsabilidade apenas da polícia, do Judiciário, do SUAS e do setor de fiscalização do trabalho, mas, como são problemas de saúde pública, são também de responsabilidade do SUS. Ocorre que, geralmente, a saúde pública é deixada de fora nos planos e tomadas de decisão sobre o enfrentamento ao TEC1818. Zimmerman C, Hossain M, Watts C. Human trafficking and health: a conceptual model to inform policy, intervention and research. Soc Sci Med. 2011;73(2):327-35. ou, quando muito, entende-se o sistema de saúde em uma perspectiva hospitalocêntrica, limitada ao atendimento às doenças e condições emergenciais nos cuidados médicos e psicossociais das vítimas.
Na portaria, por exemplo, a saúde é citada no sentido de política, serviço ou setor a receber “encaminhamentos”. A palavra saúde aparece quatro vezes, sendo três delas referentes ao resgate e uma ao pós-resgate, na seguinte expressão “Encaminhar para outras políticas públicas, como saúde, emprego e educação” (66. Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.) (p. 63), cabendo à assistência social encaminhar os(as) trabalhadores(as) para “atendimento emergencial de saúde”6 (p. 63). Se, por um lado, como afirmamos, é preciso ampliar o conceito de trabalhador, por outro, importa igualmente expandir a noção de saúde, porque concepções restritas à lógica de atendimentos médicos e psicológicos limitam bastante a compreensão da complexidade do processo e da incorporação da amplitude do SUS na produção do cuidado fundamentado na equidade, integralidade e participação.
Parece oportuno apontar a necessidade de maior reconhecimento público da importância do setor saúde em todas as etapas desse fluxo, bem como de uma visão mais ampla sobre saúde do(a) trabalhador(a) enquanto ações intersetoriais e participativas, para expansão das possibilidades de emancipação. Até porque o SUS tem responsabilidades em todas as fases citadas no fluxo, na identificação, na notificação e no encaminhamento das denúncias, assim como no planejamento das ações de fiscalização e nas práticas de inspeção do trabalho, nas ações de atenção psicossocial, avaliação dos danos e clínica médica para recuperação dos agravos da violência, somando esforços conjuntos aos demais entes envolvidos.
O SUS, inclusive, tem atuado na identificação de novos casos de TEC, a partir das unidades de saúde de urgência e emergência e na atenção básica, tem, também, articulado ações de vigilância44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cien Saude Coletiva. 2016;21(12):3927-36. Em muitos lugares do Brasil, agentes de unidades básicas de saúde, fiscais sanitários, profissionais das redes de cuidados médicos e hospitalares identificam pessoas em situação de exploração de escravização, tomam providências e colaboram em práticas antiescravidão44. Leão LHC, Siebert P, Trautrims A, Zanin V, Bales K. A erradicação do trabalho escravo até 2030 e os desafios da vigilância em saúde do trabalhador. Cien Saude Coletiva. 2021;26(12):5883-95.), (55. Leão LHC. Trabalho escravo contemporâneo como um problema de saúde pública. Cien Saude Coletiva. 2016;21(12):3927-36. Ao mesmo tempo, o SUS já tem desenvolvido diferentes mecanismos que subsidiam o enfrentamento ao TEC, a exemplo da Vigilância das Violências, no sentido de produção de informação, a partir das fichas de notificação de casos de TEC, mas também nos dispositivos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora3838. Brasil. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial da União [internet]. 24 ago 2012 [citado em 28 abr 2022];1:1. e da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo das Florestas e Águas3939. Brasil. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta Ministério da Saúde. Brasília, DF: Editora do Ministério da Saúde; 2013.. Muitos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador participam em ações intra e intersetoriais e de formação para prevenção de aliciamento e intervenção em determinados pontos do processo de escravização4040. Ministério da Saúde. Marília Carvalho - Coordenação de Vigilância de Ambientes e Processos de Trabalho - CVAPT/CGSA. Ações de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador. Brasília, DF; 2022.. Em nível nacional, a RENAST pode fortalecer essas estratégias e ampliar suas práticas de vigilância em redes de participação popular e promoção da saúde, especialmente em comunidades vulneráveis ao TEC, a fim de mobilizar experiências de agricultura familiar e produção de uma agroecologia emancipadora.
Inegavelmente, se faz necessário maior investimento, particularmente para ampliar as práticas de atenção integral aos trabalhadores vulneráveis e/ou submetidos à escravização no cotidiano dos serviços do SUS, criando linhas de cuidado para qualificar a atenção em todos os pontos da rede e melhor compreender e agir frente às necessidades das vítimas dessa forma de violência.
Essas experiências carecem de maior visibilidade e reconhecimento público. Mapear e conhecer melhor os seus alcances e limites, para sistematizá-las e conectá-las entre si e com as lutas mais amplas, representaria um passo fundamental para ampliação das oportunidades de profissionais e serviços de saúde atuarem ainda mais como agentes fundamentais do neoabolicionismo.
Para isso, existe a necessidade de também descolonizar o próprio sistema de saúde, problematizando o seu lugar no processo sociocultural de manutenção de iniquidades sociais e do racismo institucional. Por outro lado, apesar das limitações do SUS, todo o movimento sanitário e o campo da ST têm potencial inegável para aliar as lutas de garantia dos direitos à saúde às lutas pela ampliação das utopias de emancipação4141. Santos BS. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. São Paulo: Cortez; 2014..
A ampliação do diálogo social e a participação em uma perspectiva inter redes seria fundamental, aliando os movimentos sanitário, populares e sociais para impulsionar medidas econômicas, políticas e sociais para contrabalançar as forças disruptivas e amplificadoras da desigualdade social.
Cabe ainda evitar o risco de mistificar o próprio Estado, porque muitas de suas políticas econômicas são exatamente o esteio das condições de possiblidade de agudização das causas socioeconômicas da escravização. Afinal, o ciclo econômico ora vigente e as políticas de expansão desmedida à agropecuária, mineração, indústria do vestuário, entre outras, calcadas na imposição de um modo de desenvolvimento para elites e para a renda do capital, em arrocho para o trabalho e desalento social, tendem a criar mais condições de reprodução do trabalho escravo. É importante asseverar que o Estado historicamente tem responsabilidades na reprodução do TEC também pela sua omissão frente à essa classe de trabalhadores e pela fragmentação de suas ações e políticas. Não por acaso, o Estado brasileiro foi condenado, em 2016, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo crime de escravidão contemporânea2323. Conforti LP. Direito fundamental de não ser escravizado no Brasil. Belo Horizonte: RTM, 2022..
Considerações finais
O desafio da atenção integral à saúde de trabalhadores vulneráveis e resgatados da escravização implica reconhecer a existência desse conjunto diversificado e específico de trabalhadores, bem como desvelar os processos de determinação social da sua saúde e as particularidades de suas necessidades de vida, a fim de superar as negligências nas práticas de cuidado. Ampliar e fortalecer essas estratégias emancipatórias, nessa direção, é um processo social de luta contínua que requer, fundamentalmente, o protagonismo e a organização dos trabalhadores, sejam os formalmente livres, sejam os submetidos à escravização, conectando as lutas sindicais, sociais, de gênero e raça como lutas por liberdade e dignidade, portanto, lutas por saúde. A composição de redes e sujeitos coletivos de emancipação, para a condução de processos, teias e saberes de atenção aos trabalhadores escravizados contribuiria não apenas para melhoria do cuidado, mas para a construção de territórios livres de trabalho escravo. Afinal, a garantia da saúde de trabalhadores(as) nesses contextos de escravização requer um amplo conjunto de ações para melhoria das condições básicas de vida digna e exercício real da liberdade.
O desenvolvimento dessas práticas de cuidado emancipatório constitui, na verdade, um urgente desafio, frente ao qual qualquer emudecimento e/ou distanciamento por parte do campo da Saúde do Trabalhador, nos próximos anos, representaria uma lastimável negligência.
Referências
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6Brasil. Portaria nº 3.484 de 6 de outubro de 2021. Torna público o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no Brasil. Diário Oficial da União [Internet]. 2021 out. 7 [citado em 15 set. 2022];1:64.
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7Figueira RR. Séculos de escravidão e tráfico humano legais e ilegais. In: Paixão C, Cavalcanti TM, organizadores. Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr. 2017, p. 75-94.
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12Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. 1940 dez 31 [citado em 12 ago. 2022];1:23911.
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14Brasil. Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet], 2003 dez 12 [citado em 5 jul. 2022];1:1.
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40Ministério da Saúde. Marília Carvalho - Coordenação de Vigilância de Ambientes e Processos de Trabalho - CVAPT/CGSA. Ações de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador. Brasília, DF; 2022.
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41Santos BS. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. São Paulo: Cortez; 2014.
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Disponibilidade de dados:
todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Financiamento:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
30 Set 2022 -
Revisado
03 Jan 2023 -
Aceito
22 Fev 2023