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Quando a História se cala: memórias da Espanhola

DESTAQUE

Quando a História se cala: memórias da Espanhola

Oswaldo Porto Rocha; Maria Luiza Burlamaqui Soares Porto Rocha

Temos guardado um silêncio

bastante parecido com estupidez.

Eduardo Galeano

Se os fatos desmentem minhas

palavras, pior para os fatos.

Nelson Rodrigues

Pensar em História nos faz pensar em alguns modelos de fontes que, devido a seu caráter oficial, nos remetem a um certo grau decomprometimento do narrador. Quando pensamos objetivamente no fato histórico, deparamo-nos com dois aspectos básicos:

a) que a chamada linha da História oficial1 1 Entendemos por história oficial aquela produzida em favor da classe social que detém o poder. Ao se impor, acaba por estabelecer verdades e mentiras. não registra (omite) determinados acontecimentos;

b) que mesmo tentando o resgate destes acontecimentos com fontes alternativas (literatura, músicas, história oral), deparamo-nos com um vácuo de informações, um silêncio coletivo por parte daqueles que viveram tal situação.

Para o historiador, preocupado em trabalhar com a história social, tal situação é freqüente. Com relação à história carioca, as epidemias são bons exemplos, em particular a da Gripe Espanhola, em 1918.

Dentro do quadro de insalubridade crônica do Rio, cidade de certa forma acostumada com o convívio da febre amarela, cólera, dentre outras, qual a razão do destaque para a Espanhola? Pelo simples fato de que a História se cala. Quase nada consta sobre essa epidemia que matou cerca de 8 mil habitantes e vitimou 80% da população em menos de três meses.2 2 Pedro Nava, Chão de ferro, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1976, p. 201. O número de mortos é incalculável.

O ano era o de 1906. O Rio civiliza-se: é a Belle Époque entre nós, que chegou um pouco tarde, mas já se disse que neste tempo as idéias andavam de navio...3 3 Existem várias obras sobre o tema, mas Jaime Larry Benchimol, Pereira Passos: um Hausmann tropical, Rio de Janeiro, PUR/UFRJ, 1982, nos parece a mais completa. Ver também Oswaldo Porto Rocha, A era das demolições, Biblioteca Nacional, 1986. A Reforma Urbana gravita em torno da questão sanitária, especialmente da febre amarela. Estas transformações que se operam na tão falada administração de Pereira Passos têm como objetivo reorganizar o espaço urbano e erradicar a febre amarela, encobrindo com a capa de saneamento o grave leque de questões sociais para as quais o capitalismo que se implantava não apresentava perspectiva de solução.

Em nome do saneamento, elimina-se o mosquito da febre amarela, mas não se toca na tuberculose. Em nome do saneamento, derrubam-se os cortiços, mas surgem as favelas. Em nome deste saneamento, abrem-se largas avenidas, mas estreitam-se os ganhos dos trabalhadores.

Modificar as péssimas condições de vida do trabalhador não faz parte desta "civilização".

Cidade Maravilhosa!

Rio, da Rua do Ouvidor, da Avenida Central e de tantas outras vias nas quais mulheres desfilam como francesinhas. Rio, dos passeios de bonde pela praia de Botafogo. Rio, do moralismo vitoriano, onde naTijuca uma vizinhança enfurecida leva a odalisca adúltera ao suicídio.4 4 Nelson Rodrigues, Memórias de Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, Ed. Correio da Manhã, 1967, p. 53-57. Rio, das bengalas, das confeitarias, que se julgava eterno, construído de um mármore mais eterno do que o da Grécia clássica. Rio, saneado físico e mentalmente, livre das correntes de atraso e da ignorância.

Cidade Maravilhosa: mas, por que a História se ocupa tanto da Belle Époque e ignora seu fim?

Começamos daí. Esta omissão tão clara, tão definida por uma lacuna total estava a desafiar nossa investigação. Como poderíamos resgatar esta passagem utilizando os limites da História já elaborada? Como, se daqui para diante se apresentava o desafio do confronto com o tradicional? Seria o conflito do velho e do novo? Nem tanto. Trabalhar com a história oficial é trabalhar com a História enquanto ciência. Mas o que é ciência enquanto produtora de conhecimento? É a ciência capaz de determinar os rumos da sociedade? De resgatar como propriedade o passado desta sociedade? É capaz de traçar e determinar os movimentos do corpo social por meio de uma abordagem intelectual?

Concordamos que o conceito de ciência compreende, de forma afirmativa, as questões propostas anteriormente. O fator dinâmico do processo científico está localizado na relação entre teoria/prática, em que há espaço para o contraditório comportamento humano desenvolver sua fluidez.

A ciência histórica, bem como as demais ciências, se apodera da realidade. Elas analisam, criam teorias e as esquematizam a partir de um conjunto de práticas que são expressas por grupos sociais. Ou seja, a ciência une com objetivos próprios os vestígios deixados pelos grupos sociais por meio de suas manifestações coletivas. Calar ou falar de determinado tema nunca é acidental. A ciência vem construir seu legado a partir destas atitudes sociais. Conforme Orlado Fals Borda:

A Ciência pode, portanto, acrescentar e subtrair dados e objetos, enfatizar determinados aspectose negligenciar outros; pode atribuir maior importância a determinados fatores e, finalmente, construir e destruir paradigmas verificáveis de conhecimento. (...) Em determinadas conjunturas históricas diversos conjuntos de conhecimentos, dados, fatos e fatores tornam-se articulados de acordo com os interesses de classes sociais que se introduzem na luta pelo poder social, político e econômico.

5 5 Orlando Fals Borda, "Aspectos teóricos da pesquisa participante", in Carlos Rodrigues Brandão (org.), Pesquisa participante, São Paulo, 3.ed., Brasiliense, 1983, p. 46.

Diversos pensadores, como Antonio Gramsci e Michel Foucault, afirmam que é na dimensão popular que se encontram elementos suficientes para a composição da história viva, definida em oposição à oficial. Em síntese, o comportamento popular determinaria a construção da teoria, na medida em que é a ciência, por intermédio de seus instrumentos, a catalisadora desta dispersão dos comportamentos espontâneos. É ela quem sistematiza estas vivências, não havendo qualquer espaço para a pretensa "neutralidade científica", do que ela fala, tornar-se real. O que omite, irreal ou fantasiosa, algo como mito ou ficção – parente do boato.

Neste quadro é que percebemos a Gripe Espanhola, pois ocorre num momento em que a ciência constata o saneamento do Rio. Além disto, o Brasil não tinha sido atingido diretamente pela Primeira Grande Guerra, nem se acreditava que isto viesse a ocorrer. A ciência tinha transportado para o senso comum a eficácia do saneamento da Capital Federal, colocando-o acima de qualquer suspeita. Ainda hoje isto faz parte do senso comum.

Fica "resolvido" o silêncio sobre a Espanhola. Que saneamento era este que não é da conta de uma epidemia? Já constatado o silêncio dos anais. Como resgatar a Espanhola? Recorremos a certos registros nos quais estas informações "vazaram", tomando formas de desabafo, conscientes ou não, talvez até como um alívio. Nelson Rodrigues e Pedro Nava são os depoentes aqui analisados. Bastante conhecidos no meio literário, são pouco trabalhados no que se refere à história carioca, particularmente com relação a Nelson, que recebeu de Hélio Pellegrino a justíssima alcunha de "Homero do Subúrbio".

Apesar de ambos possuírem estilos distintos, em suas memórias, tratam da Espanhola com as mesmas recordações dolorosas, quase inacreditáveis, como se fosse algo real/irreal. Uma forma de pesadelo à luz do dia. Respeitandoo estilo de cada um, diremos que Nelson Rodrigues penetra no psicológico do homem que está vivendo aquela tragédia e faz uso do deboche e do riso para não aceitá-lo e, conseqüentemente, se libertar.

Escrevi, certa vez, uma crônica meio cruel, e da qual me arrependi. Dizia eu que não há ninguém mais narcisista do que o defunto. Ele está sempre bem posto; é solene, e hierático, como um mordomo de filme policial inglês. E me lembra que, na ocasião, de rara piedade.

Eis o fato: – Pouco antes, morrera um pastor protestante do meu bairro. Residia a duas quadras lá de casa. De noite, desci do bonde e passei pela sua porta. Seria deselegante (vá lá o deselegante) não entrar. Tomei coragem e fui cumprimentar a viúva e demais parentes. E comigo entrou um bêbado, vejam vocês. O sujeito não conhecia ninguém, ali. Mas vira o ajuntamento e resolvera espiar. E, então, aconteceu esta coisa inédita e abominável: – ao ver o defunto de gravatinha borboleta o pau d'água começou a rir e continuou rindo, num crescendo pavoroso.

Suas gargalhadas iam de uma esquina a outra e atravessavam a noite. Imediatamente, cães da vizinhança responderam. E esse alarido canino propagou-se de quintal em quintal, acordando os galos que, por sua vez, começaram a cantar fora de hora. Nos terrenos baldios, faunos e vampiros também esganiçavam o riso torpe. E só o morto, com sua gravatinha borboleta, permaneceu incomovível. O bêbado não alterou em nada, a sua correção atroz de mordomo de filme policial.

Contei a fábula para chegar a Espanhola. Claro que, em 1918, isto aqui era um outro Rio, o Rio dos lampiões, dos bondes, e dos enterros residenciais. Se não existiam mais as carruagens de Dumas pai, ainda se podia passear em tílburis machadianas. Botafogo era Machado de Assis puro.

6 6 Nelson Rodrigues, op. cit., p. 71-72.

Pedro Nava, no entanto, descreve minuciosamente a realidade, talvez até por ter sido vitimado pela Espanhola. Faz com que o leitor se emocione, ao transportar-se para a época por meio de narrativa emocionada e pormenorizada:

De repente olhei para um dos espelhos venezianos e estremeci. Ele reproduzia o outro e os dois se repetiam numa cripta imensa de cada lado da sala, dez, vinte, cem, mil, undesmil virgens mortas cujos rostos iam se cavando e arroxeando na medida em que progredia o dia.

7 7 Pedro Nava, op. cit., p. 209.

Retornamos à questão original: quando terminou a Belle Époque? Na Europa, sem dúvida, como deflagrar da Primeira Guerra. Os torpedeamentos, os gases, os tanques, as trincheiras, enfim, os horrores da guerra, o lado sangrento (para o europeu) do Imperialismo, a antítese da Belle Époque, também filha deste sistema econômico.

Mas, e no Brasil? E no Rio? Não acreditavamos cariocas estarem a salvo do conflito? Que ligação direta poderiam ter tido nossos antepassados com a Guerra? Tudo parecia distante. Mas foi justamente a Espanhola o ponto comum, ficando conhecida como "filha da trincheira com o Kaiser". Era a morte entre nós.

O princípio do século também assinala um momento de uma quase inabalável fé na ciência. Grandes conquistas como as de Pasteur, Cruz, Rottinger, entre outros, apontavam para uma expectativa de uma sobrevivência consideravelmente maior. E é sempre importante lembrar o saneamento da cidade. Peste?? Qual nada:

Ora, numa noite que estávamos assim discreteando, o Ernesto chegou tarde, trazendo más notícias de nossos médicos. Corria o boato de que havia uma espécie de epidemia a bordo do La Plata, mortes, vários doentes hospitalizados em Ora. Que essa peste lavrava na Europa, na África, podia chegar aos nossos portos.

A notícia me impressionou muito e foi pouco comentada.

A Eponina levantou da mesa cantarolando e foi para o quarto, a Sinhá-Cota e o Paulo desceram. O Ernesto tornou a sair com o noivo da prima. Tia Eugênia foi deitar o Gabriel. Ficamos na sala só eu e a Nair, quando tio Ennes, bocejando, foi para vale de lençóis.

8 8 Pedro Nava, idem, p. 197.

(grifos nossos)

É difícil de se imaginar este Rio machadiano, saneado, tomado pela peste. É difícil ter que admitir tamanho caos no paraíso da ordem. Quatro quintos dos cariocas iriam sentir o saneamento de perto.

A relação do homem urbano com a morte se modificou no princípio do século. Até então a morte era vista como algo natural, incontrolável e corriqueiro, na medida em que as famílias eram numerosas, não havia controle de natalidade e a medicina dispunha de poucos recursos para impedi-la ou retardá-la. Havia o tempo de morrer, tanto fazia se rico ou pobre. De velhice, de parto, entre outras formas, nada a fazer senão quinino, ventosas e cataplasma. A morte não surpreendia quase ninguém. Vieram os sanitaristas, os positivistas com sua inabalável fé na ciência e acenaram com a possibilidade de intervir no destino retardar ou impedir a morte.

Nelson Rodrigues fala da lembrança da morte como a glorificação do eterno, o alcance da plenitude. Os velórios são grandiloqüentes, com seus cavalos e vestimentas, ofuscando casamentos e batizados:

Antes da Gripe, achava a morte rigorosamente linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, e pelas alças de prata. Lembro-me que, na primeira morte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dos sapatos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A Espanhola arrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas.

9 9 Nelson Rodrigues, op. cit., p. 73.

O advento da peste vem subverter, muito rapidamente, todos os conceitos já formados sobre a morte e, o que é particularmente relevante, vem desacreditar a ciência, que propunha o controle dela. A toda e poderosa ciência dos positivistas nada valia neste momento:

E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. Na fábula acima, vimos que o defunto no seu narcisismo obsessivo foi ao requinte da gravatinha borboleta. Mas a Espanhola não fazia nenhuma condição à vaidade dos mortos. E o apavorante era a solidão, o abandono e, sobretudo, a humilhação. Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios insuspeitados: – na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caiam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém! Nem um vira latas vinha lambê-lo. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho e, nem ao menos, inimigo.

10 10 Nelson Rodrigues, ibidem, p. 73.

O surto epidêmico teve seu apogeu entre fins de setembro e princípios de novembro, sendo que o momento crítico se deu em meados de outubro, quando a saúde pública, por intermédio de seu Diretor Carlos Seidl, admitiu a impossibilidade do controle sobre ela. A cidade entra em colapso, que pode ser compreendido em dois aspectos:

– no seu funcionamento orgânico, ou seja, na falta de alimentos, de remédios, de leitos e até de caixões;

– no aspecto da informação, na questão do boato, que contribui para aumentar o desespero da população.

"Numa espécie de loucura, todos os boatos eram acreditados; transmitidos de um a um, multiplicados pela imprensa de um para cem, para dez mil." 11 11 Nelson Rodrigues, ibidem, p. 72.

A cidade parou. Colégios, quartéis e fábricas interrompem suas atividades. Atingido pela gripe, sucede ao indivíduo uma febre que ultrapassava 42ºC. Se não matava, vinham duas semanas de cama, sendo que a primeira era de febre delirante.

Descrevia-se a fome. Os ataques as padarias, armazéns e bodegas por aglomerados de esfaimados e convalescentes esquálidos, roubando e tossindo. Dizia-se de famílias inteiras desamparadas – uns com febre, outros com fome; da criança varada, sugando o seio da mãe morta e podre; dos jacais de galinha reservados para os privilegiados, para a gente da alta e do governo, passando sob a guarda de praças embaladas aos olhos de uma população que aguava. Seria verdade? Era. Posso testemunhar contando o que passei, o que passamos na casa em que estava – pura e simplesmente fome. Conheci esta companheira pardacenta. Lembro que depois de um dia de pirão de farinha, de outro engambelado com restos de cerveja, de vinho, licores e azeite – do alvorecer do terceiro, sem café da manhã, nem nada e da saída de um Nestico recém-curado, pálido e barba grande, de um Ennes de Souza Neves, cara fechada, chapelão desabado, sem gravata. Ambos dispostos a tudo. Sobravaçavam cestas de vime iam armados de bengalório e ao fim de uma campanha de horas, voltaram. O Ernesto trazia um saco de biscoitos, Maria, um pedaço de toucinho uma latinha de caviar; seu tio uma dezena de latas de leite condensado. Durante três dias esta foi a alimentação de sãos e doentes – severamente racionada pela Tia Eugenia como um naufrágio e como se a casa de Major Ávila fosse a jangada dos escapados de Méduse. Além da comida, eram disputados os remédios. Faltavam, mas esta falta não teria agravado muito a situação, se olharmos numa crítica retrospectiva o que foi o tratamento da gripe daquela época.

12 12 Pedro Nava, ibidem, p. 202.

Faltava de tudo, menos boatos. Estes ajudavam a complicar o quadro disseminando o pânico entre os sãos. O boato, em si, nada mais é do que uma fantasia criada pela coletividade num determinado momento, podendo "pegar" ou não, dependendo das condições objetivas preexistentes. Dito de outra forma, a credibilidade que a ele se dará, transforma a fantasia em real, isto em termos de senso comum. Se corre a notícia de que "moribundos são enterrados vivos" ou "cadáveres são violados dentro de túmulos", não havendo confronto destas informações com outras mais, dentro deste clima de pânico, o boato torna-se real. Verdadeiro ou não, torna-se real, fato, dada a sua aceitação pela coletividade. Neste momento, é incorporado ao senso comum e transmitido às gerações posteriores. Daí para a História, pouco falta: o boato torna-se fato. Como distingui-lo?

Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce, ama, sonha, e morre. 1918, a esquina, o botequim, a calçada e o meio-fio seriam metafísicos também. Porque lá se morria a toda hora. Mas eis o que eu queria dizer – vinha o caminhão de limpeza pública e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam, mas nem família nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: – Aqui tem um, aqui tem um.

13 13 Nelson Rodrigues, p. 73-74.

Na análise destas memórias percebemos o largo emprego de metáforas por parte dos autores. A metáfora, além de ser um recurso próprio do discurso literário, foi utilizada para "afastar" a impressão da anormalidade do que ocorreu em 1918. Nelson Rodrigues não faz um artigo próprio para narrar a Espanhola. Ele, por assim dizer, prepara o espírito do leitor para o tema. No capítulo anterior, reflete sobre o que seja verdade e mentira, narrando a história de sua filha que nascera cega. Ao procurar vários médicos para examinar a criança, a maioria lhe afirma da cegueira. Ou outro, porém, fala na possibilidade de o bebê vir a ter 28% de visão. Com os que disseram a verdade, Nelson se desentende: não quer ouvir. Com o que mentiu, ele também se desentende. Chamou-nos a atenção este confronto entre verdade e mentira, já que a verdade era terrível demais para a realidade plausível. A mentira era cientificamente impossível para ser real, tal como a Espanhola.

Além disso, fica a impressão de que o autor também gostaria de ter sido cego, para não ter visto o que se passou em 1918. Todas as suas lembranças dos cortejos funerários, dos cavalos com penas, do luto, dos velórios, tudo isso se desfez na gripe. Era a humilhação suprema dos mortos.

Daí o caos do bêbado no velório, que, ao contar a passagem, faz um paralelo com o princípio do século, quando um acontecimento inesperado desestrutura toda a situação. E a entrada do bêbado representa o início da anormalidade. Um marginal poderia "rir", debochar da gravata borboleta, não tendo nenhum valor moral quanto um bêbado. A loucura/liberdade do bêbado é o prenúncio de mudança, da transformação daquela realidade tão arrumadinha da Belle Époque. Ao desestruturar o velório, o marginal é o vidente do que vai ocorrer no texto-cadáveres humilhados.

Nélson, que faz parte dos "homens morais", sofre com a visão das ruas tomadas de cadáveres. Daí a possível cegueira.

Seu estilo é o humor grotesco. Ele também se vê humilhado em sua visão do Rio machadiano. Daí o seu júbilo no triunfo do carnaval de 1919, uma "verdadeira bacanal", quando os mortos se vingam da Espanhola.

Começou o carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes, e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (...). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa intima estrutura fora tocada, alterada, e, eu diria mesmo, substituída.

Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta – e por quê. Eu diria que era a morte. Sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. 14 14 Nelson Rodrigues, ibidem, p. 73-74.

Pedro Nava nos leva a um outro sofrimento. Ele não se esconde atrás de personagens, é ele quem nos leva ao ocorrido, estando, assim, tão próximo de nós que repartimos seus dramas e suas alegrias. No princípio da narrativa, Nava fala dos boatos. Na casa da Rua Major Ávila, sua família se recusava a crer na peste. Mas diz também de sua incerteza.

Levantamo-nos os três, fechamos as janelas, e íamos tomar o corredor, quando a Nair parou. Será verdade? Aquela história da peste, Neném. Estávamos os três diante dos espelhos venezianos que reproduzindo um a imagem do outro faziam de nossos vultos multidão se perdendo para os infinitos de dois imensos túneis. Nada, minha filha, aquilo tudo é exagero do Ernesto...

15 15 Pedro Nava, p. 204-206.

Quando Nava pára defronte ao espelho, questiona a respeito do boato: será verdade? E vê a projeção de uma multidão que repete a pergunta ao infinito: o que é real? Virá a peste? A parenta cantarola. Em seguida, ele que tanto ouvira falar das batalhas da guerra, passa a tê-las ao quarto ao lado, quando sua prima Nair adoece.

Quando a febre passou e começamos a curar percebi que aquilo não era mais a ilusão dos ouvidos, e interpelei a Eponina. Ela respondeu com a verdade. Era Nair que caíra e estava piorando sempre.

16 16 Pedro Nava, ibidem, p. 207.

A doença e morte de Nair é o seu Verdum. Sim, a Grande Guerra foi a causadora da gripe. Nava não consegue voltar aos espelhos, dado que eles agora refletem o real, pois trazem a memória "mil virgens mortas". Nava sofre, olhar para trás é como olhar num espelho veneziano e ver a lembrança de mil mortos. Lembranças de um tempo que gostaria que fosse uma ilusão de ótica. De acordo com Orlando Borda, "(...) negar a existência de uma situação opressiva da qual não podem escapar, nem contra a qual podem lutar, acaba-se por negar a possibilidade de mudança".17 17 Orlando Borda, op. cit., p. 46.

O memorialista, seja Nelson ou Nava, não fala gratuitamente de sua vida, da mesma forma que o historiador não elege temas ao acaso. Ambos se assemelham, pois escrevem a partir do que lhes incomoda, inquieta e perturba. Não existem passagens, tudo é intencional. A Espanhola representa a anormalidade, a antítese da ordem, o despreparo e a incapacidade de se viver uma crise. Quem viveu, quer esquecer, quem não viu, quer crer que não foi verdadeira. Torna-se uma lacuna na História.

A Espanhola simboliza o caos, a disfunção, o imprevisível; uma ferida coletiva não cicatrizada.

De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: – quem não morreu na Espanhola? E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois, explodiu o carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.

18 18 Nelson Rodrigues, ibidem, p. 74.

  • 1
    Entendemos por história oficial aquela produzida em favor da classe social que detém o poder. Ao se impor, acaba por estabelecer verdades e mentiras.
  • 2
    Pedro Nava,
    Chão de ferro, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1976, p. 201. O número de mortos é incalculável.
  • 3
    Existem várias obras sobre o tema, mas Jaime Larry Benchimol,
    Pereira Passos: um Hausmann tropical, Rio de Janeiro, PUR/UFRJ, 1982, nos parece a mais completa. Ver também Oswaldo Porto Rocha,
    A era das demolições, Biblioteca Nacional, 1986.
  • 4
    Nelson Rodrigues,
    Memórias de Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, Ed. Correio da Manhã, 1967, p. 53-57.
  • 5
    Orlando Fals Borda, "Aspectos teóricos da pesquisa participante", in Carlos Rodrigues Brandão (org.),
    Pesquisa participante, São Paulo, 3.ed., Brasiliense, 1983, p. 46.
  • 6
    Nelson Rodrigues, op. cit., p. 71-72.
  • 7
    Pedro Nava, op. cit., p. 209.
  • 8
    Pedro Nava, idem, p. 197.
  • 9
    Nelson Rodrigues, op. cit., p. 73.
  • 10
    Nelson Rodrigues, ibidem, p. 73.
  • 11
    Nelson Rodrigues, ibidem, p. 72.
  • 12
    Pedro Nava, ibidem, p. 202.
  • 13
    Nelson Rodrigues, p. 73-74.
  • 14
    Nelson Rodrigues, ibidem, p. 73-74.
  • 15
    Pedro Nava, p. 204-206.
  • 16
    Pedro Nava, ibidem, p. 207.
  • 17
    Orlando Borda, op. cit., p. 46.
  • 18
    Nelson Rodrigues, ibidem, p. 74.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2008
    • Data do Fascículo
      2007
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