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Entrevista com Carlos Minayo sobre questões históricas e atuais do campo de saúde do trabalhador, por Jorge Machado

Interview with Carlos Minayo, discussing historical and present questions of the worker health, by Jorge Machado

OPINIÃO

OPINION

Entrevista com Carlos Minayo sobre questões históricas e atuais do campo de saúde do trabalhador, por Jorge Machado

Interview with Carlos Minayo, discussing historical and present questions of the worker health, by Jorge Machado

Carlos Minayo e Jorge Machado são pesquisadores do Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), desde a sua criação na Fiocruz. Além dessa vinculação institucional, Jorge coordenou por vários anos os serviços de saúde do trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro; e Carlos conheceu o problema a partir de longos anos de estudo sobre as principais centrais sindicais espanholas, francesas e italianas e algumas latino-americanas, pesquisando sobre formação sindical e consciência operária. No CESTEH ambos acompanharam o crescimento da área temática, as Conferências Nacionais do setor, e continuam altamente empenhados em buscar uma adequada compreensão dessa grande problemática, articulada de forma complexa às mudanças no mundo do trabalho e nas relações sociais de produção. Mais do que uma entrevista, o texto que aqui se publica pode ser definido como "uma conversa com finalidade" entre dois pesquisadores, em que as perguntas de Jorge são, antes de tudo, informações e afirmações, e as respostas de Carlos são também perguntas em forma de inquietações.

Machado Poderíamos iniciar uma discussão sobre os problemas e os desafios atuais da área de saúde do trabalhador. As mudanças nesse campo são contínuas, mas estão hoje mais agudizadas O desemprego, a precarização, a divisão sexual do trabalho, a violência, o trabalho informal e formal adquirem novas dimensões e significações. Essas mudanças são habitualmente apresentadas sob uma ótica economicista. Como você vê esse novo quadro?

Minayo Do meu ponto de vista, a reestruturação industrial impõe a necessidade de acompanhar as transformações do mundo atual e, consequentemente, requer um trabalhador adequado a essas mudanças. Um trabalhador com outra qualificação, outro perfil, outras habilidades, um trabalhador cada vez mais polivalente.

Machado Um desafio fundamental para a saúde pública, seja para intervenção, seja para a investigação, é desvendar a composição da força de trabalho. Os dados dos últimos anos mostram uma diminuição do emprego industrial, o que seria uma das faces dessa reestruturação produtiva atual. Mas há também uma redução dos salários ao mesmo tempo em que acontece essa nova adequação do trabalhador. Por que essa diminuição de salário quando a tendência é o aumento da qualificação do emprego industrial?

Minayo Hoje em dia vivemos um momento em que a luta dos trabalhadores integrados no mercado formal está fundamentalmente voltada para manter o conquistado; ou para negociar perdas aceitáveis. A ameaça do desemprego está sempre presente, dado o imenso contingente de mão-de-obra fora do mercado, com características e proporções muito diferentes do exército industrial de reserva das etapas anteriores do processo de industrialização.

Machado Então, poderíamos dizer que com essas pressões há, ao mesmo tempo, um aumento da qualificação e uma diminuição do valor do trabalho?

Minayo Em tese, sim, mas existem situações específicas. Você não pode contratar um trabalhador altamente qualificado por salários irrisórios. Inclusive, em alguns casos, há aumento da remuneração, seja pela escassez de profissionais no mercado para determinadas funções ou pelo próprio enxugamento das empresas. Resta saber a que custo esses trabalhadores "escassos e até relativamente bem-remunerados" aceitam submeter-se a novas cargas de trabalho geradoras de tensões que acabam por criar novas dimensões de sofrimento psíquico.

Machado Você acha que está havendo uma terceirização desqualificada também nesse processo? Explicando melhor, percebemos que a terceirização não contempla apenas novas habilidades e especialidades, mas também uma precarização via terceirização desqualificada, incluindo-se nesse movimento, a situação atual da indústria química, petroquímica, e setores que até recentemente eram estatais. Você concorda?

Minayo É claro que a modernização vem acompanhada de várias formas de terceirização. No entanto, a terceirização tal qual é hoje praticada não corresponde à concepção de contratação de serviços especializados. Como você mencionou, a situação mais freqüente na realidade do mercado de trabalho atual é que ela venha acompanhada de precarização, de informalização e de desqualificação. Em muitos casos, as empresas que terceirizaram determinadas funções não estão respeitando nem a legislação trabalhista, nem as normas de segurança. Há situações de contratos de serviços até de trabalhadores em atividades informais. Esse é um problema a que se pode referir de maneira mais ampla, devendo ser analisado, porém, por situações específicas que trazem impactos também específicos para a saúde.

Machado O cenário predominante hoje no que se denomina processo de precarização, uma população substituta, terceirizada e particularmente vulnerável é vítima de uma superposição de novas situações de risco, de novas cargas, de novos tipos de desgaste. De uma certa forma, a sociedade atual está revertendo o protótipo do que um dia foi chamado "trabalhador saudável". E, ao contrário, estamos construindo o trabalhador vulnerável. O cenário poderia ser configurado como duas formas de relação. A primeira corresponde ao que acabei de descrever. A outra se constitui como uma espécie de elite, composta por um grupo pequeno de trabalhadores. Esses são introduzidos a toda uma gama de informações e a uma linguagem de competitividade e comportamental. Desses se exige um novo perfil, uma qualificação maior. E eles, por sua vez, passam a se considerar uma casta superior. Qual a sua reflexão sobre esse cenário?

Minayo Como você já situou o problema e eu concordo com sua análise, acho bom destacar que todas essas questões nós as conhecemos ainda de forma muito impressionista. Os estudos qualitativos sobre o mundo do trabalho estão em baixa. Essa questão do que você chama "uma casta de trabalhadores" seria um ponto. Quem está trabalhando isso? Quem está buscando entender que mecanismos levam esses trabalhadores a fechar os olhos à injustiça com os outros? Pode ser, por exemplo, que a situação de extrema concorrência acrescente novas cargas psíquicas para eles, pois todos estão cheios de medo frente à ameaça subliminar perene da perda do posto de trabalho. Portanto, repito, seria fundamental construir e conseguir informações que permitam quantificar e diferenciar a força de trabalho do país ou em alguns setores. Há questões muito graves sendo colocadas pelo quadro atual de divisão social do trabalho. Não há dúvidas de que se estão impondo mudanças estruturais profundas nas relações sociais de produção. A maioria delas, parece corresponder a um retrocesso nas conquistas sociais que a classe trabalhadora conseguiu desde o século XIX.

Machado Seria o caso da indução de investigações estratégicas que pudessem gerar um debate crítico do movimento dos trabalhadores, da sociedade e traduzir-se em políticas públicas?

Minayo Claro. E não se parte do zero. Há as estatísticas anuais sobre a configuração do emprego no Brasil, oferecidas pelo Ministério do Trabalho; o IBGE também está introduzindo novas classificações e novas denominações em suas investigações setoriais. Esses dados contribuem, sem dúvida. Igualmente, as instituições públicas, as empresariais e as federações diversas têm como recorrer para ter dados mais precisos. Mas falta um sistema integrado e não se consegue o quadro específico dos trabalhadores terceirizados. Pode-se chegar perto de algum componente, porque existe uma fronteira muito flexível entre o setor informal e o formal, influenciado, por exemplo, pela criação de formas cooperativadas que costumam esconder estratégias de fuga do pagamento de impostos e de diminuição dos direitos trabalhistas. Enfim, há aí um terreno obscuro que necessita ser clarificado, porque quando se tomam os dados de emprego e desemprego, o que está sendo informado oculta processos sociais diferenciados e problemáticos em indicadores simplificados. Nós temos mais de 50% da mão-de-obra na informalidade. Na verdade essa proporção esconde um movimento de ocupação e de desocupação.

Machado A conclusão é de que, se contadas as formas escamoteadas, o Brasil teria a maior população de desempregados do mundo?

Minayo É difícil responder com exatidão. Porque não se pode identificar mercado informal com não-trabalho ou identificá-lo diretamente com pobreza, com desgaste, com sofrimento. Não se podem transpor mecanicamente questões diferentes para um mesmo nível, quando se faz uma análise séria. Pode-se chegar, por investigação séria, até a afirmações chocantes. Mas geralmente a escala de um trabalho específico e localizado não permite generalizações que pudessem ser ampliadas para a população trabalhadora.

Machado O que está sendo constatado?

Minayo De um ponto de vista mais geral, constata-se que está sendo desconstruído o assalariado típico da sociedade industrial; e ao mesmo tempo construído um trabalhador coletivo múltiplo, diferenciado no interior do mesmo processo de trabalho, com vários regimes de contrato em convivência. Quando se vai para setores do mercado informal, vê-se que a situação é ainda mais diferente. Parte do setor de comércio e serviços hoje é formada de ambulantes que apenas conseguem ter um pequeno patrimônio e a propriedade das mercadorias. O estatuto de seu trabalho e de suas relações é absolutamente outro, em relação ao típico modelo industrial.

Machado E quais seriam as desvantagens desse "velho-novo" tipo de relação de trabalho?

Minayo O fundamental é a falta de reconhecimento social das atividades informais que, no Brasil, sempre existiram, mas nunca no grau de intensidade que ocorre hoje. É patente a ação paradoxal do estado em relação a esse tipo de trabalhadores. A maioria das vezes os considera marginais; noutros momentos investe clientelisticamente na solução da sua informalidade. É o caso do transporte feito por "vans" no Rio de Janeiro e dos "perueiros" em São Paulo. Sem contar os tipos de relações políticas criminosas de autoridades que os exploram. Exemplos recentes desse problema são as extorsões contra ambulantes cometidas por policiais e fiscais de São Paulo, com cumplicidade ou comando de políticos e autoridades, situações que infernizam a vida dos trabalhadores informais.

Machado Você acha que a perspectiva seria regulamentar as relações do trabalho informal, mesmos considerando toda a força hegemônica do capital e do estado puxando para a desregulamentação do trabalho? Levando em conta, inclusive a necessidade de se garantir seguridade social, e algum tipo de representação como canal de negociação e direitos mínimos? Uma contradição que merece ser discutida é que na vigência de contratos precários, os trabalhadores que exercem a liderança de grupo viram capatazes e as situações críticas ficam mais perigosas ainda, como foi por nós constatado nas pesquisas sobre os trabalhadores nas atividades de jateamento na indústria naval no Rio de Janeiro. Comente esses problemas.

Minayo Nesse terreno o papel do Estado, dos estados e dos municípios infelizmente tem sido desenvolver uma política de continuidade de jogo de interesses. Os espaços de trabalho da informalidade têm que estar garantidos em algum instrumento de contrato do poder local e das outras instâncias quando for o caso. Um mínimo de estabilidade é fundamental como garantia mínima inclusive para as famílias.

Machado Você está dizendo que mesmo no regime informal é preciso se criar alguma forma de contrato que respeite os mínimos direitos e a proteção do trabalhador?

Minayo Sim. Principalmente porque as formas organizativas desse tipo de trabalhador hoje estão muito vulneráveis, e reproduzindo, pela não-normatização, toda a relação de clientelismo e de corrupção estruturalmente infiltradas no campo político brasileiro. Se hoje a questão da previdência do setor informal começa a ser discutida, a tônica desse debate está dada muito mais pela lógica da arrecadação do que pela convicção do governo em relação ao direito do trabalhador à seguridade social.

Machado Quando tratamos do mercado formal, você não está falando de uma minoria, e sim de 50% de trabalhadores brasileiros, é certo?

Minayo Sim, mas essa massa é muito heterogênea. É muito diferente a situação de alguém que vende cerveja, refrigerante e água nos postos de gasolina ou nos engarrafamentos e daquele que tem uma barraca num espaço determinado com uma clientela mais ou menos estabelecida. O mercado de trabalho informal é um mundo. É preciso, por exemplo, olhar essa situação e perguntar-se se existe alguma vinculação com o aumento da violência urbana, sem, contudo defender que haja uma vinculação funcional entre precarização, desemprego e violência.

Machado Fale especificamente sobre o trabalho na rua, uma vez que esse é um tema que hoje você pesquisa.

Minayo As situações de risco que a rua traz poderiam ser usadas como um indicador qualitativo para se observar em que medida, no setor informal, existem trabalhadores que se acidentam mais ou sofrem com maior intensidade os efeitos da violência, comparando-se esse tipo de trabalhador com o do setor formal, por exemplo. Porém os pesquisadores se deparam com limitações das fontes de informações, o que exige criar dados realizando investigações de campo.

Machado Existe outro segmento da situação de informalidade do qual não falamos antes. São os "trabalhadores" do mercado do narcotráfico, hoje um grande empregador nas grandes cidades e regiões urbanas e em algumas rotas rurais. Como uma das pontas do mundo do trabalho na moderna sociedade mundial, atividade econômica maior do que a indústria bélica, como você pensa essa questão?

Minayo O primeiro ponto a ser considerado é o contingente de pessoas que vivem do tráfico nas grandes metrópoles. A estimativa do Rio de Janeiro, embora bastante imprecisa e controvertida, é de que haja hoje cerca de 100.000 pessoas, direta ou indiretamente, trabalhando no comércio e circulação das drogas. A maioria são jovens, sem alternativas no mercado formal, morrendo como "buchas de canhão". As taxas de mortalidade por causas externas nas grandes metrópoles estão aí para confirmar, dentre outras questões, a vulnerabilidade desse segmento etário.

Machado Está havendo uma articulação da área da saúde do trabalhador com a discussão da violência?

Minayo Certamente e por motivos óbvios. Existe hoje uma espécie de mercado da violência, havendo, nas grandes metrópoles, um percentual considerável de mortes por trabalho em situações de violência. Por exemplo, nosso grupo do CESTEH está caminhando muito nos estudos qualitativos e quantitativos sobre a relação entre trabalho e violência. Estamos analisando dados provenientes dos Boletins de Ocorrência (BO) da polícia civil que revelam a forte associação das mortes de jovens em situações de trabalho precário com ocorrências de conflitos armados. Além da banalização da vida estamos encontrando que muitas dessas mortes vêm agravadas por crueldades, pois as vítimas são encontradas torturadas e humilhadas. À saúde pública cabe atender as pessoas que sobrevivem, mas é a sociedade inteira que vive amedrontada. Sente-se um clima de guerra. Quero reafirmar, portanto, que nossos esquemas anteriores, "certinhos" e próprios para avaliar a saúde do trabalhador forjado e aculturado no mundo industrial, continuam válidos em parte para situações de análise das empresas industriais. Digo em parte porque nessa mesma empresa hoje se misturam trabalhadores estáveis, terceirizados e informais. Porém, quando se trata do mercado informal de trabalho há que se criar novos esquemas, novos métodos, novas interpretações.

Machado A indústria da construção civil é outro tema de seus estudos. Como está aí a situação de informalidade?

Minayo Eu não poderia falar de toda a construção civil no país, meu foco é o Rio de Janeiro. Imagino que as situações sejam semelhantes em outros estados. Tem-se um pequeno núcleo de empresas que concentram grande parte dos investimentos do setor, cujos dirigentes demonstram preocupação com a formação básica dos trabalhadores e também com sua saúde. Mas nos canteiros de obra predomina um formato de relações de produção e de trabalho composto por vários tipos de empresas, revelador de uma terceirização intensiva e extensiva. A nosso ver essa terceirização em cascata é paradigmática em termos de relações precárias de trabalho. Por exemplo, uma empreiteira X vem aqui com sua equipe composta de engenheiro, técnico e peões, contrata um serviço específico, quando acaba de realizá-lo, dispensa o pessoal. Não cumpre as cláusulas elementares dos acordos coletivos da categoria, não paga hora extra, não paga o salário em dia, não tem um refeitório, dentre outros abusos. Constituem minoria, as empresas que não subempreitam, mantendo os mesmos operários em seus quadros funcionais, dando-lhes relativa estabilidade.

Machado Qual a sua opinião sobre nossos programas? Uma das conquistas da área foi a introdução, na saúde pública, da vigilância dos problemas da saúde do trabalhador. De uma certa forma vivemos isso no CESTEH e eu, mais intensamente, com o programa estadual do Rio de Janeiro. Mas em todo o Brasil foram criados programas a partir das experiências das regionais paulistas. O que você acha dessas iniciativas?

Minayo Dois comentários apenas. O primeiro, é que o modelo parte da medicina do trabalho e da engenharia de segurança e delas não se descolam. Esse modelo está voltado para o setor industrial; e em segundo lugar, os programas têm na sua concepção inicial, a demanda dos trabalhadores numa relação estreita com os serviços ambulatoriais de referência. Em relação ao primeiro ponto, continua-se com uma prática reduzida. No que concerne ao segundo, a implantação de serviços dentro de secretarias e sindicatos com o mesmo perfil levou a que o modelo fosse ampliado e mais democratizado, trazendo para o setor saúde, o gerenciamento da saúde dos trabalhadores, antes concentrado nas mãos das empresas.

Machado Mas isso por quê? Por causa da relação com o movimento sindical, ou por uma relação histórica com a medicina de fábrica?

Minayo O marco referencial da saúde do trabalhador se propõe a ultrapassar o paradigma da medicina do trabalho e da saúde ocupacional. Mas está por ela impregnada, principalmente pela formação dos profissionais disponíveis. Se há que implantar um programa com quem se conta? Com médicos do trabalho, fonoaudiólogos, clínicos, assistentes sociais, psicólogos, algum engenheiro, por sorte, um higienista, enfermeiros(as) e pontualmente com outros profissionais. Acho que isso deixa um ponto claro: a prática de atuação se aproxima da concepção de medicina de fábrica e da saúde ocupacional, pois se concentra na ação e inspeção dentro das empresas. Ou seja, tornam-se mais eficientes as inspeções sanitárias, com a presença do sanitarista, mas as intervenções se dão apenas em locais determinados.

Machado Esse é o modelo que está sendo mais eficiente e disseminado, a partir da potencialidade dos municípios?

Minayo Sem dúvida. Porém a questão desafiante é discernir quais seriam os níveis de atuação da saúde pública! Eu acho que não se vai conseguir construir um modelo efetivo no interior do setor saúde. Parece que o modelo mais eficaz seria o que conseguisse articular diversos setores com a potencialidade de intervenção nos condicionantes sanitários.

Machado Seria outro patamar na discussão do perfil de desenvolvimento?

Minayo Na discussão do perfil de desenvolvimento teria que entrar desde a dimensão do município, do distrito sanitário ao âmbito nacional, visando à padronização de algumas ações como gerenciamento de risco, formulação de propostas de mudanças e garantia de direitos. São projetos da e para a sociedade.

Machado Você fala desde a perspectiva da Agenda 21, ou seja, da idéia de municípios saudáveis, de se traçar estratégias intersetoriais de desenvolvimento que contivessem em si uma discussão da saúde, da segurança, da qualidade de vida?

Minayo Sim. As estratégias teriam que ultrapassar a visão de saúde calcada no modelo biomédico. O caso da LER é paradigmático. A LER, para a saúde do trabalhador, vem como a AIDS para a saúde pública.

Machado Qual deveria ser a abordagem da saúde pública? Uma abordagem mais sociotécnica?

Minayo Acho que em toda a história, inclusive na área de saúde do trabalhador, tem ficado muito claro que o desenvolvimento teórico e prático mais adequado se dá a partir da compreensão da problemática intersetorial nos municípios, nos sindicatos, nos estados e na dimensão nacional.

Machado Embora às vezes se utilizem questões como a do amianto e a do benzeno visando mobilizar parceiros em nível nacional, para o desenvolvimento de ações concretas, a permeabilidade e a liderança de atores locais disponíveis no cotidiano é imprescindível, concorda?

Minayo No âmbito local, onde as coisas acontecem, a presença dos atores mobilizados para a mudança é determinante.

Machado E a participação da saúde pública como setor?

Minayo Acontece que muitas vezes os problemas ideológicos, as consignas nos cerceiam. O que é saúde integral, onde se constrói, o que favorece? Estamos com medo das propostas dos novos executivos que não formaram parte do movimento sanitário? Como nos colocamos frente ao programa de saúde da família? Como vencer as barreiras e introduzir aí as questões do trabalho? Freqüentemente, a prática que se estabelece em nossa seara está impregnada por uma análise marxista mecanicista, agregando sanitaristas de serviços, produção de conhecimentos meio acanhada e setores acadêmicos pouco reflexivos. Por isso, as ações pró-saúde do trabalhador freqüentemente permanecem como prática periférica nas demandas ambulatórias e em algumas ações de vigilância.

Machado A experiência brasileira, de uma forma geral, consiste em programas de ambulatórios de referência em medicina do trabalho, com práticas de vigilância epidemiológica passiva. Ainda é um desafio se fazer uma intervenção nos locais de trabalho, apesar do que você tem enfatizado de que a intervenção tem que ser realizada em outros níveis também?

Minayo A introdução do trabalho na saúde pública com seu viés de diagnóstico de doenças é limitante. Na França, por exemplo, essa discussão de nexo vai se construindo com abordagens inovadoras como a de Christofer Dejours, onde a necessidade de vigilância acoplada ao debate sobre nexo causal é feita nos locais de trabalho. Ou seja, no nosso caso, embora o trabalho e o ambiente na saúde pública sejam questões centrais, estão emperradas também por problemas operacionais. Pois se os serviços realizassem inspeções, se fossem cumpridos alguns critérios, como a participação dos trabalhadores, a situação estaria muito melhor. Por outro lado, nem tudo está perdido. Há um consenso no setor de que o trabalho está presente em vários pontos que atravessam a discussão da saúde, como é o caso da violência, de gênero, da AIDS e outros.

Machado Quando se toma a abordagem de municípios saudáveis, emerge também a discussão da promoção da saúde. O tema "ambiente e saúde do trabalhador" está individualizado como referente a um contingente populacional específico. Precisamos de uma postura estratégica para redefinir o sentido dessa problemática no conceito de município saudável e promoção de saúde, para reintroduzi-la na agenda dos serviços de saúde?

Minayo Penso numa Agência de Saúde do Trabalhador. Tem um lado de provocação na exposição dessa idéia. Mas creio que o conceito de agência coloca a perspectiva de ação em outro plano. Ela prioriza o tema. Coloca-o na pauta dos assuntos importantes. Por outro lado, é normativa. Estabelece padrões e fiscaliza se estão sendo ou não adotados. É um espaço para traçar diretrizes dos órgãos de intervenção.

Machado Essa agência, suponho, não seria só da saúde e sim, poderia incluir outros setores da administração pública como a previdência, o trabalho e o meio ambiente, em uma perspectiva de ação interministerial. Tem como entrave um componente clientelista institucional de luta interna entre as repartições. Quando sugerimos que a saúde do trabalhador deveria ser incluída na agência de vigilância sanitária também fomos rechaçados. Você acha que sua idéia seria aceita pelo poder estabelecido?

Minayo É claro que é difícil. Sua colocação como questão política, depende do próprio jogo político. Porém é preciso que primeiro nós mesmos estejamos convencidos de que um órgão coordenador forte criaria a possibilidade de constituir uma política nacional de saúde do trabalhador, hoje totalmente fragmentada.

Machado Para finalizarmos, sinteticamente quais seriam as questões centrais a serem hoje listadas?

Minayo Na perspectiva da revista e seus leitores, a minha provocação ou questão central seria: a necessidade de se compreender porque trabalho e ambiente, questões fundadoras da saúde pública, se dissiparam em múltiplos objetos e disciplinas periféricas. O que os atores da saúde pública conceberam constitui apenas uma teoria compreensiva inviável na prática?

Machado A experiência dos programas mostra que andou mais quem esteve próximo da academia e do Movimento Sanitário. Por outro lado, a academia parece que anda junto, mas vai a reboque. Reproduz o sistema com a dominação dos serviços, reforça a idéia ainda dominante do modelo calcado em centros de referência.

Minayo As últimas questões são muito polêmicas. Poder-se-ia sair para um pergunta de fundamento: a reflexão sobre a saúde do trabalhador é uma conquista dos trabalhadores? Os sujeitos principais não sabem avaliar isso. A presença dos trabalhadores no debate teórico só em alguns casos é orgânica, institucionalizada e reconhecida. A participação, como uma rede de movimentação popular e institucional, é muito escassa. Os atores falam de lugares diferentes, academia, vigilância, serviços, sindicatos, ministério público, legislativo e continua-se em busca de atores e de interlocução. Ou seja, estamos frente a um tema histórico, inacabado, que pela sua importância merece a inflexão teórica e prática da saúde coletiva. Porém, pelos interesses conflitivos que encerra, sempre será alvo de contradições, de dificuldades e de tensões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2000
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