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RESENHAS REVIEWS

Romeu Gomes

Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz

Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. David Le Breton. Papirus Editora, Campinas, 2003, 240pp.

David Le Breton, antropólogo francês, é considerado uma importante referência para aqueles que buscam uma discussão na área dos estudos do corpo. É autor de várias obras que ainda não foram traduzidas para a língua portuguesa. Esta obra, publicada na França em 1999, nos traz um panorama, no mínimo, inquietador acerca do corpo.

Na discussão desse corpo, o autor articula questões contemporâneas relacionadas a: significados construídos socialmente, arte/performance corporal, intervenções da biomedicina, produção farmacológica no cuidar de si, manufatura de crianças, clonagem dos corpos e sexualidade cibernética. O autor tece uma crítica sobre: biologização dos problemas sociais, eugenia corporal, ideologia da exclusão social baseada na genética, simbiose corpo/máquina e utopia da ultrapassagem da dimensão corporal.

Em todo o texto, o corpo é vestido e desnudado para que se possa ter uma compreensão da sua perspectiva como corpo moderno. Nesse cenário, são focalizados os efeitos dos discursos científicos contemporâneos, em que construções e manipulações corporais diluem a identidade pessoal.

O corpo como acessório vai se consolidando na modernidade à medida que a anatomia deixa de ser um destino para dar espaço a uma matéria-prima a ser modelada, a ser redefinida, enfim a se submeter ao design do momento. Sonhos de se agir sobre as fórmulas genéticas do sujeito para modelar tanto a sua forma quanto o seu comportamento vão sendo acalentados pelos avanços científico-tecnológicos. Com esses desejos, uma administração corporal (para atender interesses e sentimentos estéticos); as marcas corporais (que são engolidas pelas ideologias); o body building (traduzido pelo fabricar a si mesmo); a transexualização corporal; o body art (expresso pelas performances) e o corpo parceiro (em que se instala um alter ego que emana sensação e sedução) passam a conviver.

Paralelamente a isso, a produção farmacológica de si pode ser instaurada, medicalizando o humor cotidiano e dando suporte a tecnologias e técnicas que visam, sobretudo, alterar. São procedimentos que visam, dentre outras coisas, alterar o poderio do corpo sobre o mundo; aprimorar capacidades sensoriais; prolongar o esforço; modificar o estado de vigília e superar o cansaço e, em outros casos, conseguir o adormecer.

Nem a criança escapa dessa ingerência sobre o corpo. A criança passa a ser manufaturada. Como diz o autor, A ovulação e a espermatogênese, a fertilidade do encontro sexual fundamentam-se não apenas em uma fisiologia, mas em uma fisio-semântica (isto é, um corpo que faz sentido), uma relação particular com o outro que determina o travamento provisório ou a abertura do corpo (p. 69). Nessa perspectiva, a mãe tanto pode ter o seu corpo corrigido pela medicina, como pode ser um corpo indesejado dando lugar à gravidez fora do corpo.

O corpo na qualidade de rascunho vai incorporando as intervenções da tecnociência reparando-se e rearranjando-se, instaurando-se assim um biopoder. Nessa trajetória os sujeitos dos corpos podem ser aprisionados por ideologias que fazem uma apologia do corpo para dominá-lo ou até mesmo descartá-lo. Nas ciências da vida, para o autor, o corpo rascunho é influenciado por discursos que confundem formas educativas e desigualdades sociais com uma determinação biológica, naturalizando a moral e desconsiderando as diversidades da cultura e do homem.

Como corpo supranumerário do espaço cibernético, o indivíduo, ao mesmo tempo em que se excede, se perde. Diante do apelo virtual, liberta-se das coerções da identidade e, por processos de metamorfose, transforma-se no que quer ou no que querem para eles sem temer o destemido real. O espaço cibernético é uma ferramenta de multiplicação de si, uma prótese da existência quando não só o próprio corpo que se transforma em prótese de um computador onipotente (p. 146). O computador passa a ser uma ambigüidade: tanto pode ser uma oportunidade para as deficiências motoras e os movimentos reduzidos do corpo, como pode provocar inércia motora em seus usuários. Superequipado, o corpo não mais precisa se deslocar para estar em frente de outro corpo. O desejo de estar face a face vai dando lugar ao lugar virtual.

Em meio a esse superequipamento, o sexo pode se tornar cibernético seduzido pela possibilidade de se erradicar do corpo a imperfeição, a temporalidade e a finitude. O único risco do sexo cibernético é o de um curto-circuito no dispositivo ou de um fio desencapado nos vibradores (p. 177). A sexualidade passa a ser pensada como um Eros eletrônico em que o corpo do outro se formata ou se configura a partir de um software.

À primeira vista, numa leitura apressada, podemos ver a obra de Le Breton como uma narrativa de ficção científica que nos aprisiona num corpo cibernético e da qual devemos nos libertar ou acordar para assumirmos o corpo-carne situado no mundo real. Entretanto, o autor, cujo último capítulo é sugestivamente intitulado de "Abertura", nos introduz na possibilidade de criticar representações, utopias, fantasias e realizações sobre o corpo. Com a advertência de que o homem está enraizado em seu corpo para o melhor e para o pior (p. 221), sua mensagem não serve apenas para a biomedicina. Pode também ser remetida para o campo da saúde coletiva para se pensar a saúde da população a partir de uma discussão que contempla tanto o uso ético quanto à subjetivação do corpo. Ele nos faz lembrar que a utopia da saúde não deixa de ser uma utopia do corpo. Sua mensagem não serve apenas para a biomedicina. Nos ajuda a desconstruir/construir as amálgamas em que se mesclam ficção e realidade em torno do adoecer ou do ser saudável.

Luís Davi Castiel

Departamento de Epidemiologia/ENSP, Fiocruz

Trambiclínicas, pilantrópicos, embromeds: um ensaio sobre a gíria médica. Christopher Peterson. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2002, 116p.* * Este texto foi publicado na orelha do livro e autorizada pelo autor e pela editora Fiocruz para publicação nesta seção

Para que servem as orelhas de capa de livro? A resposta óbvia: marcação de páginas durante a leitura. Mas também cumprem funções estéticas e promocionais. Estas últimas se constituem especialmente na apresentação (favorável, claro) da obra do autor. Curiosamente, tais orelhas não foram feitas para escutar. Mas para falar. Esta catacrese de origens biológicas (catacrese – metáfora que se cristalizou) destaca os aspectos anatômicos em detrimento dos funcionais. Um "jogo de esconde/mostra" que costuma ocorrer com metáforas, analogias etc. Pois mostrar o escondido também caracteriza o presente texto.

Oportuno o fato de "orelha de capa" consistir em figura de linguagem. Serve muito bem para apresentar a (realmente) primorosa, original e fascinante obra de Christopher Peterson. Trata-se de uma peculiar jornada ao alado dentro dos ambientes médico-assistenciais onde (e quando) profissionais de saúde falam/escutam uns aos outros sobre suas atividades. Nessas horas empregam variadas figuras de linguagem para fazer chistes, troças, comentários jocosos – a gíria médica. Em síntese, críticas às diversas características, injunções, inconveniências e inadequações de seu métier. Procedentes ou não.

Esses são momentos em que aparece o mundo paralelo, particular (tanto no sentido de singular como de reservado) dos bastidores da medicina, lugar onde pacientes não costumam transitar. Ao lado dos aspectos elevados e dedicados nas lutas visando à resolução de problemas de saúde dos pacientes, também emanam humores cáusticos e inevitavelmente mórbidos.

Somente um médico tradutor com a perspicácia, os recursos literários e o senso de humor de Peterson (que se tornou médico no Brasil) poderia produzir uma obra com a leveza, a densidade e as preocupações éticas e morais como esta que o virtual leitor tem em mãos.

Uma viagem, de certa forma "voyeurística" em direção ao lado menos acessível, íntimo, "lá de dentro" das instituições de saúde. Uma leitura que, decerto, irá levar-nos a risos. Mas, também, sobretudo, à indignação decorrente da observação da chocante realidade que se apresenta quando se percorrem lugares e papéis tanto de profissionais de saúde (que alguns elegeram como atividade profissional) quanto de pacientes (que todos, eventualmente e a contragosto, somos obrigados a ocupar).

E por falar em orelha, Trambiclínicas, pilantrópicos, embromeds: um ensaio sobre a gíria médica serve para mostrar que neste país adotado por Peterson para viver, ainda permanece vigorando um Estado afetado por crônicos problemas de escuta para muitos gemidos e queixas daqueles que povoam este mundo de dores e sofrimentos que não precisavam nem deveriam existir.

Luiz Eduardo Soares

Professor de Ciências Políticas (UERJ)

Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Organizado por Maria Cecília de Souza Minayo et al. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2003, 284pp.

As obras dedicadas à vasta e complexa problemática da violência tematizam seu objeto por ângulos distintos: ora privilegiando a reflexão teórico-conceitual; ora focalizando aspectos metodológicos, segundo perspectivas qualitativas ou quantitativas; ora circunscrevendo-o historicamente e elaborando-o política, cultural e socialmente; ora recortando-o por um prisma naturalista, biológico; ora abordando-o sob uma ótica psicológica; ora submetendo-o à disciplina do direito; ora tratando-o segundo viés filosófico; ora dedicando-se a descrever, classificar e comparar suas manifestações e seus efeitos; ora concebendo, propondo ou relatando experiências de políticas públicas destinadas a controlar sua incidência. Raras, raríssimas, são aquelas que compreendem a multidimensionalidade do objeto, em um único movimento hermenêutico-cognitivo de apreensão, amparado simultaneamente na densidade de estudos especializados e na ousadia transversal de pesquisas transdisciplinares.

O livro Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira é um exemplo precioso dessa combinação excepcional na vida acadêmica e no debate público qualificado: passa a limpo a produção brasileira, lançando olhares a contribuições internacionais com radical disposição transdisciplinar, ao mesmo tempo em que, com sofisticação metodológica e consistência empírica, revisa os dados nacionais, regionais, estaduais e locais sobre as chamadas mortes por "causas externas", isto é, provocadas por práticas que precipitam a morte em corpos com saúde suficiente para reproduzir as condições necessárias à extensão da vida. Morte de homens e mulheres saudáveis constitui um problema que se poderia diagnosticar como a "doença" da sociedade, a patologia de fatores exógenos ou uma questão de saúde pública.

Celebrando quinze anos do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves), as professoras Cecília Minayo e Edinilsa Souza, com 22 auxiliares, presenteiam pesquisadores, especialistas e o público interessado com um notável tour de force intelectual que se tornará referência obrigatória na área dos estudos sobre violência, saúde pública, criminalidade, segurança no trânsito, no trabalho e no espaço doméstico, vitimização de mulheres, idosos, crianças e adolescentes, vulnerabilização de determinados grupos sociais, drogas e participação da mídia nesse conjunto heterogêneo de dinâmicas.

A leitura é desafiadora e desestabiliza imagens unilaterais, reducionistas, unidimensionais e simplificadoras de fenômenos e processos, causas e conseqüências. Por outro lado, o constante questionamento de fundamentos, pontos de vista, teorias e métodos de observação, descrição e análise não vem acompanhado de retórica pretensiosa ou do mais leve traço de arrogância. Pelo contrário, procura-se aproveitar com generosidade ecumênica e includente, avessa a todo dogmatismo e refratária ao ecletismo acrítico e diluidor, as mais diversas contribuições, provenientes dos mais diferentes campos do conhecimento, sem prejuízo da acuidade seletiva e da lucidez que hierarquiza, exclui, nega e supera versões e visões.

Aprendemos que os homicídios dolosos já constituem a segunda causa de mortes no Brasil e, em certas faixas etárias, a primeira. Entre as causas externas, os "acidentes de trânsito" ocupam o segundo lugar, se submetermos os tipos de vitimização a uma desalentadora competição trágica. A tendência tem sido o crescimento dos homicídios, que já representam uma epidemia. Os suicídios se multiplicam no sul. As faixas etárias que correspondem à juventude concentram o risco de vitimização letal, mas os indicadores variam conforme a região do país. Portanto, é preciso evitar as generalizações quanto aos tipos de violência, aos locais e aos demais fatores geográficos, sociais e individuais. O que não varia é o gênero da vítima: nos principais casos observados, os indivíduos do gênero masculino são mais suscetíveis aos processos de vitimização.

Esta obra, que comemora quinze anos de vida institucional, consagra a maturidade reflexiva, a extensão do interesse, a riqueza das pesquisas e a consistência das conclusões sintéticas sobre a história recente brasileira e a trajetória intelectual que cumprimos, no campo de estudos sobre a violência. Por adotar o viés da saúde pública, trabalhar com os dados do SUS e do Ministério da Saúde, sem sucumbir à medicalização da problemática sociocultural, essa reunião de estudos propõe e realiza um diálogo que lança novas luzes sobre dimensões freqüentemente negligenciadas. Violência sob o olhar da saúde demonstra por que o Claves tornou-se protagonista central, no campo das instituições especializadas no estudo da violência, em seus múltiplos aspectos. Formulação e implantação de políticas públicas não podem prescindir das reflexões e informações aqui reunidas. Quem quiser entender e fazer alguma coisa para reduzir a magnitude de nossa tragédia cotidiana não pode adiar a leitura deste livro.

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    Este texto foi publicado na orelha do livro e autorizada pelo autor e pela editora Fiocruz para publicação nesta seção
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      2004
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