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Saúde bucal coletiva, bucalidade e antropofagia

Collective oral health, buccality, and anthropophagy

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Saúde bucal coletiva, bucalidade e antropofagia

Collective oral health, buccality, and anthropophagy

Paulo Capel Narvai

Faculdade de Saúde Publica, USP. pcnarvai@usp.br

E uma luz vasta brilhou no cérebro dele.

Se ergueu na jangada e com os braços

oscilando por cima da pátria decretou solene:

­ Pouca saúde e muita saúva, os males

do Brasil são!

Mário de Andrade, em Macunaíma1.

O que une Carlos Botazzo, um pós-moderno, a Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos e Oswald de Andrade, entre outros modernistas? Une-os a Antropofagia, cuja "chave" está lá no Manifesto Antropófago: tupi, or not tupi that is the question. "Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente", escreveu Oswald de Andrade em "Piratininga, ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha" (Andrade2). Vale lembrar que os índios antropófagos comiam o inimigo por suporem que, assim, manducando nestes tristes trópicos, assimilavam suas qualidades. Os modernistas trataram de recuperar o lato sensu dessa manducação para se autodefinirem como antropófagos propondo-se a devorar o produto importado e, reelaborando-o com autonomia, transformá-lo em algo novo, original, exportável até.

Os "remotos trópicos latino-americanos", a que aludem Moysés & Sheiham3, nos recolocam diariamente o dilema shakespeariano, transmutado antropofagicamente pelos modernistas brasileiros. Tupi, or not tupi? Por essas longínquas bandas do planeta, identificadas como "extremo Ocidente" por um obscuro diplomata francês e, sobretudo, na paulicéia desvairada dos Andrades do século 20 e dos Antunes do século 21, não se resiste à tentação de, tendo de engolir, então engolir de tudo sem qualquer preconceito ­ e regurgitar. Regurgitar sempre, nunca deixar de fazê-lo. O produto desse vômito cultural é, contudo, uma síntese na qual já não se pode mais identificar a individualidade do que se teve de engolir. Mas, paradoxalmente, está tudo ali, reconhecível ­ sendo, porém, outra coisa. Basta ver a literatura, a música, as artes plásticas e toda a produção cultural modernista. É tupi. Mas é, também, not tupi. Shakespeare, claro, enlouqueceria neste extremo Ocidente ao ver sua disjuntiva derreter sob o sol tropical: ser e não ser...

Saúde bucal coletiva é e não é odontologia. É também, mas não é apenas (Narvai4).

Bucalidade é e não é saúde bucal coletiva?

Botazzo flagra (e recusa) o deslocamento histórico que a odontologia faz de Pierre Fauchard para, ao mitificá-lo, subtrair-lhe a historicidade, e identifica algo similar (que também recusa) com o conceito de saúde bucal coletiva (SBC), emergente no Brasil dos anos 80 do século 20 (Narvai5).

Com sua proposição de bucalidade, que contrapõe a certa forma de conceituar Saúde Bucal Coletiva, Botazzo exercita, no melhor estilo antropofágico, sua capacidade de ler, reler e "regurgitar" "outra coisa", a partir não apenas da produção brasileira sobre a prática odontológica mas ampliando o alcance de sua reflexão sobre o assunto para o âmbito mundial ­ e ocupando-se, ainda que indiretamente no ensaio em debate, tanto da produção contemporânea quanto dos clássicos, dos tais "pais da matéria", como o leitor pode comprovar em Da arte dentária (Botazzo6).

Na primeira parte deste ensaio Botazzo se ocupa do "problema da saúde bucal coletiva" e orienta sua análise à crítica de dois trabalhos sobre SBC, publicados recentemente (Narvai4, Moysés & Sheiham3) mas, curiosamente, ignora Odontologia e saúde bucal coletiva (Narvai5), publicação pioneira sobre o assunto. Toma como elementos dialógicos o que denomina "octólogo de Narvai", para constatar que nem sempre os que utilizam o referencial da SBC a situam no campo da Saúde Coletiva (SC), e o questionamento, por Moysés & Sheiham, da SBC como um novo paradigma no campo da saúde. Botazzo rejeita tanto certa SBC exterior à SC, que vê desprovida de conteúdo crítico e na qual se aniquilam as possibilidades de transformação e criação quanto a SBC como um novo paradigma. Nesse tipo de SBC a denominação "saúde bucal coletiva" não seria mais que "um efeito de superfície". Resta nebulosa, contudo, sua rejeição à SBC tal como entendida nos dois textos com os quais dialoga. Mais contundência, nesse caso, por certo não lhe faria mal.

Na segunda parte do ensaio Botazzo aborda a SC como campo de práticas e locus de reprodução social. Como acontece com dez em cada dez analistas da SC lá está nosso autor a discorrer sobre a tão propalada "crise da saúde pública" vista por ele como "ideologia", pois, reduzida a uma "ocorrência externa" e desarticulada "da (re)produção social" e do seu respectivo sujeito, não levaria em conta "a lógica inerente do sistema que a gerou". Mas, de que "saúde pública" fala Botazzo? Seria possível tomá-la nessa abstração atemporal a que fica subsumida? Sem muito espaço para tratar dessa "crise" e aprofundar o debate, essa digressão sobre saúde pública ficou deslocada, "sobrando" no contexto. Para afirmar uma espécie de rejeição à Saúde Pública e enfatizar sua filiação teórica e política à Saúde Coletiva vemo-lo sustentar que a SC incorpora o social, não como variável adicional mas como um campo estruturado no qual a doença adquire um específico significado. Está bem; mas então?...

A propósito, não poderia deixar de assinalar algo que me parece um problema e que não aparece apenas nesse ensaio de Botazzo, mas no discurso da/sobre SC: certa inclinação a, ao polemizar com a Saúde Pública, reduzir a Saúde Coletiva a uma espécie de "ciências sociais e humanas em saúde", na medida em que outros campos ficam implicitamente subalternizados ao serem referidos. Soa como se a afirmação de um campo (ciências sociais, por exemplo) implicasse a desvalorização de outros (as ciências ambientais e a epidemiologia, por exemplo). São recorrentes afirmações sobre as "limitações" das "pesquisas quantitativas", dos "modelos matemáticos", como se estudos dessa natureza fossem mais apropriados à Saúde Pública e se constituíssem num "problema" para a SC. Parece haver, quanto a isso, algum "desconforto" de (não dos...) pesquisadores do âmbito da SC. Infelizmente Botazzo não pode se ocupar em profundidade desse aspecto neste trabalho em debate.

Na parte que constitui o busílis do seu ensaio Botazzo dedica vários parágrafos à bucalidade, apresentada como um "arranjo teórico-metodológico" a partir do qual considera que "uma produção intelectual vigorosa se anuncia" e cuja paternidade atribui a Foucault ­ em As palavras e as coisas, mais exatamente (Foucault7). Pode ser que "o DNA" da bucalidade esteja, conforme quis nosso autor, em Foucault, mas é certo que o zigoto foi produzido mesmo por Carlos Botazzo por meio de, segundo creio, apurada técnica antropofágica...

Nesse trecho do ensaio, Botazzo brinda o leitor com um texto primoroso, aliando brilhantemente rigor teórico e um estilo narrativo saboroso, e apresentando-lhe os "trabalhos bucais" (a manducação, a linguagem e a erótica). Pode-se argumentar que nosso autor apenas atribui novas denominações às tradicionais "funções dos dentes", que se pode encontrar em qualquer bom manual de odontologia: a mastigação, a fala e a estética. Sem dúvida, é possível empobrecer a esse ponto a contribuição de Botazzo, o seu "arranjo teórico-metodológico". Mas tal leitura indicaria apenas superficialidade, um olhar e um pensamento que não ultrapassaria a aparência. Seria desconsiderar o alcance da proposição de manducar como "consumo do mundo" para sobreviver no plano natural, da linguagem como "produção e consumo de palavras", e da erótica como relação amorosa e produção de "atos bucais sexuais". Há no ensaio argumentos suficientes tanto para sustentar teoricamente a bucalidade quanto para rejeitar, como faz o autor, qualquer tentativa de reduzi-la às funções dos dentes.

Uma leitura crítica do "arranjo teórico-metodológico" proposto por Botazzo requer, entre outros aspectos, questionar a aceitação da tese da separação boca-corpo, que permeia a noção de bucalidade ­ e que pode ser identificada nos trabalhos citados no ensaio ­, e o conceito de trabalho bucal. Não há dúvida quanto à recusa, por Botazzo, da separação boca-corpo, ao mencionar as relações orgânicas e a unidade corpórea. O problema é a aceitação de que a odontologia opera essa separação e que, nisso, exatamente nisso, estaria a origem de muitos dos problemas que a bucalidade pretende resolver. Penso que a odontologia não opera essa separação (não a deseja, não a quer, não lhe interessa) e que a origem dos problemas tem outra natureza e outros determinantes. Creio que há, nesse aspecto, dificuldades e insuficiências que o desenvolvimento teórico terá de resolver.

Quanto ao conceito de trabalho bucal, que aparece em oposição à idéia de "funções dos dentes", que Botazzo distingue de "função bucal" mas sem fornecer maiores detalhes, é nítido que os termos que compõem a expressão requerem alguma explicação. Trabalho é categoria filosófica de tal modo importante, e tão central na experiência humana, que soa estranho encontrar o termo nesse contexto. Por mais que se argumente a respeito de uma fisiologia bucal, quem "trabalha"? Quem é o sujeito do "trabalho"? A boca? Que boca, de quem? Não se estaria, então, aí sim ­ e como se isto fosse possível ­ apartando boca e corpo? O mesmo se aplica à noção de "produção social da boca humana". É possível pensar a "produção social" de partes do ser humano? Produção social das mãos, dos olhos, das pernas, pés e outras partes do corpo? Admitir a noção de "produção social da boca humana" não levaria à aceitação da fragmentação corpórea, tão criticada nas práticas médicas contemporâneas, de inspiração flexneriana? Não conduziria, justamente ao contrário do que pretende nosso autor, à separação boca-corpo? Se não decorrerem apenas de minha incompreensão, estas são algumas das insuficiências e problemas do "arranjo teórico-metodológico" que, numa perspectiva crítica, devem ser apontadas e resolvidas.

Cabe assinalar, ainda, que pode ser, como afirma Botazzo, que "a saúde não se esgota na forma clínica" e que a "teoria odontológica [...] não dá conta de recuperar o homem por inteiro" abrindo-se, em decorrência, infinitas possibilidades de produzir conhecimentos e práticas a partir do referencial da bucalidade. Mas do que se fala quando se fala em "clínica", em "clínica ampliada", e em "saúde"? Como lidar com a "doença" sem "enfrentar" as limitações da clínica (mesmo "ampliada")? Pode-se falar em "saúde" desarticulando-a de "doença"? Pode-se clivar dessa forma o binômio saúde-doença? Com que conseqüências? O que fazer com a dimensão "doença" do binômio? Por essa razão é preciso considerar, tal como faz a SBC, que a "saúde" (bucal, no caso) das populações não resulta apenas das práticas de saúde (da prática odontológica, no caso), mas de processos sociais complexos dos quais resultam manifestações biológicas (higidez ou lesões) em indivíduos que vivenciam experiências de sanidade e de dor e sofrimento únicas, singulares. Tal concepção implica (e, num certo sentido, impõe) à Saúde Bucal Coletiva uma ruptura epistemológica com a odontologia, cujo marco teórico assenta-se nos aspectos biológicos e individuais ­ nos quais fundamenta sua prática ­, desconsiderando em seu fazer essa determinação de "processos sociais complexos". Parece relevante assinalar que, no modo de produção capitalista, tal prática produz o que Narvai5 caracterizou como odontologia de mercado, na qual essa base biológica e individual articula-se à transformação dos cuidados de saúde em mercadorias, solapando a saúde como bem comum sem valor de troca e impondo-lhes as deformações mercantilistas e éticas sobejamente conhecidas. Em seu texto, Botazzo não esclarece como a bucalidade, na qualidade de "arranjo teórico-metodológico", pretende lidar com essas questões. Não está claro, ainda, se o autor reconhece a bucalidade no âmbito da SBC ou como noção que lhe é contraposta. Ao afirmar que está propondo um "outro arranjo teórico-metodológico, agora denominado bucalidade", Botazzo parece indicar que não situa a bucalidade no âmbito da SBC mas a vê como algo que se lhe contrapõe. Essa articulação/desarticulação da bucalidade com a SBC requer esclarecimentos e, certamente, implica prosseguimento do debate.

Por essa razão, resulta relevante assinalar que a ruptura epistemológica que a SBC se coloca implica desenvolver uma práxis que deve romper, dialeticamente, também, com a prática odontológica hegemônica em nosso meio (Narvai4). Tal ruptura requer que o trabalho odontológico seja desenvolvido a partir das necessidades das pessoas (de todas as pessoas) e que, opondo-se à lógica do mercado, rompa, portanto, com o status quo, caracterizado fundamentalmente pela mercantilização dos serviços e pela manutenção do monopólio do acesso aos recursos (todos os recursos) odontológicos pelas elites. Nesse sentido, Botazzo afirma em tom crítico que Narvai4vincula o conceito [de Saúde Bucal Coletiva] quase imediatamente aos serviços de saúde. É correta sua leitura. É preciso, contudo, posicionar com clareza a bucalidade quanto a esses aspectos.

Embora o conceito de SBC não esteja vinculado apenas aos serviços de saúde é inegável que, mesmo projetando seu horizonte para tempos longínquos no futuro, a SBC tem a pretensão de transformar os serviços de saúde e os cuidados odontológicos produzidos na contemporaneidade. Essa é uma tarefa política cujo empreendimento requer o aporte de múltiplas disciplinas científicas, várias formas de conhecimento, engajamento, pactuação e, sobretudo, inequívoco posicionamento numa sociedade dividida em classes. A tarefa política da SBC não comporta neutralidade, muito menos admite as deformações de significado criticadas de modo veemente no texto em debate.

É preciso, em decorrência, afirmar e reafirmar que é inerente à SBC uma dupla pretensão: de um lado, quer desodontologizar a saúde bucal; de outro, quer assegurar a todos acesso aos recursos de que necessitem para que cuidados odontológicos sejam, efetivamente, um direito humano. Para essa tarefa, seja bem-vinda a bucalidade e a contribuição teórica de Carlos Botazzo.

Referências

1. Andrade M. Macunaíma ­ o herói sem nenhum caráter. 6a ed. São Paulo: Martins; 1970.

2. Andrade O. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia 1928; 1(1).

3. Moysés SJ & Sheiham A. A saúde bucal coletiva: personagens, autores ou Pirandello de novo? In: Kriger L, organizador. Promoção de saúde bucal: paradigma, ciência, humanização. Rio de Janeiro: Artes Médicas; 2003. p. 387-442.

4. Narvai PC. Saúde bucal coletiva: um conceito. Odont & Soc 2001; 3(1-2): 47-52.

5. Narvai PC. Odontologia e saúde bucal coletiva. São Paulo: Hucitec; 1994.

6. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec-Fapesp; 2000.

7. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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