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Estágio em psicologia escolar e educacional: ruptura com a medicalização da educação

Internship in school and educational psychology: breaking with education medicalization

Pasantía en psicología escolar y educacional: ruptura con la medicalización de la educación

A Psicologia Escolar e Educacional é uma área de estudos e de atuação da Psicologia que compreende o fenômeno educacional como resultado das relações que se estabelecem no interior da escola. A escola deve ser compreendida a partir de elementos como as políticas educacionais, pela história local de sua constituição enquanto instituição, como referência educacional pelos sujeitos que a constituem e nela se constituem, além de aspectos sociais e ideológicos (Patto, 2008Patto, M. H. S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Souza 2009Souza, M. P. R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional,13(1), 179-182.).

A escola reflete as desigualdades sociais, econômicas e culturais e também as reproduz. Historicamente, os alunos que apresentam dificuldades são encaminhados para trajetórias caracterizadas pelo fracasso escolar, permeadas por sofrimento e exclusão. Atualmente, muitos desses alunos, com base na concepção de que o fracasso escolar se deve às disfunções neurológicas, são diagnosticados com pretensas doenças do não aprender, incluindo-se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios de aprendizagem, a dislexia, doenças que nunca foram comprovadas.

Para Moysés e Collares (2010)Moysés, M.A., & Collares, C. A. L. (2010). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 71-110). São Paulo: Casa do Psicólogo., esse fenômeno se refere à medicalização da educação que busca transformar problemas do sistema educacional em doenças que a medicina poderia resolver. Para as autoras, esse movimento transfere para o campo médico, questões coletivas, de ordem social e política, reduzindo-as a aspectos biológicos, isentando de responsabilidade outras instâncias de poder. O resultado é a individualização e a culpabilização das crianças e adolescentes.

Todos esses elementos citados precarizam as relações construídas na escola, provocam sofrimento em todos os seus atores, prejudicam a qualidade do processo de ensino e aprendizagem e revelam uma complexidade que será enfrentada pelo psicólogo escolar e educacional.

Souza (2009Souza, M. P. R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional,13(1), 179-182., 2010Souza, M. P. R. (2010). Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 57-67). São Paulo: Casa do Psicólogo.) traz alguns desafios para a formação e atuação do psicólogo escolar educacional: superar a concepção e atuação profissional a partir de uma perspectiva adaptacionista; compromisso social com a construção de uma escola democrática e de qualidade; a construção de uma práxis psicológica frente a queixa escolar; romper com práticas medicalizantes na instituição educacional.

O objetivo desse texto é descrever um relato de experiência que se refere ao acompanhamento de uma turma do curso de Psicologia de uma instituição de Ensino Superior Privada do Rio Grande do Norte na disciplina de estágio básico em Psicologia Escolar e Educacional, ministrada no primeiro semestre de 2013; relatar a trajetória dos estagiários a partir da imersão em instituições educacionais públicas e sua contribuição para a formação dos estudantes, tendo em vistas os desafios colocados por Souza (2009Souza, M. P. R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional,13(1), 179-182., 2010Souza, M. P. R. (2010). Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 57-67). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

A proposta do estágio foi apresentada às equipes gestoras, de escolas públicas de ensino fundamental e médio, que relataram algumas queixas escolares relacionadas a algumas turmas, como por exemplo: indisciplina, violência, desinteresse pela escolarização, distanciamento da família, desestrutura familiar, transtornos de aprendizagem como dislexia e transtorno de déficit de atenção (TDAH).

Os estagiários foram divididos em grupos de 3 a 4 pessoas, acompanharam 15 turmas de alunos distribuídas em 8 escolas, realizaram 6 a 7 visitas a campo, quando desenvolveram as seguintes atividades: investigação da história da escola, entrevistas com equipe gestora, professores e demais funcionários, 4 a 5 encontros com as turmas indicadas, observação de diversos momentos da rotina escolar (entrada e saída dos alunos, intervalo, aula vaga, uso da biblioteca, sala de multimídia e de informática, reunião de pais) leitura do projeto político pedagógico, discussão e planejamento das atividades com os professores das turmas. As supervisões aconteciam antes de cada visita a campo para reflexão, problematização, discussão de textos e planejamento da próxima visita à instituição.

Durante as primeiras supervisões os estagiários relataram experiências de intenso sofrimento devido à compreensão da realidade das instituições educacionais públicas, caracterizada por: infraestrutura precária; falta de ventilação, iluminação, material de limpeza; sem manutenção das instalações impedindo o uso de espaços como quadra; ausência de refeitório; bibliotecas não utilizadas; falta de merenda e de transporte escolar que causava cancelamento das aulas; muitas aulas vagas; ausência de espaços de reflexão e troca de experiências; utilização de estratégias de homogeneização na formação de turmas; discurso da instituição em relação aos alunos e seus familiares com preconceitos ligados à raça, gênero e classe social. Para Souza (2007)Souza, B. P. (2007). Funcionamentos escolares e produção do fracasso escolar e sofrimento. Em Souza, B. P. (Org.), Orientação à queixa escolar (pp. 241-278). São Paulo: Casa do Psicólogo., esses problemas caracterizam ambientes escolares que produzem fracasso escolar e sofrimento em muitas instituições educacionais públicas.

O contato com a equipe gestora, principalmente com a coordenação pedagógica, revelou centralização de poder de decisão, resolução de conflitos de sala de aula a partir de ações autoritárias, como ameaças e punições, restando pouca disponibilidade de tempo para o trabalho de orientação e apoio pedagógico à equipe. A ação em conjunto com os professores possibilitou compreender que trabalhavam isoladamente, com precário material didático, baixos salários e desvalorização profissional. No geral, a equipe encontrava-se desanimada, frustrada, apresentando estresse e descrédito em relação aos alunos e às políticas educacionais.

Os pais que participaram valorizavam os professores e a escola. Percebiam a grande quantidade de aulas vagas provocadas pelas faltas dos docentes e por disciplinas sem docentes. Não reclamaram da qualidade da aula dos professores, apenas da relação com seus filhos, muitas vezes desrespeitosa e autoritária. Todas as escolas estabeleciam relação hierárquica com os pais, que por sua vez, não encontravam espaço de escuta e participação e eram culpabilizados pelos problemas vivenciados pela instituição.

As turmas de alunos trouxeram muitas queixas relacionadas aos professores, gestores, infraestrutura da escola, aos colegas e familiares. Queixaram-se de não serem vistos como crianças e adolescentes, de não terem espaço de escuta e acolhimento de suas manifestações. A percepção de aulas desmotivantes, monótonas, professores impacientes e autoritários, relatos de experiências de humilhação, faziam com que desacreditassem em sua capacidade de aprender e desistissem de pensar no futuro.

Para os profissionais e para as turmas que participaram do estágio, ter vivenciado um espaço em que podiam falar o que pensavam e sentiam, possibilitou o fortalecimento de seus potenciais. A relação entre equipe e alunos ficou mais horizontal, flexível e aberta. Aquelas crianças e adolescentes que inicialmente não paravam quietas, que não eram capazes de refletir, dar opinião e realizar uma produção escrita, ao final dos encontros, faziam tudo isso. Os encontros tinham contribuído para a problematização da queixa vivenciada e sua ressignificação (Checchia, 2010Checchia, A. K. A. (2010). Adolescência e escolarização numa perspectiva crítica em Psicologia Escolar. Campinas: Alínea.).

As supervisões possibilitaram que os estagiários pouco a pouco realizassem uma ruptura epistemológica de uma visão adaptacionista da Psicologia, que percebessem a complexidade do fenômeno escolar e o quanto explicações reducionistas como a desestrutura familiar, a violências das comunidades, as supostas doenças do não aprender eram superficiais e preconceituosas, buscavam reduzir e culpabilizar ora o aluno, ora a família ora os professores e gestores (Asbahr, Martins, & Mazzolini, 2011Asbahr, F. S. F., Martins, E., & Mazzolini, B. P. M. (2011). Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos. Psicologia em Estudo, 16(1), 157-163.). Compreendiam a necessidade da construção de uma práxis frente à queixa escolar que possibilitasse o trabalho participativo com todos os setores do processo educativo, o fortalecimento do trabalho do educador, a análise coletiva dos diferentes discursos para o enfrentamento dos desafios e ruptura de práticas medicalizantes. Apresentavam outro posicionamento ético e político, o compromisso com a luta por uma escola democrática e de qualidade (Souza, 2010Souza, M. P. R. (2010). Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 57-67). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

  • O presente artigo foi parcialmente apresentado no III Seminário Internacional "A Educação Medicalizada – reconhecer e acolher as diferenças", realizado de 10 a 13 de Julho de 2013 em São Paulo.

Referências

  • Asbahr, F. S. F., Martins, E., & Mazzolini, B. P. M. (2011). Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos. Psicologia em Estudo, 16(1), 157-163.
  • Checchia, A. K. A. (2010). Adolescência e escolarização numa perspectiva crítica em Psicologia Escolar. Campinas: Alínea.
  • Moysés, M.A., & Collares, C. A. L. (2010). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 71-110). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Patto, M. H. S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Souza, B. P. (2007). Funcionamentos escolares e produção do fracasso escolar e sofrimento. Em Souza, B. P. (Org.), Orientação à queixa escolar (pp. 241-278). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Souza, M. P. R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional,13(1), 179-182.
  • Souza, M. P. R. (2010). Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 57-67). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2013
  • Aceito
    07 Jun 2014
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