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O desafio do trabalho em equipe na atenção à Saúde da Família: construindo "novas autonomias" no trabalho

The challenge of teamwork in providing Family Healthcare: building "new autonomies" in the workplace

DEBATES

O desafio do trabalho em equipe na atenção à Saúde da Família: construindo "novas autonomias" no trabalho

The challenge of teamwork in providing Family Healthcare: building "new autonomies" in the workplace

Maria Cecília Puntel de AlmeidaI; Silvana Martins MishimaII

IProfessora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. <cecilia@eerp.usp.br>

IIProfessora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. <smishima@glete.eerp.usp.br>

O título do texto de Francisco Eduardo Campos e Soraya Almeida Belisário colocado para o debate sugere, a princípio, que os autores irão discorrer sobre a formação profissional e educação continuada dos diversos profissionais e trabalhadores da área da saúde no Programa de Saúde da Família, contudo, os mesmos se atêm à prática e formação médicas. Refazendo o percurso histórico buscando localizar o processo de introdução do Médico de Família a partir, principalmente da década de 70, os autores assinalam aspectos relativos à formação destes profissionais assim como da articulação destas questões com o cenário brasileiro diante das políticas públicas de saúde.

Embora os autores assinalem que a Saúde da Família1 1 Aqui intencionalmente utilizamos a terminologia Saúde da Família, por considerarmos importante tratá-la como uma estratégia político assistencial para o estabelecimento de uma nova lógica de assistência à saúde. Ainda, de certa forma, como um modo de buscar romper com uma matriz bastante forte na área da saúde, que é de considerar os programas como estruturas verticalizadas na atenção à saúde, com pouca articulação no conjunto da assistência prestada. traz para a arena das discussões outros elementos que a fazem ser o palco de "possibilidade de humanização e responsabilização" e não de "medicina de excluídos", uma questão fundamental que se coloca para este debate e que tem sua tradução nos documentos oficiais do Ministério da Saúde, e que foi apresentada rapidamente no texto, diz respeito a considerar o estabelecimento de equipes multiprofissionais como um dos elementos chave para o desenvolvimento do trabalho na Saúde da Família.

O movimento na direção de construir, conceitualmente e na prática concreta dos serviços, o trabalho em equipe não tem sido um esforço exclusivo da Saúde da Família. Entretanto a revisão do papel do médico como central e hegemônico na equipe de saúde, que pode se desdobrar em valorações hierárquicas e desigualdades sociais entre os trabalhos dos agentes, é imperativa. Compreendemos que a Saúde da Família pode se abrir para além de um trabalho técnico hierarquizado, para um trabalho com interação social entre os trabalhadores, com maior horizontalidade e flexibilidade dos diferentes poderes, possibilitando maior autonomia e criatividade dos agentes e maior integração da equipe. Este é um dos grandes desafios que se coloca para as equipes de saúde que vêm se inserindo na Saúde da Família. Se esta integração não ocorrer, corremos o risco de repetir o modelo de atenção desumanizado, fragmentado, centrado na recuperação biológica individual e com rígida divisão do trabalho e desigual valoração social dos diversos trabalhos. Para a construção do projeto de saúde da família é necessário que a equipe construa um projeto comum e para tal os trabalhos especializados de cada profissional se complementam e os agentes podem construir uma ação de interação entre trabalhadores/trabalhadores e entre esses e os usuários.

Sem dúvida este movimento passa a exigir um processo de formação e capacitação permanente de todos os profissionais envolvidos, pois como assinalam Campos & Belisário, há uma "carência de profissionais em termos quantitativos e qualitativos" que possam imediatamente responder a este desafio de estabelecer um plano de ação que se volte para um "olhar vigilante e uma ação cuidadora" sustentados por uma atuação multiprofissional e iluminados por uma construção interdisciplinar, com responsabilidade integral sobre a população adscrita, sendo esta compreendida como parceira da equipe de saúde.

Peduzzi (1998) observa que a interdisciplinaridade diz respeito à produção do conhecimento. Tem, portanto, caráter epistemológico; é a integração de várias disciplinas e áreas do conhecimento. A multiprofissionalidade diz respeito à atuação conjunta de várias categorias profissionais. O trabalho em equipe na saúde da família requer a compreensão das várias disciplinas para lidar com a complexidade que é a atenção primária, a qual toma a saúde no seu contexto pessoal, familiar e social, bem como a promoção da saúde, e prevenção e reabilitação, trazendo a intersetorialidade como parceira na resolutividade dos problemas de saúde.

É importante assinalar que as atribuições técnicas de cada um dos profissionais previstos no PSF – médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, agente comunitário de saúde - encontram-se arroladas no documento do Ministério da Saúde (Brasil, 1998, p.13), sendo inclusive enfatizado que estes devem "estar identificados com uma proposta de trabalho que exige criatividade e iniciativa para trabalhos comunitários e em grupo". Contudo, um rol de atividades e funções, buscando definir um perfil mínimo para atuação, não é suficiente para um trabalho em saúde compartilhado, humanizado, com responsabilização e vínculo com a comunidade, reconhecendo a saúde como direito de cidadania. Quando consideramos que a unidade produtora dos serviços de saúde não é um profissional isoladamente, mas sim a equipe; que o foco central de atenção não é o indivíduo exclusivamente, mas a família e seu entorno; que as intervenções necessárias para proporcionar o cuidado à saúde devem se sustentar no conhecimento que contemple as determinações bio-psico-sociais da saúde-doença e cuidado e na autonomia e responsabilização dos profissionais com os usuários, famílias e comunidade; a assistência à saúde passa a ter a característica central de um trabalho coletivo e complexo, em que a interdisciplinaridade, bem como a multiprofissionalidade são necessárias.

Neste sentido, são extremamente pertinentes as discussões de Campos (1997) quando traz a idéia do que seja campo de competência e de responsabilidade e de núcleo de competência e de responsabilidade. "Por núcleo entende-se o conjunto de saberes e responsabilidades específicos a cada profissional" (p.248). Portanto, cada profissional (médico, enfermeiro, dentista, farmacêutico, agente comunitário e outros) tem seu núcleo específico de competência. Poderíamos pensar, no caso do médico, a possibilidade de estabelecer o diagnóstico individual frente a uma situação clínica e a instituição do tratamento adequado, sem dúvida de importância fundamental e necessária ao cuidado de saúde. Já em relação ao enfermeiro, poderíamos considerar seu núcleo de competência centrado em três dimensões: o cuidado de enfermagem; o monitoramento das condições de saúde individual e coletiva (por meio de consulta individual e/ou em atendimento grupal), as ações gerenciais voltadas ao cuidado (Peduzzi, 2000). "Por campo entende-se os saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a vários profissionais ou especialidades" (Campos, 1997, p.249). Por exemplo, o conhecimento que toda a equipe de trabalho deve ter sobre os princípios básicos do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as diretrizes que norteiam o PSF como a humanização do atendimento, a responsabilização e o vínculo dos profissionais com os usuários e as famílias e outros.

Peduzzi (1998), ao estudar a equipe multiprofissional e o trabalho em saúde que emerge como modalidade de trabalho coletivo, traz a tipologia de trabalho em equipe, definida pela autora como equipe agrupamento e equipe integração e como se configura a relação dialética entre intervenção técnica e interações sociais entre os agentes. A autora se fundamenta em Marx e Habermas, para estudar a equipe multiprofissional em saúde, ou seja, na dialética do trabalho e da interação.

Como os núcleos de competência e responsabilidade (Campos, 1997) referem-se aos saberes específicos de cada profissional que se fazem presentes nas diferentes situações com o desenvolvimento de intervenções técnicas específicas, isto remete à autonomia dos profissionais, mas ao mesmo tempo à interdependência destas autonomias. Como estabelecer espaços de negociação para uma atuação integrada? Para que haja uma equipe integração e não equipe agrupamento (Peduzzi, 1998), há necessidade de uma construção dos sujeitos que estão no cotidiano do trabalho. Essa nova construção requer articulação das ações e a interação dos agentes, sendo esta última a mais difícil pois não está "normatizada" a priori, requer um compromisso ético e respeito com o outro, com cada um e com todos da equipe e acima de tudo com a clientela.

O núcleo de competência de cada profissional, isoladamente, não dá conta da complexidade do atendimento das necessidades de saúde, portanto é necessário flexibilidade nos limites das competências para proporcionar uma ação integral.

O trabalho multiprofissional refere-se à recomposição de diferentes processos de trabalho que, concomitantemente devem flexibilizar a divisão do trabalho; preservar as diferenças técnicas entre os trabalhadores especializados; argüir a desigualdade na valoração dos distintos trabalhos e respectivos agentes, bem como nos processos decisórios e tornarem consideração a interdependência dos trabalhos especializados no exercício da autonomia técnica, dada a necessidade de autonomia profissional para a qualidade da intervenção em saúde. (Peduzzi, 2000, p.6)

É nesta relação de complementaridade e interdependência e ao mesmo tempo de autonomia relativa com um saber próprio, que entendemos o trabalho dos distintos agentes – médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, agente comunitário de saúde - na Saúde da Família. Articular estes distintos aspectos não é um empreendimento rápido e de um único grupo profissional; requer esforço contínuo para que em todos os espaços possíveis possamos construir a idéia de equipe integração. Integrar conhecimentos disponíveis nos espaços de trabalho, nos espaços de formação, nos espaços de produção de conhecimento, especialmente nos espaços de construção de cidadania. Teixeira et al. (2000), em estudo sobre o trabalho de enfermagem no PSF em um município paulista, identificam na fala dos trabalhadores de enfermagem que outros instrumentos são necessários ao trabalho na Saúde da Família.

Acrescentar 'as agulhas e linhas' ao arsenal já conhecido como 'termômetros e aparelhos de pressão' e, considerar a forma como o PSF em espaços específicos esta construindo este novo indivíduo (integralmente), pode ser um caminho para pensarmos na conquista deste desafio (...) de encontrar na teoria e na prática a totalidade fundamental do ser humano. (Teixeira, 2000, p.198)

Acreditamos que o desafio está colocado, no sentido apontado acima, ou seja, de (re)construir, nos espaços de formação e de capacitação contínua, uma nova visão sobre a integração no trabalho de equipe para que possamos pensar no cuidado à saúde como mais que "um ato, uma atitude" (Boff, 1999).

Recebido para publicação em: 08/06/01.

Aprovado para publicação em: 27/06/01.

  • BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assstência à Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília, 1998.
  • CAMPOS, G.W.S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: MERHY, E.E., ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. cap.7, p.229-66.
  • PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e interação. Campinas, 1998. 254p. Tese (Doutorado) Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP.
  • PEDUZZI, M. A inserção do enfermeiro na equipe de saúde da família, na perspectiva da promoção da saúde. In: São Paulo. Secretaria do Estado da Saúde. Seminário: O enfermeiro no Programa de Saúde da Família. São Paulo, 2000.
  • TEIXEIRA, R.A., MISHIMA, S.M., PEREIRA, M.J.B. O trabalho de enfermagem em atenção primária à saúde - a assistência à saúde da família. Rev. Bras. Enf., v.53, nº 2, p. 193-204, 2000.
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    Aqui intencionalmente utilizamos a terminologia Saúde da Família, por considerarmos importante tratá-la como uma estratégia político assistencial para o estabelecimento de uma nova lógica de assistência à saúde. Ainda, de certa forma, como um modo de buscar
    romper com uma matriz bastante forte na área da saúde, que é de considerar os programas como estruturas verticalizadas na atenção à saúde, com pouca articulação no conjunto da assistência prestada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2001
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