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Literatura e psiquiatria

EDITORIAL

Literatura e psiquiatria* * Tradução de Adela Stoppel de Gueller

Héctor Pérez-Rincón

Quando em 2005 foi criada, por iniciativa do Professor George Christodoulou, a Seção "Literatura e Psiquiatria" da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), durante a Assembleia Geral do Congresso realizado no Cairo no verão desse ano, deu-se um passo importante dentro da empresa intelectual que pôs em destaque a vinculação entre a Medicina Mental e as Humanidades. O tema, entretanto, não era novo e está presente desde a própria concepção da especialidade. Nas palavras de Philippe Pinel: "Poucos objetos na medicina são tão fecundos como a mania (no sentido antigo, como sinônimo de 'loucura') em pontos de contato numerosos, em aproximações necessárias entre essa ciência, a filosofia moral e a história do entendimento humano", ideia que contém o germe do que agora se considera seu caráter de "encruzilhada" entre a biologia e as Humanidades, entre a medicina e a história das mentalidades e, sobretudo, sua condição de fenômeno social. Reconhecia-se, assim, com essa nova seção, o valor de um campo epistêmico que os especialistas, maravilhados pelos progressos da neurociência, esperançosos em obter delas os instrumentos para a criação de uma psiquiatria "realmente científica", consideravam encerrado.

Aqueles que sustentavam a impostação biologicista exclusiva tinham esquecido as palavras do célebre Jean Delay, psiquiatra e escritor (o introdutor da clorpromazina!), em seu Discurso de Entrada à Academia Francesa, em 21 de janeiro de 1960: "A psiquiatria não é só um caminho à Literatura, é a própria Literatura". Que a psiquiatria tenha ingressado no círculo piagetiano das ciências graças às contribuições da neurociência, o que permitiu melhorar suas colocações teóricas e suas ações terapêuticas, não deve ser um obstáculo para que continue sendo, como o foi durante um longo período, um frutífero campo de encontro entre psicopatologia, antropologia, história, sociologia, filosofia e literatura. No início do século XX um renomado fisiologista italiano qualificava a psiquiatria, com certo sarcasmo, como "a poesia da medicina". Que a princípios do XXI seja mais científica e eficiente não impede que conserve essa qualidade se o "poético" alude à sua participação no mundo da palavra, do simbólico, do espírito, da noosfera de Teilhard de Chardin.

No campo "Literatura e psiquiatria", o olhar médico deve considerar, por um lado, a produção literária de alguns especialistas. Dentro da enorme e prestigiosa lista de médicos literatos temos que assinalar os psiquiatras (Jean Delay, Oskar Panizza, António Lobo Antunes, por exemplo) e, por outro lado, o saber ou o valor psicológico que contêm as criações de autores que, sem terem sido médicos, tiveram o gênio de descobrir aspectos relevantes da mente e da conduta que constituem instrumentos de grande valor para compreender cabalmente a natureza humana. Em nossos dias segue sendo válido o conselho que, há um século, Ernest Dupré deu a seus alunos: "Querem apreender psicologia? Leiam os poetas e os romancistas". O especialista contemporâneo deve recuperar o saber que contêm as grandes criações literárias sobre o universo mental, suas paixões, seus conflitos, seus mais recônditos segredos, que não são redutíveis ao mero enfoque neurofisiológico. Já dizia o bondoso Yves Pélicier: "Nunca haverá uma Antropologia baseada nos neurotransmissores". As diferentes síndromes psicopatológicas, as múltiplas arestas do sofrimento humano ocorrem não só na perturbação dos mais íntimos mecanismos do encéfalo, mas na vivência de um homem concreto, em um universo de significações do qual a Literatura oferece uma via áurea de acesso. Assim o entenderam algumas Universidades norte-americanas que incorporaram ao curriculum da especialidade em psiquiatria disciplinas de índole literária para enriquecer a formação dos médicos demasiadamente imbuídos da imagenologia e da clinimetria. Essa apropriação não é, pois, só um enfeite, um luxo, um surplus de alta cultura como saber pintar a óleo ou tocar piano, mas um meio de "compenetração" (a Einfühlung dos fenomenólogos) para uma cabal compreensão do paciente. Esse instrumento intelectivo não é só do interesse dos psicanalistas, mas deve sê-lo de todo aquele que escuta o homem que sofre. A Tragédia grega, por exemplo, ofereceu à psicanálise arquétipos que tiveram longa vida (recentemente, Mauricio Leija descreveu que, antes de Freud, o psiquiatra inglês Joseph Raymond Gasquet descobriu a importância de Édipo Rei de Sófocles para nossa disciplina), e a bibliografia sobre o valor psicopatológico dos characters do Teatro isabelino é enorme. "There is no world without Verona walls" (Romeo and Juliet, Act. 3, Sc. 3), por exemplo, é a melhor descrição do conceito janetiano de estreitamento do campo da consciência.

Mas há um caso paradigmático que recolocou em nossos dias o interesse entre literatura e psiquiatria: o de Marcel Proust. Desde a publicação de seu monumental roman-fleuve (romance-rio) nos anos 1920 tinha-se assinalado o grande número de alusões e de metáforas de índole médica que continha, mas só recentemente descobriu-se que À la recherche du temps perdu – a empresa literária mais ambiciosa, mais inteligente e mais elaborada jamais conseguida – além de ser o suprassumo do romance, é também o crisol da psicologia experimental e da psiquiatria de seu tempo. Edward Bizub, pesquisador genebrino, iniciou uma linha de pesquisa muito frutífera ao descobrir a influência que exerceram, na gênese da obra, os trabalhos de uma brilhante geração de alunos de Jean-Martin Charcot: Etienne Eugène Azam, Pierre Janet, Alfred Binet, Théodule Ribot, Paul Sollier (seu terapeuta), Adrien Proust (seu pai). O fenômeno da divisão da consciência, um dos leit-motiven profundos dessa série de romances, seria a transposição literária das descobertas e das experiências de tais autores. Não se pode esquecer, por outro lado, que para escrever The strange case of Dr Jekyll and Mr Hyde, a expressão literária mais acabada de dissociação da personalidade (leitura predileta de Proust), Robert Louis Stevenson manteve correspondência com Janet, e que muitos dos casos dele tinham, por sua vez, uma grande semelhança com personagens de Balzac.

Algo parecido ocorre com outro dos temas centrais da obra de Proust: o sono, os sonhos, os processos de adormecer e de despertar. As descrições literárias da atividade do sono e da vida onírica atingem em Proust o nível de verdadeiras explicações fisiológicas. Recentemente assinalamos uma das fontes nas quais o romancista bebeu: Os sonhos e os meios para dirigi-los/Observações práticas, do Marquês Léon d'Hervey de Saint-Denys, a quem o neurofisiologista Allan Hobson qualificou como "o maior dos autoexperimentadores da história da pesquisa sobre o sono e os sonhos". A reedição dessa obra, por longo tempo esgotada e à qual Freud não pôde aceder, permitiu confirmar, igualmente, o que vários críticos tinham proposto: a total independência das empresas intelectuais do romancista francês e do médico vienense, que se transmutam individual e especularmente, uma em obra médica e a outra em obra literária. É por isso que para o professor Romolo Rossi, de Gênova (o jovem psiquiatra que resgatou Ezra Pound da gaiola de madeira onde o tinham trancado os soldados norte-americanos depois do desembarque aliado na Itália ao fim da Segunda Guerra Mundial), Em busca do tempo perdido é nada menos que o maior tratado de psiquiatria jamais escrito.

HÉCTOR PÉREZ-RINCÓN

Professor de psicopaologia nos cursos de pós-graduação e psiqui\troia da Universidad Nacional Autónoma de México (México, D.F.); Membro da Academia Nacional de Medicina e do Instituto Nacional de Psiquiatría Ramón de la Fuente (México, D.F.).

Calz. México-Xochimilco 101

Col. San Lorenzo Huipulco.

Deleg. Tlalpan

14370 México, D.F.

e-mail: perezrh@imp.edu.mx

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    Tradução de Adela Stoppel de Gueller
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010
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