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A periculosidade social e a saúde mental

Comentário

A periculosidade social e a saúde mental

No Código Penal de 1940, podíamos observar a presença de uma medida de segurança como necessidade jurídica para reprimir e também para prevenir o delito através da verificação da periculosidade do agente infrator da lei. Através dessa medida, cabia aos psiquiatras avaliar o "estado perigoso" daqueles indivíduos que tivessem cometido algum ilícito penal.

A medida de segurança era aplicável tanto aos doentes mentais que tivessem infringido a Lei, quanto aos reincidentes em crimes dolosos ou aos aliados a bando ou quadrilha de malfeitores (C.P. art. 78). Dessa maneira, indivíduos como o estudante de medicina recentemente envolvido no "crime do shopping" poderiam ser considerados socialmente perigosos, e a eles poderia ser aplicada a medida de segurança, assim como ao ex-deputado federal Hildebrando Pascoal ou ao traficante colombiano Joaquim Hernando Castilha Jimenez.

Em 1984, a Parte Geral do nosso Código Penal2 foi revista, e passou-se a reservar a qualificação de periculosidade social, de forma muito preconceituosa, apenas para os doentes mentais que venham a infringir a Lei (C.P. art.97). Em outras palavras, a medida de segurança fica restrita hoje apenas para os doentes mentais que forem considerados penalmente inimputáveis, o que acaba vinculando a periculosidade social às doenças mentais e estigmatizando os portadores das mesmas. Assim, com essa mudança do nosso código, no Brasil apenas os doentes mentais passaram a ser considerados perigosos. Isto fez com que o público leigo muitas vezes tenha feito uma associação errônea entre doença mental e criminalidade.

Sabe-se, no entanto, que o problema da transgressão às leis é algo muito mais complexo. O crime não é conseqüência da doença mental, mas está vinculado à incapacidade do indivíduo aceitar as normas morais necessárias para a adaptação social. A periculosidade social deve ser um assunto de estudo da psicopatologia forense, da criminologia, da sociologia, dos legisladores, ou seja, da articulação entre a saúde e a Justiça3.

A avaliação da periculosidade humana envolve não só a observação da periculosidade pós-delitiva do indivíduo, mas também a pré-delitiva, ou seja, a tarefa preventiva da "capacidade do ser humano delinqüir". A questão da periculosidade pré-delitiva é particularmente complexa, o que fica evidente pelos diversos e surpreendentes assassinatos e chacinas que ocorrem nos dias de hoje.

Para pensar sobre quem deve se responsabilizar pela avaliação da periculosidade pré-delitiva, podemos tomar como referências o exemplo do médico José Cássio do Nascimento Pitta, responsável pelo acompanhamento do estudante de Medicina acima, assim como o ocorrido com o médico Bernardo Blay há poucos anos. Em ambos os casos, esses psiquiatras tiveram sob seus cuidados pacientes portadores de transtorno mental que cometeram homicídios, não tendo sido possível observar a periculosidade pré-delitiva dos mesmos. Certamente, não foi por negligência ou imperícia que psiquiatras tão competentes estiveram impossibilitados de prever a periculosidade de seus pacientes. Mesmo assim, é comum a algumas pessoas a reação de se querer atribuir aos psiquiatras alguma responsabilidade profissional, em decorrência da falsa associação entre a doença mental e a periculosidade social. A própria imprensa, que cumpre a sua função de divulgação dos fatos, algumas vezes faz julgamentos precipitados, contribuindo para a estigmatização das pessoas envolvidas. Frente ao trágico, a sociedade procura encontrar rapidamente razões lógicas para explicar o ocorrido, ainda que no caso em questão, a periculosidade social não tenha podido ser suspeitada por pessoas de convívio próximo ao indivíduo, como familiares, professores ou colegas, nem tampouco pelos profissionais que o atenderam durante o período de internação hospitalar.

A discussão aqui apresentada não entra no mérito da avaliação da imputabilidade ou não da pessoa que cometeu o ilícito penal, ou, em outras palavras, se o Direito se utilizará da criminologia ou da psicopatologia forense para explicar o ato criminoso em questão. Pode-se prever que, de algum modo, o indivíduo será responsabilizado socialmente pelo seu ato. O que cabe aqui questionar é como a sociedade poderá encontrar formas de avaliar a periculosidade pré-delitiva num contexto de prevenção social. Certamente, a avaliação da periculosidade humana não compete apenas aos psiquiatras, mas sim a equipes multiprofissionais envolvendo profissionais de saúde e de Justiça, na medida em que sabe-se ainda muito pouco a respeito da problemática psicossocial envolvida na periculosidade pré-delitiva nos seres humanos.

É patente que não será através da associação com a doença mental ou com a toxicofilia que será possível explicar a complexidade dos atos anti-sociais. O entendimento da transgressão ao ilícito penal somente poderá ser alcançado através de um maior conhecimento a respeito da personalidade das pessoas que os cometem, e de uma melhor classificação das características comuns a estas personalidades. Dessa forma, poderá ser possível identificar as pessoas que infringem a Lei como pessoas com características na sua personalidade que não lhes permitem a adaptação social, em vez de continuar reduzindo todo e qualquer indivíduo infrator da Lei apenas sob o rótulo de portador de transtorno mental do tipo personalidade psicopática ou anti-social. Aliás, já há um aspecto positivo da nossa Lei de Execução Penal4, em seu art.5°, que prevê a necessidade de se avaliar a personalidade do condenado para individualizar a execução da pena, ainda que na prática isto não venha sendo cumprido.

O estudo multiprofissional das características humanas comuns àqueles que infringem a lei poderá viabilizar, no futuro, a identificação da periculosidade pré-delitiva e a prevenção de condutas anti-sociais. Esta identificação mais precisa poderá, apesar de todas as dificuldades envolvidas, abrir caminhos para o desenvolvimento de abordagens terapêuticas para estes desvios na personalidade de alguns seres humanos.

Claudio Cohen

Professor associado do Departamento de Medicina Legal e

Ética Médica da Faculdade de Medicina da USP. Responsável

pelo curso de pós-graduação em Saúde Mental e Justiça.

Referências

1. Código Penal: decreto 2.848 (Dez. 7, 1940).

2. Código Penal: Lei 7.209 (Jul. 11, 1984).

3. Cohen C, Ferraz FC, Segre M. Saúde Mental, Crime e Justiça. São Paulo: Edusp; 1996.

4. Lei de Execução Penal: Lei 7.210 (Jul. 11, 1984).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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