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O estresse pós-traumático em áreas afetadas pelo tsunami

Post-traumatic stress in tsunami-affected areas

EDITORIAL

O estresse pós-traumático em áreas afetadas pelo tsunami

Post-traumatic stress in tsunami-affected areas

Mal nossas retinas esqueciam as cenas dantescas dos aviões se chocando contra as torres gêmeas no 11 de setembro de 2001, quando uma tragédia de dimensões apocalípticas surge das profundezas do Oceano Índico devastando diversos países da Ásia e África. Aos mais de 280 mil mortos em 13 países somam-se meio milhão de feridos e 5 milhões de desabrigados. Trata-se do maior desastre natural de nossos tempos.

Uma vez que o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) é o mais freqüente transtorno psiquiátrico após eventos traumáticos como acidentes de carro, assalto, estupro ou desastres naturais, as atenções estão voltadas para a prevenção do mesmo nos sobreviventes do tsunami-2004. Infelizmente, há poucos estudos controlados envolvendo intervenções psicoterápicas ou farmacológicas na prevenção secundária do TEPT.1

Se não temos base científica para ações imediatas após tragédias, devemos ter um cuidado adicional com as iatrogenias. Frente ao quadro desesperador acarretado por um tsunami, corre-se o risco de esquecer o princípio básico de não infringir dano ao paciente - Primum Non Nocere. Intervenções "óbvias" podem ser iatrogênicas. Basta lembrar da prática da glicose intravenosa, sem tiamina, causando Encefalopatia de Wernicke. Abaixo, três exemplos de condutas que devemos evitar ou ter cuidado após eventos traumáticos:

1) Furor terapêutico - Evitar "patologizar" as reações de estresse que se seguem aos desastres. É imensa a base de dados demonstrando que a maioria das pessoas expostas a eventos traumáticos não desenvolve TEPT. A resiliência emocional humana frente à adversidade é um dos fenômenos que vem recebendo mais atenção dos pesquisadores que tentam entender os fatores protetores para o TEPT. A maioria das pessoas, após eventos traumáticos, apresenta sintomas como insônia, pesadelos e irritabilidade, que regridem espontaneamente com o passar das semanas. Mesmo sintomas mais característicos do TEPT, como memórias intrusivas e flashbacks, costumam remitir sem tratamento. E o mais surpreendente: um subgrupo importante de indivíduos tem relatado um fenômeno denominado "crescimento pós-traumático" (CPT). São pessoas que, a despeito do imenso sofrimento - ou mesmo do desenvolvimento de sintomas de TEPT -, referem estar emocionalmente mais fortes, ou terem amadurecido em áreas como relacionamento interpessoal após a tragédia. O surgimento de instrumentos psicométricos para mensurar o CPT fortalece uma linha de pesquisa surgida em meados da década passada.2

2) Benzodiazepínico como intervenção central na prevenção secundária do TEPT - Uma das maiores lacunas da "psiquiatria-baseada-em-evidências" é não termos dados sólidos quanto à relação risco/benefício do uso dos benzodiazepínicos (BZDs) logo após eventos traumáticos. Faz parte da experiência clínica a correta observação de que os BZDs aliviam com eficácia e rapidez sintomas tais como insônia, ansiedade, sobressalto e medo. Essa utilização "analgésica" dos BZDs aparentemente é benéfica e positiva para a grande maioria das pessoas. O que não está bem estudado é o impacto causado pelo uso central (como única intervenção) e prolongado dos BZDs no manejo dos sintomas de estresse agudo após seqüestros, assaltos, estupros, ou mesmo tsunamis. Ou seja, ainda não há dados adequados para avaliar a eficácia "profilática" dessa estratégia em termos de prevenção do desenvolvimento de transtornos relacionados ao estresse. Contudo, um alerta deve ser lançado, pois os dois únicos estudos controlados utilizando BZDs como estratégia única na prevenção secundária do TEPT sugerem que essa estratégia, além de ineficaz, possa ser iatrogênica.1 Exemplo: num dos estudos, os pacientes do grupo BZD, após seis meses, apresentaram maior percentual de TEPT (69%) versus o grupo placebo (15%). Nada há de conclusivo, pois esses estudos apresentam inúmeras deficiências metodológicas. Portanto, o que causa espanto é o fato de uma prática tão amplamente difundida quanto o uso de BZDs após traumas psicológicos estar apoiada em base científica tão frágil (ainda mais havendo possibilidade de iatrogenia em um subgrupo não identificado de pacientes).

3) Debriefing como tratamento compulsório para prevenção do TEPT - O debriefing foi criticado por ter sido usado de modo mandatório nos 55.000 policiais e bombeiros de Nova Iorque que compuseram as equipes de resgate do World Trade Center. Trata-se de uma técnica de psicoterapia de grupo que tem como um dos ingredientes principais os participantes procurarem contar aos outros as emoções sobre o que acabou de lhes acontecer. Estudos controlados3 mostram não só ausência de evidências da eficácia dessa técnica, bem como que ela pode ter efeitos negativos paradoxais para um subgrupo de participantes.

Esses três exemplos referem-se a áreas de controvérsia onde há necessidade urgente de desenhos de pesquisa com sólida metodologia quantitativa e qualitativa para respaldar as tomadas de decisão. Ilustram que tanto técnicas psicoterápicas quanto farmacoterápicas podem ter um potencial iatrogênico.

Iatrogenias também podem ocorrer nas áreas médicas não-psiquiátricas. VanRooyen e Leaning4 alertam para o risco de epidemias nos campos de refugiados que estão sendo criados para socorrer os desabrigados do tsunami-2004. Diversos estudos epidemiológicos demonstram que doenças como cólera e disenteria são incomuns após enchentes e desastres naturais. Entretanto, são doenças freqüentes em campos de refugiados. Crianças menores de cinco anos constituem um particular grupo de risco quando colocadas em grandes campos de refugiados, pois nessa situação estressante, tendem a ter alta mortalidade por sarampo e infecções respiratórias agudas. A mensagem dos autores é direta: "...Realmente, não é o desastre, mas as comunidades populosas artificialmente criadas logo após é que servem como substrato para a disseminação das doenças comunicáveis" (p. 436).4

Além de respeitar o princípio básico do Primum Non Nocere, as intervenções devem ser eficazes. Recentemente, uma incipiente literatura começa a evidenciar a eficácia de técnicas cognitivo-comportamentais na prevenção secundária do TEPT.5 Estudos recentes também procuram estabelecer o papel de intervenções farmacoterápicas como o uso de beta-bloqueadores e de cortisol logo após eventos traumáticos.1 Portanto, do Primum Non Nocere às pesquisas de eficácia e efetividade, há um longo e fundamental caminho a ser percorrido.

Ivan Figueira

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Referências

1. Pitman RK, Delahanty DL. Conceptually driven pharmacologic approaches to acute trauma. CNS Spectr. 2005;10(2):99-106.

2. Tedeschi RG, Calhoun LG. The Posttraumatic Growth Inventory: measuring the positive legacy of trauma. J Trauma Stress. 1996;9(3):455-71.

3. Rose S, Bisson J, Wessely S. A systematic review of single-session psychological interventions ('debriefing') following trauma. Psychother Psychosom. 2003;72(4):176-84.

4. VanRooyen M, Leaning J. After the tsunami--facing the public health challenges. N Engl J Med. 2005;352(5):435-8.

5. Bryant RA. Psychosocial approaches of acute stress reactions. CNS Spectr. 2005;10(2):116-22.

Versão original aceita em Português

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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