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Violência e saúde mental: como podemos fazer parte da solução?

EDITORIAL

Violência e saúde mental: como podemos fazer parte da solução?

Para a população em geral e para os meios de comunicação leigos em particular, a associação entre a violência e a saúde mental usualmente evoca a ideia, ainda que falsa, de algum terrível ato perpetrado por uma "pessoa louca". Há certamente exemplos de atos violentos injustificadamente explorados pelos meios de comunicação que foram realmente perpetrados por alguém com uma doença mental. Tais casos são, no entanto, a exceção mais do que a regra. Ao contrário do que se pensa, muito mais crimes são cometidos por pessoas sem nenhuma doença mental. Na verdade, pessoas com doenças mentais têm mais probabilidade de serem vítimas de diferentes tipos de violência do que pessoas sem nenhuma forma reconhecível de doença mental1.

De fato, todo o conceito de violência é complexo. Inicialmente, este conceito estava limitado a sua conotação jurídica, segundo a qual violência significava a violação forçada do direito ou da integridade de alguém por uma pessoa ou por um grupo. Gradualmente, esta afirmação evoluiu e tornou-se associada a outro conceito comportamental e etológico complexo, a saber, o da agressão. Se, por um lado, em seu significado original, a violência é claramente um fenômeno desviante que levou as sociedades a conceber estratégias para restringir este ato singular, por outro lado, os etólogos demonstraram que a agressão é um fenômeno inerente a todo o mundo animal, já que constitui uma ferramenta essencial para a sobrevivência tanto do indivíduo como do grupo2.

Uma definição mais precisa da violência foi dada pela 49ª Assembléia de Saúde em 1996, quando, após declará-la como um problema central de saúde pública, foi formulada a seguinte definição de violência:

O uso intencional de força ou poder físico, sob forma de ameaça ou ação efetiva, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações de desenvolvimento ou privações3 .

Em 2005, a Organização Mundial de Saúde publicou um relatório de acompanhamento intitulado Relatório Mundial sobre Saúde e Violência4. Este documento, que representou um marco divisório, propôs a tipologia da violência, que varia de acordo com características de quem comete o ato violento e pode ser dividida em 1) violência autoinfligida, 2) violência interpessoal e 3) violência coletiva. Classificou também a natureza dos atos violentos como física, sexual, psicológica e os que envolvem privação ou negligência.

Os seis artigos que formam este Suplemento analisam todos os três tipos de violência e contemplam certos aspectos da natureza do ato em si. Três artigos revisaram fatores que podem levar posteriormente ao comportamento agressivo em geral (Mendes et al.5), à prevalência de transtornos mentais em países em desenvolvimento (Ribeiro et al.6) e o impacto de maus-tratos na infância na psicopatologia do adulto refletida na disfunção do cortisol (Mello et al.7). Um artigo considerou o transtorno de estresse pós-traumático como uma aproximação da exposição à agressão/violência e explorou sua associação comórbida com transtornos de humor e ansiedade (Quarantini et al.8). Santos et al. analisaram um caso específico de violência autoinfligida, i.e., tentativas de suicídio em um hospital de emergências no Rio de Janeiro, ao passo que Prado-Lima adotou a postura prática de apresentar a base para um enfoque farmacológico racional para tratar a impulsividade e o comportamento agressivo9,10.

Se, por um lado, estes artigos revelam a má notícia de que as vítimas de violência sofrem não somente os efeitos imediatos da violência logo após a exposição, mas também efeitos negativos durante a vida, por outro lado, a boa notícia é que a compreensão dos mecanismos por meio dos quais a violência afeta os seres humanos pode abrir uma porta para o desenvolvimento de intervenções preventivas em associação com intervenções farmacológicas com base em evidências para controlar a estrutura cerebral e os mecanismos que resultam no comportamento agressivo/impulsivo.

A violência global em geral, e no Brasil em particular, atingiu tais níveis sem precedentes que, de acordo com uma pesquisa de opinião realizada em três das maiores cidades do Brasil, os cidadãos classificaram a segurança como sua primeira prioridade (http://www.comunidadesegura.org/files/pesquisavitimizacao2002.pdf). Da mesma forma, de acordo com outra pesquisa nacional realizada pelo Senado brasileiro, 86% dos entrevistados disseram que a violência não somente aumentou nos últimos anos, mas também pensavam que iria crescer nos anos subsequentes (http://www.senado.gv.br/sf/senado/centralderelacionamento/sepop/pesquisa). Isto é particularmente relevante, levando-se em conta o fato de que prevenir todas ou a maioria das formas de violência é uma tarefa que atualmente está além do nosso alcance.

Este suplemento é um testemunho do notável interesse que os psiquiatras e outros profissionais de saúde têm presentemente para entender e contribuir para a redução do impacto da violência, estudando-a não somente como um assunto acadêmico, mas também como uma questão social que tem que ser enfrentada e resolvida. Em outras palavras, um bem concertado esforço para ser parte da solução, ao contrário de ser parte do problema. No entanto, apesar do extenso terreno coberto por esses artigos, resta muito mais para ser explorado e compreendido de forma completa.

Esperamos que os artigos aqui incluídos estimulem o interesse de outros profissionais para que possam também contribuir para encontrar uma solução ao que obviamente é um problema social que requer a adoção de diferentes e variados enfoques. A solução deste problema, no entanto, somente será encontrada no futuro longínquo. De qualquer forma, quanto mais cedo encararmos a questão, maior a probabilidade de entendê-la e de se estar mais bem preparados para administrá-la. Esta é, definitivamente, uma tarefa para muitos.

José Manoel Bertolote

Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria,

Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de

São Paulo (UNESP), Botucatu (SP), Brasil

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  • 1. Large M, Smith G, Swinson N, Shaw J, Nielssen O. Homicide due to mental disorder in England and Wales over 50 years. Br J Psychiatry. 2008;193(2):130-3.
  • 2. Lorenz K. On Aggression San Diego: Harcourt Brace; 1966.
  • 3
    3. World Health Organization. Global Consultation on Violence and Health. Violence: a public health priority Geneva: World Health Organization; 1996. (document WHO/EHA/SPI.POA.2)
  • 4. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health Geneva: World Health Organization; 2005.
  • 5. Mello MF, Faria AA, Mello AF, Carpenter LL, Tyrka AR, Price LH. Childhood maltreatment and adult psychopathology: pathways to HPA axis dysfunction. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(Supl II):S41-8.
  • 6. Ribeiro WS, Andreoli SB, Ferri CP, Prince M, Mari JJ. Exposure to violence and mental health problems in low and middle-income countries: a literature review. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31 (Supl II):S49-57.
  • 7. Prado-Lima PA. Pharmacological treatment of impulsivity and aggressive behavior. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(Supl II):S58-65.
  • 8. Quarantini LC, Netto LR, Andrade-Nascimento M, Galvão-de Almeida A, Sampaio AS, Miranda-Scippa A, Bressan RA, Koenen KC. Comorbid mood and anxiety disorders in victims of violence with posttraumatic stress disorder. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(Supl II):S66-76.
  • 9. Mendes DD, Mari JJ, Singer M, Barros GM, Mello AF. Estudo de revisão dos fatores biológicos, sociais e ambientais associados com o comportamento agressivo. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31 (Supl II):S77-85.
  • 10. Lovisi GM, Santos SA, Legay L, Abelha L, Valencia E. Epidemiological analysis of suicide in Brazil from 1980 to 2006. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(Supl II):S86-93.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
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